aires almeida santos: introdução e mulemba

15
7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 1/15  1 Introdução à poesia de Aires de Almeida Santos (Chinguar, 13.4.1922 –  Benguela, 3-9-1992) Aires de Almeida Santos nasceu no Chinguar (Bié), faleceu em Benguela e deu nome a uma das artérias mais importantes desta cidade. Ainda criança foi viver para a capital das acácias e das casuarinas, onde fez os estudos primários. Morou também no Huambo, onde realizou estudos secundários e começou a publicar. Foi preso por ideias subversivas logo em 1941, mais tarde remetido para Luanda pela polícia colonial e arrolado no ‘processo dos 50’ . Saiu da prisão pouco tempo antes da independência, passando a viver com residência fixa em Luanda. Trabalhou ainda em Benguela como contabilista, no antigo

Upload: francisco-soares

Post on 07-Mar-2016

184 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Texto introdutório à lírica do famoso benguelense, seguido de crítica e análise do poema «Mulemba». O primeiro publicado na reedição de Meu Amor da Rua Onze (Luanda: nossomos, 2014) e o segundo na revista Mulemba (RJ: UFRJ,2009).

TRANSCRIPT

Page 1: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 1/15

 

1

Introdução à poesia de

Aires de Almeida Santos(Chinguar, 13.4.1922 –  Benguela, 3-9-1992)

Aires de Almeida Santos nasceu no Chinguar (Bié), faleceu em Benguela e deu nome a uma das artérias

mais importantes desta cidade. Ainda criança foi viver para a capital das acácias e das casuarinas, onde

fez os estudos primários. Morou também no Huambo, onde realizou estudos secundários e começou a

publicar. Foi preso por ideias subversivas logo em 1941, mais tarde remetido para Luanda pela polícia

colonial e arrolado no ‘processo dos 50’. Saiu da prisão pouco tempo antes da independência, passando

a viver com residência fixa em Luanda. Trabalhou ainda em Benguela como contabilista, no antigo

Page 2: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 2/15

 

2

Grémio das Pescas. Trabalhou e viveu alguns anos no Lubango depois da independência. Cofundador da

União dos Escritores Angolanos, foi Prémio Nacional de Literatura em 1989.

Desde muito cedo, continuadamente apesar do escasso número desobreviventes, seguiu o apelo da escrita literária, principalmente lírica esubjetiva. Segundo o próprio: “eu comecei a escrever muito novo, por

volta dos meus 14, 15 anos. Os primeiros ensaios literários, entre aspas,evidentemente, foram num jornal do Huambo, quando eu aindafrequentava o Colégio Alexandre Herculano. Depois, o gosto ficou sempre.O primeiro original que eu preparei deste livro [Meu amor da rua onze ]continha na altura cerca de cinquenta poemas. Circunstâncias diversasfizeram com que desaparecessem vários desses meus poemas... E, como

diz o David Mestre, deu muito trabalho ir apanhar um aqui, outro acolá,outro além... A minha filha chamou a si esse trabalho e ela tem estado afazer um trabalho de recolha com uns amigos.” (Laban, 1991, pp. 81, 82).

As dificuldades prendem-se também com a dispersão editorial: colaborou

em diversos jornais e revistas de Angola como O Intransigente  (Benguela),O Planalto  (Huambo), O Lobito , entre outros. Figurou também em várias

antologias lusófonas e não só, bem como em muitas páginas de poesiaem rede, nem todas confiáveis.

Dentro da profunda ligação e solidariedade com o nosso ambienteliterário e político, Aires de Almeida Santos é um nome com lugar muitopróprio no panorama da poesia nacionalista angolana. Pese embora a

deambulação biográfica e o facto de  as características técnicas dascomposições se assemelharem às dos poemas de Viriato da Cruz, o

espaço das referências e o tipo da vivências representadas impossibilitamo mero enquadramento da sua lírica num grupo que se cristaliza

principalmente numa revista de Luanda, com a qual se identificava masem que nem sequer chegou a participar (Soares, 2001, p. 195). A sua

obra, curta mas decisiva, está profundamente marcada pela vivência naBenguela crioula, cujos tentáculos boémios se estendiam à vila daCatumbela e à cidade do Lobito. Mário António reconhecera já esteaspeto: “Ayres de Almeida Santos, radicado em Benguela, é um poeta que

se confunde, nas suas qualidades e nas suas limitações, com a cidademestiça que lhe serve de fundo aos seus poemas. A primeira notícia que

tive a seu respeito foi através de «Coimbra em África»: Victor Mattos e Sá,na sua já mencionada conferência, considera-o o poeta mais africano do

seu conhecimento; o autor do livro, o Dr. Almeida Santos, que o ouviudizer os seus poemas, refere-se-lhe dizendo «o poeta de quem tenho o

Page 3: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 3/15

 

3

nome mas não o talento» - e todos sabemos que o ilustre advogado é

pessoa talentosa.” (Oliveira, 1989, p. 176).

Dessa boa boémia crioula e da correspondente escritura é exemplo o maisfamoso dos seus poemas, até hoje continuado na semiosfera urbana deAngola: «Meu amor da rua onze», que dá título à única recolha de versos

que dele nos ficou (Santos, Meu amor da rua onze, 1989). Não só exemplodisso, mas ainda mais de um dos dois tipos mais praticados pelo poeta.

Este primeiro tipo, a que se pode agregar o «Poema para minha filha»,

escrito na “Cadeia Comarcã de Luanda 14/01/1966 ”, caracteriza-se poruma linguagem muito subjetiva, uma fala delicada e inflamável, sensível,atenciosa em extremo. É a face elegante e romântica dessa boémia

inspirada. Nela predomina um «eu» masculino que se dirige a um «tu»feminino com extrema dedicação. Fala-nos de sentimentos, afetos edesejos que relacionam as duas pessoas e sempre reportando a

enunciação do discurso a si próprio. São, portanto, poemas fortementesubjetivos e expressivos.

Outros  seus poemas parecem modelar-se pelas alegorias, pelasmetonímias e pela representação de um quadro exemplar, quase nuncareportado a si próprio. Há familiaridade, por aí, com os poemas de Viriato

da Cruz, igualmente muito populares e musicados, inseridos numapesquisa poética da identidade local, constituindo cada qual um quadro

específico, fundador, geralmente com uma pequena narrativa inclusa,funcionando por metonímia para descrever toda a situação da cidade e,

por extensão, do país. A cidade é que muda, como disse e com ela mudaligeiramente o léxico (o vocabulário), alguma expressão popular. Ao ler-

se cada um dos poemas desse segundo tipo deve-se, portanto, colocar omomento histórico-político vivido numa coluna e a estória ou o quadrosugeridos em outra, comparando-se depois as duas ‘realidades’. É uma

leitura tabular. Pode ser usada para lermos «A mulemba secou» (fazendoequivaler a mulemba a tudo quanto é-foi vital, típico e se estiolou com oavanço de uma economia depredadora, voraz, capitalista e colonizante).Pode ser usada para ler a “estória que o vento trouxe”, que é muito maisdo que uma estória de amor entre marido e mulher, faz o retrato da

situação social dos pescadores de um dos musseques de Benguela –  terraonde essa palavra está presente no Casseque , justamente um grandebairro de pescadores também, ainda que não só.

Em ambos os tipos de poemas, o que não se consegue, ou não se pode,

escrever é assinalado por reticências e outras figuras de suspensão (quedeixam a leitura em suspenso, que deixam o leitor com a suspeita de

Page 4: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 4/15

 

4

haver algo mais para ouvir ou ler, enfim, para pensar e sentir, que o autor

se recusa, no entanto, a tornar explícito). Essas figuras passam para asmãos do leitor a função criativa de continuar o poema preenchendo o

respetivo não-dito, que não é sempre de caráter político-partidário. Na

verdade, várias vezes o não-dito é relativo a episódios e implícitos locais,a exemplo do que sucede nos pequenos aglomerados, onde o não-dito éconsabido.

Isso reforça o desfrute empenhado, a adesão do leitor ao texto, que ainda

é despertada ou animada por um jogo de rimas casuais (ou seja: semnenhuma regra que preveja a sua ocorrência). Trata-se de um recurso

poético muito característico do meio do século XX e que vemos, porexemplo, em Portugal em vários poetas do grupo da Távola redonda , comoDavid Mourão-Ferreira. Ele caracteriza também a lírica de Alda Lara,

outra grande referência da poesia em Benguela, cujo irmão seguirá aspisadas boémias e poéticas de Aires de Almeida Santos.

O leitor, acompanhando as frases coloquiais repartidas entre versos,

entre segmentos rítmicos, é de quando em quando apanhado de surpresae religado a uma parte anterior da frase, do período, ou simplesmente doassunto, pela coincidência de sons que faz a rima atuar como um sinomarcando o tempo, um tempo circular. Não havendo regra, o efeito desurpresa não se desfaz, porque só a previsibilidade adormece o ouvido e

a ausência de regra bloqueia a previsibilidade.

A inquietação estética fica registada por esse uso aleatório das

sonoridades (seguindo um rigoroso ouvido interno e uma palpávelcoloquialidade), pela deslocação gráfica dos versos (ou das estrofes) napágina, destacando assim alguns conteúdos e dando uma imagem visualda progressão do discurso do autor. Este último é um recurso para o qual

o modernismo e o concretismo chamaram a nossa atenção e que se foitornando comum desde as primeiras décadas do século XX. Ele

desenvolve linhas de leitura paralelas à da coloquialidade e compensa

dessa forma o excesso discursivo que a poesia do período apresentageralmente.

Através desses recursos poéticos (ou artísticos, se preferirmos), avisualização de uma ‘realidade’ muito chã, concreta, particular, ganha

universalidade na medida em que nos permite apropriarmo-nos dela maisfacilmente, quer pela transparência da linguagem, quer pela colonizaçãodos implícitos, que promovemos misturando-os com a nossa intimidade,as nossas lembranças pessoais, poéticas e políticas, a nossa

sensibilidade musical, a nossa ondulante afetividade, enfim a nossaidentidade na zona de intersecção com a do autor.

Page 5: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 5/15

 

5

Graças ao poder de comunicação garantido assim, a poesia lírica de Aires

de Almeida Santos correu dispersa o mundo inteiro, em antologiasnacionalistas e internacionalistas, sendo reunida muito mais tarde por

David Mestre para a UEA e cantada, entre outros, pela Banda Maravilha,

com partitura musical de Pedro Rodrigues, um cabo-verdiano luandense,neto de um grande poeta cabo-verdiano e ele próprio um dos maiorescompositores populares de sempre, de Cabo Verde e de Angola.

Posto isto, pretendo em seguida mostrar, com intuito pedagógico, um doscaminhos de leitura suscitados pelo poema «A mulemba secou», de Airesde Almeida Santos. Assim cumprimos o mecanismo de  feed-back   que

sustenta a disseminação da leitura num circuito comunicativo

devidamente codificado e suficientemente aberto.

Page 6: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 6/15

 

6

AS RETICÊNCIAS DO CAMALUNDO 

Perguntas reticentes

A função do estudioso da literatura não consiste em revelar às massas

ignorantes a verdadeira, única e escondida mensagem do texto. Já hámuito tempo que não constitui novidade nenhuma dizê-lo. No entanto,

muita da ruína da crítica e da teoria se provocou contestando issomesmo, porém, confundindo esse tipo de análise com o essencial do

trabalho feito. Por equívoco, passou-se ao lado do que havia a fazer (e quealguns fizeram, como por exemplo os primeiros estruturalistas  –  os de

Praga), não se atacando o problema de raiz, ou seja, a confusão entre o

ensaio crítico, o teórico e a interpretação mais ou menos filosofante oumoralizante (ou desmoralizante). O que procuro, na esteira de outros, ébem melhor explicar como funciona um texto de forma a provocar, a título

de efeito, várias mensagens que o leitor constrói, várias interpretações,como também os efeitos mais propriamente estéticos. E ensinar ainda oslimites e os suportes para tal construção recetiva. Dada a temática donúmero inaugural de Mulemba  (para onde inicialmente escrevemos) e em

homenagem, simultânea, à revista, à árvore, à simbologia da árvore, pegoneste exemplo bem conhecido de Aires de Almeida Santos:

 A mulemba secou.

 No barro da rua,

 Pisadas

 Por toda a gente,

 Ficaram as folhas

Secas, amareladas

 A estalar sob os pés de quem passava.

 Depois o vento as levou...

Como as folhas da mulemba

 Foram-se os sonhos gaiatos

 Dos miúdos do meu bairro.

(De dia,

 Espalhavam visgo nos ramos

Page 7: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 7/15

 

7

 E apanhavam catuituis,

Viúvas, siripipis

Que o Chiquito da Mulemba

 Ia vender no Palácio

 Numa gaiola de bimba.

 De noite,

 Faziam roda, sentados,

 A ouvir,

 De olhos esbugalhados

 A velha Jaja a contar

 Histórias de arrepiar

 Do feiticeiro Catimba.)

 Mas a mulemba secou

 E com ela,

Secou também a alegria

 Da miudagem do bairro:

O Macuto da Ximinha

Que cantava todo o dia

 Já não canta.

O Zé Camilo, coitado,

 Passa o dia deitado

 A pensar em muitas coisas.

 E o velhote Camalundo,

Quando passa por ali,

 Já ninguém o arrelia,

 Já mais ninguém lhe assobia,

 Já faz a vida em sossego.

Como o meu bairro mudou,

Como o meu bairro está triste Porque a mulemba secou...

Page 8: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 8/15

 

8

Só o velho Camalundo

Sorri ao passar por lá!...

Em primeiro lugar é preciso percebermos a organização do poema, lendo-o naquele nível em que se basta a si próprio, porque ele próprio nos dá

os elementos sobre os quais construímos a receção. Na verdade, apesarda marca de oralidade nos seus poemas que se nota no jogo de implícitos

locais, aos quais o leitor não tem já acesso, o que recebemos é um textoescrito, que circula dentro de um livro. Por esse motivo ele constitui a

sua própria autonomia e, no lugar dos implícitos locais, iremos colocandoos nossos explícitos para completá-lo. O poema é uma alegoria, figuramuito importante na lírica do autor, como atrás disse. Aqui, a alegoria

faz a conotação da mulemba com o bairro: conforme secou a árvore,entristeceu o bairro. Repare-se que o próprio autor diz: “Como o meubairro está triste / Porque a mulemba secou”.

Se o velho Camalundo, agora, sorri ao passar por lá é porque ele era

incomodado antigamente, quando a mulemba e a miudagem do bairroestavam bem vivos. Ora, secando a mulemba, os miúdos crescendo eafastando-se, ele passa já sossegado.

Para perceber a produção interna de significado do poema não

precisamos, portanto, de mais nada, nem sequer de saber que os outrospoemas do autor são geralmente alegorias. Há, porém, no próprio texto,indícios de que algo fica por dizer, pois ele termina com reticências a

seguir à segunda menção ao velho. Se é claro para nós porque ele sorriao passar por lá, que sentido fazem as reticências? As reticências avisam-nos de que algo ficou por dizer. O que ficou por dizer para além do texto?Para um contemporâneo benguelense, talvez uma pequena estória local.

Mas, para o leitor comum de hoje, por exemplo nas universidadesbrasileiras?

Pelas reticências o poema começa claramente a propor-nos uma

adivinha, um enigma e, portanto, a sustentar a sua disseminação criativa(o que não significa desorientada, nem arbitrária).

Pensando nisso o leitor pode reparar ainda mais no poema e ver que eleé bipolar, em torno de duas referências à sombra da mulemba: uma, ados miúdos, depois graúdos, com seus sonhos; outra, a dos temores:iconizados primeiro pelas estórias da “velha Jaja” (contadas à sombra da

mulemba), estórias cujo protagonista é o “feiticeiro Catimba” (que

realmente existiu em Benguela); e depois passa-se para outro “velho”,Camalundo. A ligar os dois há pouco mais que a velhice –  e todos sabemos

Page 9: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 9/15

 

9

o que significa a velhice naquele tempo e lugar. Um velho é uma árvore

muito grande, cheia de frutos que nós precisamos de colher e à sombrada qual repousamos, refletimos, ou conversamos. O resto é diferente: ela

conta estórias de arrepiar, à noite, sob a mulemba; ele é ‘arreliado’ pelos

miúdos quando passa junto à mulemba (supõe-se que durante o dia). Omedo que à noite ganham é vingado e afastado à luz do sol pelasprovocações a Camalundo, que se torna assim, nessa leitura, catártica

figura para os miúdos. Aparentemente o velho não é conotado comfeitiçarias, esse é o Catimba. O velho é conotado com reticências e asreticências não dizem nada do que sugerem…

Para cumprirmos a indicação dada pelas reticências  –  nós, os leitores –  

costumamos intertextualizar com base em suspeitas, associações rápidasde imagens e numa racionalidade minimamente consensual. Assimcobrimos o vazio em que as reticências nos deixam com as suas

suspeitas, fazendo uma espécie de  feed-back , de retorno, através demetáforas de aproximação sustentadas em textos recordados. É o casode quando procuramos contextualizar imediatamente, pesquisando ossignificados de mulemba  por exemplo, integrado no mais amplo campo

semântico da palavra árvore. A árvore é um eixo do mundo que liga céue terra, espíritos sem corpo e corpos com espírito, para além de simbolizar

a maternidade e a feminilidade. Esta segunda parte está explicitamenterepresentada no poema pela conotação entre ela secar e partirem os

miúdos do bairro. A outra é mais subtil.

A mulemba, como sabem já todos os interessados na literatura angolana,é uma árvore grande, frondosa. À sombra dela se reúnem as pessoas para

conversar, transmitir e receber informações, passar ensinamentos, etc.Assume particular significado, e mais forte, a conotação da mulemba(como toda a árvore sagrada) com a ligação aos espíritos falecidos,antepassados, recebidos algum dia por Kalungangombe, o pastor e juiz

das almas e das vidas (de ‘kalunga’ –  deus, mar, morte, que por sua vezvem de ‘lunga’, inteligência, sabedoria; somado a ‘ongombe’ –  boi, porextensão rebanho).

A mulemba, simbolizando a relação axial entre os dois mundos,reinveste-nos na leitura do poema com um dado novo, que nos faz relê-lo mais ou menos desta forma, que se tornou consensual: dado o que

representa a árvore, ao secar a mulemba isso é concerteza má notícia,porque deixa de haver ligação entre os dois mundos. Assim, a vida acaba-

se no bairro por ter acabado na árvore que nos ligava ao mundo paraleloque nos rege, ou nos condiciona. Os meninos, hoje crescidos, riem-se do

Page 10: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 10/15

 

10

medo que lhes causavam as estórias do feiticeiro Catimba, mas não

sabem porque secou a mulemba.

Parece-me uma leitura possível. Mas, nesse caso, o que fazer do velhoCamalundo e suas sorridentes reticências? Sorri porque é egoísta

somente, porque as crianças o não ‘arreliam’ já? Porque é meio tolo? Teráexistido mesmo um velho Camalundo, que se ria dessas coisas por ser

tolo? Ou sorri porque eles não sabem a causa e o sentido de a mulembater secado? Ou sorri por causa desse mesmo sentido?

Estas inquietações nos levam a desenvolver a aventura da pesquisa, quevai diversificá-la conforme os leitores.

Nós, por exemplo, continuando a intertextualizar pegamos num outropoema de outro benguelense, este já de nascença: Ernesto Lara, Filho.

Na famosa carta lírica escrita a Miau a partir da “Europa”, ele reconhece: 

Tudo isso te devo

companheiro dos bancos de escola

isso

e o aprender a subir

aos tamarineiros

a caçar bituítes com fisga

aprender a cantar num kombaritòkué

o varrer das cinzas

do velho Camalundo.

Tudo isso perpassa

me enche de sofrimento.

(«Infância perdida»)

Page 11: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 11/15

 

11

Que nos diz o “varrer das cinzas / do velho Camalundo”? No mínimo que

ele existiu. Para o leitor informado acerca da poesia benguelense, opoema ganha então mais um significado plausível. Apenas mais um de

entre muitos. Sim, porque mesmo assim não fechámos a leitura, nem

fecharemos, visto que buscamos explicá-la e não dar-lhe um sentidoúnico. Será, por exemplo, que a mulemba secou por alguma maldição,que o velho Camalundo conhecia, ou mesmo rogou? Nada nos diz que

sim mas, dada a simbologia da árvore aqui, ela secar é sempre umamaldição.

Se continuarmos a intertextualizar, Camalundo é o nome de uma

pequena povoação e de um pequeno rio que ficam a norte de Malange,segundo mapas que qualquer aluno pode pesquisar em rede. Não sei sedessa região terá vindo o motivo de carnaval focado poeticamente por

Antero Abreu numa recordação de infância:

O ídolo do eu-menino era Kamalundu, Kamalundu o Rei, magnificentemente vestido de cetins e purpurinas que volteava volteava com sua enorme luva sua enorme e majestosa luva agitada no ar.

Fonte especificada inválida. 

Este Kamalundu, porém, sendo uma hipótese muito enriquecedora dotexto, não nos explica o sentido geral do poema, que parece mais resultarda gozação dos miúdos relativamente a uma figura local, a citada porLara Filho.

Malundo, por sua vez, para além de um apelido comum em países demaioria bantu, é o nome de uma povoação populosa no Uíje (Malundu

Kassumba), de outra no Moxico, de outra em Cabinda e ainda de outraem Moçambique. Lundo é o nome de uma ilha na Tanzânia, que fica naregião de Malundo. Será que o velho se chamava assim por vir deCamalundo, ou de outro Lundo? Será que, vindo de lá, conhecia melhoras tradições? Não sabemos, portanto esse caminho de leitura não é

produtivo: é reticente…

Não sabendo, a nossa recuperação de sentido (o sentido cuja existência

a pontuação deixou no ar) continua pela peregrinação bibliográfica. Poraí nos lembramos de que, para o leitor irrequieto, esse nome pode jogar

com um título de Óscar Ribas: Ilundo: espíritos e ritos angolanos . O livroteve edição original em 1958, uma segunda em 1975, mas é ainda fácilde encontrar em Angola a edição de 1989 da UEA (Luanda). Não tendoacesso ao livro, o leitor pode fazer uma pesquisa na Internet e encontrar,

por exemplo, esta definição:

Page 12: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 12/15

 

12

O Ilundo é o candomblé de Angola na sua forma original que se

vem mantendo através dos tempos. A "MANHA-IA-UMBANDA"

(Mãe de Santo) deita "Dicosso" (bebida do santo) numa filha de

 santo para a purificar . (MAUC, 1979)

Ilundo é o plural da palavra de raiz lundu (sing. kilundu ), que significagenericamente ‘espírito’. O calundu é, portanto, o espírito, um espírito.

Para os leitores que tenham possibilidade de consultar a obra, ÓscarRibas cita um provérbio: “o calundu foi pessoa, a pessoa será calundu”  (RIBAS, 1989, 32). No mesmo capítulo, um pouco mais à frente (erepetindo o provérbio), ele define: “Calundus   são espíritos de elevada

hierarquia e evolução. Representam almas de pessoas que viveram emépoca remota, numa distância de séculos”. Eles também se transmitem

“por herança, principalmente pelo lado materno”, formando “uma famíliaespiritual em relação ao seu paciente” (RIBAS, 1989, 34).

Há, no velho Camalundo, um sorriso que não deixa a imagem de umvelho malvado, embora… Isso talvez não seja casual, pois, “ao contrário

do canzumbi, que é perverso, vingativamente perseguindo commolestações várias, o calundu é complacente”. O povo aconselha: “diz: ómeu calundu!, não digas: ó meu canzumbi” (RIBAS, 1989, 35).

Estas ligações dão-nos outra orientação possível para a leitura do quesimboliza ali, a partir do nome, o velho Camalundo, caso possamospensar que nele se acumulam dois prefixos (o que não seria inédito nahistória das línguas, incluindo a portuguesa): ca  e ma .

Uma estória huambina

Sabemos também que Aires de Almeida Santos nasceu no Chinguar, Biée que Ernesto Lara Filho esteve muito ligado ao Huambo (então Nova

Lisboa) e à Chianga, onde estudou e trabalhou na escola agrícola. Airesde Almeida Santos, segundo a biografia publicada na UEA, veio miúdopara Benguela, onde fez o ensino primário, tendo o secundário (ou médio)sido no Huambo. E porque falo nisso? Por estarem mais perto de

Camalundo? Não. Porque na cidade de Nova Lisboa houve uma pragarogada por um velho colono que se prende justamente com umamulemba. Vamos ler.

Page 13: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 13/15

 

13

Quem nos conta a história é Sebastião Coelho, famoso jornalista

huambino que nasceu em 1931 e morreu em 2002. Conta-a num textodatado de 2000, «A Mulemba da maldição».

Um velho branco, Albano Canto dos Santos, provavelmente pioneiro da

instalação dos portugueses nas terras do Wambo, casou-se com a filhado soba local. Esperava encontrar muitos diamantes e que um dia o seu

filho se tornasse também soba. Plantou uma mulemba para o dia em queele o fosse, pois à sua sombra reina o sábio soba. A mulemba cresceu,

tornou-se frondosa e, portanto, tudo indicava que a sua esperança iriarealizar-se. Os amigos, porém, combinados, puseram uns vidros no rio

onde ele mandara escavar um buraco (junto à fonte) à procura dosdiamantes. Convencido de que os tinha encontrado, foi confirmar tudocom o farmacêutico, que, fazendo parte da tramóia, lhe disse que eram

mesmo diamantes os que ele encontrara. O velho colono convocou umagrande festa, com refeição e tudo, para comemorar com os amigos. Nofinal da refeição alguém lhe contou a verdade. Condoído isolou-se, ficoudoido, subia aos ramos da mulemba contemplando a mina e um diaenforcou-se. Deixou uma carta e vale a pena transcrever esta parte do

testemunho de Sebastião Coelho:

“Na carta, delirante e profética, que escreveu e que teria sido

encontrada junto ao tronco da árvore, pedia para ser enterrado ali,

ao lado da mulemba, pois, se assim não acontecesse, a sua alma,

inquieta, voltaria para vingar-se: ... e quero o meu corpo a

alimentar as raízes da árvore que eu plantei, quero que os meus

 sumos penetrem nesta terra e se juntem, lá embaixo, com as

riquezas que não encontrei, mas que existem.

Com elas sonhei transformar este país rico e de gente pobre, num

rico país para toda a gente. Sonhei ver o meu filho mulato Pedro

 Evango, feito soba do Huambo, sentado à sombra deste pau

 sagrado, criar uma nação próspera e feliz, mistura de várias raças.

 Fui atraiçoado pela pior traição, a traição dos amigos e da

confiança. Se me atraiçoarem de novo, saibam que esta mulemba

vai secar e quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer,

destruído pelos seus próprios filhos. E as riquezas do solo não

 serão para ninguém... tudo será ruína e desolação!” 

Page 14: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 14/15

 

14

Infelizmente Sebastião Coelho não regressou ao Huambo para ver se a

mulemba secou. Pela minha parte, não sei onde ela ficava. Lembrou-seele, na falta disso, da destruição que a cidade sofreu com a guerra civil,

sobretudo no início de 1993, na famosa batalha dos 55 dias e depois, na

recuperação da cidade pelas forças governamentais. Mas osacontecimentos que nos narra deram-se num tempo recuado o suficientepara a lenda de Albano Canto dos Santos circular pela cidade. O próprio

Sebastião Coelho a ouvira na sua meninice. Da meninice do Huambo aestória podia espalhar-se para mais cidades, nada inédito em Angola. Oleitor informado pode agora intertextualizar com a mulemba do bairroonde Aires de Almeida Santos foi miúdo, provavelmente em Benguela,

antes de ir estudar para o Huambo. À luz da praga do velho Albano,podemos explorar a hipótese de leitura que torna o acontecimento (amulemba secar) uma maldição.

E o velho Camalundo? De que sorri ele ainda? Bom, agora sorri de nós,que também estamos a secar e temos de fechar o texto.

BibliografiaCoelho, S. (5 de 4 de 2005). A mulemba da maldição. Obtido em 27 de 6

de 2009, de As mukandas do kota Kandimba:

http://mukanda.blogspot.com/2005/04/mulemba-da-maldio.html

Laban, M. (1991). Angola. Encontro com Escritores. Porto: Fundação Eng.º

António de Almeida.

Oliveira, M. A. (1989). Reler África. Coimbra: IA-UC.Ribas, Ó. (1989). Ilundu: espíritos e ritos angolanos. Luanda: UEA.

Santos, A. d. (1987). Meu amor da rua Onze.  (D. Mestre, Ed.) Luanda:UEA.

Soares, F. (2001). Notícia da literatura angolana. Lisboa: IN-CM.

Sousa, A. N. (28 de 3 de 1979). Catálogo. Albano Neves e Sousa 28 deMarço de 1979 . Fortaleza, Ceará: MAUC. Obtido em 27 de 6 de

2009, de http://www.mauc.ufc.br/expo/1979/01/index1.htm

Page 15: Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba

http://slidepdf.com/reader/full/aires-almeida-santos-introducao-e-mulemba 15/15

 

15

Datações:

1.º texto: Macau, 1-3-2014 (escrito para a Introdução àedição de Meu amor da rua Onze  [Luanda: nossomos , 2014).

2.º texto: Benguela, Junho de 2009 (escrito para a revistaMulemba  (n.º 1. Rio de Janeiro: Outubro de 2009).