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Revista IDeAS, v. 3, n. 2, p. 425-431, jul./dez. 2009.

Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

“Agricultura familiar, multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil”

CAZELLA, A.A.; BONNAL, P.; MALUF, R.S. (Orgs.) Agricultura

familiar, multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, NEAD, IICA, 2009. 301p.

Felipe Rosafa Gavioli1

Este é o título da mais nova publicação do grupo de pesquisa interinstitucional Multifuncionalidade da agricultura, coordenado pelos professores Renato Maluf e Maria José Carneiro, do CPDA/UFRRJ.

Lançado em 2009 pela editora Mauad X, com o apoio do Núcleo de Estudos de Agricultura e Desenvolvimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (NEAD/MDA) e do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), o livro, organizado pelos professores Ademir Antonio Cazella, Philippe Bonnal e Renato Sérgio Maluf, é fruto do projeto “Pesquisa e ações de divulgação sobre o tema da multifuncionalidade da agricultura familiar e desenvolvimento

1 Engenheiro Agrônomo, mestrando em Agroecologia e Desenvolvimento Rural (UFS-Car/Embrapa Meio Ambiente). Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected].

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territorial no Brasil”, realizado pelo grupo entre 2006 e 2008, com a participação de pesquisadores de instituições brasileiras e francesas, e que teve por questão chave analisar “como as dinâmicas territoriais e os projetos coletivos presentes em territórios determinados contemplam a agricultura familiar em suas múltiplas funções e heterogeneidade social” (CAZELLA, BONNAL, MALUF, 2009, p.21).

A ideia de território emerge no cenário acadêmico e político do decorrer da última década, e aparece como recorte privilegiado para o estudo e para a elaboração de políticas e programas voltados ao desenvolvimento rural. Concomitante a este fenômeno, também se observou o florescimento da noção de multifuncionalidade da agricultura. Concebida primeiramente no contexto europeu, sobretudo francês, a noção de multifuncionalidade da agricultura permite analisar os processos sociais em curso no meio rural por uma ótica diferenciada, que leve em conta outras funções desempenhadas pela agricultura e pelos agricultores familiares que não somente a produção de alimentos e fibras, tais como a conservação dos recursos naturais e da agrobiodiversidade, a coesão sociocultural em determinado território, a “construção-manutenção” da paisagem rural. Desta forma, o enfoque da multifuncionalidade permite a valorização e a promoção destas funções socioambientais desempenhadas pela agricultura familiar.

Tanto o recorte territorial quanto o enfoque da multifuncionalidade da agricultura se caracterizam pela perspectiva suprassetorial e multidimensional, e convergem em direção ao desenvolvimento sustentável, permitindo a agregação de um caráter operacional, bem como diversos instrumentos de promoção desta última noção, por vezes muito abstrata (SABOURIN, 2008).

Em uma perspectiva de continuidade com a primeira publicação do grupo de pesquisa – “Para além da produção: multifuncionalidade e agricultura familiar” (CARNEIRO e MALUF, 2003), que voltava sua análise para as famílias rurais e os territórios em que elas se situavam – este livro aborda os múltiplos papéis da agricultura familiar nas dinâmicas territoriais a partir de um olhar abrangente, que articula os territórios rurais e a noção de multifuncionalidade às políticas públicas direcionadas para a agricultura familiar.

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O livro é divido em duas partes: a primeira, intitulada “Territórios, desenvolvimento territorial e multifuncionalidade da agricultura familiar”, compreende três capítulos, onde os organizadores fazem uma ampla e detalhada revisão bibliográfica sobre o tema do desenvolvimento territorial. Partindo das diferentes concepções de território nos âmbitos da Geografia e da Economia, os autores estabelecem, no primeiro capítulo, uma distinção entre “territórios construídos” e “territórios dados” ou instituídos, e concluem que esta “realidade humana, social, cultural e histórica” pode ser melhor compreendida como um “conceito polissêmico, cujos sentidos dependem do olhar disciplinar de quem dele se vale, como também da problemática política e social do contexto em questão” (CAZELLA, BONNAL, MALUF, 2009, p. 39 e 41).

Em seguida, nos capítulos dois e três, os autores tratam das articulações entre territórios, desenvolvimento territorial, multifuncionalidade da agricultura familiar e políticas públicas. No segundo capítulo, mais uma vez, o território emerge não como conceito monolítico, mas sim através de diferentes concepções, ora como simples “lugar de expressão e de tratamento das externalidades da agricultura”, (p. 50) ora como resultado de projetos coletivos, sejam eles “voltados para a construção de recursos específicos e discriminantes” (p. 53) no âmbito de uma economia territorial que visa desenvolver ativos econômicos endógenos e diferenciados, ou como resultado de “projetos coletivos convergentes não exclusivamente econômicos” (p. 54), pautados por outras necessidades como acesso a recursos naturais, por exemplo; aborda-se ainda o território como “componente fundamental de sociedades territoriais” (p. 55), segundo uma perspectiva antropológica. Por fim, os organizadores definem quatro principais dinâmicas territoriais, que vão orientar a análise dos estudos de caso nos capítulos posteriores: a dinâmica dos projetos coletivos, as iniciativas de empresas privadas, as iniciativas individuais e fragmentadas, e as dinâmicas dirigidas por políticas públicas. Estas quatro “territorialidades” permitem apreender os processos de construção dos territórios: as duas primeiras dinâmicas compreendendo uma construção social coletiva dos territórios, a terceira enquanto definidora de um território fluído e disperso, e a quarta se caracterizando como o território dado, ou imposto por uma política pública (p. 65).

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No capítulo três é feita uma extensa análise de uma série de políticas públicas voltadas ao meio rural que incorporem, de forma implícita ou explícita, o recorte territorial e o enfoque da multifuncionalidade da agricultura. Os autores abordam o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR), o Programa Arranjos Produtivos Locais, entre outros, considerando que, apesar de apresentarem uma aparente coerência, as diversas políticas públicas territoriais, associadas a Ministérios diferentes, carecem de uma melhor coordenação entre elas.

A segunda parte do livro apresenta os estudos de caso, realizados por equipes interdisciplinares das instituições participantes do grupo de pesquisa, que abordam a diversidade de situações e de realidades em que a agricultura familiar se encontra no Brasil. Esta parte se divide em dois blocos, o primeiro tratando dos territórios instituídos ou apoiados por políticas públicas, e o segundo abordando os territórios socialmente construídos a partir de projetos e ações coletivas.

Esta divisão dos estudos de caso entre territorialidades dadas, ou instituídas por políticas públicas, e territorialidades construídas a partir dos projetos convergentes e/ou divergentes dos atores sociais se mostra permeável e de certa forma interligada, mas assim mesmo constitui-se em um ponto de clivagem interessante na análise das diferentes dinâmicas territoriais e dos impactos destas para o reconhecimento e a promoção da multifuncionalidade da agricultura familiar. Não abordarei aqui todos os estudos de caso, mas apenas alguns que se mostraram mais interessantes.

No primeiro bloco de estudos de caso, destaca-se o capítulo quatro, de autoria de Marc Piraux e Philippe Bonnal, que trata dos projetos coletivos no território definido no entorno da cidade de Campina Grande, na Paraíba. Aí ganha relevo a experiência do Polo Sindical da Borborema, criado a partir das lutas de diversos atores sociais, ligados ao movimento sindical e a ONGs de apoio à agricultura ecológica. Os autores consideram o Polo Sindical da Borborema como uma instituição articuladora de uma série de projetos no território, fundamental para a captação de recursos e para a dinamização do território.

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O capítulo sete, de autoria de Georges Flexor e Zina Caceres Benavides, também merece destaque. Tomando o estudo do território sul fluminense, os autores apresentam elementos para se pensar o desenvolvimento territorial e a promoção das múltiplas funções da agricultura a partir da perspectiva da cesta de bens, abordagem que permite reconhecer os ativos endógenos próprios de cada território e que sintetiza de forma operacional a noção de multifuncionalidade da agricultura.

O segundo bloco de estudos de caso traz, no capítulo nove, um estudo de autoria de Miguel Ângelo da Silveira e Paulo Eduardo Moruzzi Marques, que analisam duas dinâmicas territoriais em torno do cultivo do café, no território do sul de Minas Gerais: a primeira, hegemônica e centralizada nas grandes cooperativas de produção como a Cooxupé, torna a região responsável por 70% da produção nacional de café commodity em um modelo de agricultura industrial que ignora as especificidades territoriais e que, não raras vezes, leva os agricultores a situações de dependência financeira. A segunda dinâmica, ainda emergente e restrita a poucas famílias, é baseada no cultivo de café orgânico de qualidade, comercializado em redes de comércio justo. Centralizada na Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço Fundo e Região (Coopfam), esta dinâmica parte da valorização da agricultura familiar e do reconhecimento das qualidades territoriais associadas a um produto, no caso o café, em estreita relação com o enfoque da multifuncionalidade da agricultura.

Por fim, no capítulo doze, os organizadores fazem um apanhado geral das principais conclusões dos estudos de caso e, à luz dos aspectos conceituais debatidos e descritos na primeira parte da publicação, fazem considerações acerca das possibilidades de conjunção do recorte territorial e do enfoque da multifuncionalidade da agricultura nas políticas públicas voltadas ao desenvolvimento rural. A primeira consideração importante trata da necessidade de as políticas adotarem como referência “os territórios e as famílias rurais – mais do que a “agricultura familiar” – consideradas produtoras e gestoras dos territórios em que se localizam” (CAZELLA, BONNAL, MALUF, 2009, p. 298). Esta nova referência das políticas públicas traria consequências importantes para a questão da governança, com implicações sobre o

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controle social dos territórios, a descentralização das políticas e o aprofundamento de processos democráticos no meio rural.

Os autores também trazem contribuições para se pensar na integração das diversas políticas voltadas ao desenvolvimento rural, que se encontram fragmentadas nos diferentes Ministérios. Uma proposta seria integrar as políticas no âmbito do território, o que pressupõe ultrapassar a dicotomia rural-urbano, e partir para um recorte suprassetorial e supramunicipal das políticas públicas. Outra proposta seria articular as ações com foco nas famílias rurais, o que só é possível com o reconhecimento e a incorporação da dimensão não agrícola nas políticas de apoio. Por último, os autores tratam da possibilidade de contratualização entre o Estado e os agricultores familiares, numa perspectiva de valorização e promoção da multifuncionalidade da agricultura, tal como ocorreu com os extintos Contratos Territoriais de Estabelecimento franceses.

Enfim, o livro “Agricultura familiar, multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil” traz novos elementos para a discussão do desenvolvimento rural e tem o mérito de consolidar no campo acadêmico o enfoque da multifuncionalidade da agricultura enquanto um olhar privilegiado para se apreender os processos e as dinâmicas territoriais que envolvem a agricultura familiar.

Referências

CARNEIRO, M.J.; MALUF, R.S. Para além da produção: multifuncionalidade e agricultura familiar. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 230p.

CAZELLA, A.A.; BONNAL, P.; MALUF, R.S. (Org.) Agricultura familiar,

multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, NEAD, IICA, 2009. 301p.

SABOURIN, E. Multifuncionalidade da agricultura e manejo dos recursos naturais: alternativas a partir do caso do semiárido brasileiro. Revista Tempo

da Ciência, n. 29, vol.15, p. 9-27, 2008.

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Resenha recebida para publicação em:

01 de setembro de 2009.

Resenha aceita para publicação em:

21 de outubro de 2009.

Como citar esta resenha:

GAVIOLI, Felipe Rosafa. “Agricultura familiar, multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil”. (Resenha). Revista IDeAS – Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro – RJ, v. 3, n. 2, p. 425-431, jul./dez. 2009.