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AJEUN: ALIMENTAÇÃO E ESPIRITUALlDADE NA UMBANDA: CONSI DERAÇÕES SOBRE O TERREI RO J/CASA DE SANTO ANTÔNIO" - BATURITÉ- CE Anna Erika Ferreira Lima Márcia Maria Leal de Medeiros Introdução o tema surgiu inicialmente pela aproximação das au- toras com a discussão da alimentação, em um primeiro mo':' mento pelo curso de Gastronomia, do qual são professoras desde 2010; e posteriormente por se consubstanciar como um fascínio pessoal através das leituras sobre os cultos afro-bra- sileiros e suas influências nos costumes e hábitos alimentares da sociedade contemporânea. Apresentando natureza inter- disciplinar, a discussão teórica perpassou por leituras na área das ciências sociais, geografia, antropologia e história. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com filhos de santo, e com o Pai de Santo responsável pelo Terreiro "Casa de Santo Antônio" - objeto de estudo -localizado na cidade de Baturi- té, a 106 km de Fortaleza. Durante as entrevistas, inicialmente os sujeitos sociais falaram sobre as histórias e o funcionamen- to do terreiro e da umbanda no Brasil; explanaram sobre suas escolhas para se iniciarem na Umbanda e finalmente focaram no objetivo principal - a alimentação e sua utilização nos ri- tuais empregados em um terreiro de Umbanda. Vale ressaltar que esta pesquisa é parte integrante do Projeto "Alimentos Tradicionais do Nordeste (ALINE)", fi- nanciado pelo MCT/CNPq n? 019/2010 e coordenado pelo Professor José Arimatéia Barros Bezerra da Pós-Graduação do curso de Educação da UFC. 260 ~

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AJEUN: ALIMENTAÇÃO E ESPIRITUALlDADE NA UMBANDA:CONSI DERAÇÕES SOBRE O TERREI RO J/CASA DE SANTO ANTÔNIO" -

BATURITÉ- CE

Anna Erika Ferreira LimaMárcia Maria Leal de Medeiros

Introdução

o tema surgiu inicialmente pela aproximação das au-toras com a discussão da alimentação, em um primeiro mo':'mento pelo curso de Gastronomia, do qual são professorasdesde 2010; e posteriormente por se consubstanciar como umfascínio pessoal através das leituras sobre os cultos afro-bra-sileiros e suas influências nos costumes e hábitos alimentaresda sociedade contemporânea. Apresentando natureza inter-disciplinar, a discussão teórica perpassou por leituras na áreadas ciências sociais, geografia, antropologia e história. Foramrealizadas entrevistas semiestruturadas com filhos de santo, ecom o Pai de Santo responsável pelo Terreiro "Casa de SantoAntônio" - objeto de estudo -localizado na cidade de Baturi-té, a 106 km de Fortaleza. Durante as entrevistas, inicialmenteos sujeitos sociais falaram sobre as histórias e o funcionamen-to do terreiro e da umbanda no Brasil; explanaram sobre suasescolhas para se iniciarem na Umbanda e finalmente focaramno objetivo principal - a alimentação e sua utilização nos ri-tuais empregados em um terreiro de Umbanda.

Vale ressaltar que esta pesquisa é parte integrante doProjeto "Alimentos Tradicionais do Nordeste (ALINE)", fi-nanciado pelo MCT/CNPq n? 019/2010 e coordenado peloProfessor José Arimatéia Barros Bezerra da Pós-Graduaçãodo curso de Educação da UFC.

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Permeada de sincretismo religioso, ou seja, por umafusão de concepções religiosas diferenciadas, a alimentaçãovotiva, apresenta reflexos no cotidiano da mesa laica e trazconsigo uma gama de elementos, vegetais e animais, muitosprovenientes da África e que até hoje, no Brasil, são utilizadoscomo forma de manter a religiosidade e refletir a espirituali-da de dos grupos de umbanda.

Assim, a umbanda se caracteriza como uma religião quetraz a preocupação com os alimentos consumidos e destinadosàs entidades (Caboclos, Pretos-Velhos, Boiadeiros, Exús, Pom-bas-Giras, Erês), O que é possível apreender nesse contextoé que os alimentos destinados às entidades homenageadas,são facilmente identificados em nosso dia a dia. Desta forma,iniciou-se a pesquisa com o objetivo de compreender como osalimentos provenientes da cultura africana foram sendo uti-lizados nos rituais, adicionados e adaptados aos rituais, comobjetivo de possibilitar a manutenção da cultura afrodescen-dente da umbanda no Brasil, assim, sustentável à medida quea cultura alimentar é conservada e disseminada.

É importante destacar, conforme Capra (2002) que notexto Culture do historiador Raymond Williams vai se buscaro sentido da palavra "cultura" no uso que tinha na antiguida-de, quando era um substantivo que denotava um processo: acultura, ou seja, o cultivo, de cereais, ou a cultura (a criação)de animais.A raiz da palavra remete ao plantio, ao labor daação de cultivo, sendo que no século XVI, esse sentido recebeuuma extensão metafórica e a palavra passou a designar o cul-tivo da mente humana; e no fim do século XVIII, ela adquiriuo sentido do modo de vida particular de um povo, ou mesmo"modos de vida específicos", os quais são transmitidos atravésde ensinamentos.

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o Ajeum significa "refeições", sendo este um exemplode ritual da cultura afrodescendente. Tal termo advém dalíngua ioruba o qual se caracterizou como o momento de ce-lebração em que se pode perceber de forma mais evidente a

.preocupação com o alimento, sua escolha, modo de preparo,disposição até o momento do consumo sendo utilizado comomotivação para festas públicas em terreiros.

Compreensão Histórico-Antropológica sobre a Alimentação: BrevesConsiderações sobre a Umbanda

A alimentação acompanha o homem desde os primór-dios, evoluindo na tecnologia de cultivo, modo de preparo econsumo. Ou seja,

a história da alimentação encontra-se envolta em nossocotidiano, isto é, nas relações sociais da vida diária,como trocas afetivas em torno da mesa, nas receitaspassadas de geração em geração, nos modos de preparode um prato, nos utensílios empregados [...] entre outrosaspectos (ZUIN; ZUIN, 2009, p.61).

Diretamente ligado a esses elementos, apreendemosque a tradição é essencial para a identidade e a preservação deuma cultura, e logo, da sua história. Mas como uma tradição émantida? Essa questão é levantada por Zuin; Zuin (2009) vis-to que a mesma é constituída por rituais, símbolos e valores,as práticas ritualísticas desenvolvidas pela umbanda são tra-dições seculares advindas da África e facilmente percebidasem nosso cotidiano. Ao passo que surgiu a cultura nasceramas tradições, a fim de que ajudassem o homem a transmitir ossaberes construídos historicamente (ZUIN; ZUIN, 2009). Éum claro processo de ensino-aprendizagem que possibilita asustentabilidade do modo de fazer e viver na umbanda.

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Dessa forma vê-se a ligação direta da alimentação coma cultura dos povos e os rituais para o Ajeum. Segundo Ribei-ro (2009), "Ajeun é o termo Yorubá destinado às refeições.Sua tradução mais literal é "comer" e constitui o ato de comere dar de comer às entidades nos centros de religião afro-brasi-leira" (p.i) sejam da umbanda ou do candomblé.

Vale estabelecer aqui uma diferenciação sobre a um-banda e o candomblé, bem como, estas religiões veem a ali-mentação. Ribeiro (2009) afirma que a Umbanda foi origina-da do sincretismo candomblé-católico-kardecista.

Com a chegada dos negros, e com eles a crença em novasentidades espirituais, a igreja católica, e o Estado a elaligado, proíbe esses cultos, forçando aos praticantesa encontrarem uma forma de preservar sua fé, obe-decendo aos padrões estabelecidos pela Igreja. Surgeassim a relação dos. santos católicos com os orixás docandomblé. Oficialmente, a umbanda foi criada nos pri-meiros anos do século XX,sob influência do kardecismoEuropeu 10. (SILVA,2007, P.38).

Diferentemente do candomblé, na umbanda faz-se usode uma variedade e quantidade de frutas nas suas oferendas.Nos chamados terreiros, o que se apreende é o fato das enti-dades serem o centro das devoções, por esta razão, observa-sea prática de alimentar as entidades, fazendo uso de diversosgrupos alimentares.

O estudo de caso do terreiro "Casa de Santo Antônio"não é diferente da realidade disseminada pela própria religiãoumbandista. A aquisição das frutas é facilitada pela sua boadisponibilidade própria da região do Maciço de Baturité.

O município de Baturité, localizado a 106 km da capitalicarense, possui parte de sua região na serra, que devido aossolos e condições climáticas mais amenas é identificada comorelevante área de produção e distribuição de frutas no Estado.

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Entre as frutas podemos destacar a banana, a manga, a jaca,a melancia, a carambola e a acerola. Conforme o Pai de SantoRCL (30 anos),

A gente escolhe usar as frutas daqui da terra mesmo ...do nosso chão por causa do solo, das nossas raizes queestão aqui ...a terra limpa [...] pura [...] os frutos colhi-dos pela nossa gente mesmo [... ] (RCL, Pai de Santo,30 anos, Entrevista realizada em 04 de julho de 2012).

Tal assertiva permite-nos entender a forte relação exis-tente entre as práticas ritualísticas e a terra, bem como, a re-gião onde esses cultos são estabelecidos. O pai de santo aindaindica como é importante para a umbanda o alimento estarpuro, neste caso, livre de pesticidas e destaca a relevância deserem plantados e colhidos por pessoas da própria região.

Fazendo um estudo sobre a história da alimentação eos tipos de hábitos alimentares de cunho religioso, pode-seobservar a influência que alguns hábitos alimentares possuemem função de suas crenças e religiões. Cheia de crenças e mis-ticismos, a comida não vem sanar apenas uma necessidademomentânea, indo além, recheando a história, incrementan-do as tradições e temperando o dia a dia.

O hábito alimentar do povo brasileiro surgiu com baseem três matrizes principais: o europeu, o indígena e o africa-no. Nesse caso remetemo-nos à Câmara Cascudo (2004) emque seu livro História da Alimentação no Brasil o mesmo di-vide a África em duas regiões no que tange aos povos que vi-viam nessas áreas. Seriam elas identificadas como Sudanesese Bantos. Para Cascudo (2004), a área dos Sudaneses engloba-va a região noroeste, litoral atlântico, e central do continente,onde localizam-se, essencialmente, hoje Guiné (o maior ex-portador de negros africanos para a América), Nigéria e Gana.

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Conforme o autor, os Bantos possuíam um territóriomais extenso, que ia da costa oeste até o extremo leste e su-deste, no lado mais oriental da África, atualmente identifica-dos por países como Angola e Congo (estes dois junto à Guinétambém enviavam negros para a América), bem corno, Zâm-bia, Zimbábue e Moçambique (CASCUDO, 2004). É impor-tante frisar que estes escravos eram conhecedores do gado,diferentemente do indígena americano. Tal fato reflete-se nastécnicas de cozimento e preparo da comida, padrões alimen-tares, preferências e simpatias.

Utilizadores de tais técnicas e unidos a isto detentoresdo uso de especiarias e iguarias como pimentas e ervas, alémde leguminosas e frutas, estes não foram os responsáveis portrazer esses produtos para a Europa, mas sim pelos senhoreseuropeus que tinham o intuito de promover uma boa adapta-ção do escravo nas novas condições em que iriam trabalhar(CASCUDO,2004)·

Com a ampliação do tráfico negreiro no século XVIItornou-se menos difícil trazer as plantas da África que eramconhecidas pelos negros, os quais, mesmo diante da restriçãoalimentar, apresentavam indícios de exigências por sua vege-tação conhecida, como

[...] os hibiscos, o quiabo, quingombô, gombô ... a vi-nagreira [...] quiabo da Angola, caruru da Guiné [todostipos de quiabo]; as dioscoreáceas, inhame liso, inhameda índia [todos variações de inhame] [...] erva doce[...] o gengibre amarelo [...] gergelim [...] (CASCUDO,2004, p.220).

Entretanto, nem tudo era adquirido e o que era trazidopor vezes se deteriorava na viagem. Assim, uma adaptação foiinevitável no que se referia aos alimentos ofertados aos orixásc entidades, ocorrendo, dessa forma, a inclusão de alimentos

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americanos, neste caso especificamente brasileiros, nestes ri-tuais como a inclusão do milho nas comidas de Oxossi', Ie-manjá", Omolú'' ou Xapanã+ que também gostam de pipocas,o feijão para Oxum, o fumo no culto de Írôkôõ, e farinha demandioca no amalá" para Xangô. Serão conquistas brasilei-ras e não fidelidadessudanesas no cardápio dos orixás (CAS-CUDO, 2004). A partir desse pensamento voltamos o olharpara a religião aqui destacada e o estudo de caso do Terreiro"Casa de Santo Antônio" localizado no Município de Baturité- Ceará, onde serão identificados os alimentos para além doarriar (oferecer) por retribuição por alguma graça alcançadaou agradecer e pedir perdão, mas também, conforme Amaral(2007), para fortalecê-los, simbolicamente, de atenção, res-peito, reconhecimento, amor e confiança.

OsAlimentos e a Relação com a Umbanda: influências, heranças e rituais

A umbanda utiliza comidas para agradecer e pedir. Asoferendas têm que ser do gosto particular de cada entidadecom uma característica em comum entre elas, todas são pre-

1 OXÓSSI (ODÉ): Seus recursos, na Umbanda, vêm de todo o verde do mundo,já que a ele estão associados Ossãe (o Orixá das ervas medicinais e religiosas),Otim e todos os Orixás das matas e campos agrícolas (TRINDADE et ai, 2008).2 Seu caráter maternal e protetor é célebre nos mitos, tanto que divide as atribuiçõesda gestação e fartura na Natureza com Oxum, sendo que a segunda tornou-sea guardiã das crianças pequenas (as que não falam ainda) e Iemanjá continuaacalentando, maternalmente, toda a Criação (VERGER, 2002).

3 Esse é o Orixá da cura e da saúde (TRINDADE et ai, 2008).4 Orixá conhecido por sua ira e vingança contra malfeitores e pessoas que nãopossuem respeito e honestidade, sendo considerado de forma respeitosa em todasas Nações da África ao Brasil (TRINDADE et ai, 2008).5 Do iorubá Írôkô é um orixá cultuado no candomblé do Brasil pela nação Ketue, como Loko, pela nação Jeje, sendo considerado como um orixá fitomorfo. NoBrasil é representado pela árvore "gameleira." (VERGER, 2002).

6Amalá é comida ritual votiva do Orixá Xangô, Iansã, Obá e Ibêji (JACQUES, 2005).

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paradas com um ritual. E, nesse contexto, os alimentos quepodem ser oferecidos aos orixás e entidades podem ser clas-sificados em duas categorias conforme Amaral (2007): a) ogrupo corresponde aos alimentos sacrificais, ou seja, aquelesem que animais são sacrificados, e seu sangue (eje) é oferecidojuntamente com suas partes vitais como o coração e fígado(àse) para a entidade;

No caso específico do Terreiro "Casa de Santo Antônio"de Baturité, na comunidade de Antônio Diogo, o Pai de Santodestaca que

[ ...] a sangria são as matanças [...] de penosas que sãoas galinhas, de porcos e matança de carneiro. Agoraos carneiros são para os grandes reis das encruzilha-das; são as autoridades maiores no caso para TrancaRua, para Exú Caveira que são mais pra eles e emmuitos terreiros também que a gente ainda não tevea oportunidade de fazer foi matança também de boique também é feita para o caboclo. Já para o Nêgoseu ChicoFeiticeiro (Nêgo Chico),para os mestres dascasas éfeita a matança e oferenda da alimentação doporco [...] e pro seu Raimundão da Jurema tudo issosão feito a alimentação deles, são feito uma alimen-tação mais grosseira, rabada do porco, panelada doporco, esse tipo de alimentação, comidas mais pesadaspros mestres da encruza (RCL, Pai de Santo, 30 anos,Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

E o b) grupo referente às "comidas secas" que são osalimentos como frutas (banana, maçã, melancia), quiabo, ma-xixe, milho, feijão, entre outros, não havendo assim a necesi-dade de derramar o sangue do animal,

É, a gente sempre arreia alimentação pros caboclosdas matas, a alimentação pros cabocos da matas, [...]sãofrutas, muitasfrutas, são bananas, maçã todo tipoquanto qualidade de fruta e coisas que venha da terra

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jerimum, maxixe, quiabo, feijão verde, batata doce,todo tipo de batata. A gentefaz as oferendas pra elespara os caboclos das matas e para os pretos velhostambém vai quase nesse ritmo as coisas da terra quesão o café, café amargo, café em pó, o fumo em roloa folha do fumo, o fumo já no pacote, tudo isso sãooferendas que a gentefaz. Para Obaluaiê a gente temo costume de fazer o banho de pipoca a gente ofertapra ele a pipoca e aflor de Obaluaiê é a pipoca. (RCL,Pai de Santo, 30 anos, Entrevista realizada em 4 dejulho de 2012).

Percebe-se ainda que os alimentos que não são compra-dos nos mercados advindos de áreas de plantio e colheita dopróprio Maciço de Baturité, são os do tipo industrializados,incluindo neste caso o café e o milho de pipoca. No caso doangu de milho, este é preparado com milho triturado indus-trializado em uma panela de barro, e é ofertado para os cabo-cos e para os orixás.

No entanto, dentro de uma perspectiva mais abrangente,o Pai de Santo afirma que no caso dos alimentos mais usados,

[. ..] a gente compra [...] no mercado, as penosas tam-bém são compradas lá.Agora assim ... quando a gentetem alguém que possa trazer da própria terra sem sercomprada as coisas, banana para os caboclos das ma-tas, [...],macaxeira essas coisas,frutas, legumes [...]elestrazem e a gentefaz as oferendas. (RCL,Pai de Santo,30 anos, Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

Entretanto, o que a religião preconiza é que os insumosutilizados no preparo das comidas, em sua maior parte têmque ser orgânicos de preferência cultivados pelos próprios um-bandistas. Os animais devem ser criados pelos próprios prati-cantes ou comprados em casas especializadas. As preparaçõesdevem ser feitas em fogão a lenha por pessoas preparadas para

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essa função. Carvalho (2011), indica como se estabelecem essasrelações com a natureza ao colocar a importância da relação

[... ] mantida pelo povo de santo com as matas, rios,cachoeiras e demais espaços naturais é de grande impor-tância. Muitos espaços naturais estão ainda preservadosnas cidades inventariadas devido aos trabalhos feitospelos adeptos para atender aos orixás, que exigem seuslugares de manifestação limpos e intactos. Onde existedespacho, é sinal de que as matas estão bem cuidadase as lagoas e as cachoeiras têm água limpa. A relaçãodos terreiros com a terra e com a água é constitutiva econstante, e essa relação é sempre ambientalmente cor-reta: respeitosa, preservacionista, amorosa e cuidadosa.(CARVALHO, 201, p.S1).

Segundo o Pai de Santo RCL,

°certo pra ser tudo feito é no fogão a lenha, mas aquina minha casa não tem e tem que ser feito na panelade barro principalmente semente de Obaluaiê que é apipoca que tem que ser na panela de barro ou entãojunto com o carvão que é colocado a brasa coloca omilho dentro e ele mesmo se papoca ele mesmo sevira e então eles são preparados dessa forma dessamaneira cada um da sua forma da sua maneira sãoarriadas dentro do alquidar/ para isso nãopode tá coma matéria suja. (RCL, Pai de Santo, 30 anos, Entrevistarealizada em 4 de julho de 2012).

Existe a consciência sobre como preparar os alimen-tos corretamente, entretanto, existe também uma limitaçãofinanceira para atingir os objetivos. E como se trata de umterreiro em processo de construção, o referido fogão à lenha,tão importante neste processo, não foi identificado. Ademais,foi também identificado que existem no terreiro (Ilê) , além

7 o alguidar, é um vaso de barro ou metal, de uso doméstico, em forma de coneinvertido.

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BCCE/UFC

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da comida oferta da às entidades, determinados objetos comoatabaques que devem possuir axé suficiente para que, a partirde .uma mesma frequência energética, poderem se conectarcom as entidades. Não obstante ao fato do atabaque, todos osdemais objetos ligados ao orixá devem também ser alimenta-dos, mas não necessitam de uma constante alimentação paramanter o axé, diferentemente do que ocorre com os orixás eentidades (SILVA,2007).

Essa relação diretamente vinculada à natureza é umaconstante na umbanda, principalmente por acreditar-se que oaxé é conseguido pela energia advinda da terra, do ar e do ali-mento, bem como a forma como ele é preparado. Geralmente,quem prepara o alimento na cozinha do terreiro é a Jyábassé,a mãe da cozinha. Para Amaral (2004), geralmente esta fun-ção é ocupada por uma mulher que "não sangre mais" (RCL,Pai de Santo, 30 anos. Entrevista realizada em 4 de julho de2012) porque o sangue advindo da menstruação se consubs-tancia como um tabu, cuja associação é efetivada com a mor-te. Ou mesmo que não esteja menstruada como afirma o Paide Santo RCL (30 anos): ./

No casodas mulheres elas nãopodemfazer alimentaçãonem pode fazer incorporação no dia que elas estiveremfértil ou no dia que estiver de vermelho, menstruada,tem que serfora desse período. (RCL, Pai de Santo, 30anos, Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

O Pai de Santo é responsável pela cozinha. Segundo omesmo,

A comida dessa casa por enquanto quem estáfazendosou eu, mas toda vez que voufazer uma comida é coma participação de todofilho de santo. Porque é apren-dizagem é ensinamento, todos os domingos são baiasaberta para toda a comunidade. [...]e na segunda-feira

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trabalho só para filho de santo, é o trabalho de desen-volvimento, [. ..] que eu em terra passo a aprendizagemde alimentação e as cabocas quando vêm passamtambém a aprendizagem como elas gostam da alimen-tação, como épra ser feita uma matança, porque não équalquer que podefazer uma matança; o mesmo parafazer uma sangria ... Você tem que ter mão defaca parapoder você fazer isso, o pai de santo tem que ter mãodefaca, tem que ser feito uma consagração para que opai de santo possa ter permissão para que possa fazeruma sangria. Filho de Santo nenhum ainda da minhacasa tem permissão ainda de fazer uma matança elepode ajudar e aprender a matança. (RCL, Pai de Santo,30 anos, Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

Entretanto, dúvidas perpassam sobre este depoimento,visto que a exemplo do "amalá", que consiste em um pirão demandioca com caruru (quiabo cortado, temperado com den-dê, camarão e cebola), o qual é oferta do a Xangô. Afinal decontas, o que torna esses alimentos especiais é a forma que osmesmos são feitos, ou mesmo "não chegar o orgasmo com al-guém e nem sozinho." (PAI DE SANTORCL,30 anos). Existeainda toda uma preparação para fazer o ajeun,

O pai de santo tem que tá preparado com a matérialimpa [...]. tanto eu como osfilhos de santo [...] tem quetá limpo epurificado e antes da preparação a gente têmque fazer um banho de descarrego, ainda depois um ba-nho de alevanta para pedir proteção para fazer aquiloali. Não pode ser com qualquer roupa tem que ser coma roupa da umbanda [...], pra poder ter aforça do seupensamento nada de muita zuada (barulho) ...pertur-bação ... grito essas coisa ligadas pra poder não sair desintonia. Sempre que for fazer uma alimentação tem queter umponto do caboclo ali do teu lado, porque antes de tufazer o chamado dele pra ele poder vim já ficar olhandoo que ele vai receber quando terminar elajá tá ali prontopra receber a alimentação. (RCL, Pai de Santo, 30 anos.Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

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Atenção também deve ser voltada aos utensílios neces-sáriospara depositar o ajeun. Sendo que normalmente taisrecipientes são feitos a partir de materiais naturais como por-celana, madeira e barro. Havendo para a escolha do utensílioa orientação e determinação do orixá e suas qualidades (AMA-RAL,2007), bem como uma preparação diferenciada da casa.

A preparação da casa na questão de que todos os reci-piente que vai serfeito tenho umas panela aqui que nãopode ser trabalhada nem usada com as coisas da minhacasa da minha alimentação. Certo? Só as panelas doscaboclos. Os alquidares de cada caboclo tem o seuparaque não possa misturar, então essa preparação deveter uma defumação dentro do terreiro, uma defumaçãodentro da minha casa também para poder preparar oambiente para poder preparar a alimentação do ca-boco. No dia de sangria, que é alimentação também, éfeito todo um preparo. Opreparo da casa a gente colocauma cortina branca lá, cobrindo o altar de Oxalá praque aquela matança, aquele sangue, aquela energia,não atingir os anjos de guarda para que nãopossaficarnenhuma kizila na hora da matança, porque há umalegião muito forte que rodeia a casa toda então isso agente tem queproteger muito, ter muito cuidado com alinha branca, com a linha dos em. (RCL, Pai de Santo,30 anos. Entrevista realizada em 4 de julho de 2012).

[ .. .] Na hora da matança se tiver algum visitante defora que tenha medo ele não podeficar, se tiver pena elenão pode ficar, ele tem que se retirar; se tiver mulhergrávida tem que se retirar um pouco; se tiver criançanão pode de maneira alguma. Durante a preparaçãoda alimentação do caboclo das mata tem que ter muitosilêncio em todas as alimentações, não pode tá com cor-reria não pode tá com andança, {...J,falando o que nãodeve, com brincadeira isso não pode dejeito nenhum.(RCL, Pai de Santo, 30 anos. Entrevista realizada em 4de julho de 2012).

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Considerações Finais

Esse estudo mostrou que a Umbanda utiliza os alimen-tos em seus rituais, mantendo-se o mais fiel possível às tradi-ções alimentares e a cultura, inseridas na atual realidade. Apreparação do alimento na Umbanda é um ritual admirávelde respeito à natureza - presente nos alimentos e em todosos seres que possuem um sopro de vida - uma vez que seempenha em cuidar do alimento de forma mais pura e na-tural possível, desde o plantio até chegar à cozinha onde setransformará em oferenda, alimentando o corpo e o espírito.Em consequência tem-se como retorno a manutenção de suasobrevivência, pois na busca pelo equilíbrio homem-naturezade forma contínua, protege-se e preserva-se a vida, por estaragradando aos espíritos da natureza.

Se a natureza está bem eles estão bem, sendo possívelassim visualizar claramente o pensamento sustentável, queparte da umbanda, em relação as suas práticas ritualistas e aomeio ambiente. Essa busca por equilíbrio se caracteriza comoo sustentáculo da umbanda que, por meio de seus rituais esta-belece o fortalecimento dos seus vínculos com ancestrais afri-canos, os quais permitem que a religião seja mantida. Eviden-temente ocorreu uma fusão entre os conhecimentos nativosdo país de origem e os conhecimentos adquiridos na América,além de haverem ocorrido adaptações com relação aos uten-sílios, e mobiliários domésticos - exemplo disso - a não uti-lização de fogão à lenha. Fatores esses que não diminuem ossignificados que permeiam a religião e os seus significantesnão só se mantém como se reproduzem entre aqueles que aseguem por meio dos rituais.

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Concluiu-se que a Umbanda oferece importante contri-buição à preservação da cultura e das práticas tradicionais ali-mentares, e, que deve ser enaltecida, em oposição a opiniõesdiversas que pregam sobre sua falta de seriedade, rotulando-acomo uma cultura inferior (como se assim fosse possível) pra-ticante de rituais de baixa magia, o que contradiz uma máxi-ma defendida pelo Dalai-Lama o qual defende que "a melhorreligião é aquela que te faz melhor."

Referências

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