agatha christie o detetive parker pyne

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Page 1: Agatha christie o detetive parker pyne
Page 2: Agatha christie o detetive parker pyne

Na página de classificados do The Times, um anúncio insiste em provocar curiosidade nos leitores: “VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR, CONSULTE O SR. PARKER PYNE”. Depois de 35 anos compilando estatísticas em uma repartição pública, o detetive Parker Pyne decide empregar seu conhecimento de forma inovadora: salvando casamentos, acrescentando aventura ou dando sentido à vida de seus clientes. No lugar de crimes insolúveis, ele se dedica a investigar os recônditos do coração humano. Porém seus talentos não se restringem a seu escritório; quando viaja de férias, incógnito, o consultor sentimental é forçado a usar seu conhecimento da natureza humana para enfrentar ladrões, e até mesmo desvendar assassinatos.Publicado primeiramente em 1934, o livro reúne catorze histórias protagonizadas por este improvável detetive.

Page 3: Agatha christie o detetive parker pyne

1

OCasodaEsposadeMeia-idade

QUATROGRUNHIDOS,umavoz indignadaperguntandoporque

alguémnãodeixavaempazumchapéu,umaportafechadacom

estrondo e o Sr. Packington saiu para pegar o trem das oito e

quarenta e cinco para a cidade. A Sra. Packington sentou-se à

mesadocafé.Tinhaorostoruborizadoeoslábiosapertados:esó

nãochoravaporqueamágoatinhasidosubstituídapelaraiva.

— Não agüento mais — disse a Sra. Packington. — Não

agüentomais!— ficoupensativaporalgunsmomentosedepois

murmurou: — Aquela sirigaita. Que mulherzinha hipócrita e

indecente!ComoGeorgepôdesertãoestúpido!

A raiva passou; voltou a mágoa. As lágrimas encheram os

olhosdaSra.Packingtonerolaramlentamentepeloseurostode

mulhermadura.

—Émuitofácildizerqueeunãoagüentomais,masoqueé

queeupossofazer?

De repente, sentiu-se sozinha e indefesa, completamente

abandonada.Comgestoslentos,pegouojornaleleu—nãopela

primeiravez—umanúnciodeprimeirapágina:

CONFIDENCIAL

VOCÊÉFELIZ?SENÃOFOR,CONSULTEOSR.PARKER

PYNE.RUARICHMOND,17.

Page 4: Agatha christie o detetive parker pyne

— Absurdo! — disse a Sra. Packington. — Completamente

absurdo!—edepois:—Enfim,nãocustatentar...

Eisporque,àsonzehorasdamanhã,aSra.Packington,um

pouconervosa,entrounoescritórioparticulardoSr.ParkerPyne.

ASra.Packingtonestavanervosa, sim,masa simples visão

doSr.ParkerPynelhedeuumaimpressãodesegurança.Eleera

forte, para não dizer gordo; tinha uma cabeça calva bem

proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos

brilhantes.

—Sente-se,porfavor—disseoSr.ParkerPyne.

—Viuomeuanúncio?—perguntou,paraajudá-la.

—Sim—disseaSra.Packington,enãodissemaisnada.

—Enãoéfeliz—disseoSr.ParkerPynenumavozjoviale

prática. — Muito poucas pessoas o são. A senhora ficaria

surpresasesoubessequemuitopoucaspessoassãofelizes.

—Émesmo?—perguntouaSra.Packingtonsemconvicçãoe

pouco se importando que as outras pessoas fossem ou não

infelizes.

— Eu sei que isso não lhe interessa — disse o Sr. Parker

Pyne,—masamiminteressamuito.Vejaasenhoraquedurante

trintaecincoanosdaminhavidaeusófizcompilarestatísticas

numarepartiçãodoGoverno.Agoraquemeaposentei,meocorreu

aidéiadeaproveitardeumamaneiradiferentetodaaexperiência

queadquiri.Étudomuitosimples.Asdesgraçastodaspodemser

Page 5: Agatha christie o detetive parker pyne

classificadasemcincocategoriasprincipais

— nem mais nem menos, posso lhe garantir. Uma vez

conhecida a causa de uma doença, a cura passa a ser

perfeitamente possível. Eu me coloco no papel de um médico.

Primeiroomédicodiagnosticaomaldopaciente,depoisprescreve

otratamento.Hácasosemquenenhumtratamentodáresultado.

Quandoéassim,digocomtodaafranquezaquenãopossofazer

nada.Maslhegaranto,Sra.Packington,queseeutomarcontade

seucaso,acuraépraticamentegarantida.

Seria possível? Seria uma tolice ou seria verdade? A Sra.

Packingtonolhouesperançosaparaele.

— Podemos diagnosticar o seu caso?— disse o Sr. Parker

Pyne sorrindo. Recostou-se em sua cadeira e juntou as pontas

dosdedosdasmãos.—Oproblemadizrespeitoaseumarido.De

ummodogeralasenhorateveumcasamentofeliz.Creioqueseu

marido prosperou. Suponho que haja uma jovem neste caso...

talvezumamoçaquetrabalhenoescritóriodeseumarido.

— Uma datilografa — disse a Sra. Packington. — Uma

sirigaitazinhafalsaeindecente,cheiadebatomemeiasdesedae

cachinhos.Aspalavrassaíramaosborbotões..

O Sr. Parker Pyne balançou a cabeça de maneira

apaziguadora.—Nãohánadademalnisso...certamenteéissoo

queoseumaridodiz...

—Éexatamenteisso.

—Eporquenãopoderiaelemanterumaamizadepuracom

estamoçaeproporcionarumpouquinhodealegriaeprazerasua

Page 6: Agatha christie o detetive parker pyne

existência tão monótona? Pobre menina! Ela se diverte tão

pouco...Suponhoquesejamestesosseussentimentos.

ASra.Packington fezquesimcomacabeça,vigorosamente

— Um embuste... tudo um embuste! Ele a leva ao rio... eu

tambémgostomuitodeiraorio,masháunscincoouseisanos

elemedissequeissoatrapalhavaogolfedele.Agoraeledeixouo

golfedeladoporcausadela.Eugostodeteatro,masGeorgevivia

dizendoque estavamuito cansadopara sairdenoite.Agora sai

com ela para dançar —dançar! E volta às três damadrugada!

Eu...eu...

—Esemdúvidaelelamentaofatodequeasmulheressejam

tão ciumentas... tão injustificàvelmente ciumentas, quando não

hánenhummotivoparaociúme?

NovamenteaSra.Packingtonfezquesimcomacabeça—É

isso—perguntousecamente:—Comoéqueosenhorsabedisso?

—Estatísticas—disseoSr.ParkerPynecomsimplicidade.

—Eusoutãoinfeliz—disseaSra.Packington.—Semprefui

umaesposadedicadaparaGeorge.Gasteiasminhasunhasatéo

sabugonosprimeirosanosdanossavida.Euoajudeiavencer.

Nunca olhei para outro homem. Suas roupas estão sempre em

ordem, a comida é boa, cuido muito bem da casa, e com

economia.Eagoraquesuperamosasdificuldadesepoderíamos

nosdivertir,sairumpoucoe fazer todasascoisasqueeutinha

vontadedefazeralgumdia...vaiacontecerisso!—elaengoliuem

seco.

OSr.ParkerPyneconcordougravemente—Podeficarcerta

dequecompreendoperfeitamenteoseucaso.

Page 7: Agatha christie o detetive parker pyne

— E... pode fazer alguma coisa? — ela quase sussurrou a

pergunta.

—Certamente,minhacarasenhora.Hácura.Certamenteque

hácura.

—Equalé?—elaaguardavaansiosa,osolhosarregalados.

OSr.ParkerPynefaloucomumavozcalmaefirme

— A senhora vai se colocar em minhas mãos, e meus

honoráriosserãodeduzentosguinéus.

—Duzentosguinéus!

—Exatamente.Asenhorapodepagar isto,Sra.Packington.

Pagariaporumaoperação.Afelicidadeétãoimportantequantoa

saúdedocorpo.

—Suponhoquevoupagardepois.

—Pelocontrário—disseoSr.ParkerPyne.—Asenhoravai

mepagaradiantado.

ASra.Packingtonselevantou—Nãovejoporque...

—Asenhoratemecomprargatoporlebre?—disseoSr.Pyne

jovialmente. — Bem, talvez a senhora tenha razão. É muito

dinheiroparaarriscar.Asenhoratemqueconfiaremmim.Pagar

ecorrerorisco.Sãoestasasminhascondições.

—Duzentosguinéus!

— Exatamente. Duzentos guinéus. É muito dinheiro. Bom

dia,Sra.Packington.Meavisesemudardeidéia

Page 8: Agatha christie o detetive parker pyne

—apertou-lheamão,sorrindo,imperturbável.

Depois que ela saiu, apertou um botão na suamesa. Uma

moçadeóculosearseverorespondeuaochamado.

—Umfichário,porfavor,Srta.Lemon.Epodetambémavisar

aClaudequeeutalvezváprecisardelebrevemente.

—Umanovacliente?

—Umanovacliente.Porenquantoelaestárelutante,masvai

voltar. Provavelmente hoje à tarde, lá pelas quatro horas. Pode

deixarentrar.

—EsquemaA?

—EsquemaA,élógico.Éengraçadocomotodomundopensa

queoseuprópriocasoéúnico.Bom,aviseClaude.Diga-lhepara

nãoparecermuitoexótico.Nadadeperfume,eémelhorelecortar

ocabelo.

Passavam quinze minutos das quatro horas quando a Sra.

PackingtonentroudenovonoescritóriodoSr.ParkerPyne.Tirou

dabolsaumlivrodecheques,preencheuumdeleseoentregou.

Emtrocaobteveumrecibo.

—Eagora?—aSra.Packingtonolhouesperançosaparaele.

—Agora—disseoSr.Pynesorrindo,—asenhoravaivoltar

paracasa.Peloprimeirocorreiodeamanhãvai receberalgumas

instruçõesqueeugostariamuitodevercumpridas.

A Sra. Packington voltou para casa num estado de alegria

Page 9: Agatha christie o detetive parker pyne

antecipada. O Sr. Packington voltou com ar defensivo, pronto

para discutir a situação, caso a cena damanhã fosse reaberta.

Ficou aliviado, entretanto, ao ver que amulher não estava com

espíritocombativo.Elapareciaestranhamentepensativa.

George ficou ouvindo rádio, imaginando se aquela pobre e

queridaNancyconsentiriaqueelelhedesseumcasacodepeles.

Ele sabia que ela era muito orgulhosa. Não queria ofendê-la.

Apesardisso,elasequeixaradofrio.Aquelecasacodelãeratão

ordinário; nem a protegia do frio. Talvez ele conseguisse

convencê-la,talvez...

Breve elespoderiamnovamente sair juntosànoite.Eraum

prazersaircomumamoçaassimelevá-laaumdosrestaurantes

da moda. Ele se sentia invejado por muitos rapazes. Ela era

extraordinariamentebonita.Egostavadele.Para ela—como já

lhedissera—elenãoeranemumpouquinhovelho.

Levantou os olhos e percebeu o olhar damulher. Sentiu-se

repentinamente culpado e isto o aborreceu. Que mulher

intoleranteeraMaria!Negava-lheatéumpinguinhodefelicidade.

Desligouorádioefoiparaacama.

A Sra. Packington recebeu duas cartas inesperadas, na

manhãseguinte.Umadelas eraum impressoconfirmandouma

horamarcadanumconhecidoespecialistadebeleza.Asegunda

marcava uma hora com uma costureira. A terceira era do Sr.

Parker Pyne, solicitando o prazer de sua companhia para um

almoçonoRitznaqueledia.

Page 10: Agatha christie o detetive parker pyne

OSr.Packingtonavisouquetalveznãopudessevirjantarem

casa, pois tinha que ver um homem de negócios. A Sra.

Packington abanou a cabeça distraidamente, e ele saiu de casa

satisfeitoporterescapadodatempestade.

Oespecialistadebelezafoiadmirável:—Masquenegligência!

Porquê?Porque,Madame?Hámuitotempoqueasenhoradevia

terfeitoalgumacoisa.Felizmente,aindanãoétarde!

Umaporçãodecoisasforamaplicadassobreoseurosto;ele

foimassageado, apertado e tratado a vapor. Aplicaram-lhe uma

máscara de lama. Aplicaram-lhe cremes diversos. Passaram pó-

de-arroz.Edepoishouveumasériederetoquesfinais.

Por fim lhe deram um espelho.Acho que estou mesmo

parecendomaismoça,pensouela.

Ahoracomacostureirafoi igualmenteexcitante.Saiudelá

sesentindoelegante,atualizada,norigordamoda.

Aumaemeiadatarde,aSra.PackingtonchegavaaoRitz.O

Sr.ParkerPyne,impecàvelmentevestido,eenvoltonumaaurade

serenaconfiança,estavaesperandoporela.

—Encantadora—disse,comumolhoexperienteaexaminá-

ladacabeçaaospés.—MeantecipeielheencomendeiumWhite

Lady.

A Sra. Packington não tinha o hábito de tomar coquetéis,

masnãodissenada.Enquantobebiacautelosamenteoexcitante

líquido,ouviaoseupacienteinstrutor.

—Seumarido,Sra.Packington—disseoSr.Pyne,—vaiser

Page 11: Agatha christie o detetive parker pyne

obrigado aficar em guarda. Compreendeu?Se interessar. Para

ajudá-la,vouapresentá-laaumjovemamigomeu.Asenhoravai

almoçarcomelehoje.

Neste instante entrou um rapaz, olhando de um lado para

outro. Ao avistar o Sr. Parker Pyne, caminhou em sua direção,

comelegância.

—OSr.ClaudeLuttrell,Sra.Packington.

OSr.ClaudeLuttrelltalvezaindanãotivessetrintaanos.Era

atraente,desembaraçado, impecàvelmentevestido,extremamente

bonito.

—Muitoprazeremconhecê-la—murmurou.

Trêsminutosdepois,aSra.Packingtonestavafrenteafrente

comseunovomentor,numapequenamesaparadois.

Estavaumpoucotímidano início,masoSr.Luttrell logoa

colocouà vontade.Ele conheciaParismuitobemepassaraum

bom tempo na Riviera. Perguntou à Sra. Packington se ela

gostava de dançar. Ela disse que gostava, mas quase não saía

para dançar, atualmente, porque o Sr. Packington não gostava

muitodesairdenoite.

—Maselenãopodesertãocruelassim,apontodeprendê-la

em casa — disse Claude Luttrell, sorrindo e mostrando uma

deslumbrante fileiradedentes.—Asmulheresnãodevemmais

tolerarociúmemasculino,emnossosdias.

A Sra. Packington quase disse que o problema não era o

ciúme,masaspalavrasnãosaíram.Apesarde tudo,a idéiaera

Page 12: Agatha christie o detetive parker pyne

agradável.

Claude Luttrell falou superficialmente de boates. Ficou

combinado que na noite seguinte a Sra. Packington e o Sr.

LuttrelliriamconheceropopularArcanjoMenor.

A Sra. Packington se sentia um pouco nervosa ante a

perspectivadeanunciarofatoaomarido.ImaginouqueGeorgeia

achar muito estranho e talvez ridículo. Mas teve sorte. Estava

muitonervosapara falarcomeleduranteocafédamanhã,e lá

pelasduashorasdatardeumtelefonemalheinformouqueoSr.

Packingtoniajantarnacidade.

Anoitadafoiumsucesso.ASra.Packingtondançavamuito

bem quando era moça, e, sob a sábia orientação de Claude

Luttrell, não demorou a aprender os passosmodernos. Ele lhe

deu os parabéns pelo vestido e pelo penteado. (Tinham-lhe

marcadoumahoranaquelamanhãcomumdoscabeleireirosda

moda). Ao se despedir, ele beijou a sua mão de uma maneira

eletrizante.Hámuitos anos que aSra. Packingtonnão passava

umanoitetãodivertida.

Seguiram-se dez dias fantásticos. A Sra. Packington

almoçava, lanchava, dançava tango, jantava, valsava e ceava.

Ficou sabendo tudo sobre a triste infância de Claude Luttrell.

Conheceu as desafortunadas circunstâncias nas quais o pai

perderatodooseudinheiro.Ouviuahistóriadotrágicoromance

que lheamarguravaos sentimentos em relaçãoàsmulheres em

geral.

No décimo primeiro dia, eles foram dançar no Almirante

Vermelho.ASra.Packingtonviuseumaridoantesqueeleavisse.

Page 13: Agatha christie o detetive parker pyne

Georgeestavacomamoçadoescritório.Osdoiscasaisestavam

dançando.

—Olá,George—dissebaixinhoaSra.Packington,quando

passouporele.

Foi com certa satisfação que ela viu o rosto de seumarido

ficar primeiro vermelho e depois roxo de espanto. Além do

espanto,haviaumaexpressãodequemdescobreumerro.

ASra.Packingtonsesentiudivertidamentedonadasituação.

CoitadodoGeorge!Devoltaàsuamesa,elasepôsaobservá-lo.

Como estava gordo, como estava careca, como cambaleava! Ele

dançavacomoháunsvinteanosatrás.Coitado,queforçaestava

fazendo para parecer jovem! E aquela pobremoça que dançava

com ele e fingia que estava gostando. Ela agora parecia muito

chateada, o rosto por cima do ombro dele para que ele não

pudessevê-lo.

ASra.Packingtonpensoumuitosatisfeitaqueasuasituação

era bem mais invejável. Olhou de relance para o maravilhoso

Claude,agora taticamente emsilêncio.Comoelea compreendia

bem! Nunca discordava dela — os maridos sempre discordam

depoisdealgunsanos.

Tornou a olhar para ele. Seus olhos se encontraram. Ele

sorriu; seus lindos olhos escuros, tão melancólicos, tão

românticos,olharamternamentedentrodosdela.

—Vamosdançaroutravez?—murmurouele.

Dançaramnovamente.Eraoparaíso.

Page 14: Agatha christie o detetive parker pyne

Ela sentia o olhar apoplético deGeorge a segui-los. A idéia

tinhasidodela,elaselembrava,deprovocarciúmesemGeorge.

Há tanto tempo! Mas agora ela não queria mais despertar os

ciúmesdeGeorge.Poderiaaborrecê-lo.Porqueaborrecê-lo,afinal

decontas?Coitadinho!Todomundoestavatãofeliz...

OSr.Packington já estavaemcasaháumahoraquandoa

Sra.Packingtonentrou.Elepareciaconfusoeinseguro.

—Hum—resmungou.—Afinalvocêchegou.

ASra.Packingtonatiroulongeumxalequelhetinhacustado

quarentaguinéus,naquelamesmamanhã.—É—dissesorrindo,

—cheguei.

Georgetossiu—Er...foiestranhoencontrarvocê.

—Foimesmo,nãoé?—disseaSra.Packington.

—Eu...bem,eupenseiqueseriaumgestodelicadodaminha

parte levar aquela moça a algum lugar. Ela tem tido tantos

problemas em casa. Eu pensei. .. bem, delicadeza, você

compreende.

ASra.Packingtonfezquesimcomacabeça.PobreGeorge—

saltitandoeseentusiasmandoetãosatisfeitoconsigomesmo.

—Quemeraaquelecamaradaqueestavacomvocê?Eunãoo

conheço,conheço?

—Chama-seLuttrell.ClaudeLuttrell.

Page 15: Agatha christie o detetive parker pyne

—Comofoiquevocêoconheceu?

— Oh, alguém me apresentou — disse a Sra. Packington

vagamente.

—Éesquisitovocêsairdançandoporaí...nasuaidade.Não

váficarridícula,minhaquerida.

A Sra. Packington sorriu. Ela estava se sentindo muito

satisfeita,comomundointeiropariadararespostaóbvia.—Uma

mudançaésempreagradável—disseamistosamente.

— Você precisa ter cuidado, sabe? Há uma porção destes

dançarinosprofissionaisporaí.Mulheresdemeia-idadeàsvezes

fazempapéis ridículos.Estousó lheavisando,minhacara.Não

gostariadevervocêfazendooquenãodeve.

—Achomuitobomoexercício—disseaSra.Packington.

—Hum...bom...

— Espero que você também ache— disse simpática a Sra.

Packington.—Oimportantemesmoéagentesesentirfeliz,não

é?Melembroquevocêmedisseissoháunsdezdias.

Omarido olhou rapidamente para ela,mas não havia nem

umapontadesarcasmonasuaexpressão.Elabocejou.

—Voume deitar. Antes que eume esqueça,George, tenho

sido horrivelmente extravagante neste últimos dias. Algumas

contasterríveisvãochegar.Vocênãoseimporta,nãoé?

—Contas?—perguntouoSr.Packington.

Page 16: Agatha christie o detetive parker pyne

—É.Vestidos.Emassagens.E tratamentoparaoscabelos.

Horrivelmente extravagante... mas eu sei que você não se

importa...

Elasubiuasescadas.OSr.Packingtonficoudebocaaberta.

Maria tinha sido maravilhosamente gentil em relação ao que

acontecera aquela noite; parecia não ter dado a menor

importância.Maseraumapenaquederepenteelacomeçassea

gastardinheiro.Maria—ummodelodeeconomia!

Mulheres! George Packington balançou a cabeça. As

confusõesemqueosirmãosdaquelagarotasetinhammetidonos

últimosdias...Bem,elecontinuavadispostoaajudá-la.Apesarde

tudo...bolas!Ascoisasjánãoestavamindoassimtãobemlápela

cidade.

Suspirando,oSr.Packingtonsubiuasescadasdevagar.

Àsvezes,sómaistardeprestamosatençãoapalavrasquena

hora não pareceram importantes. Só namanha seguinte certas

palavras que o Sr. Packington disse entraram realmente na

consciênciadesuamulher.

Dançarinos profissionais; mulheres de meia-idade; cair no

ridículo.

A Sra. Packington era uma mulher corajosa. Sentou-se e

enfrentouosfatos.Umgigolô.Elasempreleuhistóriasdegigolôs

nos jornais. Leu também a respeito de loucuras cometidas por

mulheresdemeia-idade.

Claude seria um gigolô? Ela calculou que sim. Mas então

como é que os gigolôs eram sempre pagos e era Claude quem

Page 17: Agatha christie o detetive parker pyne

pagavatodasasdespesas?Sim,maseraoSr.ParkerPynequem

pagava, não Claude — ou melhor, eram os seus próprios

duzentosguinéus.

Seria ela uma estúpida mulher de meia-idade? Será que

ClaudeLuttrellriadelapelascostas?Aestepensamentoseurosto

ficouvermelho.

Bem,ese fossemesmo?Claudeeraumgigolô.Elaerauma

ridícula mulher de meia-idade. Logo ela devia lhe dar um

presente.Umacigarreiradeouro,qualquercoisanogênero.

Um impulso excêntrico levou-a até o Asprey's. Escolheu e

comprou uma cigarreira. Ia se encontrar com Claude para

almoçarnoClaridge.

Quando tomavam o café ela mexeu na bolsa — Um

presentinho—murmurou.

Eleolhouparaela,franziuassobrancelhas—Paramim?

—É.Eu...esperoquevocêgoste.Elepegouacigarreiraea

empurrou violentamente para o outro lado damesa— Por que

vocêmedeuisso?

Não quero. Leve de volta. Leve de volta!— estava zangado.

Seusolhosescurosfaiscavam.

—Desculpe—murmurouela,eacolocoudevoltanabolsa.

Houveumcertoconstrangimentoentreosdoisnaqueledia.

Namanhãseguinteeletelefonou—Precisovervocê.Possoir

àsuacasahojeàtarde?

Page 18: Agatha christie o detetive parker pyne

Elamarcouparaastrêsdatarde.

Claudechegoumuitopálido,muitotenso.Cumprimentaram-

se.Oconstrangimentosetornoumaisevidente.

Derepenteelesepôsdepéeficouemfrentedela—Oqueé

quevocêpensaqueeusou?Foi issoqueeuvim lheperguntar.

Nóstemossidoamigos,nãoémesmo?Sim,amigos...Masapesar

detudovocêpensaqueeusou...é,éissomesmo,umgigolô.Uma

criaturaqueviveàscustasdemulheres.É issoquevocêpensa,

nãoé?

—Não,não!

Ele interrompeu seu protesto. Seu rosto estava ainda mais

pálido—Éissomesmoquevocêpensa!Bom,éverdade.Foiisso

queeuvimdizer.Éverdade!Eurecebiordensparasaircomvocê,

para lhe fazer a corte, fazer você esquecer seumarido.É este o

meuemprego.Umempregoabjeto,nãoé?

—Porquevocêmecontouissotudo?—perguntouela.

—Porqueeuestoucheiodessahistóriatoda.Nãopossomais

continuar. Não comvocê. Você é diferente. Você é o tipo da

mulher em quem eu pude confiar, acreditar, gostar. Você vai

pensar que eu estou dizendo isso porque é parte do negócio—

aproximou-sedela.—Voulheprovarquenãoéverdade.Vou-me

emboraporsuacausa.Voutentarserumhomemdeverdade,em

vezdacriaturarepulsivaquefuiatéhoje.

Derepenteeleatomounosbraços.Seuslábiosseapertaram

contraosdela.Soltou-aeseafastouumpouco.

Page 19: Agatha christie o detetive parker pyne

—Adeus.Sempre fui abjeto.Sempre.Mas juroquedehoje

emdiantevaiserdiferente.Selembraquevocêfalouumavezque

gostava de ler os Anúncios Pessoais? No dia de hoje, todos os

anos,vocêvaiencontrarumrecadomeudizendoqueeusempre

melembrodevocêequecontinuonobomcaminho.Vocêvaiver

entãooquantosignificouparamim.Maisumacoisa.Nãoquero

nadadevocê.Masqueroqueguardealgumacoisaminha—tirou

dodedoumaneldeouro.—Foideminhamãe.Queroquevocê

fiquecomele.Agora,adeus...

George Packington voltou cedo para casa. Encontrou a

mulher sentada em frente da lareira com um olhar diferente.

Falougentilmentecomele,maspareciaestranhaealheiaàsua

presença.

—Olheaqui,Maria—começouele,aosarrancos.—Aquela

moça.

—Sim,querido?

—Eu...eununcaquisaborrecervocê,sabe.Comela.Nãohá

nada.

—Eusei.Fuiumaboba.Podevê-laquantasvezesquiser,se

istofazvocêficarfeliz.

Tais palavras deviam ter alegrado George Packington, é

lógico.Pormaisestranhoquepossaparecer,elasoaborreceram.

Comopodiaelesedivertirsaindocomamoça,seasuaprópria

mulherpraticamenteoobrigavaaisto?Francamenteissonemera

decente! Toda aquela sensação de poder, de homem forte que

brincavacomfogo,sedesvaneceuemorreumelancòlicamente.De

repente, George Packington se sentiu cansado, esvaziado. A

Page 20: Agatha christie o detetive parker pyne

garotaeramuitoesperta...

—Nóspodíamos sairumpouco, se você quisesse,Maria—

sugeriutimidamente.

—Nãosepreocupecomigo.Estoumuitofeliz.

—Mas eu gostaria de levar você para passear; podíamos ir

paraaRiviera.

ASra.Packingtonsorriulevemente.

PobreGeorge...Ela se orgulhavadele.Eraumvelhinho tão

terno!Nãohavianavidaumsegredotãolindoquantoodela.Ela

sorriuaindacommaisternura.

—Seriaótimo,querido—disse.

O Sr. Parker Pyne estava falando com a Srta. Lemon —

Despesascomosdivertimentos?

—Centoeduaslibras,quatorzeshillingseseispence.

A porta abriu e entrou Claude Luttrell. Estava com um ar

amuado.

—Bomdia,Claude—disseParkerPyne.—Foitudo

bem?

—Achoquesim.

—Oanel?Qualfoionomequevocêmandougravar,porfalar

nisso?

Page 21: Agatha christie o detetive parker pyne

—Matilda—disseClaudetaciturno.—1899.

—Ótimo.Easpalavrasdoanúncio?

—Continuobem.Aindamelembrodevocê.Claude.

— Tome nota, por favor, Srta. Lemon. Na coluna dos

Anúncios Pessoais. No dia três de novembro... deixe ver...

despesas de cento e duas libras, quatorzeshillings e seis pence.

Pordezanos,acho.Istonosdeixaumlucroliquidodenoventae

duas libras, doisshillingsequatropence.Correto.Perfeitamente

correto.

Asecretáriasaiu.

—Olheaqui—explodiuClaude.—Não gostodisso.Éum

jogosujo.

—Meurapazinho!

— Jogo sujo. Uma mulher decente... uma mulher direita.

Contar todas estas mentiras. Enganá-la com estas histórias

sentimentais,quehorror.Issomedeixoudoente!

Parker Pyne endireitou os óculos e olhou para Claude com

uma espécie de interesse científico. — Meu caro — disse

secamente,—nãomerecordodenenhummomentoemqueasua

consciência o tenhapreocupado em toda a sua... ahn... notória

carreira... Seus negócios na Riviera foram particularmente

inescrupulosos, e a suaexploraçãodaSra.HattieWest,mulher

do Rei dos Pepinos da Califórnia, foi notável, pelo instinto

mercenárioeempedernidoquevocêdemonstrou.

—Bem,estoucomeçandoamesentirdiferente—resmungou

Page 22: Agatha christie o detetive parker pyne

Claude.—Nãoédireito...essetipodejogo.

ParkerPyne falounumtomdevozcomoodoprofessorque

repreende o aluno favorito — Claude, meu caro, você praticou

umaboaação.Deuaumamulherinfelizoquetodasasmulheres

precisam—umromance.Umamulherpodedestruirumapaixão

e não aproveitar nada de bom dela,mas um romance pode ser

guardado com carinho e relembrado por muitos anos. Eu

conheçoanaturezahumana,meujovem,epossolhegarantirque

uma mulher alimentará um romance por muitos anos —

pigarreou.— Cumprimos com pleno êxito nossamissão com a

Sra.Packington.

—Bem—murmurouClaude.—Masissonãomeagrada—e

deixouasala.

Parker Pyne apanhou um fichário novo numa gaveta.

Escreveu:Curiosos vestígios de consciência num gigolô

empedernido.Nota:acompanharodesenvolvimento.

Page 23: Agatha christie o detetive parker pyne

2

OCasodoSoldadoInsatisfeito

MAJORWILBRAHAM hesitou em frente à porta do escritório de

Parker Pyne para ler— não pela primeira vez— o anúncio do

matutinoqueotrouxeraatéali.Eramuitosimples:

CONFIDENCIAL

VOCÊÉFELIZ?SENÃOFOR,CONSULTEOSR.PARKER

PYNE.RUARICHMOND,17.

OMajor respirou fundo e bruscamente avançou pela porta

giratóriadoescritório.Umajovemdemaneirassimples levantou

osolhosdamáquinadeescrevereolhouinterrogativamentepara

ele.

— O Sr. Parker Pyne? — disse o Major Wilbraham, meio

envergonhado.

—Poraqui,porfavor.

Ele a seguiu até um escritório interno —: até chegarem à

presençadoafávelSr.ParkerPyne.

—Bomdia—disseoSr.Pyne.—Sente-se,porfavor.Eme

digaoquepossofazerpelosenhor.

—MeunomeéWilbraham...—começouooutro.

Page 24: Agatha christie o detetive parker pyne

—Major?Coronel?—perguntouoSr.Pyne.

—Major.

— Ah! E voltou há pouco tempo do exterior? índia? África

Oriental?

—ÁfricaOriental.

—Umlugaresplêndido,imagino.Então,estádevoltaaolar...

enãogostoudaqui.Éesteoproblema?

—Osenhorestáabsolutamentecerto.Comofoiquesoube...

OSr.ParkerPynebalançouamão,numgestoimponente—

Meu negócio é saber. Veja o senhor que durante trinta e cinco

anos da minha vida eu só fiz compilar estatísticas numa

repartição do Governo. Agora que me aposentei, me ocorreu a

idéiadeaproveitar,deumamaneiradiferente,todaaexperiência

queadquiri.Étudomuitosimples.Asdesgraçastodaspodemser

classificadasemcincotiposprincipais—nemmaisnemmenos,

possolhegarantir.Umavezconhecidaacausadeumadoença,a

curapassaaserperfeitamentepossível.Eumecoloconopapelde

um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do paciente,

depois prescreve o tratamento. Há casos em que nenhum

tratamento dá resultado. Quando é assim, digo com toda a

franquezaquenãoposso fazernada.Masse eu tomarcontado

caso, a cura é praticamente garantida. Eu lhe garanto, Major

Wilbraham,quenoventaeseisporcentodosantigosconstrutores

do Império — que é como eu os chamo — são infelizes. Eles

trocaram uma vida ativa, uma vida cheia de responsabilidades,

uma vida de possíveis perigos, por... pelo quê? Restrições

mesquinhas,umclimamelancólicoeumsentimentogeneralizado

Page 25: Agatha christie o detetive parker pyne

dequeviraramumaespéciedepeixeforadágua.

— Tudo verdade — disse o Major. — É o tédio que me

persegue.Otédioeestatagarelicesemfimsobreosprobleminhas

fúteisdeumvilarejo.Masoqueéqueeupossofazer?Tenhoum

poucodedinheiroalémdaminhapensão.Tenhoumapequena

casade campopertodeCobham.Nãopossomedar ao luxode

caçar,atiraroupescar.Nãosoucasado.Meusvizinhossãotodos

pessoassimpáticas,masnãotêmnenhumaidéiadomundoalém

destailha.

—Emsuma,osenhorachaqueavidaéinsípida—disseo

Sr.ParkerPyne.

—Tremendamenteinsípida.

—Gostariadeemoções,deperigos,talvez?

O militar deu de ombros — Não, nesta terrinha não

acontecemcoisasdessetipo.

—Perdão—disse com seriedade o Sr. Pyne.—É aí que o

senhorseengana.Hámuitoperigo,muitaemoção,aquimesmo

em Londres, se o senhor souber onde procurar. Acho que o

senhor conhece a nossa vida inglesa apenas na sua superfície,

calma,inofensiva.Masexisteoutrafaceta.Sequiservê-la,eulhe

mostrareiooutrolado.

O Major Wilbraham olhou pensativo para ele. Havia algo

tranqüilizadornoSr.Pyne.Eraforte,paranãodizergordo;tinha

umacabeçacalvabemproporcionada,óculosdelentesgrossase

pequenos olhos brilhantes. E havia em torno dele uma aura...

umaauradeconfiança.

Page 26: Agatha christie o detetive parker pyne

—Devolheavisar,entretanto—continuouoSr.Pyne,—que

haveráumelementoderisco.

Osolhosdomilitarfaiscaram—Nãoháproblemas—disse.E

bruscamente:—E...seushonorários?

—Meushonorários—disseParkerPyne—sãodecinqüenta

libras, adiantadas. Se dentro de um mês o senhor estiver

sentindoomesmotédio,eulhedevolvoodinheiro.

Wilbrahampensouummomento.

—Estácerto—disseporfim.—Concordo.Voulhedarum

chequeagoramesmo.

A transação foi completada, Parker Pyne apertou um botão

emsuamesa.

—Éumahoradatarde—disse.—Voulhepedirparalevar

umajovemparaalmoçar.

Aportaabriu.—Ah,Madeleine,minhaquerida,deixequeeu

lheapresenteoMajorWilbraham,quevailevá-laparaalmoçar.

Wilbraham piscou ligeiramente, o que era bastante

justificável. A moça que entrou na sala era uma morena

langorosa, com olhosmaravilhosos e longas pestanas negras, a

pele perfeita e uma boca voluptuosa e muito vermelha. Seu

vestidorequintadodestacavaagraçaealevezadeseucorpo.Da

cabeçaaospéselaeraperfeita.

—Ahn...prazer—disseoMajorWilbraham.

—MissdeSara—disseoSr.ParkerPyne.

Page 27: Agatha christie o detetive parker pyne

—Muitogentildasuaparte—murmurouMadeleinedeSara.

— Fiquei com o seu endereço — anunciou o Sr. Pyne. —

Amanhãdemanhãosenhorreceberáminhasnovasinstruções.

OMajorWilbrahamsaiucomaencantadoraMadeleine.

Eram três horas da tarde quandoMadeleine voltou. Parker

Pynelevantouacabeça—Comofoi?—perguntou.

Madeleinefezquenão—Estácommedodemim—disse.—

Pensaquesouumamulherfatal.

—Eraoqueeucalculava—disseParkerPyne.—Cumpriu

asinstruções?

—Cumpri.Conversamossobreaspessoasdasoutrasmesas.

O tipoqueele gosta é loura, olhosazuis, ligeiramente franzina,

nãomuitoalta.

— Deve ser fácil — disse o Sr. Pyne. — Vá me buscar o

EsquemaBevejaoquetemosemestoquenomomento

— correu o dedo sobre uma lista e parou na altura de um

nome. — Freda Clegg. É, acho que Freda Clegg é o ideal. É

melhorirfalarcomaSra.Oliver.

NodiaseguinteoMajorWilbrahamrecebeuumbilhete:

"Na segunda-feira de manhã, às onze horas, vá até

Eaglemont, na Rua Friars, emHampstead, e pergunte pelo Sr.

Page 28: Agatha christie o detetive parker pyne

Jones. Apresente-se como o representante da Companhia de

ExportaçãoGuava."

Nasegunda-feira(queporcoincidênciaeraferiadobancário),

o Major Wilbraham dirigiu-se obedientemente para Eaglemont,

RuaFriars.Dirigiu-separalá,disseeu,masnãochegoulá.Pois

antesdechegaraconteceuumaoutracoisa.

O mundo inteiro — com as respectivas esposas — parecia

estaracaminhodeHampstead.OMajorWilbrahamemaranhou-

se emmultidões, quase foi sufocado nometrô e não conseguiu

descobrirondeficavaaRuaFriars.

A Rua Friars era um beco sem saída, uma estrada

abandonadaecheiadeburacos,comcasasdeambososladosdas

calçadas. Eram casas grandes que pareciam ter conhecido dias

melhoreseagoraestavammeioabandonadas.

Wilbraham andou pelas calçadas prestando atenção nos

nomes semi-apagados nos portões, quando de repente ouviu

alguma coisa e parou, atento. Era uma espécie de soluço, um

gritomeioabafado.

Escutou outra vez o mesmo barulho, mas desta vez

reconheceu levemente a palavra "Socorro!". Vinha de dentro da

casaemfrenteàqualeleestavapassando.

Semuminstantedehesitação,oMajorWilL.ahamempurrou

o portão vacilante e correu a toda velocidade pelo caminho

cobertodeervasdaninhas.Nomeiodeunsarbustosumamoça

lutava em desespero contra dois negros enormes. Lutava com

bravura,torcendo-seechutando-os.Umdosnegroslhetapavaa

Page 29: Agatha christie o detetive parker pyne

boca com a mão, a despeito de seus esforços furiosos para

desvencilharacabeça.

Empenhadosnalutacorriamoça,osnegrosnãoperceberam

aaproximaçãodeWilbraham.Aprimeiracoisaqueperceberamfoi

umviolentosoconoqueixodohomemquecobriaabocadamoça

equecaiuparatrás.Surpreendido,ooutroabandonouamoçae

se virou. Wilbraham esperava por ele. Uma vez mais seu soco

partiueooutronegrocaiudecostas.Wilbrahamvirou-separao

primeirohomem,queestavaseaproximandodeleportrás.

Mas para os dois aquilo tinha sido suficiente. O segundo

levantou engatinhando, sentou-se, pôs-se de pé num pulo e

correu para o portão. O companheiro o seguiu. Wilbraham se

preparouparapersegui-los,masmudoudeidéiaesevirouparaa

moça,queestavarecostadanumaárvore,ofegante.

— Oh, muito obrigada! — falou ela, com uma voz

entrecortada.—Foihorrível!

Pelaprimeiravez,oMajorWilbrahamviuquemeraapessoa

queeletãooportunamentesalvara.Eraumajovemdeunsvintee

um a vinte e dois anos, loura, de olhos azuis, de uma beleza

tranqüila.

—Seosenhornãotivessechegado!—suspirouela.

—Ora, ora— disse oMajorWilbraham para acalmá-la.—

Agoraestátudobem.Achomelhornósirmosembora,elespodem

voltar.

Um levesorrisosurgiunos lábiosdagarota—Nãoacredito

queelesvoltem...depoisdoqueosenhorfez.Oh,foimaravilhoso

Page 30: Agatha christie o detetive parker pyne

dasuaparte!

O Major Wilbraham ficou envergonhado com o olhar de

admiraçãodamoça—Nãofoinada—disse,confuso.—Acontece

todo dia. Estavam aborrecendo a senhora. Olhe, será que pode

andarapoiadanomeubraço?Foiumchoquemuitodesagradável,

eusei.

—Jáestoubem—disseamoça.Masaceitouaproteçãodo

braço. Ainda estava toda trêmula. Olhou de relance para trás

quandosaírampeloportão—Nãoentendo—murmurouela.—

Estacasaestávisivelmentevazia.

—É,estávaziamesmo—concordouoMajor,reparandonas

janelasfechadasenaaparênciadeabandono.

— Mas Whitefriars é aqui — ela apontou o nome meio

apagadonoportão.—EWhitefriarseraolugarondeeudeviavir.

—Nãofiquepreocupadacomisso—disseWilbraham.—Em

doisminutosnóspegamosumtáxievamosaalgumlugartomar

umaxícaradecafé.

Nofimdaruaentraramnumaoutrabemmaismovimentada

e,porsorte,umtáxitinhaacabadodedeixaralguémemumadas

casas.Wilbrahamchamouotáxi,deuumendereçoaomotoristae

foramembora.

— Não fale— advertiu à companheira. — Fique recostada.

Vocêpassouporumaexperiênciadesagradável.

Elasorriuagradecida.

—Porfalarnisto...ahn...meunomeéWilbraham.

Page 31: Agatha christie o detetive parker pyne

—OmeuéClegg—FredaClegg.

Dezminutosdepois,Fredaestavatomandoumcaféquentee

olhandoagradecidaparaoseusalvadordooutroladodamesa.

— Parece até um sonho — disse ela. — Um pesadelo —

estremeceu.—Edizerqueaindahápoucoeuestavapedindoa

Deusqueacontecessealgumacoisa... qualquercoisa!É, eunão

gostodeaventuras!

—Contecomofoiqueaconteceu.

— Bom, para contar tudo, acho que precisaria falar uma

porçãodecoisassobremimmesma.

—ótimoassunto—disseWilbrahambalançandoacabeça.

— Sou órfã.Meu pai era capitão.Morreu quando eu tinha

oitoanos.Minhamãehátrêsanos.Trabalhonocentrodacidade.

NaCompanhiadeGás,comorecepcionista.Umanoitedasemana

passada,aovoltarparacasa,encontreiumsenhoresperandopor

mim.Eraumadvogado, umSr.Reid, deMelbourne. Foimuito

delicado e me fez várias perguntas sobre a minha família.

Explicou que tinha conhecido meu pai há muitos anos. Na

verdade, eles fizeram algumas transações juntos. Foi então que

ele me contou o objetivo de sua visita. "Srta. Clegg", disse ele,

"tenho razões para acreditar que a senhorita poderá ser

beneficiada com os resultados de uma transação comercial

realizada por seu pai muitos anos antes de sua morte." Fiquei

muitosurpresa,éclaro."Éprovávelqueasenhoritanuncatenha

ouvido falar dessa história"— explicou ele— "pois JohnClegg

nunca levou o negócio muito a sério, acho eu. Mas tudo se

concretizoudemodo inesperado.Temoquepara legalizara sua

Page 32: Agatha christie o detetive parker pyne

situação será necessário ter certos documentos. Esses papéis

devemfazerpartedoinventáriodeseupai,etalvezatéjátenham

sidodestruídos,nasuposiçãodequenãotinhamnenhumvalor.

Asenhoritaguardoualgunspapéisdeseupai?"

—Expliqueiqueminhamãeguardavaváriascoisasdomeu

pai numa velha arca. Eu já tinha dado uma olhada, mas não

descobri nada de interessante. "Dificilmente a senhorita

reconheceria a importância destes documentos" disse ele

sorrindo.Fuiatéàarca,apanheialgunspapéisqueestavamláe

mostreiaele.Examinou-os,masdissequeera impossívelassim

derepentesaberquaisosqueestariamounãoligadosaoassunto

emquestão.Eleoslevariaesecomunicariacomigoseaparecesse

algumacoisa.

— Pelo último correio de sábado, recebi uma carta que

sugeriaqueeufosseàcasadeleparadiscutirmosoassunto.Me

deu este endereço: Whitefriars, Rua Friars, Hampstead. A hora

marcada era quinze para as onze. Me atrasei um pouco

procurando o lugar. Entrei com pressa pelo portão e estava

andando para a casa quando de repente aqueles dois homens

horríveis pularam em cima demim de dentro dasmoitas. Nem

tive tempo de gritar. Um deles pôs a mão na minha boca.

Consegui dar um arranco com a cabeça e gritei por socorro.

Felizmenteo senhormeouviu.Senão fosse isso...—seuolhar

eramaiseloqüentequequaisqueroutraspalavras.

—Felizmenteeuestavapassandoporali.Juroqueeuqueria

apanhar aqueles dois. Suponho que você nunca os tenha visto

antes.

Ela fez quenão coma cabeça—Oqueachaque isso tudo

Page 33: Agatha christie o detetive parker pyne

significa?

—Édifícil.Masumacoisaparececlara.Háalgumacoisaque

alguémquerequeestáentreospapéisdeseupai.EstetalReid

lhecontouumahistóriadacarochinhapara teraoportunidade

dedarumaespiadaneles.Éevidentequeoqueeleprocuravanão

estavalá.

— Ah! — exclamou Freda. — Agora eu estou entendendo.

Quando voltei para casano sábadoachei queasminhas coisas

tinhamsidoremexidas.Paradizeraverdade,suspeiteidequea

senhoria tivesse entrado no meu quarto por curiosidade. Mas

agora...

— Depende. Alguém conseguiu entrar no seu quarto e dar

uma busca, mas não achou o que procurava. Achou que você

sabia o valor deste papel, ou lá o que seja, e que o mantinha

guardado.Entãoplanejouestaemboscada.Sevocêestivessecom

opapel,elesapanhariam.Senão,vocêficariapresaenquantoeles

tentavamfazê-laconfessarondeotinhaescondido.

—Masafinaloquepodeseristo?—exclamouFreda.

—Nãosei.Masdeveseralgumacoisademuito importante,

paraelesedaratodoessetrabalho.

—Masnãoépossível!

—Nãosei.Seupai eraummarinheiro. Iaamuitos lugares

estranhos. Talvez tenha achado alguma coisa cujo verdadeiro

valornuncachegouasaber.

—Vocêachamesmo?—umleverubordeexcitaçãocoloriuas

Page 34: Agatha christie o detetive parker pyne

pálidasfacesdamoça.

— Acho. A questão é o que fazer agora? Você não está

pretendendoiràpolícia,ouestá?

—Não,porfavor!

— Ótimo. Não vejo o que a polícia poderia fazer, e isso só

trariaaborrecimentosparavocê.Agorasugiroquevocêváalmoçar

comigoemalgumlugaredepoismedeixeacompanhá-laatéoseu

apartamento, para que eu fique certo de que você chegou sã e

salva. Aí, se você quiser, nós podemos dar uma olhada nos

papéis.Porqueépossívelqueelesestejamescondidosemalgum

lugar.

—Talveztenhasidoomeupaimesmoquemdestruiuopapel.

—Talvez,maspodeserquenão,enessecasonóspodemos

achá-lo.

—Oqueserá?Umtesouroescondido?

—MeuDeus,ébempossível—exclamouoMajorWilbraham,

comoseu lado infantil todoexcitadocomaperspectiva.—Mas

agora,Srta.Clegg,aoalmoço!

Oalmoçofoiagradável.WilbrahamcontoutudoaFredasobre

asuavidanaÁfricaOriental.Descreveucaçadasdeelefantesea

garotaficouemocionada.Quandoacbaram,eleinsistiuemlevá-la

detáxiparacasa.

O apartamento era perto de Notting Hill Gate. Ao chegar,

Freda teve uma rápida conversa com a senhoria. Voltou para

pertodeWilbrahamesubiucomeleatéosegundoandar,onde

Page 35: Agatha christie o detetive parker pyne

elamoravanumminúsculoapartamentodequartoesala.

— Exatamente como pensamos— disse ela.— Esteve aqui

um sujeito, sábado de manhã, para fazer um conserto na

instalação elétrica. Disse que a do meu quarto estava com um

defeito,eficouláalgumtempo.

—Memostreaarcadoseupai—pediuWilbraham.Fredalhe

mostrou uma caixa com um anel de latão em volta — Veja —

disseelalevantandoatampa.—Estávazia.

Omilitar fezquesimcomacabeça,pensativo—Enãotem

nenhumpapelemoutrolugar?

—Tenhocertezaquenão.Mamãeguardavatudoaqui.

Wilbrahamexaminouaparteinternadaarca.Derepenteteve

uma surpresa — Há uma fenda no forro! — cuidadosamente,

enfiou a mão para examinar o interior. Um leve estalido o

recompensou—Algumacoisaescorregouparabaixo!

Umminuto depois ele terminava sua busca. Um pedaço de

papel sujo, todo dobrado. Alisou-o em cima da mesa; Freda

olhavaporcimadoombroeficouumpoucodesapontada.

—Nãopassadeummontederabiscosesquisitos.

— Meu Deus, está escrito emswahili! — gritou o Major

Wilbraham.—OdialetonativodaÁfricaOriental,sabe?

—Quecoisa incrível!—disseFreda.—Evocêconsegue ler

isso?

—Maisoumenos.Masquecoisaestranha!—levouopapel

Page 36: Agatha christie o detetive parker pyne

parapertodajanela.

— É alguma coisa? — perguntou Freda toda trêmula.

Wilbrahamleuduasvezesopapelevoltouparajuntodamoça,—

Bem — disse com uma careta, — aqui está o seu tesouro

escondido.

— Tesouro escondido?Mesmo?Ou seja, ouro espanhol. ..

galeãoafundado...essascoisas?

— Não chega a ser tão romântico, mas... o resultado é o

mesmo.Estepapelindicaoesconderijodemarfim.

—Marfim?—perguntouamoçaespantada.

—É.Elefantes,sabe?Háumaleiqueproíbemataralémde

umcertonúmero.Algumcaçadorconseguiuescapareburlaresta

lei em grande escala. Ele começou a ser perseguido e teve que

esconderomarfim.Parecequehámuitomarfim,eeleindicacom

precisãoorumoparaencontrá-lo.Olhe,precisamosiratrásdisso,

euevocê.

—Vocêachaquehámesmomuitodinheironessahistória?

—Umabelafortunaparavocê.

—Mas como foi que este papel foi parar nasmãos domeu

pai?

Wilbraham sacudiu os ombros— Talvez o sujeito estivesse

morrendo,oucoisaqueovalha.Talvez tenhaescritoemswahili

para se proteger, e entregou ao seu pai, que talvez o tenha

ajudado de algum modo. Seu pai, como não sabia ler o

documento, não deu a menor importância. É apenas uma

Page 37: Agatha christie o detetive parker pyne

conjetura minha, mas posso lhe garantir que não deve estar

muitolongedaverdade.

Fredasuspirou—Comoéespantosoeexcitante!

— O problema agora é: o que fazer com este documento

precioso — disse Wilbraham. — Não gostaria de deixá-lo aqui.

Talvezelesvenhamprocurá-looutravez.Vocêodeixariacomigo?

—Claroquedeixo.Mas...nãovaiserperigosoparavocê?—

disseela,hesitante.

—Souumossodurode roer—disseWilbrahamcomuma

careta.—Nãoprecisasepreocuparcomigo—dobrouopapeleo

colocounobolsodedentrodopaletó.—Possovirvê-laamanhã

de noite? — perguntou. Amanhã já terei alguns planos, e vou

olhar certos lugares no meu mapa. A que horas você volta da

cidade?

—Àsseisemeia.

—ótimo.Teremosumaconferênciasecreta,evocêtalvezme

permitalevá-laparajantar.Precisamoscomemorar.Atéamanhã,

então.Àsseisemeia.

OMajorWilbrahamchegoupontualmentenahoramarcada.

TocouacampainhaeperguntoupelaSrta.Clegg.Umacriadafoi

quematendeu.

—Srta.Clegg?Nãoestá.

— Ahn!—Wilbraham não quis sugerir que podia entrar e

Page 38: Agatha christie o detetive parker pyne

esperar.—Euvoltomaistarde—disse.

Ficoudoladodefora,narua,esperandoatodominutoque

Fredasurgisse.Osminutos iampassando.Quinzeparaassete.

Sete. Sete e quinze. Nem sinal de Freda. Um sentimento de

desassossego começou a tomar conta dele. Voltou ao edifício e

tocouacampainha.

—Porfavor—disse,—eutinhamarcadoumencontropara

as seis e meia com a Srta. Clegg. Tem certeza de que ela não

está...oudequenãodeixounenhumrecado?

— O senhor é o Major Wilbraham? — perguntou a

empregada.

—Sou.

—Entãotemumrecadoparaosenhor.Foiumportadorque

deixou.

Wilbrahamabriuoenvelope.Diziaoseguinte:

MeucaroMajorWilbraham:

Aconteceu uma coisa muito estranha. Não posso escrever

mais nada agora; pode se encontrar comigo em Whitefriars?

Venhaomaisdepressapossível.

Suaamiga,

FredaClegg

Wilbraham pôs-se rapidamente a pensar com um ar

Page 39: Agatha christie o detetive parker pyne

preocupado. Distraidamente pôs a mão no bolso e tirou uma

carta endereçada ao seu alfaiate. — Será — perguntou à

empregada,—queasenhorapodiamearranjarumselo?

—TalvezaSra.Parkinspossalhearranjar.

Emseguida voltava como selo. Pagou comumshilling. Um

minuto depois Wilbraham estava andando para a estação do

metrô, e colocou a carta ao passar por uma caixa coletora do

correio.

AcartadeFredaodeixoumuitoinquieto.Oqueterialevadoa

garota,sozinha,àcenadosinistroencontrodavéspera?

Balançou a cabeça. Que coisa mais imprudente! Será que

Reidvoltara?Teriadealgummodoconvencidoagarotaaconfiar

nele?OqueaterialevadoaHampstead?

Olhouorelógio.Quaseseteemeia.Eladeviaestarpensando

que ele sairia de lá às seis e meia. Uma hora de atraso. Era

demais.Sepelomenoselativessedadoalgumapista...

A carta o deixara intrigado. Seu tom, muito independente,

nãoeramuitoprópriodeFredaClegg.

FaltavamdezminutosparaasoitoquandoelechegouàRua

Friars. Começava a escurecer. Olhou de relance para os lados;

não havia ninguém à vista. Devagar, empurrou o portão, que

girousilenciososobreasdobradiças.Aalamedaestavadeserta.A

casa,àsescuras.Seguiupelocaminho,muitocauteloso,olhando

para os dois lados. Não estava disposto a ser apanhado de

surpresa.

Page 40: Agatha christie o detetive parker pyne

Derepenteparou.Porumrápidoinstantebrilhouumraiode

luzatravésdeumadaspersianas.Acasanãoestavavazia.Tinha

alguémládentro.

Wilbraham entrou cuidadosamente por uma moita e

procurouocaminhodosfundosdacasa.Finalmenteencontrouo

que procurava. Uma das janelas do andar térreo não estava

trancada. Era a janela de uma espécie de copa. Levantou a

vidraça—eraumajanelacorrediça

—acendeualanterna(elecompraraumanocaminho)

paraespiarointeriordeserto.Pulouparadentro.

Com muito cuidado abriu a porta da copa. Não ouviu

qualquer ruído.Outra vez acendeu a lanterna.Uma cozinha—

vazia.Dooutroladodacozinhahaviaumameiadúziadedegraus

e uma porta que evidentemente dava para a parte da frente da

casa.

Abriuaportaeprocurouescutar.Nada.Entrou.Agoraestava

nasaladafrente.Aindanãotinhaouvidonada.Haviaumaporta

àdireitaeoutraàesquerda.Escolheuaportadadireita,afiouo

ouvidoevirouotrinco.Aportacedeu.Abriudevagar,centímetro

porcentímetro,eentrou.

Tornou a acender a lanterna. A peça estava completamente

vazia.

Neste momento, ouviu um ruído atrás dele, virou — tarde

demais! — Alguma coisa bateu na sua cabeça e ele caiu,

inconsciente...

Page 41: Agatha christie o detetive parker pyne

Wilbraham não tinha idéia do tempo que tinha ficado sem

sentidos.Voltouàvida,penosamente,acabeçadoendo.Tentouse

mexermasviulogoquenãopodia.Estavaamarradocomcordas.

Rapidamenterecobrouarazão.Agoraselembrava.Tinhasido

atingidonacabeça.

Uma luz fraca lá no alto da parede indicava que ele estava

numapequenaadega.Olhouemvoltaeseucoraçãopulou.Perto

dele,jaziaFreda,tambémamarrada.Osolhosestavamfechados,

mas se abriram logo depois, enquanto a moça suspirava,

observada ansiosamente por Wilbraham. Seu olhar perplexo se

concentrounele,eaoreconhecê-lobrilhoudealegria.

—Vocêtambém?—disseela.—Oquefoiqueaconteceu?

—Deixeivocêemmásituação—disseWilbraham.—Caíde

cabeçanaarmadilha.Mediga,vocêescreveuumbilhetepedindo

queeuviesseencontrá-laaqui?

Osolhosdamoçasearregalaramdeespanto.—Eu?Masfoi

vocêquemmemandouumbilhete.

—Ah,eumandeiumbilheteparavocê?

—Foi.Eurecebinoescritório.Pediaqueeuviesseencontrá-

loaquienãoláemcasa.

— O mesmo método — resmungou ele, explicando a ela a

situação.

—Estouentendendoagora—disseFreda.—Entãooplano

era...

Page 42: Agatha christie o detetive parker pyne

—Conseguiropapel.Alguémdeveternosseguidoontem.Foi

comoelesmelocalizaram.

—E...elesconseguiramopapel?—perguntouFreda.

—Infelizmentenãopossomemexerparaverificar—disseo

militarolhandopesarosoparaasmãosamarradas.

De repente eles estremeceram. Ouviu-se uma voz, uma voz

quepareciavirdovácuo.

—Sim,muitoobrigado—disse.—Jáconseguiopapel.Não

precisamsepreocupar.

Osdoissearrepiaramcomavozinvisível.

—Reid—murmurouFreda.

—Reidéumdosmeusnomes,minhacarajovem—dissea

voz.—Masapenasumdeles.Agora,sintomuitodizerquevocês

doisinterferiramnosmeusplanos—umacoisaqueeunãoposso

permitir.Adescobertadestacasaémuitoséria.Vocêsaindanão

falaramnadaàpolícia,maspodeserquevenhamafazê-lo.Temo

que não possa confiar em vocês. Podem prometer. .. mas nem

semprepodemoscumpriraspromessas.Ecomovêem,estacasaé

muitoútilparamim.Éumaespéciedepontosemretorno.Daqui

todossaem. ..paraumoutro lugar...É,sintomuito,masvocês

vãoembora...Émuitotriste...masépreciso.

A voz fez uma pequena pausa e resumiu: — Não haverá

derramamento de sangue. Tenho horror a carnificinas. Meu

métodoémaissimples.Enaverdadenãoédoloroso.Bem,tenho

queirandando.Boanoiteparaambos.

Page 43: Agatha christie o detetive parker pyne

—Olheaqui—eraWilbrahamquemfalavaagora.

—Façaoquequisercomigo,masestamoçanãolhefez

nada... nada! Não lhe fará a menor diferença se ela for

embora.

Masnãohouveresposta.

NesteinstanteFredadeuumgrito.

—Aágua...aágua!

Apesar da dor, Wilbraham virou-se e seguiu a direção dos

olhos dela. De um buraco perto do teto, a água começou a

borbulhar.

Fredadeuumgritohistérico—Elesvãonosafogar!

OsuorbrotounorostodeWilbraham—Aindanãoestamos

perdidos—disse.—Vamosgritarporsocorro.Équasecertoque

alguémouça.Agora:aomesmotempo.

Berraramomais fortequepuderam.Sópararamquando já

estavamroucos.

—Nãoadianta—disseWilbrahamcomtristeza.—Estamos

muitoabaixodoníveldochãoeachoqueasportasdevemserà

prova de som. É claro que se pudéssemos ser ouvidos aquele

estúpidonosteriaamordaçado.

—Oh!— gritouFreda.—E tudoporminha culpa. Fui eu

quemenvolveuvocênessahistória.

—Nãosepreocupe,minhaquerida.Éemvocêqueeuestou

Page 44: Agatha christie o detetive parker pyne

pensando.Jáestiveemsituaçõespioreseconseguimelivrar.Não

perca a coragem.Do jeito que a água está caindo, ainda temos

muitashoras.antesqueopioraconteça.

— Você é maravilhoso! — disse Freda. — Nunca conheci

ninguémcomovocê...sónoslivros.

— Bobagem... é só uma questão de senso comum. Agora,

precisoafrouxarestasmalditascordas.

Quinze minutos depois, à força de puxar e se torcer,

Wilbrahamteveasatisfaçãodeconstatarqueosnósestavambem

mais frouxos. Tentou abaixar a cabeça e suspendeu os punhos

atéconseguiratacarosnóscomosdentes.

Comasmãoslivres,orestofoiapenasumaquestãodetempo.

Cheiodecãibras,endurecido,maslivre,elesedebruçousobrea

moça.Umminutodepoiselatambémjáestavalivre.

Aestaalturaaáguaestavapelostornozelos.

—Eagora—disseomilitar—vamossairdaqui.

Aportadaadegaficavanotopodealgunsdegraus.0Major

Wilbrahamaexaminou.

—Nãotemproblema—disse.—Éfraca.Vaiserfáciltirá-la

dasdobradiças—encostouosombrosnaportaeempurrou.

Amadeiraestaloueaportasedeslocoudasdobradiças.

Doladodeforaencontraramumlancedeescada.Emcima,

outraporta—estabemdiferente—demadeirasólidaereforçada

comtrancasdeferro.

Page 45: Agatha christie o detetive parker pyne

—Estaéumpoucomaisdifícil—disseWilbraham.—Mas

quesorte!Nãoestátrancada!

Eleempurrou,olhouepediuàgarotaqueoseguisse.Saíram

numapassagemquedavaparaacozinha.Umminutodepois já

estavamaoarlivre,naRuaFriars.

—Ai!—Fredadeuumpequenosoluço.—Quecoisahorrível!

—Minhaquerida—eleatomounosbraços.—Vocêfoitão

maravilhosamente corajosa. Freda...meuanjo... será que você...

querodizer,sevocê...teamo,Freda.Quersecasarcomigo?

Depois de um breve intervalo, altamente satisfatório para

ambasaspartes,oMajorWilbrahamdissecomumsorriso:

—Eomelhoréquenósaindatemososegredodotesourodo

marfim.

—Maselesapanharam!

O Major tornou a sorrir — Foi exatamente o que eles não

fizeram. Fiz uma cópia falsa e antes deme encontrar com você

pusooriginalnumacartaque iamandarparaomeualfaiatee

coloqueinocorreio.Elespegaramacópiafalsae...tomaraquese

divirtam!Sabeoquenósvamosfazer,meuanjo?Vamospassara

lua-de-melnaÁfricaOrientalesairàcaçadonossotesouro.

Parker Pyne saiu de seu escritório e subiu dois lances de

escada. Numa sala do alto do edifício estava a Sra. Oliver, a

sensacionalnovelista,queeraagoraumdosmembrosdaequipe

doSr.Pyne.

Page 46: Agatha christie o detetive parker pyne

Parker Pyne bateu na porta e entrou. A Sra. Oliver estava

sentada a uma mesa sobre a qual havia uma máquina de

escrever,várioscadernosdenotas,umaconfusãodemanuscritos

soltoseumagrandecestademaçãs.

— Ótima história, Sra. Oliver — disse Parker Pyne, com

entusiasmo.

— Deu tudo certo? — perguntou a Sra. Oliver. — Fico

satisfeita.

—Onegóciodaáguanoporão—disseParkerPyne.—Não

acha quedaqui por diante podíamospensar alguma coisamais

original...talvez?—fezasugestãocomumacertatimidez.

A Sra. Oliver balançou negativamente a cabeça e apanhou

umamaçãdacesta—Achoquenão,Sr.Pyne.Nãoseesqueçade

queaspessoasestãoacostumadasalerhistóriasdessetipo.Água

subindodentrodeumaadega,gasesvenenosos,etc.Ofatodejá

conhecer as coisas provoca uma excitação maior quando elas

acontecemcomagente,Opúblicoéconservador,Sr.Pyne.Eles

gostamdostruquesantiquados.

— Bem, a senhora é quem sabe — admitiu Parker Pyne,

levando-seemcontaqueelaeraautoradequarentaeseisnovelas

deficçãomuitobemsucedidas,todascomrecordesdevendasna

Inglaterra e naAmérica e já traduzidas para o francês, alemão,

italiano,húngaro,finlandês,japonêseabissínio.Easdespesas?

A Sra. Oliver pegou uma folha de papel — Ao todo muito

pouca coisa. Os dois negros, Percy e Jerry, cobraram muito

pouco.OjovemLorrimer,oator,sedeuporfelizemfazerppapel

Page 47: Agatha christie o detetive parker pyne

de Reid por cinco guinéus. O discurso lá na adega era uma

gravação,éclaro.

—Whitefriarstemsidomuitoútilparamim—dissePyne.—

Compreiacasaporumaninharia,eelajáserviudecenáriopara

onzedramasmisteriosos.

— Ah, estava esquecendo — disse a Sra. Oliver. — O

pagamentodeJohnny.Cincoshillings.

—Johnny?

—É.Foiomeninoquederramouaáguadosgarrafõespelo

buracodaparede.

— Ah, sim. Por falar nisso, Sra. Oliver, como foi que a

senhoraaprendeuswahili?

—Eunãoseiswahili.

—Ah,sei.FoioMuseuBritânico,talvez?

—Não.OCentrodeInformaçõesdeDelfridge.

— Como são maravilhosos hoje em dia os recursos do

comérciomoderno—murmurouele.

—Aúnicacoisaquemepreocupaéqueaquelesdois jovens

nãovãoencontrarnenhumtesouroescondidoquandochegarem

lá.

—Ninguémpodetertudonestemundo—disseParkerPyne.

—Elesvãoterumalua-de-mel.

Page 48: Agatha christie o detetive parker pyne

A Sra.Wilbraham estava sentada numa espreguiçadeira no

convés.Seumaridoescreviaumacarta—Quediaéhoje,Freda?

—Dezesseis.

—Dezesseis!MeuDeus!

—Oquefoi,querido?

—Nada.EstavamelembrandodeumsujeitochamadoJones.

Pormais felizesquefossemosrecém-casados,hácoisasque

ninguémpodeimaginar.

— Que inferno— pensou o Major Wilbraham,eu devia ter

voltadoláepedidoomeudinheirodevolta.

Mas,porserumhomemcorreto,pesoutambémooutrolado

da questão.Afinal de contas, fui eu que quebrei o contrato.

Suponho que se tivesse ido ver o tal Jones alguma coisa teria

acontecido. De qualquer maneira, do jeito que aconteceu, se eu

nãotivesseidoverotalJones,nuncateriaouvidoogritodeFreda

e talvez nós não nos encontraríamos nunca. Por tudo isso,

indiretamente,talvezeletenhadireitoàquelascinqüentalibras!

ASra.Wilbrahamtambémfaziaumraciocínio:Comofuiboba

deacreditarnaqueleanúncioepagar três librasàquelagente.É

claroqueelesnunca fizeramnadaporaquiloenuncaaconteceu

nada.Seaomenoseusoubesseoqueiaacontecer.Primeiro,oSr.

Reid e depois a maneira estranha e romântica na qual Charlie

entrounaminhavida.Epensarquefoiporpuracoincidênciaque

euoconheci!

Elasevirouesorriuencantadaparaseumarido.

Page 49: Agatha christie o detetive parker pyne
Page 50: Agatha christie o detetive parker pyne

3

OCasodaSenhoraAngustiada

ACAMPAINHAdamesadeParkerPynesooudiscretamente.

—Sim?—disseograndehomem.

—Umamoçaquerverosenhor—falouasecretária.—Não

temhoramarcada.

—Mandeentrar,Srta.Lemon.

Umminuto depois ele apertava amãoda recém-chegada—

Bomdia—disse.—Sente-se,porfavor.

—ParkerPyneéosenhor?—perguntou.

—Sou.

—Odoanúncio?

—Odoanúncio.

—Osenhordizqueseaspessoasnãosão...nãosãofelizes...

que...quevenhamfalarcomosenhor.

—É.

Ela falou depressa — Bem, é que eu estou muito infeliz.

Entãopenseiemapareceraquisópara...só

paraver.

Page 51: Agatha christie o detetive parker pyne

Parker Pyne ficou parado, porque sentiu que havia mais

coisa.

—Eu... eu estou comumproblemahorrível— apertava as

mãosnervosamente.

—Estouvendo—disseParkerPyne.—Podemecontaroque

estáacontecendo?

Parecequeeraexatamenteissooqueamoçanãosabiamuito

bem.OlhouparaParkerPynecomumaatençãodesesperada.De

repente,começouafalaraosborbotões.

—Voucontar...Játomeiumadecisão.Quase fiqueimaluca

depreocupação.Nãosabiaoquefazerouparaquemapelar.Foi

então que vi o seu anúncio. Pensei que talvez fosse uma

brincadeira, mas ficou na minha cabeça. Fosse o que fosse,

pareciatãoreconfortante.Aíeupensei—bom,nãocustanadair

láver.Eupodiadarumadesculpaesairsenão...bem,senão...

—Compreendo,compreendo—disseParkerPyne.

—Osenhorsabe—disseamoça,— issosignifica...bem...

confiaremalguém.

—Easenhoraachaquepodeconfiaremmim?—perguntou

elesorrindo.

— É estranho — disse a moça com uma simplicidade

inconsciente, — mas confio. Sem saber nada a seu respeito!

Tenhocertezadequepossoconfiarnosenhor.

— Posso lhe garantir — disse Parker Pyne — que a sua

confiançanãoestátraída.

Page 52: Agatha christie o detetive parker pyne

— Então — disse a moça, — posso lhe contar tudo. Meu

nomeéDaphneSt.John.

—Poisnão,Srta.St.John.

—Senhora.Eu...eusoucasada.

—Ora!—murmurouoSr.Pyneaborrecidoconsigomesmo

aoveroarodeplatinanoterceirodedodesuamãoesquerda.—

Quebobagemdaminhaparte.

—Seeunão fosse casada—continuouamoça,—nãome

importaria tanto.Quero dizer. .. não teria tanta importância. E

pensarqueGerald...Bem,aí...aíéqueestátodooproblema!

Elaenfiouamãonabolsaetirouumacoisaquecintilavae

entregouaParkerPyne.

Eraumaneldeplatinacomumenormediamantesolitário.

Pyneopegou,foiatéàjanela,olhoucontraavidraça,colocou

umalentedejoalheiroeexaminoudeperto.

— Um diamante extraordinariamente valioso — falou ao

voltaràmesa;—devevaler,calculo,cercadeduasmillibras,no

mínimo.

—É.Efoiroubado!Euroubei!Enãoseioquefazeragora!

— Meu Deus — disse Parker Pyne. — Mas que coisa

interessante.

Suaclientesedescontrolouecomeçouasoluçareseassoar

Page 53: Agatha christie o detetive parker pyne

numlençomeioamarrotado.

—Ora,oqueéisso—dissePyne.—Vaitudoacabarbem.

Amoça enxugou os olhos e fungou—Vai?—disse ela.—

seráquevai?

—Éclaroquevai.Agora,meconteahistóriatoda.

—Bem,tudocomeçouquandoeufiqueiapertadadedinheiro.

Soumuitoextravagante.Geraldficoumuitoaborrecidocomisso.

Geraldémeumarido.Eleémuitomaisvelhodoqueeu,etem...

bem, ele tem umas idéias muito austeras. Acha que contrair

dívidaséumacoisahorrível.Porisso,nãofaleinadacomele.Fui

atéoLeTouquetcomalgunsamigosepenseique talvez tivesse

sorte no bacará para arranjar as coisas outra vez. Comecei

ganhando, mas depois passei a perder e achei que tinha de

continuar.Econtinuei.E...e...

— Sei, sei — disse Parker Pyne. — Não precisa entrar em

detalhes.Vocêficounumaenrascadamaiordoquenoinício,não

é?

DaphneSt.Johnconcordou—Eàquelaalturaeunãopodia

maiscontaraGerald.Porqueeledetestajogo.Aminhasituação

era desesperadora. Então, nós fomos passar uns dias com os

Dortheimers, perto de Cobham. Eles são muito ricos, claro. A

mulher dele, Naomi, foi minha colega de escola. Ela é um

encanto,emuitobonita.Duranteanossaestadalá,oengastedo

anel se soltou.Namanhãquenós fomos embora, elamepediu

paralevá-loàcidadeedeixá-lonoseujoalheiro,naBondStreet

—fezumapausa.

Page 54: Agatha christie o detetive parker pyne

— E agora vem a parte mais difícil — disse Parker Pyne,

procurandoajudar.—Continue,Sra.St.John.

—Osenhornãovaicontaraninguém,nãoé?—imploroua

moça.

— As confidencias dos meus clientes são sagradas. E de

qualquermaneira,Sra.St.John,asenhora jámecontou tanta

coisaqueagoratalvezeupudesseterminarahistóriasozinho.

—Eusei,maséqueeunãogostode falarnisso...achotão

terrível. Fui a Bond Street. Lá tem uma outra loja— a Viro's.

Eles...fazemcópiasdejóias.Derepente,perdiacabeça.Pegueio

aneledissequequeriaumacópiaexata;dissequeiaviajarparao

exteriorenãoquerialevarcomigoajóiaverdadeira.Elesacharam

tudomuitonatural.

— Bom, consegui a cópia falsa — era tão perfeita que

qualquerumconfundiriacomooriginal—emandei,pelocorreio,

registrada, para Lady Dortheimer. Eu tinha uma caixa com o

nome do joalheiro, parecia perfeito, então, com um ar muito

profissional, fiz um embrulho. Aí, eu... eu. .. empenhei a jóia

verdadeira—elaescondeuorostocomasmãos.—Comoéque

eufuifazerisso?Comoéqueeufuifazerisso?Nãopassodeuma

ladramesquinhaeordinária.

Parker Pyne pigarreou — Acho que a senhora ainda não

terminou—disse.

— Não, ainda não. Isso foi há umas seis semanas. Paguei

todasasminhasdívidaseacerteitudo,maséclaroqueestavame

sentindo péssima. Foi então quemorreuuma velha prima e eu

recebialgumdinheiro.Aprimeiracoisaquefizfoitirarodiabodo

Page 55: Agatha christie o detetive parker pyne

aneldopenhor.Bom,atéaífoitudobem.Oanelestáaqui.Mas

derepenteaconteceuumacoisaterrível.

—Ah,foi?

—NóstivemosumabrigacomosDortheimers.Foiporcausa

de umas ações que Sir Reuben tinha convencido Gerald a

comprar.EleperdeumuitodinheiroedisseunsdesaforosaSir

Reuben...foihorrível!Eagora,comoosenhorestávendo,eunão

possodevolveroanel.

— Não poderia enviá-lo anonimamente para Lady

Dortheimer?

— Iria tudo por água abaixo. Ela examinaria o outro anel,

descobririaqueéumaimitaçãoeadivinhariaoqueaconteceu.

—A senhoradisseque ela é suaamiga.Que tal lhe contar

todaaverdade...apelandoparaasuaindulgência?

A Sra. St. John balançou a cabeça — Nós não somos tão

amigas assim. Em matéria de dinheiro e jóias, Naomi é muito

severa. Talvez ela não pudesseme processar se eu devolvesse o

anel, mas ia contar a todo mundo o que eu fiz e eu estaria

perdida. Gerald ia saber e nunca me perdoaria. Ai, é tudo tão

complicado! — recomeçou a chorar. — Pensei, pensei e não

encontrei uma solução! Oh, Sr. Pyne, será que o senhor pode

fazer alguma coisa? ' — Uma porção de coisas— disse Parker

Pyne.

—Podemesmo?Será?

— Sem dúvida. E lhe sugiro que se faça tudo da maneira

Page 56: Agatha christie o detetive parker pyne

mais simples. A minha experiência me diz que a simplicidade

sempre dá certo. Evite as situações complicadas. Apesar disso,

compreendo que as suas objeções são bastante razoáveis. No

momento,quemmaissabedestestristesfatosalémdasenhora?

—Osenhor—disseaSra.St.John.

—Não,semcontarcomigo.Bom,porenquantooseusegredo

estáasalvo.Precisamosapenastrocarosanéisdeumaformaque

nãodespertesuspeitas.

—Éexatamenteporisso—disseamoçaansiosa.

— Não vai haver problema nenhum. Precisamos de um

tempinhoparaimaginaromelhormétodo...

Ela interrompeu— Mas não há tempo! É por isso que eu

estouquaselouca.Elavaireformaroanel.

—Comoéqueasenhorasabe?

— Por coincidência. Eu estava almoçando com uma amiga

outrodiaeelogieioanelqueelaestavausando—umaesmeralda

enorme. Ela me disse que era a última moda... e que Naomi

Dortheimeriamudaroaneldebrilhantedelaparaaquelaforma.

—Oquequerdizerquenósvamosterquetrabalhardepressa

—disseParkerPyne,pensativo.

—Poisé.

—Istoé,teracessoàcasa...sepossívelnãocomoumcriado.

Os empregadosnãopodemmexer emanéis valiosos. A senhora

temalgumaidéia;Sra.St.John?

Page 57: Agatha christie o detetive parker pyne

—Bom,Naomivaidarumagrandefestaquarta-feira.Eessa

minha amiga contou que ela estava procurando uns bailarinos

profissionais.Nãoseiseelajáacertoualgumacoisa...

—Achoqueeupossodarumjeito—disseParkerPyne.—Se

já estiver combinado, vai ficar só um poucomais caro, só isso.

Outracoisa.Poracaso,asenhorasabeondeficaachavegeralda

luz?

— Por acaso eusei onde fica,porqueumavezqueimouum

fusívelbemtarde,eosempregadosjáestavamtodosdeitados.É

umacaixaqueficanofundodocorredor—dentrodeumarmário

pequeno.

ApedidodeParkerPyne,elafezumesboço.

—Eagora—disseParkerPyne,—vaidartudocerto,nãose

preocupeSra.St.John.Eoanel?Querqueeuoguardeagoraou

prefereficarcomeleatéquarta-feira?

—Bem,talvezsejamelhoreuficarcomele.

— Agora, nem uma preocupação a mais, ouviu bem? —

ParkerPynearepreendeu.

—E...opagamento?—perguntoutimidamente.

—Issopodeficarparadepois.Eulheavisoquarta-feiraquais

foram as despesas necessárias. Meus honorários serão

insignificantes,lhegaranto.

Levou-aatéaportaedepoistocouacampainhadesuamesa.

—VáchamarClaudeeMadeleine.

Page 58: Agatha christie o detetive parker pyne

Claude Luttrell era um dos mais atraentes espécimes de

bailarinosprofissionaisencontráveisna Inglaterra.Madeleinede

Saraeraamaissedutoradasmulheresfatais.

Parker Pyne observou-os com aprovação — Meus filhos —

disse, — tenho um serviço para vocês. Vocês vão ser dois

bailarinos internacionais muito famosos. Agora Claude, preste

muitaatençãoaoquevoudizerevejaseentendetudodireito...

Lady Dortheimer estava plenamente satisfeita com os

preparativosparaoseubaile. Inspecionouosarranjosde flores,

deuasúltimasordensparaomordomoelembrouaomaridoque

atéagoraestavadandotudocerto!

FicouligeiramentedesapontadaquandosoubequeMichaele

Juanita,osbailarinosdoAlmiranteVermelho,àúltimahora,não

iam poder cumprir o contrato, por causa de uma torção no

tornozelo de Juanita, mas no lugar deles iam mandar dois

bailarinosnovos(pelomenosfoioquedisseramnotelefone)que

haviamfeitofuroremParis.

OsbailarinoschegarampontualmenteeLadyDortheimeros

aprovou.Anoitadatranscorreuesplendidamente.JuleseSanchia

se exibiram e foram sensacionais. Uma selvagem dança da

Revolução Espanhola. Depois uma dança chamadaO Sonho de

um Degenerado. Depois uma fascinante exibição de danças

modernas.

Quando oshow terminou, todo mundo começou a dançar

normalmente.ObeloJulespediuoprazerdeumadançaaLady

Dortheimer.Osdoiscomeçaramarodar.NuncaLadyDortheimer

Page 59: Agatha christie o detetive parker pyne

tiveraumpartnertãoperfeito.

EmvãoSirReubenprocuravaa sedutoraSanchia.Elanão

estavanosalão.

Paradizeraverdade,elaestavanocorredordeserto,pertode

umapequenacaixa,osolhosfixosnorelógioemseupulso.

—Nãodeveseringlesa...nãopodeseringlesa!...paradançar

assim como dança — murmurou Jules no ouvido de Lady

Dortheimer. É como uma fada, o espírito do vento.Droushcka

petrovkanavarouchi.

—Quelínguaéessa?

— Russo— disse Jules mentiroso. — Falei em russo uma

coisaquenãoousariadizereminglês.

LadyDortheimerfechouosolhos.Julesaapertouaindamais

contrasi.

Repentinamenteasluzesseapagaram.Naescuridão,Julesse

debruçouebeijouamãoquerepousavaemseuombro.Quando

elatentouretirá-la,eleaseguroueaapertounovamentecontra

oslábios.

Umanelescorregoudeumdedoparaapalmadesuamão.

Lady Dortheimer achou que tinha passado apenas um

segundoantesqueasluzesvoltassem.JulessorriaParaela.

—Seuanel—disse.—Escorregou.Permite?—recolocou-o

no dedo. Seus olhos disserammuitas coisas enquanto ele fazia

isso.

Page 60: Agatha christie o detetive parker pyne

SirReubenfalavasobreachavecentral—Algumidiota.Uma

brincadeirademaugosto,suponho.

Lady Dortheimer não estava interessada. Aqueles poucos

instantesdeescuridãotinhamsidomuitoagradáveis.

Ao chegar no escritório na quinta-feira de manhã, Parker

PynejáencontrouaSra.St.Johnàsuaespera.

—Mandeentrar—dissePyne.

—Comofoi?—elaestavaansiosa.

—Asenhoraestámuitopálida—disseeleemtomacusador.

Elaabanouacabeça—Nãoconseguidormirdenoite.Estava

imaginando...

—Agora,anotinhadasdespesas.Passagensdetrem,roupas,

cinqüentalibrasparaMichaeleJuanita.Sessentaecincolibrase

dezesseteshillings.

— Sei, sei! Mas ontem de noite... foi tudo bem? Deu tudo

certo?

Parker Pyne olhoupara ela, surpreso—Minha cara jovem,

claroquedeucerto.Penseiquejátinhapercebido.

—Ah,quealívio!Euestavacommedo...

Parker Pyne balançou a cabeça com ar de reprovação —

Derrota é uma palavra proibida neste estabelecimento. Se não

tenho certeza de que vai dar certo não aceito o caso... Quando

Page 61: Agatha christie o detetive parker pyne

aceitoumcaso,osucessoépraticamenteoresultadoinevitável.

— Então ela já está de novo com o anel verdadeiro e não

desconfiadenada?

— De absolutamente nada. A operação foi realizada de

maneiradelicadíssima.

DaphneSt.Johnsuspirou—Osenhornão imaginaopeso

que me tirou da consciência. O que estava dizendo sobre as

despesas?

—Sessentaecincolibrasedezesseteshillings.

A Sra. St. John abriu a bolsa e contou o dinheiro. Parker

Pyneagradeceuepreencheuumrecibo.

—Mas,eosseushonorários?—murmurouDaphne.—Issoé

sóparaasdespesas.

—Nestecasonãoháhonorários.

—Oh,Sr.Pyne!Nãopossoaceitar,nunca!

—Minha cara jovem, insisto. Não vou receber um centavo.

Seriacontraosmeusprincípios.Eisoseurecibo.Eagora...

Com o sorriso de um feliz prestidigitador que acaba de

realizar um truque de sucesso, tirou uma caixinha do bolso e

empurroupara o outro lado damesa.Daphne a abriu.Dentro,

paratodososefeitos,estavaoaneligualaodebrilhante.

—Cretino!—disseaSra.St.Johnfazendoumacaretapara

ele.—Como eu o odeio! Sónão o atiro pela janela porque sou

Page 62: Agatha christie o detetive parker pyne

muitoboazinha!

— Eu não faria isso— disse Pyne.— Poderia surpreender

muitagente.

— O senhor tem certeza de que não é o verdadeiro? —

perguntouDaphne.

—Claro que tenho! O quememostrou outro dia está bem

seguronodedodeLadyDortheimer.

—Entãoestá tudocerto—Daphnese levantoualegre,com

umsorriso.

—Éengraçadoasenhorameperguntarisso—disseParker

Pyne.—ÉclaroqueClaude,coitadinho,nãoémuitoesperto.Ele

podia perfeitamente ter-se confundido. Por isso, para me

certificar,mandei um especialista dar uma olhada nele hoje de

manhã.

ASra.St.Johntornouasesentar,precipitadamente—Eo

quefoiqueeledisse?

— Que era uma imitação muito bem feita — disse Parker

Pyne, sorridente.— Um trabalho de primeira ordem. Acho que

comissoasuaconsciênciaficatranqüila,nãoé?

A Sra. St. John abriu a boca para dizer alguma coisamas

ficoucalada.OlhavafixamenteparaParkerPyne.

Ele se sentou novamente atrás da mesa e a observou

benevolentemente—Tirarascastanhasdofogocommãodegato

—dissecomarsonhador—nãoéumpapelmuitoagradável.Pelo

menos eu não gostaria que alguém da minha equipe o

Page 63: Agatha christie o detetive parker pyne

representasse.Perdão.Asenhoradissealgumacoisa?

—Eu...não,nada.

—Ótimo.Quero lhe contar umahistorinha, Sra. St. John.

Sobreoutrajovemsenhora.Umamoçaloura,acho.Nãoécasada.

O sobrenome dela não é St. John. O primeiro nome não é

Daphne.Pelocontrário,onomedelaéErnestineRichards,eaté

poucotempoatráselaerasecretáriadeLadyDortheimer.

— Bem, um dia o engaste do anel de brilhante de Lady

DortheimerficoufrouxoeaSrta.Richardsolevouàcidadepara

ser consertado. Parecida com a sua história, não é? A mesma

idéia que lhe ocorreu também ocorreu à Srta. Richards. Ela

mandoufazerumacópiadoanel.Maselaeraumamoçaquevia

longe. Sabia que um dia LadyDortheimer ia descobrir a troca.

Quandoissoacontecesse,elaselembrariadequemlevaraoanelà

cidadeeaSrta.Richardsseriaaprimeirasuspeita.

—Então,oquefoiqueaconteceu?Primeiro,suponhoquea

Srta. Richards fez um investimento para a metamorfose de

Cinderela— cabelos repartidos do lado, imagino— seus olhos

pousaraminocentementenoscachosondulados—corcastanho

escuro.Então, apareceuaqui.Memostrou o anel, permitiu que

eu verificasse que era verdadeiro, destruindo assim qualquer

suspeitapossíveldeminhaparte.Feitoisso,ecomumplanopara

atroca jáarquitetado,a jovemlevouoanelao joalheiro,queno

devidotempooenviouaLadyDortheimer.

— Ontem à tarde, o outro anel, o anel falso, foi entregue

apressadamente na estação de Waterloo. Com razão, a Srta.

Richards achou que Luttrell não devia ser uma autoridade em

Page 64: Agatha christie o detetive parker pyne

diamantes.Masapenasparasatisfazeraminhacuriosidade,um

caprichomeu,pediaumamigo,comerciantedediamantes,que

estivessenomesmotrem.Eleolhouoaneledisseimediatamente:

"Estediamantenãoéverdadeiro;éumaexcelenteréplica".

— A senhora está vendo onde eu quero chegar, é evidente,

não é, Sra. St. John? Quando Lady Dortheimer descobrisse a

perda,dequemselembraria?Doencantadordançarinoquefizera

deslizaroanelquandoapagoualuz!Elaiainvestigaredescobrir

que os bailarinos contratados anteriormente tinham sido

subornados para não comparecer. Se as pistas levassem até o

meuescritório,aminhahistóriadeumacertaSra.St.Johnseria

extremamente frágil. Lady Dortheimer não conhecia nenhuma

Sra.St.John.Ahistóriapareceriaumafarsainconsistente...

— Está vendo agora por que eu não poderia permitir uma

coisadessas?EfoiassimqueomeuamigoClauderecolocouno

dedodeLadyDortheimeromesmoanelqueeletirara.

—Estávendoporqueeunãopossocobrarnada?Euprometo

afelicidade.Eéclaroqueeunãoatorneifeliz.Sóquerolhedizer

mais uma coisa. A senhora é jovem; possivelmente é a sua

primeira tentativa de fazer alguma coisa no gênero. Eu, pelo

contrário, já estou em comparaçãomuito avançado nos anos, e

tenho muita experiência em matéria de estatísticas. Com essa

experiência, posso lhe garantir que em oitenta e sete por cento

dos casos, a desonestidade não compensa. Oitenta e sete por

cento!Pensenisso!

Comummovimento brusco, a pseudo-senhora St. John se

levantou — Velho estúpido! Idiota! — exclamou. — Me

enganando!Me fazendopagarasdespesas!Eo tempotodo...—

Page 65: Agatha christie o detetive parker pyne

engasgou-seeseencaminhouapressadaparaaporta.

—Seuanel—disseParkerPynecomacaixinhanamão.

Elaaapanhoucomrispidezeatiroupelajanelaaberta.

Aportabateueelasaiu.

Parker Pyne olhou pela janela com um certo interesse. —

Como eu pensava — disse ele. — Surgiram consideráveis

surpresas...

Page 66: Agatha christie o detetive parker pyne

4

OCasodoMaridoDesgostoso

SEMDÚVIDAumadasmaioresqualidadesdeParkerPyneerao

seuarsimpático.Eraumjeitopropícioàsconfidencias.Elesabia

muito bemqueuma espécie deparalisia se apoderavados seus

clientes quando eles entravam no seu escritório. Preparar o

terrenoparaasnecessáriasrevelaçõesfaziapartedoseutrabalho.

Nestamanhã,eleestavasentadodiantedeumnovocliente,

Sr.ReginaldWade.OSr.Wade,Pyne logodeduziu, erado tipo

enrolado.Osujeitoquetemamaiordificuldadeemdescrevercom

palavrasqualquercoisaqueserelacionecomsuasemoções.

Era um homem alto e forte, com uma expressão amena e

agradável nos olhos azuis e a pele bastante queimada do sol.

Sentou-se e puxou distraidamente o pequeno bigode, enquanto

olhava para Parker Pyne com o ar patético de um animal

taciturno.

—Vioanúncio,sabe?—falounumarranco.—Acheiqueera

bomvirvê-lo.Eramuitoesquisito,masagentenuncasabe,não

é?

Parker Pyne interpretou corretamente estas observações

enigmáticas — Quando as coisas vão mal, a gente sempre se

dispõeacorrerriscos—sugeriu.

— É isso mesmo. Exatamente isso. Estou disposto a me

arriscar...acorrerqualquerrisco.Ascoisasvãomalparaomeu

Page 67: Agatha christie o detetive parker pyne

lado, Sr. Pyne. Não sei o que fazer. É muito difícil, sabe?

Terrivelmentedifícil.

—Éexatamenteaí—dissePyne,—éexatamenteaíQueeu

entro. Sei o que faço! Souum especialista em qualquer tipo de

problemahumano.

—Eusei!Umcampomeiovasto,nãoé?

— Nem tanto. Os problemas humanos são facilmente

classificáveis em alguns tipos principais. Há as doenças. Há o

tédio.Háasmulheresquetêmproblemascomosmaridos.Háos

maridos... — fez uma pausa — que têm problemas com as

mulheres.

—Paraserfranco,osenhoracertou.Acertouemcheio.

—Mecontetudoaseurespeito—pediuParkerPyne.

—Nãotemmuitacoisa.Minhamulherquerqueeulhedêo

divórcioparaqueelapossasecasarcomumoutrocamarada.

—Émuito comumhoje emdia.E o senhor, suponho,não

estácemporcentodeacordocomela,nãoé?

— Gosto dela — disse o Sr. Wade com simplicidade. — O

senhorsabe...eugostodela.

Foiumaafirmaçãosimpleseatémeioinsípida,masseoSr.

Wade tivesse dito: "Eu a adoro. Venero o próprio chão que ela

pisa. Por ela eu arrancaria os cabelos" — não teria sido mais

explícitoparaParkerPyne.

—Ésempreassim,osenhorsabe—continuouoSr.Wade.

Page 68: Agatha christie o detetive parker pyne

—Masoqueéqueeupossofazer?Querodizer,umapessoaétão

vulnerável.Seelapreferemesmoesteoutrosujeito...bem,agente

temdeseguirasregrasdojogo;sairdocaminho,etudoomais.

—.Apropostaéqueelasedivorciedosenhor?

—Éclaro.Eununcadeixariaqueelafosselevadaàcortede

justiça.

ParkerPyneolhoupensativoparaele—Masosenhorvem-

meprocurarporquê?

Ooutroriumeioenvergonhado—Nãosei.Sabecomoé,não

souumsujeitomuito esperto.Não sei pensar coisas.Achei que

talvez o senhor pudesse... bem, sugerir alguma coisa.Consegui

umprazodeseismeses,sabe?Elaconcordou.Senofimdeseis

meses ela não tivermudado de idéia... bom, achei que talvez o

senhor me daria uma ou duas sugestões. Atualmente ela se

aborrececomtudooqueeufaço.

—Vejaosenhor,oproblemaéumsó:nãosoumuitoesperto!

Gostodeesporte.Gostodeumjoguinhodegolfe.Gostodeuma

boapartidade tênis.Não soumuitobomemmúsica, arte, este

tipo de coisa. Minha mulher é muito inteligente. Ela gosta de

pintura, ópera, concertos, e se aborrece comigo. Esse outro

sujeito— detestável, cabeludo— sabe tudo sobre essas coisas.

Consegueperfeitamentefalarsobreelas.Eunão.Atécertoponto

eu entendopor queumamulher inteligente ebonita se chateia

comumabestacomoeu.

Parker Pyne suspirou— Há quanto tempo está casado?. ..

Nove anos? E suponho que desde o início tenha adotado esta

atitude. Errado, meu caro senhor, desastrosamente errado!

Page 69: Agatha christie o detetive parker pyne

Nuncaadoteaatitudededesculpar-secomumamulher.Elavai

julgá-loporseupróprio julgamento,eserábemmerecido.Devia

terglorificadosuasproezasesportivas.Deviaterfaladodemúsica

earte como "essasbobagensqueaminhamulher gosta".Devia

mostrar-se desgostoso por ela não jogar bem. O espírito de

humildade, meu caro senhor, é o fracasso completo do

matrimônio! Nenhumamulher tem obrigação de agüentar isso.

Nãomeadmiraqueasuamulhernãotenhaconseguidoaturá-lo!

O Sr. Wade estava olhando espantado para ele. — Bem—

disseele,—oqueosenhorachaqueeudevofazer?

—Aperguntaéesta,semdúvida.Oquedevia tersido feito

nove anos atrás, agora é muito tarde para'fazer. Novas táticas

precisamseradotadas.Játevecasoscomoutrasmulheres?

—Claroquenão.

—Talvezfossemaisexatodizerumligeiroflerte?

—Nuncamepreocupeimuitocomasmulheres.

—Errado.Vaicomeçaragora.

OSr.Wadealarmou-se—Por favor,seriamuitodifícilpara

mim.Querodizer...

— Não vou lhe criar qualquer problema. Uma pessoa da

minhaequipeserádestacadaparaoseucaso.Elavailhedizero

que é preciso fazer e todas as atenções que lhe dedicar serão

entendidas,claro,comopartedonossotrato.

O Sr. Wade ficou mais aliviado — Assim é melhor. Mas o

senhor achamesmo... quero dizer, acho que íris vai ficar mais

Page 70: Agatha christie o detetive parker pyne

ansiosadoquenuncaparaseverlivredemim.

—Osenhornãocompreendeanaturezahumana,Sr.Wade.

Emuitomenos a natureza humana feminina.Nomomento, do

ponto de vista feminino o senhor não passa de um refugo.

Ninguémquersaberdosenhor.Oqueéqueumamulhervaifazer

comumacoisaquenãointeressaaninguém?Nada.Masolhede

outro ângulo. Suponhamos que suamulher descubra que você

tambémestáloucopararecuperaraliberdade,damesmamaneira

queela.

—Elaiaficarmuitosatisfeita.

— Ia, mas não vai! Além do mais, ela vai ver que você

conseguiu interessar uma moça fascinante... uma moça que

poderiaescolherquembemquisesse.Issovailogoaumentarasua

cotaçãonabolsa.Suamulhersabequeosamigosvãodizerque

vocêestavacansadodelaequersecasarcomumamulhermais

atraente.Eissovaiaborrecê-la.

—Osenhoracha?

—Tenhocerteza.Vocênãovaisermaiso"coitadodoReggie".

Vai ser o "esperto do Reggie". Que diferença, meu caro. Sem

renunciaraooutroelavaitentarreconquistarvocê.Masvocênão

vai ser reconquistado. Vai se mostrar sensível e usar todos os

argumentosqueelaprópriausa."Achomelhornossepararmos".

"Incompatibilidade de gênios". Você vai notar que embora seja

verdade o que ela diga — que você nunca a compreendeu —

também é verdade queela nunca compreendeuvocê. Mas não

vamos entrar agora nesses detalhes; no momento certo você

saberáasinstruçõescompletas.

Page 71: Agatha christie o detetive parker pyne

OSr.Wadepareciaaindaestaremdúvida—Osenhoracha

mesmoqueoplanovaidarresultado?—perguntouhesitante.

— Não vou lhe dizer que tenho certeza absoluta — disse

Parker Pyne com cautela.—Háuma vaga possibilidade de que

suamulher esteja tão perdidamente apaixonada por esse outro

sujeito quenadaque vocêdisser ou fizer vai afetá-la,masacho

queoproblemanãoéesse.Provavelmenteelacomeçouestecaso

por causa do tédio _— um tédio criado pela atmosfera de sua

devoção fácil de contentar e da absoluta fidelidade com que a

cercou, de uma maneira muita errada. Se seguir minhas

instruções, suas possibilidades são, digamos, de noventa e sete

porcento.

— Bastante boas— disse o Sr.Wade.— Vou arriscar. Por

falarnisso...ahn...quantovaiser?

—Meu preço é duzentos guinéus, adiantados. O Sr. Wade

tirouotalãodechequesdobolso.

Os jardinsdeLorrimerCourt eramencantadores ao sol" da

tarde. írisWade, deitadanuma espreguiçadeira, tornava a visão

ainda mais agradável à vista. Ela estava com uma roupa em

delicados tonsde lilás, e apinturaaplicada comhabilidade lhe

davaarmaisjovemdoqueosseustrintaecincoanos.

Estava conversando com a Sra. Massington, que sempre

achou muito simpática. Ambas viviam atribuladas com seus

maridos atléticos, que falavam ora de ações, ora demercado de

valores,oradegolfe.

Page 72: Agatha christie o detetive parker pyne

— ... E assim nós aprendemos a viver e deixar os outros

viverem—finalizouíris.

— Você é maravilhosa, minha querida — disse a Sra.

Massington, e rapidamente acrescentou: — Me diga quemé a

moça?

íris levantou os ombros com ar enfastiado — Nem me

pergunte! Reggie foi quem a descobriu. Ela é a amiguinha de

Reggie! Foi tão engraçado!Você sabe que elenunca olhoupara

outramulher. Me procurou e hesitoumuito para falar até que

dissequequeriaconvidaraSrta.Saraparapassarcomeleofim

desemana.Éclaroeuri...Nãopudeevitar.Reggie,imagine!Eaí

estáela.

—Ondefoiqueeleaconheceu?

—Nãosei.Nãodeumaioresexplicações.

—Talvezjáaconheçahámuitotempo.

—Nãoacredito!—disseaSra.Wade.—Éclaro—continuou

ela,— que estoumuito satisfeita... satisfeitíssima. Quero dizer,

issosimplificatantoascoisasparamim.Vocêsabe,fiqueimuito

preocupadacomReggie;eleétãoindefeso!Foiporissoquefalei

com Sinclair... íamos ferir tanto o Reggie! Mas ele insistiu que

Reggieiaesquecerlogo;parecequeeletinharazão.Hádoisdias

Reggie parecia inconsolável. .. e agora ele convida esta moça!

Como lhe disse, estouencantada! Gosto de ver Reggie se

distraindo.Imaginoqueopobrecoitadopensouqueeufosseficar

comciúmes.Queidéiaabsurda!"Claro—disseeu—tragaasua

amiguinha". Coitado do Reggie, como se aquela moça desse

algumaatençãoaele.Elasóquersedivertir.

Page 73: Agatha christie o detetive parker pyne

—Elaémuitoatraente—disseaSra.Massington.—Muito

perigosa, não sei se você entende. O tipo de garota que só se

interessaporhomens.Nãosei,masnãomepareceserumamoça

direita.

—Provavelmentenãoémesmo—disseaSra.Wade.

—Elatemroupasmaravilhosas—disseaSra.

Massington.

—Talvezumpoucoexóticasdemais,nãoacha?

—Mascaríssimas.

—Grã-finas.Elatemumarmuitogrã-fino.

—Estãochegando—disseaSra.Massington.

Madeleine de Sara e Reggie Wade vinham pela alameda.

Riam,conversavamepareciammuitofelizes.Madeleineseatirou

numacadeira,tirouobonéqueestavausandoepassouasmãos

pelosseusbelíssimoscachosnegros.Erarealmentemuitobonita.

— Passamos uma tarde maravilhosa! — exclamou ela. —

Estoumorrendodecalor.Devoestarcomumacarahorrorosa.

Reggiecomeçouafalarcomnervosismoquandoouviuasua

deixa— Você está... você está... — sorriu. — Não vou dizer—

completou.

Os olhos de Madeleine encontraram os dele. A Sra.

Massingtonreparou.

Page 74: Agatha christie o detetive parker pyne

—Asenhoradeviajogargolfe—disseMadeleineparaasua

anfitrioa.—Não sabe o que está perdendo, por quenão tenta?

Tenho uma amiga que começou há pouco tempo e aprendeu

muitobem.Eelajáerabemmaisvelhaqueasenhora.

—Nãoligoparaessetipodecoisa—disseíriscomfrieza.

—Vocênãojogabem?Ah,coitada!Issodeixaumapessoatão

porforadetudo.Mas,realmenteSra.Wade,ostreinamentoshoje

em dia são tão bons que qualquer um pode jogar bem. Treinei

muitotênisnoverãopassado.Éclaroquenogolfeeunemtenho

esperanças...

—Bobagem!—disseReggie.—Você sóprecisa treinarum

pouquinhomais. Reparou como você conseguiu dar umas boas

tacadasestatarde?

—Porquevocêmeensinou.Vocêéumprofessormaravilhoso!

Muitas pessoas simplesmente não têm o dom de ensinar aos

outros.Vocêtemessedom.Devesermaravilhososerfeitovocê...

saberfazertudo!

—Ora,eunãoseifazernada...nãosirvoparanada—Reggie

estavaconfuso.

— A senhora deve ser muito orgulhosa dele — disse

MadeleineparaaSra.Wade.—Comofoiqueconseguiumantê-lo

preso esses anos todos? Deve ter sido muito esperta. Ou o

escondeuotempotodo?

Sua rival não deu resposta. Apanhou um livro com amão

trêmula.

Page 75: Agatha christie o detetive parker pyne

Reggieresmungouqueprecisavatrocararoupaesaiu.

— Foi tão gentil da sua parte me receber aqui — disse

Madeleine para ela. — Algumas mulheres suspeitam tanto das

amigasdosseusmaridos.Sempreacheiqueociúmeéumacoisa

absurda,asenhoranãoacha?

— Acho sim. Nunca me passou pela cabeça ter ciúmes de

Reggie.

—Étãomaravilhosodasuaparte!Porquequalquerpessoavê

logo que ele é um homem terrivelmente atraente para as

mulheres. Foi um choque paramim quando soube que ele era

casado. Por que todos os homens atraentes são agarrados tão

cedo?

— Fico satisfeita de ver que você acha Reggie assim tão

atraente—disseaSra.Wade.

—Ah,sim!Bom,eémesmo,nãoé?Tãobonitoetãobomnos

esportes.Eestapretensaindiferençacomasmulheres.Istoatiça

agenteéclaro.

—Suponhoquevocêtemumaporçãodeamigoshomens—

disseaSra.Wade.

—É; tenhosim!Gostomaisdoshomensquedasmulheres.

Nuncasimpatizomuitocomasmulheres.Nãoseiporquê.

—Talvezporquevocêsejasimpáticademaiscomosmaridos

delas—disseaSra.Massingtoncomumarisadinhaaguda.

—Bem,agenteàsvezes ficacompenadaspessoas.Tantos

homenssimpáticospresosaumasmulhereschatas.Sabe,nãoé,

Page 76: Agatha christie o detetive parker pyne

mulherespseudo-artísticas,metidasaintelectuais.Éclaroqueos

homenspreferemalguémmaismoço,maisalegre,paraconversar.

Acho que as concepçõesmodernas de casamento e divórcio são

muitosensatas.Começardenovoenquantoaindaseéjovem,com

alguémquetenhaosmesmosgostoseasmesmasidéias.Nofinal

das contas, é melhor para todo mundo. Isto é, as mulheres

intelectualizadasprovavelmentevãoagarraralgumcabeludoque

assatisfaça.Achoquecomeçardenovoenquantoétempoéuma

coisamuitocerta,nãoacha,Sra.Wade?

—Semdúvida.

Ofrioqueestavafazendopareceupenetrarnaconsciênciade

Madeleine.Elaresmungouqueprecisavatrocarderoupaparao

cháedeixouasoutrasduas.

— Estas moças modernas são detestáveis — disse a Sra.

Wade.—Nãotêmnadanacabeça.

— Ela tem uma idéia na cabeça, íris — disse a Sra.

Massington.—EstamoçaestáapaixonadaporReggie.

—Bobagem!

—Estásim.Euvicomoolhouparaeleaindaagora.Elaestá

poucoligandoqueelesejacasadoounão.Elaquerficarcomele.

Achoissorevoltante.

ASra.Wadeficoualgunsminutosemsilêncio,edepoisriu,

indecisa—Afinaldecontas—disseela,—oquemeimporta?

Como Madeleine, a Sra. Wade também subiu. O marido

estavatrocandoderoupanoquarto.Cantarolava.

Page 77: Agatha christie o detetive parker pyne

—Divertiu-se,querido?—perguntouaSra.Wade.

—Ah,sim...muito.

—Ficosatisfeita.Queroquevocêsesintafeliz.

—Sei, sei... estoume sentindo feliz. Representar não era o

fortedeReggieWade,masdo jeitoqueas coisasaconteceramo

constrangimento provocado pelo fingimento funcionou às mil

maravilhas.Ele evitouo olhardamulher e teveumsobressalto

quando ela falou. Sentiu-se envergonhado, odiou toda aquela

farsa. Nada teria produzido um efeitomelhor. Ele era o retrato

perfeitodeumaconsciênciaculpada.

—Háquantotempovocêaconhece?—perguntouderepente

aSra.Wade.

—Ahn...quem?

—ASrta.deSara,éclaro.

—Bom,nãoseidireito.Istoé...ora,háalgumtempo.

—Ah,é?Vocênuncamefaloudela.

—Não?Achoquemeesqueci.

—Esqueceumesmo!—disseaSra.Wade,edepoissaiu,num

torvelinhodebabadoslilases.

Depoisdochá,oSr.WadefoimostraroroseiralaMadaleine.

Andaram pela alameda sentindo os dois pares de olhos que os

seguiampelascostas.

—Olheaqui!—asalvodosolhares,lánoroseiral,oSr.Wade

Page 78: Agatha christie o detetive parker pyne

desabafou.— Olhe aqui, acho que vou desistir. Minhamulher

passouameolharcomosemeodiasse!

— Não se preocupe — disse Madeleine. — Está tudo indo

bem.

— Você acha mesmo? Bom, é que eu não queria que ela

ficasse com raiva demim.Ela disse coisasmuito desagradáveis

duranteochá.

— Está tudo certo — insistiu Madeleine. — Você está

representandomuitobem.

—Vocêachamesmo?

—Acho—abaixouavoz.—Suamulherestádandoavolta

doterraço.Elaquerveroquenósestamosfazendo.Émelhorvocê

mebeijar.

— Ahn!— disse o Sr.Wade nervoso.—É precisomesmo?

Querodizer...

—Mebeije!—repetiuMadeleineautoritária.

OSr.Wadeabeijou.Suafaltadeentusiasmofoiamplamente

compensadaporMadeleine.Elaoenlaçounosbraços.OSr.Wade

titubeou.

—Detestoutantoassim?—perguntouMadeleine.

—Ahn,claroquenão—disseelegalantemente.—Só... só

quemepegoudesurpresa—acrescentouansioso:—Achoquejá

ficamosmuitotempoaquinoroseiral,nãoé?

Page 79: Agatha christie o detetive parker pyne

—Achoquesim—disseMadeleine.Missãocumpridaaqui.

Voltaramparaogramado.ASra.Massingtoninformouquea

Sra.Wadetinhaidosedeitar.

Mais tarde, o Sr. Wade procurou Madeleine com o rosto

perturbado.

—Elaestánumestadodeplorável...histérica.

—ótimo.

—Elameviubeijandovocê.

—Bom,eraoquenóspretendíamos.

—Eusei,maseunãopodiadizerisso,nãoé?Eunemsabia

oquedizer.Disseapenasque...que...bom,queaconteceu.

—Ótimo.

—Eladissequevocêestavapensandoemcasarcomigoeque

não valia nada. Isso me aborreceu... me pareceu muito

desagradávelparavocê. Istoé,porquevocêestásó representado

umpapele fazendooseu trabalho.Eudisseque tinhaomaior

respeitoporvocêeoqueelaestavadizendonãoeraverdade,de

modo nenhum. Acho que cheguei ame zangarmesmo quando

faleiisso.

—Fantástico!

—Entãoeladisseparaeuirembora.Dissequenuncamais

falariacomigo.Falouemfazerasmalase iremboradeumavez

portodas—orostodeleestavaconsternado.

Page 80: Agatha christie o detetive parker pyne

Madeleinesorriu—Voulhedizeroquedevefazeragora.Diga

paraelaquevocêéquemvaiembora,quevaifazerasmalasevai

paraacidade.

—Maseunãoqueroir!

—Estábem.Vocênãoprecisa ir.Suamulhervaidetestara

idéiadesaberquevocêestásedivertindoemLondres.

Namanhã seguinteReggieWade tinhaumnovo relatório a

comunicar.

"Eladissequeestevepensandoquenãoédireitoelairembora

agoraqueconcordouemficarmaisseismeses.Masdissequese

eutenhoodireitodetrazerminhasamigasaqui,elanãovêpor

quenãohádetrazertambémosamigosdela.ConvidouSinclair

Jordan."

—Éele?

— É, e eu não admito que este homem ponha os pés em

minhacasa!

—Épreciso—disseMadeleine.—Nãosepreocupe.Eucuido

dele.Digaaelaquepensouumpoucoechegouàconclusãode

que não tem nenhum problema e que ela também não se

importaráquevocêmeconvideparaficarmaisumpouco.

—Ai,meuDeus!—suspirouoSr.Wade.

—Vamos,nãopercaacabeça—disseMadeleine.

— Está tudo correndo àsmil maravilhas. Mais uns quinze

dias—etodososseusproblemasvãoacabar.

Page 81: Agatha christie o detetive parker pyne

— Mais uns quinze dias?. . . Você acredita mesmo? —

perguntouoSr.Wade.

—Seeuacredito?Tenhocerteza—respondeuMadeleine.

UmasemanadepoisMadeleinedeSara entrouno escritório

deParkerPyneeafundoupesadamentenumacadeira.

— Entrou a Rainha dasVamps — disse Parker Pyne,

sorrindo.

—Vamps!—disseMadeleine.Sorriuligeiramente.—Nunca

fiztantaforçaparaserumavamp.Aquelehomeméobcecadopela

mulher.Jáédoença.

Parker Pyne sorriu — É mesmo. Bom, de certa forma isso

facilitouonossotrabalho.Nãoéqualquerhomem,minhaquerida

Madeleine, que eu exporia ao seu fascínio com tanta

tranqüilidade.

Amoçariu—Sesoubesseadificuldadequeeutiveparafazer

elemebeijarcomoseestivessegostando!

—Umaexperiêncianovaparavocê,minhaquerida.Eoseu

trabalhoterminou?

—Terminou.Achoquedeucerto.Houveumacenatremenda

ontemdenoite.Esperaaí,meuúltimorelatóriofoihátrêsdias?

—Foi.

— Bom, como já disse, tive que olhar para aquele verme

Page 82: Agatha christie o detetive parker pyne

miserável, o Sinclair Jordan. Ele ficou logo caído por mim...

principalmenteporqueachou,pelasminhasroupas,queeutinha

dinheiro.ASra.Wadeficoufuriosa,éclaro:seusdoishomensse

desdobrando em atenções comigo. Mostrei logo quem é que eu

preferia.ZombeideSinclairJordan...na frentedela ena frente

dele.Ridasroupasdeleedotamanhodocabelo.Mostreiqueele

tinhaaspernastortas.

—Excelentetécnica—dissePyne,satisfeito.

—Acoisaferveuontemànoite.ASra.Wadeabriuojogo.Me

acusou de destruir o seu lar. Reggie Wade falou de Sinclair

Jordan. Ela disse que aquilo tinha sido o resultado de sua

infelicidade e de sua solidão. Ela já notara o ar ausente do

marido,mas não tinha idéia da causa.Disse que sempre tinha

sidofeliz,queadoravaomaridoeelesabiadisso,equesóqueria

aele,amaisninguém.

—Eudissequeeratardedemais.OSr.Wadeseguiuàrisca

as instruções.Disse a ela quenão ligava amínima! Ia se casar

comigo! A Sra. Wade podia ficar com seu Sinclair o quanto

quisesse. Não havia razão para esperar seis meses. Era um

absurdo! Os papéis do divórcio podiam ser tratados

imediatamente.

— Dentro de mais alguns dias, disse ele, tudo estaria

esclarecido e ela podia instruir seus advogados. Disse que não

podia viver semmim. A Sra.Wade apertou o peito e falou que

estava com o coração enfraquecido e tiveram de lhe dar um

conhaque.Elenãosedeixouamolecer.Veioparaacidadehojede

manhãetenhocertezadequeaestashoraselajáveioatrásdele.

Page 83: Agatha christie o detetive parker pyne

—Entãoestátudocerto—dissePynealegremente.

—Umresultadomuitosatisfatório.

AportaabriueapareceuReggieWade.

— Ela está aqui? — perguntou ele, entrando pela sala. —

Ondeestáela?—viuMadeleine.—Querida!—gritouesegurou-

lheasduasmãos.—Querida, querida.Você sabia,não é?Que

eratudoverdadeontemànoite...quetudooquedisseaírisera

verdade?Nãoseicomopudeficarcegotantotempo.Maspercebi

nosúltimostrêsdias...

—Percebeuoquê?—disseMadeleine,baixo.

—Queeuadorovocê.Quenãohánenhumaoutramulherno

mundo igual a você. íris podepedir o divórcio e quando estiver

tudo resolvido você vai se casar comigo, não é? Diga que sim.

Madeleine,euadorovocê!

Ele apertou a paralisada Madeleine nos seus braços,

enquanto a porta se abria outra vez, agora para deixar passar

umamulhermagra,comumvestidoverdedesajeitado.

— Eu sabia! — disse a recém-chegada. — Eu segui você!

Sabiaquevocêvinhaseencontrarcomela!

—Eulheasseguro...—começouParkerPyne,recuperando-

sedoespanto.

Aintrusanãotomouconhecimentodele.Continuou:

— Ah, Reggie, você não pode despedaçar assim o meu

coração!Volteparamim!Nãovoudizerumapalavrasobre tudo

Page 84: Agatha christie o detetive parker pyne

isso! Vou aprender golfe! Só terei amigos de que você goste.

Depoisdetodosessesanosquenósfomosfelizesjuntos..,

—Atéagoraeununca fui feliz—disseoSr.Wadeolhando

paraMadeleine.—Esqueça, íris, você não queria se casar com

aquelamuladoJordan?Porquenãocasalogo?

A Sra. Wade deu um gemido — Odeio você! Odeio a sua

própria sombra! — virou-se para Madeleine: —Mulher viciosa!

Seuvampirohorrível!Roubandoomeumarido!

—Eunãoquerooseumarido—disseMadeleinedistraída.

—Madeleine!—oSr.Wadeolhouangustiadoparaela.

—Porfavor,váembora—pediuMadeleine.

—Veja,meubem,nãoestoufingindo.Foiissomesmoqueeu

quisdizer!

—Váembora!—gritouMadeleine,histérica.—Váembora!

Reggie caminhou relutante até a porta— Eu vou voltar—

avisou. — Você não está me vendo pela última vez — saiu,

batendoaporta.

—Moçascomovocêdeviamseraçoitadasemarcadasaferro!

—gritouaSra.Wade.—Reggieeraumanjoparamimatévocê

aparecer.Agoraeleestátãomudadoqueeunemoconheçomais!

—comumsoluço,correuatrásdomarido.

MadeleineeParkerPyneseentreolharam.

—Nãopossofazernada—disseMadeleinedesorientada.—

Page 85: Agatha christie o detetive parker pyne

Eleéumhomemmuitosimpático...umamor!...masnãoquero

me casar com ele. Eu nem suspeitava disso tudo. Se visse a

dificuldadequetiveparafazercomquemebeijasse!

— Bom!— disse Parker Pyne.— Sintomuito admitir isto,

mas foi um erro de julgamento da minha parte — balançou a

cabeçatristementee,puxandooficháriodoSr.Wade,escreveu:

FRACASSO: causas naturais. N.B. —Deviam ter sido

previstas.

Page 86: Agatha christie o detetive parker pyne

5

OCasodoEmpregadodeEscritório

PARKERPYNEreclinou-sepensativoemsuacadeiragiratóriae

observouoseuvisitante.Eraumhomembaixo,troncudo,deuns

quarentaecincoanos,queolhavaparaelecomolhosaomesmo

tempo tímidos, sôfregos e intrigados, e que deixavam entrever

umaesperançaaflita.

— Vi o seu anúncio no jornal — disse o homenzinho

nervosamente.

—Osenhortemalgumproblema,Sr.Roberts?

—Não...nãoébemumproblema.

—Osenhoréfeliz?

—Eunãodiriaquesouinfeliz.Tenhomuitooqueagradecer

davida.

—Todosnós temos—disseParkerPyne.—Masquando é

precisoselembrardisso,émausinal.

—Eusei—disseohomenzinhovivamente.—Éexatamente

isso!Osenhoracertouemcheio!

—Quetalosenhormecontartudo,hein?—sugeriuParker

Pyne.

—Não tenhomuita coisapara contar.Como lhedisse,não

Page 87: Agatha christie o detetive parker pyne

possome queixarmuito da vida. Tenho um emprego; consegui

economizarumpoucodedinheiro;ascriançassãofortesesadias.

—Entãoosenhorquer...oquê?

—Eu...nãosei—corou.—Achoqueosenhorestáachando

queeusouumidiota.

—Absolutamente—dissePyne.

Comumhábilinterrogatório,extraiuasoutrasconfidencias.

FicousabendoarespeitodotrabalhodoSr.Robertsnumafirma

muitoconhecidaedeseusprogressos,lentosmasfirmes.Soube

de seu casamento, de sua luta para manter uma aparência

decente,paraeducarascriançase tê-lassempre"bemvestidas";

dos planos, dos projetos, das economias e das dificuldades em

economizar todo ano algumas libras. Conheceu, na verdade, a

sagade,umavidadeesforçoscontínuospelasobrevivência.

—Bem,agoraosenhorvêcomoé—confessouoSr.Roberts.

—Amulherestáfora.Foipassarunsdiascomamãeelevouas

duascrianças.Umamudançaparaeleseumdescansoparaela.

Nãotemquartoparamimenósnãotemosmeiosdeirparaoutro

lugar. E sozinho, lendo o jornal, vi o seu anúncio e eleme fez

pensar. Tenho quarenta e oito anos. Fiquei pensando...

Acontecem coisas em todos os lugares— concluiu, toda a sua

almasuburbanaeansiosaemseusolhos.

—O senhor queria—disse oSr. Parker Pyne,— viver dez

minutosdeumavidagloriosa?

—Bem,eunãocolocariaascoisasdessamaneira.Mastalvez

osenhortenharazão.Eusógostariadesairdarotina.Voltariaa

Page 88: Agatha christie o detetive parker pyne

ela outra vez,mesmo comprazer... se aomenos tivesse alguma

coisaparamelembrar—olhouinquietoparaooutrohomem.—

Seráqueépossível,senhor?Temo...temoquenãopossapagar

muito.

—Quantoosenhorpodepagar?

—Possoarranjarumascincolibras,senhor—eleesperou,a

respiraçãopresa.

—Cinco libras— disse Parker Pyne.—Acho... acho... que

possoarranjaralgumacoisaporcincolibras.Osenhorseopõeao

perigo?—acrescentoucomvivacidade.

UmleveruborapareceunorostodescoradodoSr.Roberts.—

Perigo,osenhordisse?Oh,não,absolutamente.Eu...eununca

fiznadaperigoso.

ParkerPynesorriu—Apareçaaquiamanhãdenovoeeulhe

digooquepossofazerpelosenhor.

OBonVoyageuréumahospedariapoucoconhecida.Émais

umrestaurante freqüentadoporalgunspoucos freguesescertos.

Elesnãogostamdeestranhos.

FoinoBonVoyageurqueParkerPynechegoue foirecebido

com respeitosa consideração. — O Sr. Bonnington está? —

perguntouele.

—Sim,senhor.Estánasuamesahabitual.

—ótimo.Vouvê-lo.

OSr.Bonnington era um cavalheiro de aparênciamilitar e

Page 89: Agatha christie o detetive parker pyne

com um rosto um tanto ou quanto bovino. Cumprimentou o

amigocomprazer.

—Alô,Parker.Édifícilvervocêporessesdias.Nãosabiaque

vinhaporestasbandas.

— Venho de vez em quando. Especialmente quando quero

encontrarumvelhoamigo.

—Vocêquerdizereu?

— Você mesmo. Por falar nisso, Lucas, estive pensando

naquelaconversadooutrodia.

—O caso Peterfield? Viu as últimas nos jornais? Não, não

devetervistoainda.Nãovaisairnadaantesdehojeànoite.

—Quaissãoasúltimas?

—ElesassassinaramPeterfieldanoitepassada—disseoSr.

Bonningtoncomendoplàcidamentesuasalada.

—DeusdoCéu!—gritouPyne.

—Poiseuhãomesurpreendi—disseoSr.Bonnington.—

Eraumvelhoteimoso,oPeterfield.Nãoescutavaoquedizíamos.

Sempreinsistiaemguardarosplanoscomele.

—Elesconseguiramosplanos?

— Não, parece que apareceu uma mulher que deu ao

professor uma receita para ferver presunto. A mula velha,

distraídocomosempre,guardouareceitanocofreeosplanosna

cozinha.

Page 90: Agatha christie o detetive parker pyne

—Foimuitasorte.

—Providencial, eudiria.Masaindanãoseiqueméquevai

levá-los paraGenebra.Maitland está no hospital. Carslake está

emBerlim.Eunão posso ir. Só resta o jovemHooper— olhou

paraoamigo.

—Suaopiniãoéamesma?—perguntouParkerPyne.

—Amesmíssima.Elesocompraram!Eusei.Nãoháamenor

prova, Parker, mas eu sei quando um sujeito é velhaco! E eu

queroqueestesplanoscheguemaGenebra.Pelaprimeiravezna

históriaumainvençãonãovaiservendidaaumanação.Vaiser

doadavoluntariamente.Éomaiorgestodepazquejáaconteceue

éprecisoqueseconcretize.EHooperéumvigarista.Vocêvaiver,

eleseránarcotizadonotrem!Sefordeavião,vaiaterraremalgum

lugarconveniente!Mas,apesardetudo,nãopossoabrirmãodele

paraosoutros!Disciplina!Éprecisoterumacertadisciplina!Foi

sobreistoqueeulhefalavaoutrodia.

—Vocêmeperguntouseeunãoconheciaalguém.

— Sim. Pensei que talvez no seu tipo de negócio. .. Algum

espadachimloucoparaentrarnumabriga.Qualquerumqueeu

mandar corre um grande risco de ser liquidado. O seu homem

provavelmentenãoseriasuspeitodenada.Maséprecisoqueele

tenhamuitacoragem.

—Achoquetenhoalguémparaisso.

—GraçasaDeusaindatemgentequegostadecorrerriscos.

Estácombinado,então?

Page 91: Agatha christie o detetive parker pyne

—Combinado—disseParkerPyne.

ParkerPyneestavaresumindosuasinstruções—Então,está

tudoclaro?Vocêvaiviajarnumcarro-leitodaprimeiraclasseaté

Genebra. Deixará Londres às dez e quarenta e cinco, via

FolkestoneeBoulogne.Pegaocarro-leitoemBoulogne.Chegaem

Genebraàsoitohorasdamanhãseguinte.Estáaquioendereço

onde deverá se apresentar. Por favor, guarde-o de memória e

destrua o papel. Depois vá para o hotel e aguarde as futuras

instruções. Aqui tem dinheiro suficiente em notas francesas e

suíçasebastantetrocado.Compreendeu?

—Sim,senhor—osolhosdeRobertsbrilhavamdeemoção.

— Perdão, senhor,mas eu tenho o direito de saber... ahn... de

saberalgumacoisasobreoqueestoulevando?

Parker Pyne sorriu benevolentemente — Você está levando

um criptograma que revela o esconderijo secreto das jóias da

coroa da Rússia — disse solenemente. — Evidentemente, há

agentesbolcheviquesapostos,prontosparainterceptá-lo.Sefor

necessário falar sobre a sua própria pessoa, recomendo-lhe que

digaqueherdouumpoucodedinheiroequeestáaproveitando

paratirarumasfériasnoexterior.

OSr.Robertstomouumaxícaradecaféeolhouparaolago

deGenebra.Estavafeliz,masaomesmo'tempodesapontado.

Estava felizporquepelaprimeiravezemsuavidaeleestava

numpaísestrangeiro.Alémdisso,estavahospedadonumtipode

Page 92: Agatha christie o detetive parker pyne

hotelnoqualnuncasehospedariaoutravezepelomenosagora

nãotinhaquesepreocuparcomdinheiro!Tinhaumquartocom

banheiro particular, refeições deliciosas, um serviço perfeito.

TodasestascoisasoSr.Robertsapreciavamuitíssimo.

Estava desapontado porque nada que pudesse ser descrito

comoaventuraacontecera emsuaviagem.Nenhumbolchevique

disfarçadooualgumrussomisteriosocruzaraoseucaminho.Um

bate-papoagradávelno tremcomumviajante comercial francês

quefalavauminglêsexcelenteforaoúnicocontatohumanoque

tivera até aqui. Escondera os papéis junto com sua esponja de

banho,comolheforadito,eosentregaraseguindoasinstruções.

Não houve nenhum risco, nenhuma fuga mirabolante. O Sr.

Robertsestavamuitodesapontado.

Foi nesse momento que um homem alto, barbado,

murmurou:—Pardon—esentou-sedooutro ladodamesinha.

—Osenhorvaimedesculpar—disse,—masachoqueconhece

umamigomeu.AsiniciaissãoP.P..

O Sr. Roberts ficou eletrizado. Finalmente, um russo

misterioso—Co...conheçosim.

—Entãoachoquepodemosnosentender—disseoestranho.

OSr.Robertsolhou-oatentamente.Issoeramaisdoqueele

tinha imaginado! O estranho era um homem de cerca de

cinqüenta anos, de aparência distinta, porém estrangeirada.

Usavaummonóculoeumapequenafitacoloridanalapela.

— A sua missão foi cumprida com muito êxito — disse o

estranho.—Estápreparadoparaexecutaroutra?

Page 93: Agatha christie o detetive parker pyne

—Certamente.Claroquesim!

— Bom. O senhor vai reservar um lugar no carro-leito do

tremGenebra—Parisparaamanhãànoite.Peçao leitoNúmero

Nove.

—Esehãoestivervago?

—Vaiestarvago.Issojáfoiarranjado.

—LeitoNúmeroNove—repetiuRoberts.—Jácompreendi.

—Duranteaviagemalguémvailhedizer."Pardon,Monsieur,

mas acho que esteve há pouco tempo em Grasse, não?". Vai

responder: "Foi, nomês passado". A outra pessoa vai dizer: "O

senhorseinteressaporessências?"eosenhorresponderá:"Sim,

sou fabricantede óleode jasmimsintético".Depois o senhor se

colocará inteiramente à disposição da pessoa que lhe falou. Por

falarnisso,osenhorestáarmado?

—Não—disseoSr.Robertscomumlevetremor.—Não,eu

nãopensei,istoé...

— Dá-se um jeito — disse o homem barbado, olhando em

torno. Não havia ninguém por perto. Algo duro e brilhante foi

colocado nasmãos do Sr. Roberts.— Uma arma pequenamas

muitoeficaz—disseoestranhosorrindo.

O Sr. Roberts, que nunca dera um tiro de revólver em sua

vida,colocou-onobolso,meiodesajeitado.Tinhaumasensação

desagradáveldequeaquiloiadispararaqualquermomento.

Repetiram novamente as palavras da senha. Então o novo

amigoselevantou.

Page 94: Agatha christie o detetive parker pyne

—Desejo-lheboasorte—disseele.—Queosenhorpossase

desincumbir sem problemas. É um homem de coragem, Sr.

Roberts.

Sou mesmo? pensou Roberts quando o outro foi embora.

Tenhocertezadequenãoqueromorrer.Issonãovaleapena.

Uma vibração agradável percorreu a sua espinha,

contrabalançada por uma. outra vibração que não era lá tão

agradável.

Foiparao seuquarto e examinouaarma.Aindanão sabia

comofuncionavaedesejouquenãofossenecessáriousá-la.

Saiuparamarcarapassagem.

O tremdeixouGenebra àsnove emeia.Roberts chegouna

estaçãoatempo.Ocondutordocarro-leitopegouseubilheteeo

passaporteeficoudeladoenquantoumcarregadorlevavaamala

deRoberts.Haviaumaoutrabagagemali:umavalisedecourode

porcoeumamaladevigemdedoiscompartimentos.

—NúmeroNoveéoleitoinferior—disseocondutor.

Ao se virar para sair da cabina, deu um encontrão num

homenzarrão que entrava. Eles se afastarampedindo desculpas

—Roberts em inglês e o estranho em francês. Era um homem

alto,corpulento,comacabeçaraspadaeóculosespessosatravés

dosquaisseviamunsolhosquebrilhavamdesconfiados.

Umapessoaatemer,disseRobertsparasimesmo.

Pressentiualgovagamentesinistrosobreoseucompanheiro

Page 95: Agatha christie o detetive parker pyne

de viagem. Teria sido para vigiar este homem que lhe fora

indicadooleitoNúmeroNove?Calculouquefosse.

Saiuoutravezparaocorredor.Ainda faltavamdezminutos

para o trem partir e ele pensou em andar um pouco pela

plataforma.Ameiocaminhodocorredorpôs-sedeladoparadar

passagem a uma senhora. Ela estava entrando no vagão e o

condutoraprecediacomobilhetenamão.AopassarporRoberts

ela deixou cair a bolsa. O inglês apanhou-a e entregou-lhe de

volta.

—ObrigadaMonsieur—ela faloueminglês,masasuavoz

eraestrangeira,umavozsonora,graveemuitosedutora.Quando

elaestavaquasepassandoporele.hesitouemurmurou:Pardon,

Monsieur,masachoqueestevehápoucotempoemGrasse,não?

O coração de Roberts deu um pulo de excitação. Ele devia

pôr-se à disposição desta adorável criatura — porque ela era

adorável, disso ele não tinha a menor dúvida. Não somente

adorável,masaristocráticaerica.Usavaumcasacodepelespara

viagem,umchapéuelegante.Haviapérolasemtornodopescoço.

Eramorenaetinhaoslábiosvermelhos.

Robertsdeuarespostaadequada:—Foi,nomêspassado.

—Osenhorseinteressaporessências?

— Sim, sou fabricante de óleo de jasmim sintético. Ela

abaixou a cabeça e seguiu, deixando um leve sussurro: — No

corredorassimqueotremsair.

Os próximos dez minutos pareceram uma eternidade para

Roberts.Enfimotremsaiu.Eleandoulentamenteatéocorredor.

Page 96: Agatha christie o detetive parker pyne

Asenhoradocasacodepelesestavalutandocontraumajanela.

Apressou-seemajudá-la.

— Obrigada, Monsieur. Apenas um pouco de ar antes que

elesfechemtudo—econtinuouemvozsuave,baixaeapressada:

—Depoisda fronteira, quando onosso companheirode viagem

estiver dormindo. .. não antes... vá até o lavatório e entre na

cabinadooutrolado.Compreendeu?

—Sim—abaixouajanelaedisseemvozmaisalta:—Está

melhorassim,Madame?

Retirou-se para o seu compartimento. Seu companheiro de

viagem já estava estendido no leito de cima. Seus preparativos

paraanoitetinhamsidovisivelmentesimples.Limitou-seatirar

acapaeasbotas.

Robertspensounoproblemadasuaroupa.Eraclaroque,se

eleiaparaacabinadeumasenhora,nãoiasedespiragora.

Procurou um par de chinelos, trocou-os pelas botinas e

deitou-se,apagandoasluzes.Algunsminutosdepoisohomemlá

decimacomeçouaressonar.

Logo depois das dez horas eles alcançaram a fronteira. A

portafoiaberta;umaperguntasuperficial:Messieurstêmalgoa

declarar? A porta foi fechada novamente. O trem partiu de

Bellegarde.

O homem do leito de cima estava ressonando outra vez.

Robertsdeixoupassarvinteminutos,pôs-sedepéeabriuaporta

do compartimento do lavatório. Uma vez lá dentro, trancou a

porta atrás dele e olhou para a que estava do outro lado. Não

Page 97: Agatha christie o detetive parker pyne

estavatrancada.Hesitou.Deveriabater?

Talvezfosseumabsurdobaternaporta.Maselenãogostava

daidéiadeentrarsembater...Decidiu-se,abriuaportadevagar,

maisoumenosumapolegada,eesperou.Aventurou-semesmoa

umapequenatosse.

A resposta foi imediata. A porta foi escancarada e ele foi

agarrado por um braço, puxado para a outra cabina e a moça

fechouepassouotrinconaporta.

Roberts ficou sem fôlego. Nunca imaginara nada assim tão

maravilhoso.Elaestavausandoumalevíssimacamisolacomprida

degazecremeerendas.Encostou-secontraaportaquedavapara

o corredor, ofegante. Roberts lera a respeito de belas criaturas

perseguidaseacuadas.Agora,pelaprimeira vez, ele viauma—

quevisãoemocionante!

—GraçasaDeus!—murmurouamoça.

Elaeramuito jovem,Robertsnotou,eoseuencantoeratal

quepareciaumserdeoutromundo.Eisoromancefinalmente—

eeleestavaali!

Elafalouemvozbaixaerápida.Seuinglêseraperfeito,maso

sotaqueera totalmenteestrangeiro—Estoumuitocontenteque

tenha vindo — disse ela. — Estava horrivelmente assustada.

Vassilievitchestánotrem.Sabeoquequerdizerisso?

Roberts não tinha idéia do que isso queria dizer, mas

concordoucomacabeça.

—Pensei que tivesse conseguidodespistá-lo.Devia ter visto

Page 98: Agatha christie o detetive parker pyne

logo.Oquepodemosfazer?Vassilievitchestánacabinapegadaà

minha.Aconteçaoqueacontecer,elenãopodeconseguirasjóias.

Mesmoqueelememate,nãodevepôramãonasjóias.

—Elenãovaimatá-laenãovaipôramãonasjóias—disse

Robertscomdeterminação.

—Entãooquepossofazercomelas?

Robertsolhouparaaportatrancada—Aportaestátrancada

—disse.

Amoçariu—OquesãoportastrancadasparaVassilievitch?

Roberts sentia-se cada vezmais emaisnomeio deumade

suasnovelasfavoritas—SóháUmacoisaafazer.Dê-measjóias.

Elaolhou-oduvidosa.—Elasvalem250mil.

Robertscorou—Podeconfiaremmim.

A moça hesitou ainda um momento e falou — Sim, vou

confiar em você — disse ela. Fez um movimento rápido. Em

seguida entregou a ele umpar demeias enroladas—meias de

seda teia de aranha. — Guarde-as, meu amigo — disse ela ao

espantadoRoberts.

Aoapanhá-laseleentendeulogo.Emvezdeseremlevescomo

oar,asmeiasestavamestranhamentepesadas.

— Leve-as para a sua cabina — disse ela. — Você pode

devolvê-lasdemanhã,se...se...seeuaindaestiveraqui.

Robertspigarreou—Olheaqui—disse.—Aseurespeito—

Page 99: Agatha christie o detetive parker pyne

fezumapausa.—Eu...euprecisotomarcontadevocê—aíele

enrubesceu,numarroubodeemoção.—Aquinão,querodizer...

Vouficarali—apontouparaocompartimentodolavatório.

— Se quiser pode ficar aqui... — ela olhou para o leito

superiordesocupado.

Robertscorouatéaraizdoscabelos—Não,não—protestou

ele.—Aliestábom.Seprecisardemim,ésóchamar.

—Muitoobrigada,meuamigo—disseamoçasuavemente.

Ela se deitou no leito de baixo, puxou o cobertor e sorriu

agradecidaparaRoberts.Esteseretirouparaolavatório.

De repente — deve ter sido umas duas horas depois —ele

achou que tinha ouvido alguma coisa. Ficou à escuta— nada.

Talvez tivesse se enganado. E, no entanto, parecia que tinha

ouvidoumleveruídonacabinaao lado.Suponhamos...apenas

suponhamos...

Abriuaportadevagar.Acabinaestavadomesmojeitoquea

deixara,comumaluzinhafracaeazuladanoteto.Ficoualidepé

comosolhosseacostumandopoucoapoucocomapenumbra.

Conseguiuentreveroleito.

Viuqueestavavazio!Amoçanãoestavamaislá!

Acendeualuzgrande.Acabinaestavavazia.Nessemomento,

sentiu um cheiro. Apenas um sopro, mas reconheceu o odor

adocicadoedoentiodoclorofórmio!

Saiu da cabina (agora a porta estava destrancada, reparou)

paraocorredoreolhouemtodasasdireções.Vazio!Seusolhosse

Page 100: Agatha christie o detetive parker pyne

dirigiram para a porta mais próxima da cabina da moça. Ela

dissera que Vassilievitch estava na cabina ao lado.

Desajeitadamente, tentou girar a maçaneta. A porta estava

trancadapordentro.

O que devia fazer? Pedir para entrar? Mas o homem se

negaria e apesar de tudo, talvez a moça não estivesse lá! E se

estivesse,iriaporacasoficarmuitosatisfeitaporeleterfeitouma

demonstração pública do assunto? Já tinha sentido que o

segredoeraessencialnapartidaqueestavamjogando.

Umhomenzinhopreocupadovagoulentamentepelocorredor.

Fez uma pausa na última cabina. A porta estava aberta e o

condutor estava deitado, dormindo. E, por cima dele, num

gancho,estavampenduradososeucasacomarromeoboné!

Num lampejo, Roberts decidiu o que ia fazer. Um minuto

depoiselejátinhavestidoocasacoeobonéecorriadevoltapelo

corredor.Parouàportapróximadacabinadamoça,armou-sede

todaasuaresoluçãoebateuperemptòriamente.

Aoverquesuasbatidasnãoeramrespondidas,bateuoutra

vezcommaisforça.

—Monsieur—disseelecomseumelhorsotaque.

A porta abriu-se um pouquinho e uma cabeça espiou para

fora—cabeçadeumestrangeirodecabelosraspados,àexceção

deumbigodepreto.Eraumrostozangado,malévolo.

—Qu'est-cequ'ilya?—perguntousecamente.

—Votrepasseport,Monsieur—Robertsdeuumpassoatrás

Page 101: Agatha christie o detetive parker pyne

efezumacenocomacabeça.

O outro hesitou e deu um passo para fora do corredor.

Roberts contaraexatamentecom isto.Seporacasoele estivesse

mesmocomamoçaládentro,naturalmentenãoiaquererqueo

condutorentrasse.ComoumrelâmpagoRobertsagiu.Comtoda

a sua força, empurrou o estrangeiro paraum lado—ohomem

nãoestavaprevenidoeobalançodotremajudou—puloupara

dentrodocompartimento,fechouaportaetrancou-sepordentro.

Amoçaestavadeitadano leito,comumamordaçanabocaeos

pulsos amarrados. Libertou-a imediatamente e ela agarrou-se a

elecomumsoluço.—Estoumesentindotãofracaeinsegura—

murmurou ela. — Acho que foi o clorofórmio. Ele... ele as

conseguiu?

—Não—Roberts bateu em seu bolso.—Que vamos fazer

agora?—perguntouele.

A moça sentou-se. Estava voltando à razão. Olhou para a

roupadele—Comovocêfoiesperto!Queboaidéiateve!Eledisse

que me mataria se eu não dissesse onde estavam as jóias. Eu

estavacomtantomedo!Eentãovocêchegou!—derepenteelariu

—Masnóspassamosapernanele!Nãoousaráfazermaisnada.

Nãopodenemmesmovoltarparaasuaprópriacabina.

— Vamos ficar aqui até de manhã. Provavelmente ele vai

saltaremDijon;vamosparar ládaquiaumameiahora.Elevai

telegrafar para Paris e vão pegar a nossa pista lá. Neste meio

tempoémelhorvocêjogarforaestecasacoeestebonépelajanela.

Elespodemdeixá-loemapuros.

Robertsobedeceu.

Page 102: Agatha christie o detetive parker pyne

—Nãopodemosdormir—decidiuamoça.—Precisamosficar

deguardaatédemanhã.

Foiumavigíliaestranha,excitante.Àsseishorasdamanhã

Roberts abriu a porta cautelosamente e deu uma olhada para

fora.Nãohavianinguémàvista.Amoçaentroudepressanasua

própria cabina. Roberts a seguiu. O local fora visivelmente

saqueado.Entroudevoltaemseuprópriocompartimentoatravés

do lavatório. O seu companheiro de viagem continuava

ressonando.

Chegaram a Paris às sete horas. O condutor reclamava a

perdadocasacoedoboné.Eleaindanãodescobriraafaltadeum

dospassageiros.

Iniciaram uma caçada muito divertida. A moça e Roberts

tomaramtáxiatrásdetáxiatravésdeParis.Entraramemhotéise

restaurantes por uma porta e saíram por outra. Finalmente a

moçadeuumsuspiro.

—Tenhocertezadequenãovamosmaisserseguidos—disse

ela.—Nósosdespistamos.

Tomaram café e dirigiram-se para Le Bourget. Três horas

depois estavam chegando ao aeroporto de Croydon. Roberts

nuncavoaraantes.

Em Croydon, um senhor alto e idoso que lembrava

vagamente o mentor do Sr. Roberts em Genebra esperava por

eles.Cumprimentouamoçacomumrespeitoespecial.

—Ocarroestáaqui,Madame—disse.

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—Estecavalheironosacompanhará,Paul—disseamoça.E

aRoberts:—OCondePaulStepanyi.

O carro era uma enorme limusine. Andaram cerca de uma

hora,entraramnosterrenosdeumacasadecampoepararamem

frente às portas de uma imponente mansão. O Sr. Roberts foi

levadoparaumasalamobiliadacomoumestúdio.Ali,entregouo

preciosopardemeias.Foideixadoasósporummomento.Neste

momentooCondeStepanyivoltou.

—Sr.Roberts—disseele,—nossagratidãoeterna.Osenhor

provouserumhomemdecoragemedemuitahabilidade—trazia

nas mãos uma caixa de marroquino vermelho. — Permita-me

conferir-lheaOrdemdeSantoEstanislau—décimaclassecom

lauréis.

Como num sonho Roberts abriu a caixa e olhou para a

condecoraçãopreciosa.Oidosocavalheiroaindaestavafalando.

— A Grã-Duquesa Olga deseja lhe agradecer pessoalmente

antesdepartir.

Foilevadoatéumaenormesaladevisitas.Ali,mui-3lindaem

umvestidovaporoso,estavaasuacompanheiradeviagem.

—Devo-lheminhavida,Sr.Roberts—disseaGrã-Duquesa.

Ela estendeu a mão. Roberts beijou-a. Ela se inclinou

subitamenteparaele.

—Vocêéumhomemdecoragem—disseela.Seuslábiosse

encontraram;umsoprodeumricoperfumeorientalorodeou.Por

um momento ele teve entre os braços aquele corpo lindo e

Page 104: Agatha christie o detetive parker pyne

esbelto...

Ainda estava sonhando quando alguém lhe disse: — O

automóvelolevaráaondeosenhorquiser.

Uma hora depois o carro voltou para a Grã-Duquesa Olga.

Ela entrou, seguida pelo cavalheiro de cabelos brancos, que" já

tirara a barba para refrescar-se.O carro deixou aGrã-Duquesa

Olga em uma casa em Streatham. Ela entrou e uma senhora

idosaolhou-aporcimadeumamesapostaparaochá.

—Ah,Maggie,querida,vocêjáestádevolta!

No expresso Genebra—Paris esta moça era a Grã-Duquesa

Olga;noescritóriodeParkerPyneelaeraMadeleinedeSara;na

casa de Streatham, era Maggie Sayers, a quarta filha de uma

famíliahonestaetrabalhadeira.

Comoaspessoasseenganam!

ParkerPynealmoçavacomumamigo.—Parabéns—disseo

último. — Seu homem levou tudo a cabo sem um tropeço. A

quadrilha de Tormali deve estar dando tratos à bola para

descobrir como foi que os planos da arma lhe escaparam. Você

disseaseuemissáriooqueeraqueeleestavalevando?

—Não.Acheimelhor...fantasiar.

—Muitodiscretodesuaparte.

— Não foi exatamente discrição. Eu queria que ele se

divertisseumpouco.Imagineiquetalvezachasseestahistóriade

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arma um pouco enfadonha. Queria que ele tivesse umas

aventuras.

—Enfadonha?—disseoSr.Bonnington,olhandoparaele.

—Olhe,elesoteriamassassinadoassimquetopassemcomele

—Eu sei— disse Parker Pyne suavemente.—Mas eu não

queriaqueelefosseassassinado.

—Vocêganhamuitodinheiroemseusnegócios,Parker?—

perguntouoSr.Bonnington.

—Àsvezespercoquandovaleapena.disseParkerPyne.—

Istoé,quandovaleapena.

Trêshomensfuriososxingavam-semutuamenteemParis.—

AquelemalditoHooper!—diziaumdeles.—Elenostraiu.

—Osplanosnão foram levadosporninguémdoServiço—

disse o segundo. — Mas eles vieram na quarta-feira, tenho

absoluta certeza. E é por isto que eu digo que foivocê quem

trabalhoumal.

— Eu não — disse o terceiro mal-humorado;— não havia

nenhuminglêsnotremanãoserumempregadinhodeescritório.

Ele nunca ouvira falar de Peterfield ou da arma. Eu sei. Eu o

provoquei.Peterfieldeaarmanãoqueriamdizernadaparaele—

sorriu.—Eletinhaumcomplexobolchevistaqualquer.

OSr.Robertsestavasentadoem frenteaoaquecedoragás.

SobreosjoelhostinhaumacartadeParkerPyne.Juntocomela

chegaraumchequedecinqüentalibras"depessoasqueestavam

muitosatisfeitascomumacertamissãoexecutada".

Page 106: Agatha christie o detetive parker pyne

Nobraçodesuacadeirarepousavaumlivrodabiblioteca.O

Sr.Roberts abriu-oaoacaso.Elaestavaencolhida juntoàporta

comoumalindacriaturaacuada.

Bem,elesabiaoqueeraisso.

Leu outra frase:Ele farejou oar.O odor suave edoentiodo

clorofórmiochegouàssuasnarinas.

Eletambémsabiaoqueeraisso.

Eleatomouemseusbraçosesentiuavibraçãonaresposta

deseuslábiosescarlates.

OSr.Robertsdeuumsuspiro.Nãoforaumsonho.Aconteceu

mesmo. A viagem de ida foi muito monótona, mas a de volta!

Comoele tinha gostado!Mas ele estava satisfeitode voltarpara

casa. Sentiu.vagamente que a existência não poderia ser vivida

indefinidamentenaquelecompasso.MesmoaGrã-DuquesaOlga

—mesmoaqueleúltimobeijo—jáfaziampartedeumsonho.

Mary e as crianças iam voltar para casa amanhã. O Sr.

Robertssorriufeliz.

Ela ia dizer: "Passamos umas férias tão agradáveis. Fiquei

triste quando pensei em você, sozinho aqui, meu velho". E ele

diria:"Foitudobem,minhavelha.TivedeiraGenebraparaum

negóciodafirma—umnegóciodelicado—eolheoqueelesme

mandaram".Emostrariaochequedecinqüentalibras.

Pensou na Ordem de Santo Estanislau, décima classe com

lauréis.Eleaesconderia,masseMaryaencontrasse...teriaque

darumaexplicaçãotãolonga...

Page 107: Agatha christie o detetive parker pyne

Ah,issomesmo!—elediriaquetinhatrazidodoestrangeiro.

Umacuriosidade.

Abriunovamenteolivroeleucomfelicidade.Nãohaviamais

aquelaexpressãoansiosaemseurosto.

Agora ele também fazia parte daquele grupo privilegiado de

pessoasparaasquaisAsCoisasAconteceram...

Page 108: Agatha christie o detetive parker pyne

6

OCasodaMilionária

ONOMEDA SRA. ABNER RYMER foi anunciado a Parker Pyne.

Eleconheciaestenomeefranziuassobrancelhas.

Nessemomentoasuaclienteentrounoescritório.

ASra.Rymereraumamulheralta,deossosfortes.

Tinha um ar deselegante e o vestido de veludo e o pesado

casacodepelesnãoconseguiamesconderisso.Orostoeragrande

elargo,decoresmuitovivas.Ocabelopretotinhaumpenteado

da moda e havia muitas pontas de penas de avestruz em seu

chapéu.—Bomdia—disseela.Suavoztinhaumsotaquerude.

—Se o senhor prestarmesmo vaimedizer como gastar omeu

dinheiro!

— Muito original — murmurou Parker Pyne. — Poucas

pessoasperguntamissohojeemdia.Então,asenhoraachaque

istoérealmentedifícil,Sra.Rymer?

— Acho— disse ela com rudeza.— Tenho três casacos de

pele,umaporçãodevestidosdeParisecoisasassim.Tenhoum

automóvel e uma casa em Park Lane. Tenho um iate mas não

gosto domar. Tenho uma porção de empregados de alta classe

que olhampara a gente por cima donariz. Viajei umbocado e

conheço muitos lugares. E não me ocorre rigorosamente mais

nada para comprar ou fazer — olhou esperançosa para Parker

Pyne.

Page 109: Agatha christie o detetive parker pyne

—Háoshospitais—começouele.

—Oquê?Darmeudinheiro,osenhorquerdizer?Não,isso

eunãofaço!Sueiparaganharestedinheiro,deixeeulhecontar,

trabalheiparavaler.Sepensaquevoujogardinheirofora,como

se estivesse empoeirado...bem, o senhor está enganado. Quero

gastá-lo;gastá-loe tirardelealgumproveito.Agora,seosenhor

tiveralgumaidéiaquevalhaapena,podecontarcomumsalário

muitobom!

—Asuapropostame interessa—dissePyne.—Asenhora

nãofalouemnenhumacasadecampo.

—Esqueci,mastenhouma.Mechateiademais.

— Preciso saber mais coisas sobre a sua pessoa. Seu

problemanãoédefácilsolução.

—Contocomtodooprazer.Nãomeenvergonhodopassado.

Eutrabalhavanumafazendaquandoeragarota.Eraumtrabalho

duro, também.EntãocomeceianamoraroAbner—eleeraum

operárionummoinhopróximo.Cortejou-meduranteoitoanose

depoisnoscasamos.

—Easenhorafoifeliz?—perguntouPyne.

— Fui. Ele era um homem bom para mim, o Abner. Nós

tivemosumavidadifícil,e...Eleficoudesempregadoduasvezese

ascriançascomeçaramachegar.Tivemosquatro,trêsmeninose

uma menina. E nenhum deles chegou a crescer. Garanto que

seria diferente se eles tivessem vivido— seu rosto abrandou-se,

elapareceurepentinamentemaisjovem.

Page 110: Agatha christie o detetive parker pyne

—Eleerafracodospulmões,oAbner.Nãoochamarampara

aguerra.Trabalhouaquimesmoemcasa.Foinomeadochefeda

seção. Era um sujeito inteligente, o Abner. Trabalhou num

processo industrial. Foi tratado com consideração, eu diria;

deram-lhe um bom dinheiro. Usou o dinheiro numa idéia sua.

Entrou dinheiro aos montes. Agora era mestre, tinha os seus

própriosempregados.Comprouduasempresasquetinhamidoà

falência e as tornou lucrativas. O resto foi fácil. O dinheiro

começouaentraraosborbotões.Continuaentrando.

— Veja bem, no início era divertido. Ter uma casa, um

banheirodeprimeiraecriadasparatodooserviço.Nãoprecisava

mais cozinhar, esfregar e lavar. Era só sentar em almofadas de

sedana salade visitas e tocar a campainhapara o chá... como

qualquercondessa!Muitodivertidomesmo!Enósaproveitamos.

Então viemospara Londres.Eu fui a costureiros damodapara

encomendarmeusvestidos.FomosparaPariseparaaRiviera.Foi

divertidíssimo!

—Edepois?—disseParkerPyne.

—Acho que ficamos acostumados com tudo isso—disse a

Sra.Rymer.—Depois deum certo tempo já não era assim tão

divertido. Olhe, havia dias em que nós nem aproveitávamos as

refeições—nós,queficávamossatisfeitoscomqualquerprato!E

os banhos — bem, afinal de contas, um banho por dia é o

suficienteparaqualquerpessoa.EasaúdedeAbnercomeçoua

preocupá-lo.Pagamosmuitodinheiroaosmédicos,pagamossim,

mas elesnãopuderam fazernada. Tentaram isso e aquilo.Mas

nãoadiantounada.Elemorreu—fezumapausa.—Eramoço,

sótinhaquarentaetrêsanos.

Page 111: Agatha christie o detetive parker pyne

Pyneacenousimpàticamentecomacabeça.

— Isso foi há cinco anos. O dinheiro continua entrando a

rodo. Me parece uma perda de tempo não ser capaz de fazer

algumacoisacomele.Maseu lhedigocom franqueza,nãosou

capazdepensaremnadaqueeujánãotenhacompradoequejá

nãopossua.

—Emoutraspalavras—dissePyne,—suavidaémonótona.

Asenhoranãoaestáaproveitando.

—Estoucheiadavida—disseaSra.Rymermelancólica.—

Não tenhoamigos.A turmanovasóquer subscrições e riemde

mimpelascostas.Aturmavelhanãotemmaisnadaemcomum

comigo.Bastaeupassardeautomóvelpara fazê-losse sentirem

envergonhados.Podefazerousugeriralgumacoisa?

—Épossívelqueeupossa—dissePyne,lentamente.—Vai

serdifícil,masachoqueháumachancededarcerto.Achoqueé

possívelqueeulhedevolvaoqueasenhoraperdeu—ointeresse

pelavida.

—Como?—perguntouaSra.Rymerrapidamente.

—Isso—disseParkerPyne—ésegredoprofissional.Nunca

discutomeusmétodosdeantemão.Aquestãoé,asenhoraquer

correr o risco? Não garanto o sucesso, mas acho que há uma

possibilidaderazoáveldeêxito.

—Equantovaicustar?

—Tereideadotarmétodosexcepcionais,eporissovaicustar

caro.Meupreçoserádemillibras,adiantadas.

Page 112: Agatha christie o detetive parker pyne

—Osenhorsabeabriraboca,nãoé?—disseaSra.Rymer.

—Bem,querocorrerorisco.Estouacostumadaapagaroquehá

demais caro.Sóque,quando,pagoumaconta, eu tomomuito

cuidadoemobtê-la.

—Asenhoraaterá—disseParkerPyne.—Nãosepreocupe.

— Eu lhe mandarei o cheque hoje à tarde — disse a Sra.

Rymerlevantando-se.—Nãoseiporquedevoconfiarnosenhor.

Tolos e seu dinheiro estão sempre se separando, dizem. Quase

diriaquesouumatola.Osenhortemnervos,paraanunciarnos

jornaisqueécapazdefazeraspessoasfelizes!

—Estesanúnciosmecustamdinheiro—dissePyne.—Seeu

não dissesse a verdade, esse dinheiro estaria perdido. Eusei o

quecausaainfelicidadeeporissotenhoumaidéiamuitoclarade

comocriarasituaçãooposta.

ASra.Rymer balançouduvidosa a cabeça e saiu, deixando

atrásdesiumanuvemdeumacaramisturadeperfumes.

O bonitão Claude Luttrell entrou no escritório. — Alguma

coisanaminhaespecialidade?

Pyne balançou negativamente a cabeça— Dessa vez não é

simples — disse. — Não, este é um caso difícil. Temo que

precisemoscorreralgunsriscos.Vamostentaroextraordinário.

—ASra.Oliver?

O Sr. Pyne sorriu à menção do nome da novelista

mundialmentefamosa.—ASra.Oliver—disseele—érealmente

amais convencional de todos nós. Estou pensando num golpe

Page 113: Agatha christie o detetive parker pyne

maisafoitoeaudacioso.Porfalarnisso,quermeligarcomoDr.

Antrobus?

—Antrobus?

—É.Vouprecisardosserviçosdele.

Uma semana depois, a Sra. Rymer entrou novamente no

escritóriodeParkerPyne.Elesepôsdepépararecebê-la.

—Ademorafoinecessáriaeulheasseguro—disseele.—Foi

preciso conseguir uma porção de coisas, e tive de requisitar os

serviçosdeumhomemextraordinárioqueveiodooutro ladoda

Europa.

—Ah!—disseeladesconfiada.Oqueestavabemmarcadona

sua cabeça era que ela assinaraumchequedemil libras e que

estechequeforadescontado.

ParkerPyneapertouumbotão.Umajovemmorena,comum

ar oriental, mas vestida de branco, como uma enfermeira,

respondeu.

—Estátudopronto,enfermeiradeSara?

—Sim,oDr.Constantineestáesperando.

—Oqueosenhorvaifazer?—perguntouaSra.Rymercom

umsentimentodeapreensão.

— Vou apresentá-la a um mago do Oriente, minha cara

senhora—disseParkerPyne.

Page 114: Agatha christie o detetive parker pyne

A Sra. Rymer seguiu a enfermeira até a sala ao lado. Ela

entrounumapeçaquenãotinhanadaavercomorestodacasa.

Tapeçarias orientais cobriam as paredes. Havia divas com

almofadasfofasebelíssimostapetespelochão.Umhomemestava

debruçado sobre um bule de café. Empertigou-se quando eles

entraram.

—Dr.Constantine—disseaenfermeira.

Odoutorestavavestidocomroupaseuropéias,masseurosto

eramorenoescuroeosolhosnegroseoblíquostinhamumpoder

defixaçãomuitopeculiar.

—Entãoéestaaminhapaciente?—disseeleemvozbaixae

vibrante.

—Nãosoupacientedeninguém—disseaSra.Rymer.

—Seucorponãoestádoente—disseodoutor.—Masasua

alma está deprimida. Nós do Oriente sabemos como curar este

mal.Sente-seetomeumaxícaradecafé.

ASra.Rymersentou-seeaceitouaminúsculaxícaracoma

fragranteinfusão.Enquantoelabebia,odoutorfalava:

— Aqui no Ocidente tratam apenas do corpo. O corpo é

apenaso instrumento.Nelese tocaumamelodia.Podeseruma

melodiatriste,deprimente.Podeserumamelodiaalegre,cheiade

encantos.Éestaúltimaqueeulhedarei.Asenhoratemdinheiro.

Devegastá-loetirarproveitodele.Avidavaleránovamenteapena

deservivida.Éfácil...fácil...tãofácil...

Umsentimentodeabandonoapossou-sedaSra.Rymer.Os

Page 115: Agatha christie o detetive parker pyne

vultos do doutor e da enfermeira começaram a se tornar

enevoados.Elasesentiuimensamentefelizemuitosonolenta.O

mundointeiropareciaestarcrescendo.

Odoutorestavaolhandodentrodeseusolhos—Durma—

dizia ele.—Durma.Suaspálpebras estão-se fechando.Daquia

poucoasenhoraestarádormindo.Asenhoravaidormir...

AspálpebrasdaSra.Rymerse fecharam.Ela flutuavanum

mundoimensoemaravilhoso.

Quandoseusolhasseabrirampareceu-lhequetinhapassado

muito tempo. Ela se lembrava vagamente de algumas coisas—

sonhos estranhos, impossíveis; depois o sentimento de quem

acorda;depois, outros sonhos.Lembrava-sedequalquer coisaa

respeito de um automóvel e da moça linda e morena com um

uniformedeenfermeiradebruçadasobreela.

Dequalquer forma, agora ela estavamesmoacordada, e em

suaprópriacama.

Seráqueseriamesmoasuaprópriacama?Pareciadiferente.

Faltavaaqueladeliciosamaciezdesuaprópriacama.Lembrava-

lhevagamentediasquasequeesquecidos.Elasemexeueacama

rangeu. A cama da senhora Rymer em Park Lane não rangia

nunca.

Elaolhouemtorno.DecididamentenãoestavaemParkLane.

Seriaumhospital?Não, viu quenão eraumhospital. Também

não era um hotel. Era um simples quarto com as paredes

pintadas num tom indistinto de lilás. Havia um suporte para

bacianumcanto,comumacuiadáguaeumajarra.Umacômoda

depinhocomgavetaseumapequenavalisedefolhadeflandres.

Page 116: Agatha christie o detetive parker pyne

Roupas estranhas penduradas em cabides na parede. A cama

cobertaporumamantabastanteremendadaeelaprópria.

—Ondeéqueeuestou?—perguntouaSra.Rymer.

Aportaseabriueumamulherzinharoliçaentrou.Tinhaas

bochechas vermelhas e uma aparência muito bem-humorada.

Tinhaasmangasarregaçadaseumavental.

— Enfim! — exclamou. — Ela está acordada. Pode entrar,

doutor.

ASra.Rymerabriuabocaparadizerumaporçãodecoisas—

mas não disse nada, porque o homem que entrou atrás da

mulherzinharoliçanãoseparecianemumpoucocomomorenoe

elegante Dr. Constantine. Era um velho encurvado que a

observavaatrásdeunsóculosdelentesmuitogrossas.

—Ótimo—disse ele aproximando-seda camaepegandoo

pulsodaSra.Rymer.Vocêvaificarboalogo,minhaquerida.

— O que foi que aconteceu comigo? — perguntou a Sra.

Rymer.

— Você teve uma espécie de ataque — disse o médico. —

Ficouinconscienteumoudoisdias.Nadadegrave.

— Você nos deu um susto, Hannah, se deu! — disse a

gordinha.—Vocêdeliroutambémedissecoisasmuitoestranhas.

— Foi sim, Sra. Gardner — disse o médico em tom de

repreensão.—Mas não devemos excitar a paciente. Logo, logo,

vocêvaiestarandandodeumladoparaooutro,minhaquerida.

Page 117: Agatha christie o detetive parker pyne

—Masnão precisa se preocupar como serviço,Hannah—

disseaSra.Gardner.—ASra.Robertsmetemdadoumamãoe

nós damos conta de tudo. Fique deitada para ficar logo boa,

minhacara.

—PorqueestãomechamandodeHannah?—perguntoua

Sra.Rymer.

—Bem, porque o seunome é esse—disse a Sra.Gardner

comespanto.

—Nãoénão.MeunomeéAmélia.AméliaRymer.Sra.Abner

Rymer.

OmédicoeaSra.Gardnerseentreolharam.

—Bom,fiquedeitada—disseaSra.Gardner.

—Sim,nãosepreocupe—disseomédico.

Osdoissaíram.ASra.Rymer ficoudeitadae intrigada.Por

que a tinham chamado de Hannah e por que tinham trocado

aqueleolhardeincredulidadequandoelalhesdisseoseunome?

Ondeestariaelaeoqueteriaacontecido?

Saiudacama.Sentiufaltadefirmezanaspernas,masandou

devagaratéapequenajanelaeolhouparafora—umquintalde

fazenda! Completamente confusa, voltou para a cama. O que

estariaelafazendonumafazendaemquenuncatinhaestado?

ASra.Gardnerentrououtraveznoquartocomumatigelade

sopanumabandeja.ASra.Rymercomeçouafazerperguntas:—

Oqueéqueeuestoufazendonestacasa?—perguntou.—Quem

metrouxeparacá?

Page 118: Agatha christie o detetive parker pyne

—Ninguématrouxeparacá,minhaquerida.Éasuacasa.

Pelomenos,éondevocêviveunosúltimoscincoanos—eeunão

sei se você tinha outro lugar para ir antes de vir trabalhar

conosco.

—Viviaqui?Cincoanos?

—Issomesmo.Ora,Hannah,nãovámedizerquevocêainda

nãoestáselembrandodenada!

—Eununcaviviaqui!Nuncavivocê!

—Sabe,depoisquevocê teveessadoençanãose lembrade

maisnada.

—Eununcaviviaqui.

— Viveu, querida — de repente a Sra. Gardner foi até a

cômoda cheia de gavetas e trouxe uma fotografia emoldurada e

meioapagadaparaaSra.Rymer.

Representava um grupo de quatro pessoas: um homem

barbado,umamulhergorda(aSra.Gardner),umhomemaltoe

magrocomumacaretaagradàvelmentetímidaealguémcomum

vestidoestampadoeumavental—elaprópria!

Estupefata, a Sra. Rymer olhou para a fotografia. A Sra.

Gardnerpôsopratodesopaaseuladoesaiudoquartosemfazer

barulho.

ASra.Rymer tomoua sopamecanicamente.Erauma sopa

gostosa, forte e quente. Durante todo esse tempo, seu cérebro

estava num torvelinho.Quem estava doida? A Sra.Gardner ou

Page 119: Agatha christie o detetive parker pyne

ela?Umadasduasdeviaestar!Mastinhaomédicotambém...

—SouAméliaRymer—disseelacomfirmeza.—Euseique

souAméliaRymereninguémvaimedizerocontrário!

Terminoua sopa.Colocoua tigelade voltanabandeja.Um

jornal dobrado chamou sua atenção, ela o apanhou e olhou a

data:19deoutubro.Qualtinhasidoodiaquefoiaoescritóriodo

Sr. Parker Pyne? Talvez quinze ou dezesseis. Então ela estivera

doenteportrêsdias!

—Opatifedaqueledoutor!—disseaSra.Rymercomraiva.

Aomesmotempo,estavaumpoucoaliviada.Ouvira falarde

casos em que as pessoas esqueciam quem eram às vezes por

muitos anos. Teve medo de que alguma coisa lhe tivesse

acontecido.

Continuouafolhearojornalexaminandoascolunasdevagar,

quandoderepenteumparágrafochamouasuaatenção:

ASra.AbnerRymer,viúvadeAbnerRymer,oreidosbotões

de osso, foi removida ontemparauma casade saúdeparticular

paradoentesmentais.Nosúltimosdoisdias,aSra.Rymerinsistia

em declarar que não era ela mesma, mas uma empregadinha

chamadaHannahMoorhouse.

—HannahMoorhouse!Entãoé isso!—disseaSra.Rymer.

—Elasoueueeusouela!Umaespéciededuplicata,suponho.

Bom, vamos jádar um jeito nisso! Se aquele hipócrita nojento

daqueleParkerPyneestivermetidoemalgumaencrenca...

Mas nesse instante o nome Constantine chamou a sua

Page 120: Agatha christie o detetive parker pyne

atenção numamatéria impressa na primeira página. Desta vez

eraumamanchete:

AFIRMAÇÃODODR.CONSTANTINE

Numaconferênciadedespedidananoitedavésperadesua

partida para o Japão, o Dr. Claudius Constantine expressou

diversasteoriassurpreendentes.Declarouqueerapossívelprovar

a existência da alma, transferindo-se aalma de um corpo para

outro.DuranteassuasexperiênciasnoOriente,elesustentaque

realizoucomsucessoumatransferênciadupla—aalmadocorpo

Ahipnotizadofoi transferidaparaocorpoBeaalmadocorpoB

paraocorpoA.Aoacordaremdosonohipnótico,Adeclarouque

eraBeBpensouqueeraA.

Paraqueaexperiênciativesseêxito,eranecessárioencontrar

duas pessoas de grande semelhança física. É fato inegável que

duas pessoas que se parecem muito estão en rapport.Isto é

facilmente notado no caso de gêmeos, mas dois estranhos,

mesmo que de posições sociais diferentes, porém com uma

marcada semelhança de traços, podem exibir esta mesma

harmoniadeestrutura.

ASra.Rymerjogoulongeojornal—Aquelecanalha!Aquele

canalhamiserável!

Agora ela via tudo! Tinha sido um plano traiçoeiro para

passaremamãonodinheirodela!EstaHannahMoorhouseera

um instrumento de Parker Pyne — possivelmente um

instrumento inocente. Ele e aquele demônio do Constantine

tinhamdadoumgolpefantástico!

Page 121: Agatha christie o detetive parker pyne

Mas ela ia desmascará-los! Iamostrar quem era! Poria a lei

atrásdeles.Diriaatodomundo...

Abruptamente,aSra.Rymerpôsumfreioemsuaindignação.

Lembrou-sedoprimeiroparágrafo.HannahMoorhousenãotinha

sido um instrumento dócil. Ela protestara, declarara sua

individualidade.Eoqueaconteceu?

—Trancadanumasilo de lunáticos, pobremoça—disse a

Sra.Rymer.Umarrepiolhepercorreuaespinha.

Umasilode loucos.Elespõemvocê ládentroenuncamais

deixamvocêsair.Quantomaisvocêdisserqueestábom,menos

elesacreditam.Vocêestáláelávaificar.Não,aSra.Rymernão

iriacorreresserisco.

AportaabriueaSra.Gardnerentrou.

—Ah,tomouasuasopa,minhaquerida.Muitobem.Daquia

poucovocêvaificarboa.

—Quandofoiqueeuadoeci?—perguntouaSra.Rymer.

—Deixever...Foihátrêsdias...naquarta-feira.Achoquefoi

diaquinze.Vocêteveoataqueporvoltadasquatrohoras.

—Ah!—aexclamaçãoeramuitosignificativa.Foijustamente

àsquatrohorasqueaSra.RymerentrouemcontatocomoDr.

Constantine.

—Vocêescorregoudacadeira—disseaSra.Gardner.—Oh!

—vocêdisse. "Oh!"e foisó.Edepois: "Voudormir"—foioque

vocêdisse,comavozsonolenta."Voudormir".Edormiumesmo,

enóspusemosvocênacamaechamamosomédicoedesdeentão

Page 122: Agatha christie o detetive parker pyne

vocêestáaí.

— Acho — arriscou a Sra. Rymer — que não há nenhum

outromeiodesaberquemeusou...querodizer,alémdaminha

cara.

—Bem,issoéumacoisaesquisita—disseaSra.Gardner.—

O que émelhor do que a cara de uma pessoa, não é? Se você

preferir,háasuamarcadenascença.

— Uma marca de nascença? — disse a Sra. Rymer se

alegrando.Elanuncateveessetipodecoisa.

—Umamarquinhavermelhacomoummorangodebaixodo

cotovelo direito — disse a Sra. Gardner. — Olhe você mesma,

querida.

Issovaiprovartudo,disseaSra.Rymerconsigomesma.Ela

sabia que não tinha nenhuma marca em forma de morango

debaixodocotovelodireito.Arregaçouamangadesuacamisola.

Amarcadomorangoestavalá.

ASra.Rymercaiuemprantos.

Quatro dias depois a Sra. Rymer se levantou da cama. Ela

tinhapensadoemdiversosplanosdeaçãoerejeitoutodos.

Poderia mostrar o parágrafo do jornal à Sra. Gardner e ao

médicoeexplicar.Acreditariamnela?ASra.Rymertinhacerteza

dequenão.

Seelafosseàpolícia.Acreditariamnela?Outravezachouque

não.

Page 123: Agatha christie o detetive parker pyne

Pensou em ir ao escritório de Parker Pyne. Foi a idéia que

mais a agradou. Principalmente porque ela queria dizer àquele

patifenojentooquepensavadele.Mashaviaumobstáculovital

paraaexecuçãodesteplano.ElaestavanomomentoemCornwall

(assimlhedisseram)enãotinhadinheiroparairaLondres.Dois

shillings e quatro cêntimos numa bolsa usada, era esta a sua

situaçãofinanceira.

E assim, depois de quatro dias, a Sra. Rymer tomou uma

decisão esportiva. No momento ela aceitaria as coisas. Ela era

Hannah Moorhouse. Muito bem, ela seria Hannah Moorhouse.

Por enquanto aceitaria o papel e depois, quando tivesse

economizado o dinheiro suficiente, iria a Londres e pegaria o

trapaceiroemseucovil.

Etomadaestadecisão,aSra.Rymeraceitouopapelcomtoda

a boa vontade e mesmo com um certo regozijo sardônico. A

históriaestavamesmoserepetindo!Estavidapareciamuitocom

asuavidadejuventude.Háquantotempo!

O trabalho parecia umpouco duro depois de todos aqueles

anos de vida mansa, mas depois da primeira semana ela se

habituouaoserviçodafazenda.

ASra.Gardnereraumamulherdegênioexpansivoealegre.

O marido, um homem alto e taciturno, era também muito

simpático. O magricela desajeitado da fotografia fora embora;

ficououtroempregadoemseulugar,umgigantebem-humorado

de uns quarenta e cinco anos, lento no falar e no pensar,mas

comumbrilhoacanhadonosolhosazuis.

Page 124: Agatha christie o detetive parker pyne

Passaram-seassemanas.PorfimchegouodiaemqueaSra.

Rymer já tinha o dinheiro suficiente para pagar sua passagem

para Londres.Mas não foi. Deixou o dinheiro guardado. Tinha

muito tempo, pensou. Ainda não tinha perdido o medo dos

hospícios. Aquele trapaceiro, Parker Pyne, era muito esperto.

Podia arranjar ummédico que ia dizer que ela era louca, e ela

seria trancafiada sem que ninguém soubesse o que tinha

acontecido.

—Alémdisso—disseaSra.Rymer,—umamudançadeares

semprefazbem.

Levantava-se cedo e ia para o batente. Joe Welsh, o novo

empregado, ficoudoentenaquele invernoeelaeaSra.Gardner

cuidaram dele. O homenzarrão dependia delas de um modo

comovente.

Veio a primavera e nasceram os carneirinhos; havia flores

silvestres pelas sebes, uma suavidade traiçoeira pelo ar. Joe

Welsh deu uma mão a Hannah em seu trabalho. Hannah

remendouasroupasdeJoe.

Algumas vezes, aos domingos, eles saíam para passear

juntos.Joeeraviúvo.Suamulhertinhamorridoháquatroanos.

Desdeasuamorte,eleconfessoucomfranqueza,passouatomar

unsgolinhosamais...

Ultimamenteelejánãoiamuitoàtaverna.Comproualgumas

roupasnovas.OSr.eaSra.Gardnersorriam.

HannahbrincavacomJoe.Elasedivertiacomosseusmodos

desajeitados.Joenãoligava.Pareciaencabulado,masfeliz.

Page 125: Agatha christie o detetive parker pyne

Depois da primavera veio o verão— aquele ano houve um

bomverão.Todostrabalhavammuito.

A colheita terminou. As folhas das árvores se tornaram

vermelhasedouradas.

FoinodiaoitodeoutubroqueHannah,olhandoparacima

enquantocortavaumrepolho,viuParkerPynedebruçadosobrea

cerca.

—Osenhor!—disseHannah,aliásSra.AbnerRymer.—O

senhor...

Elacustouapôrparaforatudooquequeria,adizertudoo

queprecisavaserdito.Quaseperdeuofôlego.

Parker Pyne sorria mansamente — Estou plenamente de

acordocomasenhora—disseele.

—Umimpostoreummentiroso,éissooqueosenhoré!—

disse a Sra. Rymer, repetindo o que já havia dito.—O senhor

com os seus Constantines e seus hipnotizadores e .esta pobre

moçaHannahMoorhousetrancafiada...commalucos!

—Não—disse oSr. Pyne,—nãome julguemal.Hannah

Moorhouse não está no hospício porque Hannah Moorhouse

nuncaexistiu.

—Émesmo?—disseaSra.Rymer.—Eaqueleretratodela

queeuvicomosmeusprópriosolhos?

—Falsificado—disseoSr.Pyne.—Émuitofácildefazer.

—Eanotícianojornalsobreela?

Page 126: Agatha christie o detetive parker pyne

—O jornal inteiro era falso,parapodermos incluirasduas

notícias de uma forma natural que a convenceriam. E que a

convenceram.

—Aqueletratante,oDr.Constantine!

— Um nome suposto... um amigomeu com talento para o

teatro.

A Sra. Rymer bufou de raiva — Ah! E suponho que eu

tambémnãofuihipnotizada?

—Paradizeraverdade,nãofoimesmonão.Asenhoratomou

no seu café uma droga parecida commaconha. Depois, outras

drogasforamadministradas,easenhorafoitrazidaparacá,onde

recobrouaconsciência.

—EntãoaSra.Gardnersabiadetudo?—perguntouaSra.

Rymer.

ParkerPynefezquesimcomacabeça.

—Subornadapelosenhor,suponho!Ouenganadacomuma

porçãodementiras!

—ASra.Gardnerconfiaemmim—dissePyne.—Jásalvei

umavezoseufilhoúnicodeumapenacriminal.

Alguma coisa em suas maneiras silenciou a Sra. Rymer e

mudouasuaconduta—Eamarcadenascença?—perguntou

ela.

Pyne sorriu— Já deve estar desaparecendo. Mais uns seis

mesesedesaparececompletamente.

Page 127: Agatha christie o detetive parker pyne

—Eentãooquesignificatodaessabobagem?Fazendopouco

demim, me prendendo aqui como uma empregada. .. eu, com

todo aquele dinheiro no banco! Mas acho que nem preciso

perguntar.Osenhordeve estar se servindodele,não,meucaro

amigo?Éistoquequerdizer...

— É verdade — disse Parker Pyne — que eu obtive da

senhora, enquanto estava sob a influência de drogas, uma

procuração, e que durante a sua... ahn... ausência, assumi o

controledosseusassuntos financeiros.Mas lhegaranto,minha

senhora,queaforaaquelasmil libras iniciais,nenhumdinheiro

seuveiopararnomeubolso.Parafalaraverdade,devidoavários

investimentos criteriosos, a sua situação financeira melhorou

bastante—sorriuparaela.

—Então,porque...—começouaSra.Rymer.

—Vou lhe fazerumapergunta,Sra.Rymer—disseParker

Pyne. — A senhora é uma mulher honesta. Sei que vai me

responderhonestamente.Voulheperguntarseestáfeliz.

—Feliz!Boapergunta!Roubetodoodinheirodeumamulher

epergunteseelaestáfeliz!Émuitoengraçadaessa.

— A senhora ainda está zangada — disse ele. — É muito

natural. Mas esqueça os meus crimes por um momento, Sra.

Rymer. Quando a senhora apareceu no meu escritório, há

exatamente um ano, era umamulher infeliz. Vai me dizer que

aindaéinfeliz?Sefor,peçodesculpaseasenhoraestálivrepara

tomartodasasprovidênciasquequisercontramim.Ealémdisso

lhe devolvo asmil libras queme pagou. Vamos, Sra. Rymer, a

senhoraaindaéumamulherinfeliz?

Page 128: Agatha christie o detetive parker pyne

Ela olhou para Parker Pyne, mas seus olhos se abaixaram

quandofaloufinalmente.

—Não—disseela.—Nãosouinfeliz—umtomdesurpresa

na voz.— Agora o senhorme pegou. Reconheço isso. Desde a

morte de Abner que eu não estava bem.Eu... eu voume casar

com um homem que trabalha aqui — Joe Welsh. Nossos

proclamas vão correr no domingo que vem, isto é,iam correr

domingoquevem.

—Masagora,éclaro—dissePyne,—tudoédiferente.

O rosto da Sra. Rymer se inflamou. Ela deu um passo à

frente—Oquequerdizer...diferente?Osenhorachaquetodoo

dinheirodomundo fariademimumagrandedama?Nãoquero

ser uma grande dama, não, obrigada; um bando de gente

desocupada, é o que elas são. Joeme entende e eu o entendo.

Gostamos um do outro e vamos ser felizes. E o senhor, Sr.

Abelhudo, dê o fora daqui e não semeta no que não é da sua

conta!

Parker Pyne tirouumpapel do bolso e entregou a ela—A

procuração—disse.—Rasgo?Suponhoqueagoravaiassumiro

controledasuaprópriafortuna.

Estampou-se uma expressão estranha no rosto da Sra.

Rymer.Elaempurrouopapeldevolta.

— Leve-o de volta. Eu lhe disse coisas desagradáveis.. . e

algumas delas o senhor mereceu. É um sujeito sabidão, mas

apesardetudoeuconfionosenhor.Ponhasetecentaslibrasaqui

no banco — isso dá para comprarmos uma fazenda em que

estamosdeolho.Orestododinheiro...bem,podedeixarparaos

Page 129: Agatha christie o detetive parker pyne

hospitais.

—Asenhoranãoquerdizerquevaidoartodaasuafortuna

aoshospitais?

— Foi exatamente o que eu quis dizer. Joe é um amor de

criatura,maséfraco.Dê-lhedinheiroeoarruinará.Conseguique

eledeixassedebeberevoumantê-loassim.GraçasaDeus,seio

que estou fazendo. Não vou deixar o dinheiro se interpor entre

mimeafelicidade.

— A senhora é uma mulher extraordinária — disse Pyne

lentamente.—Sóumamulheremmilfariaoqueestáfazendo.

— Então só umamulher emmil tem juízo— disse a Sra.

Rymer.

—Tiroomeuchapéuparaasenhora—disseParkerPyne,e

haviaalgodeestranhoemsuavoz.Ergueuochapéusolenemente

eafastou-se.

—EfiquesabendoquenãopodecontarnuncaaoJoe,hein?

—aSra.Rymergritouenquantoeleiaembora.

Ela ficou ali de pé, com o sol do crepúsculo por trás, um

enorme repolho verde azulado entre as mãos, a cabeça jogada

para trás e os ombros firmes. Uma figura grandiosa demulher

camponesa,desenhadacontraosolqueseescondia.

Page 130: Agatha christie o detetive parker pyne

7

VocêTemTudooqueQuer?

PARICIMadame—umamulheralta,comumcasacodevison,

seguiu o carregador sobrecarregado através da plataforma da

GaredeLyon.

Elausavaumchapéudetricômarromquelhecobriaumdos

olhoseumaorelha.Ooutroladorevelavaumperfilencantadore

pequenos cachos dourados que se enrolavam em torno de uma

orelha perfeita. Era tipicamente americana e muito atraente, e

mais de umhomem se voltara, ao vê-la passar pelos vagões do

tremparado.

Enormesplacas estavampenduradas emganchosdos lados

dosvagões:Paris—Atenas.Paris—Bucarest.Paris—Istambul.

Neste último o carregador parou bruscamente. Soltou a

correia que sustentava as malas e estas escorregaram

pesadamenteparaochão—Voici,Madame.

O condutor dowagon-lit estava de pé ao lado dos degraus.

Avançou, desejando um"Bonsoir,Madame"comumavivacidade

devidatalvezàriquezaeàelegânciadocasacodevison.

A mulher entregou-lhe o bilhete de papel vulgar do carro-

leito.

—NúmeroSeis—disse,—poraqui.

Ele pulou lèpidamente para dentro do trem e a mulher o

Page 131: Agatha christie o detetive parker pyne

seguiu. Enquanto se apressava em acompanhá-lo 'elo corredor,

ela quase esbarrou num cavalheiro corpulento que saía do

compartimento pegado ao seu. Olhou e relance para um rosto

largoeafáveldeolhosbondosos.

—Voici,Madame.

Ocondutorlhemostrouacabina.Abriuajanelaechamouo

carregador. Um empregado subalterno pegou a bagagem e a

colocounasprateleiras.Amulhersentou-se.

A seu lado, deixou uma pequena frasqueira vermelha e a

bolsa.Ovagãoestavaquente,masnãolheocorreuaidéiadetirar

ocasaco.Olhavadajanelaparao ladodeforacomolhosvagos.

Pessoas passavam correndo de um lado para. o outro da

plataforma. Havia vendedores de jornais, de travesseiros, de

frutas,de chocolates,deáguasminerais.Elesanunciavamseus

pregõesparaela,masseusolhospassavamporelessemvê-los.A

GaredeLyonnãoestavaàsuavista.Emseurostohaviatristezae

ansiedade.

—SeMadamepudermedaropassaporte...

Aspalavrasnãolhechamaramaatenção.Ocondutor,depéà

porta,repetiu-as.ElsieJeffrieslevantou-secomumsobressalto.

—Perdão?

—Seupassaporte,Madame.

Ela abriu a bolsa, tirou o passaporte e o entregou ao

condutor.

—Nãoprecisasepreocupar,Madame,eucuidodetudo—fez

Page 132: Agatha christie o detetive parker pyne

umapausacurta,significativa.—IreicomMadameatéIstambul.

Elsie tirou da bolsa uma nota de cinqüenta francos e

entregou a ele. Aceitou-a de uma maneira muito comercial e

perguntou quando ela queria que seu leito fosse preparado e

quandojantaria.

Resolvido isto,saiu,equaseemseguidaohomemdocarro-

restaurante apareceu no corredor batendo frenèticamente uma

sinetaeberrando:—Premierservice!Premierservice!

Elsie levantou-se, livrou-se do pesado casaco de peles, deu

umaolhadeladerelanceemseuespelhinhoe,pegandoabolsae

afrasqueiradasjóias,saiuparaocorredor.Deraapenasalguns

passos quando o homem do restaurante voltou correndo. Para

evitá-lo, Elsie recuou até a porta da cabina ao lado, que agora

estavavazia.

Enquanto o homem passava, seu olhar caiu por acaso na

etiquetadamalaqueestavacolocadanobanco.

Eraumavalisereforçadadecourodeporco,bastanteusada.

Na etiqueta estavam as seguintes palavras:J. Parker Pyne,

passageiroparaIstambul.Aprópriavalisetraziaasiniciais:P.P.

Uma expressão de curiosidade apareceu no rosto da jovem.

Elahesitouummomentono corredor, edepois, voltandoà sua

própria cabina, apanhou um exemplar doTimes que deixara

sobreamesinhacomoutroslivroserevistas.

Correu os olhos pela primeira página,mas pelo visto o que

procuravanãoestavaali.Comuma ligeira rugana testa, ela se

dirigiuparaocarro-restaurante.

Page 133: Agatha christie o detetive parker pyne

Oserventeindicou-lheumacadeiranumapequenamesaque

jáestavaocupadaporoutrapessoa—ohomemnoqualelaquase

esbarraranocorredor.Naverdade,eraodonodavalisedecouro

deporco.

Elsie olhou para ele, sem querer dar a impressão de estar

olhando. Ele parecia muito delicado, muito bondoso e, de um

modo impossível de explicar, tremendamente reconfortante.

Comportava-sedeumamaneirabritanicamentereservada,efoisó

depoisdasfrutasestaremàmesaqueelefalou.

— Eles mantêm esses lugares horrivelmente abafados —

disse.

— Eu sei — disse Elsie. — Talvez se nós abríssemos uma

janela...

Elesorriupesaroso—Impossível!Aforanósdois,todomundo

iriaprotestar.

Ela respondeu com outro sorriso. Nenhum dos dois disse

maisnada.

Trouxeramocaféeaconta,indecifrávelcomosempre.Depois

de colocar algumas notas sobre ela, Elsie armou-se

repentinamentedecoragem—Desculpe—murmurouela.—Vio

seunomenavalise...ParkerPyne.Osenhoré...osenhorépor

acaso...?

Elahesitou,eeleseapressouemajudá-la.

— Acho que sim. Isto é— ele repetiu o anúncio que Elsie

notaramaisdeumaveznoTimeseprocurara inutilmentehoje:

Page 134: Agatha christie o detetive parker pyne

—Vocêéfeliz?Senãofor,consulteoSr.ParkerPyne.Sim,sou

eumesmo.

—Ah,sim—disseElsie—Quecoisaextraordinária!

Ele balançou negativamente a cabeça — Não é não.

Extraordinária do seu ponto de vista, não do meu — sorriu

reconfortantementeeinclinou-separaafrente.Amaiorpartedos

passageirosjádeixaraocarro-restaurante—Entãoasenhoranão

éfeliz?—perguntouele.

—Eu...—começouElsieeparou.

— Se não, não teria dito "Que coisa extraordinária", —

adiantouele.

Elsie ficou em silêncio por um minuto. Ela se sentia

estranhamente tranqüilizada com a simples presença de Parker

Pyne—Sim—admitiuporfim.—Mesinto...infeliz.Pelomenos;

estoupreocupada.

Elefezquesimcomacabeça,compreensivo.

—Veja o senhor— continuou ela,— aconteceu uma coisa

muito curiosa... e eu não tenho a mínima idéia de como

interpretá-la.

—Quetalsemecontasse?—sugeriuPyne.

Elsiepensounoanúncio.ElaeEdwardtinhamcomentadoe

ridováriasvezes.Nuncapensaraqueela...talveznãodevesse...Se

o Sr. Parker Pyne fosse um charlatão... mas ele parecia tão

simpático!

Page 135: Agatha christie o detetive parker pyne

Elsie tomou uma decisão. Qualquer coisa, contanto que

tirasseaquilodacabeça.

— Vou lhe contar. Vou para Constantinopla para me

encontrar com meu marido. Ele tem negócios no Oriente e

precisou ir lá este ano.Viajouháduas semanas.Disse que era

precisoumcerto tempopara conseguir acomodaçõesparamim.

Fiqueimuito excitada só de pensar na viagem. Sabe, eu nunca

tinha viajado para o exterior. Faz seis meses que estamos na

Inglaterra.

—Asenhoraeseumaridosãoamericanos?

—Somos.

—Suponhoquenãoestejamcasadoshámuitotempo?

—Háumanoemeio.

—Sãofelizes?

—Ah,somos!Edwardéumanjo—elahesitou.—Éle tem

muitacoisaboa.Sóqueéumpouquinho...comodirei?Austero.

Tem.umaporçãodeantepassadospuritanosetudoomais.Mas

eleéumamor—acrescentouapressadamente.

Parker Pyne olhou-a pensativo por um ou dois minutos e

disse:—Continue.

— Foi uma semana depois que Edward viajou. Eu estava

escrevendo uma carta no escritório dele e reparei que o mata-

borrão era novo e limpo, apenas com umas poucas linhas

escritas.Tinhaacabadodelerumahistóriadedetetiveemquea

pistaprincipalestavanomata-borrão,eaí,paramedivertir,euo

Page 136: Agatha christie o detetive parker pyne

coloqueiemfrenteaumespelho.Eraapenasparamedivertir,Sr.

Pyne...nãoestavaespionandoEdwardoucoisaparecida.Quero

dizer,eleétãobonzinhoqueninguémnemsonhariacomcoisas

dessetipo.

—Sei,sei,compreendo.

—Estavamuitofácildeler.Primeirotinhaapalavra"esposa",

depois "Simplon Express" e, mais abaixo, "um pouco antes de

Venezaéomomentomaispropício"—elaparou.

—Curioso—disseoSr.Pyne.—Muitocuriosomesmo.Eraa

letradeseumarido?

—Era, sim.Maseu jáquebrei a cabeça enãopossoatinar

comascircunstânciasemquemeumaridoescreveriaumacarta

comestaspalavras.

—UmpoucoantesdeVenezaéomomentomaispropício—

repetiuPyne.—Muitocuriosomesmo.

ASra.Jeffriesinclinou-separaelecomumaesperançaqueo

lisonjeou—Oquedevofazer?—perguntouelacomsimplicidade.

—Temo—disseParkerPyne—queprecisemosesperaraté

umpoucoantesdeVeneza.

Tirouumfolhetodobolso—Eisohoráriodonossotrem.Ele

chegaráaVenezaàsduasevinteesetedatardedeamanhã.

Elesseentreolharam.

—Podedeixarcomigo—disseParkerPyne.

Page 137: Agatha christie o detetive parker pyne

Eramduasecinco.OSimplonExpressestavaatrasadoonze

minutos.PassaraporMestrehámaisoumenosquinzeminutos.

Parker Pyne estava sentado ao ladodaSra. Jeffries em sua

cabina. Até ali a viagem tinha sido agradável e rotineira. Mas

agora, se fosse acontecer alguma coisa, tinha chegado o

momento.ParkerPyneeElsieestavamsentadosfrenteàfrente.O

coração dela batia apressado e seus olhos procuravam os dele

numaespéciedeangustiosoapelodeconforto.

— Fique completamente calma — disse ele. — Você está a

salvo.Estouaqui.

Derepente,umgritonocorredor.

—Olhem!Olhem!Otremestápegandofogo!

ComumsaltoElsieeParkerPyneestavamnocorredor.Uma

mulher agitada, de aparência eslava, apontava dramaticamente

comodedo.Deumdoscompartimentosdianteirosafumaçasaía

aosborbotões.ParkerPyneeElsiecorrerampelocorredor.Outros

sejuntaramaeles.Ocompartimentoemquestãoestavacheiode

fumaça. Os que chegaram na frente recuaram tossindo, O

condutorapareceu.

— A cabina está vazia! — gritou ele. — Não se alarmem,

messieursetdames.Lefeuvaisercontrolado.

— Surgiu uma dúzia de perguntas e respostas agitadas. O

tremcorriapelapontequeligaVenezaaocontinente.

DerepenteParkerPynevirou-se,forçousuapassagematravés

dopequenoaglomeradodepessoas e correupelo corredor até a

Page 138: Agatha christie o detetive parker pyne

cabina de Elsie. A senhora de rosto eslavo estava sentada lá,

procurandotomarfôlegopelajanelaaberta.

—Desculpe,Madame—disseParkerPyne,masestanãoéa

suacabina.

— Eu sei, eu sei — disse a senhora eslava.Pardon. Foi o

choque,aemoção...meucoração.

Elasedeixourecostarnoassentoemostrouajanelaaberta.

Tomourespiraçãoemlargoshaustos.

Parker Pyne ficou de pé na porta. Sua voz era paternal e

confortadora—Nãoprecisatermedo—disseele.—Nemporum

minutoacheiqueoincêndiofossesério.

—Não?Ah,quealívio!Jáqueestoumesentindomelhor—

começoualevantar-se;—vouvoltarparaaminhacabina.

— Ainda não — a mão de Parker Pyne a empurrou

gentilmente de volta. — Peço-lhe que espere um momento,

Madame.

—Monsieur,istoéumultraje!

—Madame,asenhoravaificar.

Avozdeleera fria.Amulhersentou-sequietaolhandopara

ele.Elsiejuntou-seaeles.

—Parece que foi umabombade fumaça—disse ela quase

semfôlego.—Algumabrincadeiraridículadealguém.Ocondutor

estáfurioso.Estáperguntandoatodomundo...—interrompeu-se

aoverasegundaocupantedacabina.

Page 139: Agatha christie o detetive parker pyne

—Sra.Jeffries—disseParkerPyne,—oqueéqueasenhora

levaemsuafrasqueiravermelha?

—Minhasjóias.

—Talvezasenhorapossamefazerofavordeverseestátudo

emordem.

Houveumatorrentedepalavrasdapartedasenhoraeslava.

Ela começou a imprecar em francês, da melhor maneira que

pudessevingarseussentimentos.

NestemeiotempoElsieapanharaacaixadasjóias.

—Oh!—gritouela.—Estáaberta!

—...etjeporteraiplainteàlaCompagniedesWagons-Lits—

terminouasenhoraeslava.

— Elas desapareceram! — gritou Elsie. — Tudo! Minha

pulseiradediamantes.Eocolarquepapaimedeu.Eosanéisde

rubiedeesmeraldas.Eunsbrochesencantadoresdebrilhantes.

GraçasaDeuseuestavausandoaspérolas.Oh!Sr.Pyne,oque

podemosfazer?

—Seforchamarocondutor—disseParkerPyne,—eume

encarregodenãodeixarestasenhorasairatéelechegar.

—Scélérat!Monstre!— esganiçava-se a senhora eslava. Ela

continuoucominsultosmaiores.OtremchegouaVeneza.

Os acontecimentos da meia hora seguinte podem ser

resumidos. Parker Pyne tratou com diferentes funcionários em

diferenteslínguas--efoiderrotado.Asenhorasuspeitaconsentiu

Page 140: Agatha christie o detetive parker pyne

emser revistada—e saiude lá semnenhumamancha emseu

caráter.Asjóiasnãoestavamcomela.

EntreVenezaeTrieste,ParkerPyneeElsiediscutiramocaso.

—Quandofoiquevocêviuasjóiaspelaúltimavez?

—Hoje"demanhã.Guardeiunsbrincosdesafiraqueestava

usandoontemeapanheiumparsimplesdepérolas.

—Etodasasjóiasestavamlá?

— Bom, não vasculhei a caixa, naturalmente. Mas me

pareciam em ordem, como sempre. Talvez faltasse um anel, ou

qualquercoisaassim,masnadaalémdisso.

ParkerPyne fezquesimcomacabeça—Agora,quando foi

queocondutorarrumousuacabinahojedemanhã?

—Eu estava com a caixa nasmãos... no carro-restaurante.

Sempre a levo comigo. Nunca a deixo na cabina, a não ser

quandosaímoscorrendoagora.

— Desse modo — disse Parker Pyne, — esta inocente

ofendida,MadameSubayska—oucomoquerqueelasechame—

devetersidoaladra.Masquediabofezelacomasjóias?Elasó

ficouláumminutooudois...otempojustodeabriracaixacom

umaduplicatadachaveetirarascoisas...sim,masedaí?

—Poderiaterdadoparaoutrapessoa?

— Dificilmente. Eu já estava voltando pelo corredor. Se

alguémtivessesaídodedentrodocompartimento,euteriavisto.

Page 141: Agatha christie o detetive parker pyne

—Talvezelatenhajogadopelajanelaparaalguém.

— Excelente sugestão; apenas, como aconteceu, nós

estávamos passando exatamente em cima do mar naquele

momento.Estávamossobreaponte.

—Entãoeladeveterescondidoasjóiasemalgumlugaraqui

dacabina.

—Vamosprocurá-las!

Com uma energia de americana, Elsie começou a procurar

portodososcantos.ParkerPyneparticipoudabuscademaneira

um tanto ou quanto ausente. Ele se desculpou por, não tentar

continuar.

— Estou pensando em passar um telegrama muito

importanteemTrieste—explicouele.

Elsie recebeu a explicação com frieza. Parker Pyne caíra

profundamenteemseuconceito.

— Sinto muito ter-lhe aborrecido, Sra. Jeffries — disse ele

humildemente.

—Bem,osenhornãofoimuitofeliz—respondeuela.

—Mas,minhacarasenhora,ébomlembrarqueeunãosou

um detetive. Roubo e crime não são absolutamente a minha

especialidade.Minhaáreaéocoraçãohumano.

—Bem,euestavaumpoucoinfelizquandoentreinessetrem

—disseElsie,—masnãoeranada,emcomparaçãocomoestou

agora! É de chorar.Minha pulseira linda, linda... e o anel que

Page 142: Agatha christie o detetive parker pyne

Edwardmedeunodiadonoivado.

— Mas a senhora certamente está com as jóias seguradas

contraroubo?—perguntouParkerPyne.

— Será que estou? Não sei. Acho que sim. Mas é o valor

estimativo,Sr.Pyne.

Otremdiminuiudevelocidade.OSr.ParkerPyneespioupela

janela—Trieste—disseele.—Precisopassaromeutelegrama.

—Edward!—orostodeElsiese iluminouquandoelaviuo

marido correndo para encontrá-la na plataforma da estação em

Istambul.Nesteinstantenemmesmoaperdadasjóiaspreocupou

asuamente.Elaesqueceuaspalavrasestranhasquedescobrira

nomata-borrão.Esqueceutudo,anãoserofatodequeháquinze

diasnãoviaomarido,eque,apesardesóbrioeaustero,eleera

mesmoumapessoamuitoatraente.

Estavamquase deixando a estação quandoElsie sentiuum

tapinhaamistosonoombro,virou-seeviuParkerPyne.Seurosto

bonachãoestavairradiandobondade.

—Sra.Jeffries—disseele,—asenhorapodese encontrar

comigonoHotelTokatliandentrodemeiahora?Achoquevouter

boasnotíciasparaasenhora.

Elsie olhou insegura para Edward. Então ela fez a

apresentação:—Esteémeumarido...ahn...Sr.ParkerPyne.

—Achoqueasuasenhoralhetelegrafoudizendoqueasjóias

delaforamroubadas—disseParkerPyne.—Estoufazendooque

Page 143: Agatha christie o detetive parker pyne

posso para reavê-las. Acho que vou ter boas notícias dentro de

meiahora.

ElsieolhouinterrogativamenteparaEdward.Esterespondeu

depressa: — É melhor você ir, querida. O Tokatlian, o senhor

disse, Sr. Pyne? Muito bem, vou fazer tudo para ela chegar a

tempo.

Exatamentemeiahoradepois,Elsieentravanasaladeestar

particulardeParkerPyne.Eleselevantoupararecebê-la.

—Asenhoraficoumuitodesapontadacomigo,Sra.Jeffries—

disse ele.—Não, não tente negar.Bem, eununca pretendi ser

ummágico,masfaçooqueposso.Dêumaolhadaaquidentro.

Eleempurrousobreamesaumapequenae resistentecaixa

depapelão.Elsieabriu-a.Anéis,broches,pulseiras,colar—tudo

lá.

— Sr. Pyne, que coisa maravilhosa! Que maravilha! Parker

Pyne sorriumodestamente—Fico satisfeito denão ter falhado,

minhacarajovem.

— Sr. Pyne, o senhor me faz sentir tão mesquinha! Desde

Trieste que eu tenho sido tão desagradável com o senhor. E

agora...isto!Mascomofoiqueasconseguiu?Quando?Onde?

Parker Pyne balançou a cabeça pensativamente — É uma

históriacomprida—disseele.—Umdiaasenhoravaiouvi-la.Na

verdade,muitobreveasenhoravaiouvi-la.

—Porquenãopossosaberagora?

Page 144: Agatha christie o detetive parker pyne

—Tenhocertasrazões—disseParkerPyne.

EElsietevedeiremboracomsuacuriosidadeinsatisfeita.

Quando ela saiu, Parker Pyne pegou seu chapéu e sua

bengala e desceu para as ruas de Pera. Caminhou sorrindo

consigomesmo,echegoufinalmenteaumpequenocafé,deserto

naquelemomento,quedominavaoGoldenHorn.Dooutrolado,

asmesquitasdeIstambulalçavamseusesguiosminaretesparao

céudocrepúsculo.Eraumabeleza.Pynesentou-seepediudois

cafés,quevieramforteseadocicados.Malcomeçouatomaroseu

quandochegouumhomemesesentounacadeiradoladooposto.

EraEdwardJeffries.

—Jápedicaféparavocê—disseParkerPyne,mostrando-lhe

apequenaxícara.

Edwardempurrouocaféparaumlado.Debruçou-sesobrea

mesa—Comofoiquedescobriu?—perguntou.

ParkerPynebebeuoseucafésonhadoramente—Suamulher

jálhecontousobreadescobertadomata-borrão?Não?Oh,mas

elavailhecontar;eladeveter-seesquecidonomomento.

EcontouahistóriadadescobertadeElsie.

—Muitobem;istosecoadunaperfeitamentecomoincidente

queaconteceu justamenteumpoucoantesdeVeneza. Poruma

razãoouporoutravocêestavaplanejandoo roubodas jóiasde

suamulher.Masporqueafrase"umpoucoantesdeVenezaéo

momentomais propício"? Não parecia ter sentido. Por que você

nãodeixouparaoseu—agente—aescolhadomelhorlugaredo

Page 145: Agatha christie o detetive parker pyne

momento?

— E então, de repente, percebi o sentido.As jóias de sua

mulher tinham sido roubadas antes de você deixar Londres e

tinhamsidosubstituídaspor falsasduplicatas.Masestasolução

nãoosatisfizera.Vocêéumhomemconsciencioso,cheiodebrios.

Tinhaopavordequealgumempregadoouqualqueroutrapessoa

inocente fosse acusada. Era preciso que ocorresse um roubo...

numdeterminadolocaledeumamaneiratalquenãolevantasse

suspeitas de ninguém de seu conhecimento ou das pessoas de

suacasa.

—Suacúmplicefoimunidacomumachavedacaixadejóias

e de uma bomba de fumaça. No momento exato ela daria o

alarme,correriaparaacabinadesuamulher,abririaacaixade

jóiasejogavaasfalsasduplicatasnomar.Sesuspeitassemdelae

arevistassem,nadapoderiaserprovadocontraela,umavezque

asjóiasnãoestavamemseupoder.

—Eassim,osignificadodolocalescolhidotorna-seaparente.

Se as jóias fossem meramente jogadas ao lado dos trilhos,

poderiamserencontradas.Daíaimportânciadoúnicomomento

emqueotrempassavasobreomar.

—Neste"meiotempo,vocêfezosseuscontatosparaavenda

dasjóiasaqui.Tinhasimplesmentedeentregaraspedrasquando

oroubo já tivessesidopublicamenteconhecido.Meu telegrama,

entretanto, o alcançou a tempo. Você obedeceu às minhas

instruçõesedepositouacaixanoTokatlianparaesperaraminha

chegada,sabendoquedestaformaeucumpriameutratodenão

entregaroassuntonasmãosdapolícia.Vocêobedeceutambém

àsinstruçõesdeseencontraraquicomigo.

Page 146: Agatha christie o detetive parker pyne

Edward Jeffries olhou suplicante para Parker Pyne. Ele era

um homem atraente, louro e alto, com um queixo bem feito e

olhosmuito redondos.—Como fazer com queme entenda?—

disse sem esperanças. — Para o senhor eu devo parecer um

ladrãovulgar.

—Absolutamente—disseParkerPyne.—Pelocontrário,eu

diria que você é dolorosamente honesto. Estou acostumado a

classificar as pessoas. Você, meu caro, cai naturalmente na

categoriadasvítimas.Agora,mecontetodaasuahistória.

—Possolhecontarnumasópalavra...chantagem.

—Sim?

—Osenhorviuminhamulher;deveterpercebidoquetipode

criaturapurae inocenteelaé,semsaberouimaginaroqueéa

maldade.

—Sim,sim.

—Elatemideaismaravilhososepuros.Seelaviesseasaber

dequalquercoisaqueeujáfiz,medeixaria.

—Imagino.Masnãoéessaaquestão.Oquefoiquevocêfez

mesmo, meu jovem amigo? Presumo que seja algum caso com

mulheres.

EdwardJeffriesfezquesimcomacabeça.

—Depoisdeseucasamento...ouantes?

—Antes...antes!

Page 147: Agatha christie o detetive parker pyne

—Bem,bem,oqueaconteceu?

—Nada, absolutamentenada.Esta é a partemais cruel da

história.FoinumhotelnasíndiasOcidentais.Haviaumamulher

muitoatraente...umatalSra.Rossiter...hospedadalá.Omarido

eraumhomemviolento;tinhaosmaisselvagensacessosderaiva.

Uma noite ele a ameaçou com o revólver. Ela escapou dele e

correuparaomeuquarto.Estavaquaseloucadeterror.Ela...ela

mepediuparadeixá-laficaraliatédemanhã.Eu...oqueéque

eupodiafazer?

ParkerPyneolhouparaorapazeorapazoencaroudevolta

comumaretidãoconscientedecaráter.ParkerPynesuspirou—

Emoutraspalavras,parafalarmosclaramente,osenhorbancouo

trouxa,Sr.Jeffries.

—Realmente...

—Sim, sim.Umgolpemuito antigo.Mas às vezes dá certo

comrapazesdogêneroD.Quixote.Suponhoquequandoo seu

casamentofoianunciadoelesapertaramocerco?

—Sim,recebiumacarta.Seeunãolhesenviasseumacerta

somaemdinheiro,meu futurosogro ficariasabendode tudo.A

maneira pela qual eu... alienara o amor desta jovem por seu

marido; como ela fora vista entrandonomeu quarto.Omarido

daria entrada comumpedidodedivórcio.Realmente,Sr. Pyne,

me pareceu muito torpe — enxugou a testa de uma maneira

atormentada.

—Sei,sei.Eentãovocêpagou.Edetemposemtempos,eles

lheapertamoutravez.

Page 148: Agatha christie o detetive parker pyne

—É.Destavezfoiaúltimagota.Eujánãotinhamaiscomo

arranjardinheiro.Penseinesseplano—apanhouaxícaradecafé

frio, olhou-a distraído e bebeu todo.O que vou fazer agora?—

perguntoupateticamente.—Oquevoufazer,Sr.Pyne?

—Deixe-meorientá-lo—disseParkerPynecom firmeza.—

Eudouumjeitonosseuscarrascos.Quantoàsuamulher,você

vaidiretoaelaevai lhecontar todaaverdade...oupelomenos

partedela.Oúnicopontoquevocêvaidesviardaverdadeseráa

respeitodosfatosdasÍndiasOcidentais.Vocêprecisaescondero

pontoemqueserviu...bem,emquevocêbancouotrouxa,como

eujáfalei.

—Mas...

— Meu caro Sr. Jeffries, o senhor não compreende as

mulheres..Seumamulhertiverdeescolherentreumtrouxaeum

DonJuan, ela escolherá oDonJuan, sempre. Suamulher, Sr.

Jeffries,éumamoçaencantadora,inocenteeorgulhosa,eaúnica

maneira de ela se sentir satisfeita da vida é acreditar que

regenerouum,farrista.

EdwardJeffriesestavaolhandoparaeledebocaaberta.

— Foi isso mesmo que eu quis dizer — continuou Parker

Pyne.—Nopresentemomentosuamulherestáapaixonadapor

você,maseu jápercebivestígiosdequenãovai ficarpormuito

temposecontinuaralheapresentarumafiguradetantabondade

eretidão...quaseumsinônimodemonotonia.

Edwardestremeceu.

—Vávê-la,menino—disseoSr.ParkerPynegentilmente.—

Page 149: Agatha christie o detetive parker pyne

Confesse tudo, isto é, tudo o que você puder imaginar. Então

explique-lhe que a partir do instante em que a encontrou você

abriumãodetodaasuavida.Chegouatéaroubarparaquenada

disso chegasse aos ouvidos dela. Ela vai perdoá-lo

entusiàsticamente!

—Masquandonãohánadaparaperdoar...

—O que é a verdade?— disse Parker Pyne.— Emminha

experiência,égeralmenteelaqueentornaocaldo!Êumaxioma

fundamental da vida de casado: vocêprecisa mentir para uma

mulher.Elas gostamdisso! Vá e seja perdoado,menino.E viva

felizparatodoosempre.Soucapazdeadivinharquesuamulher

vaisempreficardeolhoemvocêtodavezqueumamulherbonita

seaproximar...algunshomensseaborreceriam,maseugaranto

quevocênãovaiseimportar.

—Nãopretendoolharparanenhumaoutramulheralémde

Elsie—disseoSr.Jeffriescomsimplicidade.

108

—Esplêndido,meurapaz—disseParkerPyne—Masseeu

fosse você, nunca deixaria que ela soubesse disso. Mulher

nenhumagostadesesentirmuitoseguradesi.

EdwardJeffriesselevantou.Osenhoracharealmente...?

—Eusei—disseParkerPyne,comveemência.

Page 150: Agatha christie o detetive parker pyne

8

OPortãodeBagdad

QUATROGRANDESPORTÕEStemaCidadedeDamasco..."

ParkerPynerepetiuosversosdeFleckeremvozbaixa:

"O Portal do Destino, o Portão do Deserto, a Caverna das

Desgraças,aFortalezadoTerror,

EusouoPortaldeBagdad,aportadeentradadeDiarbekir."

Estava em Damasco, e, espichando a cabeça para fora do

Hotel Oriental, viu um dos enormes ônibus Pullmans, de seis

rodas,queialevá-loatéBagdad,commaisonzepessoas,nodia

seguinte,atravésdodeserto.

"Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não

passesporaquicantando.

Escutaram

Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde, ainda

assim,algochilreiacomoumpássaro?

Page 151: Agatha christie o detetive parker pyne

Passaste por aqui, ó Caravana, Caravana da Perdição,

CaravanadaMorte!"

Quecontraste,comosdiasdehoje.AntigamenteoPortãode

BagdaderaoPortaldaMorte.Seiscentosecinqüentaquilômetros

de deserto para atravessar em caravanas. Longos e cansativos

meses de viagem. Agora, estesmonstros ubíquos alimentados a

gasolinafaziamaviagememtrintaeseishoras.

—Oqueestavadizendo,Sr.ParkerPyne?

Era a voz muito viva da Srta. Netta Pryce, a mais jovem e

encantadoradetodoogrupodeturistas.Apesardeembaraçada

poruma tia intoleranteque tinhaumasombradebarbaeuma

sede de conhecimentos bíblicos, Netta conseguia divertir-se de

várias maneiras frívolas, que possivelmente a idosa Srta. Pryce

nãoaprovaria.

ParkerPynerepetiuosversosdeFleckerparaela.

—Quecoisaemocionante!—disseNetta.

Três homens com uniforme da Força Aérea estavam perto

deles,eum,admiradordeNetta,seaproximou

—Essaviagemaindaéemocionante—disseele.—Mesmo

hojeemdia,osbandidosàsvezesatacam.Tambémsepodeficar

perdido, de vez em quando acontece. E somos nós que vamos

procurar.Umcamaradaficoucincodiasperdidonodeserto.Por

sorte tinha bastante água. E também tem os solavancos. Que

trancos!Umavezumsujeitomorreu.Éapuraverdade!Eleestava

Page 152: Agatha christie o detetive parker pyne

dormindo,bateucomacabeçanotetodocarroemorreu.

— Num ônibus desse tipo, Sr. O'Rourke? — perguntou a

velhaSrta.Pryce.

—Não...nãofoinumdesses—admitiuorapaz.

— Precisamos fazer alguma coisa — exclamou Netta. A tia

pegouumguiadeturistas.

Netta ficou impaciente— Ela quer ir num lugar onde São

Paulodesceudeumajanela—murmurouela.

—Eeuquequeriatantoverosbazares!

O'Rourke respondeu rapidamente — Venha comigo.

ComeçaremosporumaruachamadaStraight......

Osdoisseafastaram.

Parker Pyne virouparaumhomem tranqüilo que estava ao

lado, chamado Hensley, e que trabalhava no departamento de

serviçospúblicosdeBagdad.

—Damascoéumpoucodecepcionanteparaquemavêpela

primeira vez — disse ele se desculpando. — Civilizada demais.

Bondesecasasmodernaselojas.

Hensleyfezquesimcomacabeça.Eraumhomemdepoucas

palavras.

—Nãotem...aqueleencantomisterioso...queagentepensa

quevaiencontrar—acrescentou.

Apareceuumoutrohomem,umrapazlouro,comumavelha

Page 153: Agatha christie o detetive parker pyne

gravatadeEton.Tinhaumaexpressãoamável,masligeiramente

estúpida e que nomomento parecia preocupada. Ele e Hensley

trabalhavamnomesmodepartamento.

—Olá,Smethurst—disseoamigo.—Perdeualgumacoisa?

O Capitão Smethurst balançou a cabeça, dizendo que não.

Eraumjovemderaciocínioumtantoouquantolento.

—Estavasódandoumaolhadaporaí—disseelevagamente.

Finalmente pareceu acordar. — Acho que vou fazer uma farra

hojeànoite.Quetal?

Osdoisamigos foramembora juntos.ParkerPynecomprou

umjornallocal,impressoemfrancês.

Não o achoumuito interessante. O noticiário local não lhe

dizianadaepareciaquenadadeimportanteestavaacontecendo

em qualquer outro lugar do mundo. Achou diversas notícias

procedentesdeLondres.

Aprimeirasereferiaaassuntosfinanceiros.Asegundafalava

dosupostodestinodeumtalSamuelLong,umfinancistafalido.

Seusdesfalquessubiamagoraàsomadetrêsmilhões,ecorriam

boatosdequeelejáestavanaAméricadoSul.

—Nadamauparaumhomemdepoucomaisdetrintaanos

—dissePyne.

—Como?

Parkervirouedeudecaracomumitalianoquehaviaviajado

nomesmobarcoqueele,deBrindisiaBeirute.

Page 154: Agatha christie o detetive parker pyne

Parker Pyne explicou a sua observação. O italiano, Signor

Poli,balançouacabeçadiversasvezesemsinaldeaprovação.

— É um grande criminoso, este homem. Até na Itália nós

sofremos.Ele inspiravaconfiançaemtodoomundo.Dizemque

eraumhomemdemuitoboafamília.

—Bem,eleesteveemEtoneemOxford—disseParkerPyne

comcautela.

—Osenhorachaqueelevaiserapanhado?

—Dependedoqueeletemdedianteira.Aindapodeestarna

Inglaterra.Podeestar...emqualquerlugar.

—Aquiconosco?—oitalianoriu.

—Possivelmente—oSr. ParkerPynepermaneceu sério.—

Comoéqueosenhorpodeafirmarqueeunãosouele?

OSignorPolilançou-lheumolharespantado.Eseurostocor

deolivaseabriunumsorrisodecompreensão.

—Ora,essaémuitoboa!Muitoboamesmo!Masosenhor...

Seu olhar se desviou do rosto para o estômago de Parker

Pyne.

Esteinterpretouoolharcorretamente.

—Nãosedevejulgarninguémpelasaparências—disseele.

—Umpouquinhode... comodirei?debarriga... searranja com

facilidadeefazumefeitomuitobom.

Acrescentou sonhadoramente: — Existem as tinturas de

Page 155: Agatha christie o detetive parker pyne

cabelo,éclaro;pode-setambémmudaracordapeleeatétrocar

denacionalidade.

Poli saiu meio em dúvida. Ele nunca sabia até onde os

inglesessãosérios.

Parker Pyne se divertiu naquela noite indo a um cinema.

DepoisfoiaoPalácioNoturnodasDiversões.Nãolhepareceuum

palácio, nem que era muito alegre. Várias senhoras dançavam

comevidentefaltadejeito.Osaplausoseramlânguidos.

De repente, Parker Pyne viu Smethurst. O rapaz estava

sentado sozinho em uma das mesas. Tinha o rosto

congestionado, e Parker Pyne imaginou que ele já tinha bebido

maisdoquedevia.Atravessouosalãoefoiparapertodele.

—Éabominávelcomoestasmoçastratamagente—disseo

CapitãoSmethurst.—Pagueiduasbebidasparaela...três..uma

porção de bebidas. E ai ela foi embora rindo com um outro

sujeito. Uma d-desgraça! Parker Pyne ficou com pena( dele.

Sugeriuumcafé.

— Já mandei pediraraq — disse Smethurst. — É uma

maravilha.Osenhorvaiprovar.

Parker Pyne conhecia algumas das propriedades doaraq.

Procurouagircomomaiortato.Smethurst,entretanto,balançou

acabeça.

—Estou numa complicação dos diabos— disse.— Preciso

meanimarumpouco.Nãoseioqueosenhorfariaemmeulugar.

Nãogostodedeixarumamigo emapuros, sabe comoé?Quero

dizer...mas...oqueéqueagentepodefazer?

Page 156: Agatha christie o detetive parker pyne

Ele se pôs a estudar Parker Pyne como se o visse pela

primeiravez.

— Quem é o senhor? — perguntou com o laconismo

resultantedasuabebedeira.—Oqueéqueosenhorfaz?

—Meunegóciosãoasconfidenciasdosoutros—disseParker

Pynegentilmente.

Smethurstolhouparaelecomgrandeinteresse.

—Oquê?...osenhortambém?

ParkerPynetirouumrecortedejornaldacarteira.Colocou-o

emcimadamesa, em frente aSmethurst:Você é infeliz? Se for

consulteoSr.ParkerPyne.

Smethurst conseguiu focalizar os olhos depois de algum

esforço—Querdizerque... aspessoaschegame lhe contamas

coisas?

—Elesconfiamemmim...sim.

—Ummontedemulheresimbecis,suponho.

—Umaporçãodemulheres—admitiuParkerPyne.—Mas

homens também. Que tal você, meu jovem amigo? Não estava

agoramesmoquerendoumconselho?

—Caleessaboca—disseoCapitãoSmethurst.—Nãoéda

contadeninguém...sódaminha.Ondeestáessemalditoaraq?\

ParkerPynebalançoutristementeacabeça.

AbandonouoCapitãoSmethurstcomoseele fosseummau

Page 157: Agatha christie o detetive parker pyne

negócio.

ApartidaparaBagdad foiàssetehorasdamanhã.Eraum

grupodedozepessoas.ParkerPyneeoSignorPoli,avelhaSrta.

Pryceesuasobrinha,ostrêsoficiaisdaAeronáutica,Smethurste

HensleyeumasenhoraArmêniaeseufilho,chamadoPentemian.

A viagem começou semnenhumacontecimento especial. As

árvoresfrutíferasdeDamascoforamlogodeixadaspartrás.Océu

estava nublado e o jovem motorista olhou-o duvidoso uma ou

duasvezes."TrocoualgumasimpressõescomHensley

—TemchovidomuitolápelosladosdeRutba.Tomaraquea

gentenãoseatole.

Fizeram uma parada aomeio-dia e as caixas quadradas de

papelão com o almoço foram distribuídas. Os dois motoristas

prepararam um chá que foi servido em copos de papel.

Recomeçaramaviagematravésdainterminávelplanície.

Parker Pyne pensava nas lentíssimas caravanas e nas

semanasdeviagem.

Exatamente ao pôr do sol, chegaram à fortaleza deserta de

Rutba. Os enormes portões estavam destrancados e o ônibus

entrounopátiointernodoforte.

—Queemocionante!—disseNetta.

Depoisdeumbanhoelaestavaansiosaparadarumpasseio.

O Tenente 0'Rourke e Parker Pyne se ofereceram como

acompanhantes. Quando iam sair, o agente de viagem se

aproximouepediuquenãoseafastassemmuitoporquepoderiam

Page 158: Agatha christie o detetive parker pyne

ter dificuldades para achar o caminho de volta quando

escurecesse.

—Nóssóvamosdarumavoltinha—prometeuO'Rourke.

Na verdade, andar a pé por ali não eramuito interessante,

porcausadamonotoniadapaisagem.

DerepenteParkerPyneseabaixoueapanhoualgumacoisa

nochão.

— O que foi? — perguntou Netta com curiosidade. Ele

mostrou — Uma pedra pré-histórica, Srta. Pryce... parece uma

furadeira.

—Seráqueeles...sematavamcomisso?

— Não... devia ter um uso mais pacífico. Mas acho que se

quisessemelespodiammatarcomisso.Éavontadedematarque

conta...oinstrumentonãofazdiferença.Sempreseachaalguma

coisaquandosequer.

Jáestavaescurecendoeelesvoltaramparaoforte.

Depois deum jantar demuitas iguarias, escolhidas entre a

grande variedade de latarias, sentaram-se para fumar. À meia-

noiteocarrodeviaseguirviagem.

O motorista parecia inquieto — Há umas passagens muito

ruinspertodaqui—disseele.—Talvezagenteatole.

Subiramtodosnoônibuseseajeitaramemseus lugares.A

Srta. Pryce estava aborrecida por não ter conseguido alcançar

umadesuasvalises.

Page 159: Agatha christie o detetive parker pyne

—Gostariamuitodepegarmeuschinelos—disseela.

—Émaisprovávelqueprecisedesuasbotasdeborracha—

disseSmethurst.—Sevaiaconteceroqueeuimagino,nósvamos

atolarnummardelama.

—Nãotenhonemumpardemeiasparatrocar—disseNetta.

—Nãotemimportância.Vocênãovaisairdeseulugar.Sóo

pessoaldosexoforteéquevaiterdesairparaempurrar.

— Sempre trago um par de meias sobressalentes — disse

Hensley, batendonobolsodo seu sobretudo.—A gentenunca

sabe...

Asluzesseapagaram.Oenormeônibusdesapareceunomeio

danoite.

A viagem não era tão ruim assim. Não sacolejavam tanto

comonumcarropequeno,masmesmoassim,devezemquando

haviaumsolavancofeio.

ParkerPyneestavasentadoemumdoslugaresdafrente.Do

outroladodapassagemestavaasenhoraarmêniatodaenrolada

emsuasmantasexales.Ofilhoestavaatrásdela.AtrásdePyne

estavamasduassenhoritasPryce.Poli,Smethurst,Hensleyeos

trêsoficiaisdaRAFestavamláatrás.

Oônibuscorriaatravésdanoiteescura.ParkerPyneachou

muitodifícildormir.Suaposiçãolhedavacãibras.

Ospésdasenhoraarmêniaestavamesticadoseelaosenfiara

emseusdomínios.Pelomenoselapareciaàvontade.

Page 160: Agatha christie o detetive parker pyne

Todos os outros pareciam dormir. Parker Pyne começava a

sentirumasonolência,quandoumbaqueviolentooatiroucontra

otetodocarro.Eleouviuumprotestomeioadormecidovindoda

traseira:—Devagar!Querquebrarnossospescoços?

Então a sonolência voltou. Alguns minutos depois, com o

desconfortodopescoçoquecaíaparaolado,ParkerPynedormiu.

Acordou de repente. O carro parará. Alguns dos homens

estavamsaindo.Hensleyfalourapidamente:

—Atolamos.

Ansioso para ver o que estava se passando, Parker Pyne

desceudesajeitadoparaolamaçal.Jánãoestavamaischovendo.

Havia na verdade uma lua e, graças à sua luz, os motoristas

podiam ser vistos trabalhando frenèticamente com macacos e

pedras, esforçando-se para levantar as rodas. A maioria dos

homensestavaajudando.Das janelasdocarroastrêsmulheres

olhavamparafora,aSrta.PryceeNettacominteresseeasenhora

armêniacomumtédiomaldisfarçado.

A uma ordem do motorista, todos os passageiros homens

empurraramobedientemente.

— Onde é que está aquele sujeito armênio? — perguntou

O'Rourke.—Eletemquevirajudartambém..

—OCapitãoSmethursttambém—observouPoli.—Elenão

estáaqui.

—Aquelesem-vergonhaaindaestádormindo.Olhemsópara

ele.

Page 161: Agatha christie o detetive parker pyne

Na verdade, Smethurst ainda estava sentado em sua

poltrona, a cabeça pendida para a frente e o corpo inteiro

encurvado.

—Vouacordá-lo—disseO'Rourke.

Entrou pela porta. Voltou um minuto depois. Sua voz

mudara.

— Imaginem!Acho que ele está doente... ou coisa parecida.

Ondeestáomédico?

O Comandante Loftus, médico da Força Aérea, era um

homem de ar tranqüilo, com os cabelos um pouco grisalhos.

Destacou-sedogrupoaoladodaroda.

—Oqueéquehácomele?—perguntou.

—Eu...nãosei.

O médico entrou no carro. O'Rourke e Parker Pyne o

seguiram.Ele se debruçou sobre a figura encurvada.Umúnico

toqueeumarápidaolhadaforamsuficientes.

—Estámorto—dissecalmamente.

Morto? Mas como? — as perguntas surgiram. — Ah! que

coisahorrível!—gritouNetta.

Loftusolhouemtorno,irritado.

—Deveterbatidocomacabeçanoteto—disse.—Houveum

solavancomuitoforte.

—Temcertezadequefoiissoqueomatou?—Nãohámais

Page 162: Agatha christie o detetive parker pyne

nada?

— Não posso dizer antes de fazer um exame completo —

respondeuLoftus.Olhouemtornocomarinquieto.Asmulheres

estavamseaproximando.Oshomensláforatambémcomeçavam

aentrar.

ParkerPyne faloucomomotorista,umrapazmoço,de tipo

atlético.Carregoucadaumadasmulheres,levando-asatravésda

lama para um local seco.Madame Pentemian e Netta ele levou

comfacilidade,mascambaleousobopesodarobustaSrta.Pryce.

Ointeriordoônibusfoievacuadoparaqueomédicopudesse

fazeroseuexame.

Oshomensvoltaramaosseusesforçosparaergueroveículo.

Neste momento o sol apareceu no horizonte. O dia ia ser

maravilhoso. A lama estava secando com rapidez, mas o carro

ainda estava atolado. Já tinham quebrado três macacos, e até

agoraosesforçostinhamsidoinúteis.Osmotoristascomeçarama

prepararocafédamanhã,abrindo,latasdesalsichasefervendoa

águaparaochá.

Apequenadistância,oComandanteLoftusestavafazendoo

seudiagnóstico.

—Nãohánenhumamarcaouferidanele.Comojádisse,ele

deveterbatidocomacabeçacontraoteto.

— O senhor tem certeza de que ele teve morte natural?—

perguntouParkerPyne.

Alguma coisa em sua voz fez com que o médico o olhasse

Page 163: Agatha christie o detetive parker pyne

rapidamente.

—Sóháumaoutrapossibilidade.

—Sim?

—Bem,quealguémtenhagolpeadosuanucacomalgoassim

como um saco de areia... — sua voz parecia a de quem pede

desculpas.

— Não parecemuito plausível— disseWilliamson, o outro

oficialdaForçaAérea,umrapazdearangelical.

—Istoé,ninguémpodiafazerissosemservisto.

—Esenósestivéssemosdormindo?—perguntouomédico.

— O camarada não podia ter certeza — falou o outro. —

Levantar-seefazertudoissoteriaacordadoalgumdenós.

—Aúnicamaneira—dissePoli—seriaalguémqueestivesse

sentadoatrásdele.Podiaescolheromomentoenemprecisavase

levantardapoltrona.

—QuemestavasentadoatrásdoCapitãoSmethurst?

—perguntouomédico.

0'Rourkerespondeuprontamente:

—Hensley,senhor...comoosenhorvê,nãoadiantounada.

HensleyeraomelhoramigodeSmethurst.

Houve um silêncio. Então a voz de Parker Pyne falou com

muitacerteza:

Page 164: Agatha christie o detetive parker pyne

— Acho — disse ele — que o Tenente Williamson tem

qualquercoisaanosdizer.

—Eu,senhor?Eu...bem...

—Faledeumavez,Williamson—disse0'Rourke.

—Nãoénada...ora,nãoénada.

—Falelogo!

—Foisóumpedacinhodeconversaqueouvi—emRutba...

nopátio.Eu tinha voltadopara o carroparaprocurar aminha

cigarreira.Estavaprocurandopor todososcantos.Doissujeitos

estavamdo lado de fora conversando.Umdeles era Smethurst.

Eleestavadizendo..•

Fezumapausa.

—Ande,homem,faledeumavez!

— Alguma coisa de não deixar um companheiro em má

situação.Pareciamuitoaflito.Entãoeledisse: "Nãovousoltara

língua até a gente chegar a Bagdad—mas nem umminuto a

mais.Vocêtratedeescapardepressa".

—Eooutrohomem?

— Não sei quem era, senhor. Juro que não sei quem era.

Estava escuro e ele só disse uma ou duas palavras que eunão

pudeentender.

—QuemdevocêsconheciabemSmethurst?

— Acho que a palavracompanheiro só podia se referir a

Page 165: Agatha christie o detetive parker pyne

Hensley — disse O'Rourke lentamente. — Eu conhecia

Smethurst, mas ligeiramente. Williamson é novo aqui... e o

Comandante Loftus também. Acho que nenhum dos dois já o

conhecia.

Ambosconcordaram.

—Você,Poli?

—Eununcatinhavistoesterapazantesdeatravessarmoso

LíbanonomesmocarroemqueviemosdeBeirute.

—Eaquelearmênio?

—Elenãopodia ser o companheiro—disseO'Rourke com

decisão.

—Talvezeutenhaumapequenapeçaadicionaldeevidência

—disseParkerPyne.

Repetiu a conversa que tivera com Smethurst no café em

Damasco.

— Ele usou a frase "Não gosto de deixar um amigo em

apuros"—disseO'Rourke,pensativo.—Eestavapreocupado.

— Ninguém tem mais nada a acrescentar? — perguntou

ParkerPyne.

O médico pigarreou — Talvez não tenha nada a ver com

isso...—começouele.Foiinstadoacontinuar.

— Foi só o que ouvi Smethurst falar a Hensley: "Você não

podenegarquehouveumdesfalquenoseudepartamento."

Page 166: Agatha christie o detetive parker pyne

—Quandofoiisso?

— Logo depois que nós saímos de Damasco, ontem de

manhã. Pensei que ele estava falando só do trabalho. Não

imagineique...—parou.

—Meusamigos,istoémuitointeressante—disseoitaliano.

—Peçaporpeça,vocêscompõemasituação.

—Osenhordisseumsacodeareia—disseParkerPyne.—

Umhomempoderiafabricartalarma?

—Areia não falta—disse omédico secamente, apanhando

umpoucodeareianasmãosenquantofalava.

— Se o senhor puser um pouco dentro de uma meia ...—

começouO'Rourkeehesitou.

Todos se lembravamdas duas frases curtas deHensley, na

noite passada: "Sempre trago meias sobressalentes. A gente

nuncasabe."

Houveumsilêncio.EntãoParkerPynedisse calmamente—

ComandanteLoftus,achoqueopardemeiassobressalentedoSr.

Hensleyestánobolsodoseusobretudo,quenestemomentoestá

dentrodoônibus.

Todososolharesconvergiramparaafiguraquecaminhavade

um lado para outro, a distância. Hensley fora deixado em paz

desdeadescobertadomorto.Seudesejodesolidãofoirespeitado,

poistodomundosabiaqueeleeomortotinhamsidoamigos.

ParkerPynecontinuou:—Quer fazero favordebuscá-lase

trazê-lasatéaqui?

Page 167: Agatha christie o detetive parker pyne

Omédico hesitou—Não gosto da idéia de...—murmurou

ele.Olhoudenovoparaafiguraquecaminhavaaolonge.—Me

pareceumabaixeza...

— Faça o favor de buscá-las — disse Parker Pyne. — As

circunstâncias não são formais. Nós estamos ilhados aqui. E

precisamos saber a verdade. Se o senhor for buscar as meias,

achoquevamosdarmaisumpasso.

Loftusvoltou-seobediente.

ParkerPynepuxouoSignorPoliparaumlado.

—Achoqueeraosenhorqueestavanobancodoladooposto

aodoCapitãoSmethurst.

—Erasim.

—Alguémselevantouepassouporlá?

—Sóasenhorainglesa,aSrta.Pryce.Elafoiatéolavatório

natraseiradoônibus.

—Elaporacasotropeçou?

— Ela se desequilibrou um pouco com o movimento do

Ônibus,énatural.

—Elafoiaúnicapessoaqueosenhorviupassar?

—Foi.

Oitalianoolhoucomcuriosidadeparaeleedisse:

Page 168: Agatha christie o detetive parker pyne

— Estou imaginando quem é o senhor. Está comandando,

masnãoénenhumsoldado.

—Jávimuitacoisanavida—disseParkerPyne.

—Viajoumuito,foi?

— Não — disse Parker Pyne. — Fiquei sentado num

escritório.

Loftus voltou trazendoasmeias.ParkerPynepegou-as eas

examinou.Emumadelasaindahaviaumpoucodeareiaúmida.

ParkerPynesuspiroufundo.

—Agoraeusei—disse.

Todos os olhares se fixaram na figura que continuava a

caminharaolonge.

—Gostariadedarumaespiadanocorpo,sepuder—disse

ParkerPyne.

AcompanhouomédicoatéondejaziaocorpodeSmethurst,

cobertoporumalona.

Omédico levantou a cobertura—Nãohánada para ver—

disse.

Mas os olhes de Parker Pyne estavam fixos na gravata do

morto.

— Então Smethurst estudou em Eton — disse ele. Loftus

olhou-osurpreso.

Page 169: Agatha christie o detetive parker pyne

ParkerPynesurpreendeu-oaindamais.

— O que sabe o senhor sobre o jovem Williamson? —

perguntou.

— Nada. Só o conheci em Beirute. Vim do Egito. Mas por

quê?Certamentenãofoieleque...

— Bem; é pela sua evidência que nós vamos enforcar um

homem,nãoé?—disseParkerPyne jovialmente.—Precisamos

sercuidadosos.

Ele ainda parecia interessado na gravata e no colarinho do

morto.Perguntou:

—Estávendoisso?

Napartedetrásdocolarinhohaviaumapequenamanchade

sangue.

Olhoumaisdepertoparaopescoçodescoberto.

—Estehomemnãofoimortoporumapancadanacabeça—

dissebruscamente.—Elefoiapunhalado...nabasedocrânio.O

senhorpodeveraminúsculapicada.

—Eeunãotinhavisto!

— O senhor estava com uma idéia preconcebida — disse

ParkerPynedesculpando-o.—Umapancadanacabeça.Maldá

para se ver a ferida. Uma punhalada rápida com um pequeno

instrumentoagudo,eamortefoiinstantânea.Avítimanemteve

tempodegritar.

Page 170: Agatha christie o detetive parker pyne

—Osenhorquerdizerumestilete?—Achaque

Poli...?

— Italianos e estiletes estão sempre juntos na imaginação

popular.Umcarrochegando!

Surgiuumônibusdeturistas.

— Ótimo — disse O'Rourke juntando-se a eles. — As

senhoraspoderãoseguirnele.

—Eonossoassassino?—perguntouPyne.

—OsenhorquerdizerHensley...

— Não, não quero dizer Hensley — disse Parker Pyne. —

AcontecequeeuseiqueHensleyéinocente.

—Osenhor...mascomo?

—Bem,eletinhaareianasmeias.O'Rourkeolhouespantado

paraele.

—Eusei,meurapaz—disseParkerPynegentilmente,—que

não fazsentido,masé issomesmo.Smethurstnão foi feridona

cabeça;comoestávendo,elefoiapunhalado.

Fezumapausaecontinuou.

—Pensenaconversaqueeulhecontei...aconversaquetive

com ele no café. Você escolheu a frase que lhe parecia ter uma

significação. Mas foi a outra frase que me chamou a atenção.

Quandoeudisseaelequeouviaconfidenciasdosoutros,eleme

disse:"Oquê?—Osenhortambém?"Istonãolhediznada?Nãoé

Page 171: Agatha christie o detetive parker pyne

estranho? Eu não sabia que vocês chamavam deconfidencias

uma série de irregularidades no departamento. Ouvir

confidências me parece mais a descrição de alguém como o

foragidoSamuelLong,porexemplo.

Omédicoseespantou.O'Rourkedisse:—É...talvez...

—EudissedebrincadeiraquetalvezodesaparecidoSr.Long

estivessenonossogrupo.Suponhamosqueissosejaverdade?

—Oque...maséimpossível!

—Absolutamente.Oquevocêssabemsobreaspessoasalém

deseuspassaportesedoqueelasdizemdesimesmas?Sereieu

realmenteoSr.ParkerPyne?OSignorPoliémesmoumitaliano?

E o que dizer dá idosa Srta. Pryce, que até parece que anda

precisandofazerabarba?

—Masele...masSmethurst...seráqueeleconheciaLong?

— Smethurst era um antigo aluno de Eton. Long também

esteve em Eton. Smethurst talvez o conhecesse, mas não nos

disse nada. É possível que o tenha reconhecido entre nós. E

sendo assim, o que fazer? Ele tinha uma mente simples e se

preocupoucomoassunto.Decidiuporfimquenãodirianadaaté

chegarmosaBagdad.Masdepois,ninguémmaissegurariaasua

língua...

—OsenhorachaqueumdenóséLong?—disseO'Rourke

aindaespantado.

Eletomoufôlego.

Page 172: Agatha christie o detetive parker pyne

— Deve ser o italiano... só pode ser... Ou será que é o

armênio?

—Disfarçar-sedeumestrangeiroeconseguirumpassaporte

de outro país é na verdademuitomais difícil do que continuar

inglês—dissePyne.

—ASrta.Pryce?—gritouO'Rourkeincrédulo.

—Não—disseParkerPyne.—Éesteonossohomem!

Ele colocou uma mão quase amigável sobre o ombro do

homemqueestavaaseulado.Masnãohavianadaamigávelem

suavozeseusdedososeguraramcomosefossemgarras.

— Comandante Loftus ou Sr. Samuel Long, não importa

comoochamem!

—Masistoéimpossível!...Impossível!—gaguejouO'Rourke.

—LoftusestánaForçaAéreaháanos!

—Mas você nunca o tinha visto antes, não é? Ele era um

estranho para todos vocês. Não é o verdadeiro Loftus,

naturalmente.

Calmamente, o acusado falou:—Muito hábil de sua parte

adivinhar.Apropósito,comofoiquedescobriu?

— Sua declaração ridícula de que Smethurst fora morto

batendocomacabeça.O'Rourkelhedeuestaidéiaontemquando

nós estávamos conversando em Damasco. Você pensou... que

coisa simples! Era o únicomédico que estava conosco... tudo o

que dissesse seria aceito. Você tinha amaleta de Loftus. Tinha

seus instrumentos. Era simples escolher um estilete qualquer

Page 173: Agatha christie o detetive parker pyne

para seus propósitos. Inclinou-se para conversar com ele e

enquanto falava enfiou-lhe o pequeno punhal na nuca.

Continuouconversandomaisumoudoisminutos.Estavaescuro

noônibus.Quemiasuspeitar?

— Então houve a descoberta do corpo. Você deu o seu

diagnóstico.Masnãofoitãofácilassim.Pelomenosnãofoicomo

você imaginava. Surgiram dúvidas. Você resolveu cair numa

segunda linhade defesa.Williamson repetiu a conversa que ele

escutara. Todos pensaram que se tratava de Hensley e você

acrescentouumapequenahistóriainventadasobreodesfalqueno

departamento de Hensley. Foi então que eu fiz o teste final:

mencioneiaareiaeasmeias.Mandeivocêbuscarasmeiaspara

que ficássemossabendodaverdade.Mascom issoeunãoquis

dizer exatamenteoqueestavapensando.Eu já tinhaexaminado

as meias de Hensley. Não havia areia em nenhuma delas. Foi

você quem a pôs. O Sr. Samuel Long acendeu um cigarro. —

Desisto—disseele.—Minhasortemudou.Bem,foimuitobom

enquantodurou.Eles jáestavamnosmeuscalcanharesquando

chegueiaoEgito.Encontrei-mecomLoftus.Eleestavadepartida

paraBagdadenãoconhecianinguémaqui.Erabomdemaispara

queeuperdesseaoportunidade.Comprei-o.Elemecustouvinte

mil libras. O que era isso para mim? Então, por um azar do

destino me encontrei com Smethurst — a maior besta que já

conheci!EleerapraticamentemeuescravoemEton.Faziatudoo

que eu queria.Me adorava como se eu fosseumherói, naquele

tempo.Nãogostoudaidéiadaminhafuga.Fizoquepudepara

convencê-lo,eafinaleleconcordoueprometeuquenãocontaria

nadaaninguématéchegarmosaBagdad.Qualaoportunidade

queeuteriaentão?Nenhuma.Sóhaviaumamaneira—eliminá-

lo. Mas lhes garanto que não sou um assassino por natureza.

Page 174: Agatha christie o detetive parker pyne

Meustalentossãocompletamenteopostos.

Seu rosto mudou — contraiu-se. Ele vacilou e despencou

paraafrente.

O'Rourkedebruçou-sesobreele.

—Provavelmenteácidoprússico...nocigarro—disseParker

Pyne.—Ojogadorperdeuasuaúltimacartada.

Olhouemvolta—paraoimensodeserto.Osolbrilhavasobre

eles.OntemmesmoelestinhamdeixadoDamasco—peloPortão

deBagdad.

"Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não

passesporaquicantado.

Escutaram

Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde ainda

assim,algochilreiacomoumpássaro?"

Page 175: Agatha christie o detetive parker pyne

9

ACasadeShiraz

ERAM SEIS HORAS da manhã quando Parker Pyne deixou a

PérsiadepoisdeumaparadaemBagdad.

Oespaçoparaospassageirosnopequenoaviãoeralimitado,

e a largura dos assentos não podia acomodar com conforto o

corpanzildeParkerPyne.Comeleviajavamduasoutraspessoas

—umhomemcorpulentoecoradoqueParkerPynejulgaraserdo

tipo falador e umamulhermagra com lábios apertados e ar de

determinação.

Dequalquermodo, pensou Parker Pyne,nãome parece que

queirammeconsultarprofissionalmente.

Enãoqueriammesmo.Amulherzinhaeraumamissionária

norte-americana, sobrecarregada de trabalho e de felicidade e o

homem corado era empregado de uma companhia de petróleo.

Fizeram um resumo de suas vidas para o seu companheiro de

viagem,antesqueoaviãolevantassevôo.

— Sinto muito, mas sou um mero turista — disse Parker

Pynedesculpando-se.—EstouindoparaTeerã,IsfahaneShiraz.

Eapuramusicalidadedestesnomesoencantava tantoque

eleosrepetiu.Teerã.Isfahan.Shiraz.

Parker Pyne olhava para o campo embaixo deles. Era um

desertosemrelevos.Sentiuomistériodestasvastasedesabitadas

Page 176: Agatha christie o detetive parker pyne

regiões.

EmKermanshahoaparelhodesceuparaqueexaminassemos

passaportes e passassem pela alfândega. Uma das malas de

Parker Pyne foi aberta. Uma pequena caixa de papelão foi

examinada com excitação. Fizeram muitas perguntas. Como

Parker Pyne não falava nem compreendia o persa, o assunto

estavacomplicado.

Opilotodoaviãoseaproximou.Eraumrapazalemão,deboa

aparência, com olhos azuis profundos e um rosto queimado de

sol.—Precisadealgumacoisa?—perguntouelecomgentileza.

ParkerPyne,quesedesdobravanumapantomimarealistae

excelente, mas que, ao que parecia, não estava surtindo muito

êxito, virou-se aliviado para o outro.— É pó contra insetos—

disseele.—Seráquevocêpodeexplicarissoaeles?

Opilotooolhouintrigado—Porfavor?

ParkerPynerepetiuaexplicaçãoemalemão.Opilotofezuma

caretadecompreensãoetraduziuafraseparaopersa.Osgraves

etristonhosoficiaisficaramsatisfeitoscomaexplicação;osrostos

pesarosos relaxaram; sorriram. Um deles chegou até a rir.

Acharamcômicaaidéia.

Os três passageiros ocuparam seus lugares e o avião

continuou a viagem. Fizeramumadescida rápida emHamadan

paradeixaracorrespondência,masoaviãonemchegouaparar.

ParkerPynedeuumaespiadaparabaixo,tentandoversepodia

distinguirapedradeBehistun,oromânticolocaldeondeDario

descreveuaextensãodeseuimpérioedesuasconquistasemtrês

línguasdiferentes—babilônio,medoepersa.

Page 177: Agatha christie o detetive parker pyne

Eraumahorada tardequando eles chegaramaTeerã.Não

houvemaisnenhumaformalidadedepolícia.Opilotoalemãose

adiantara e estava de pé ao lado de Parker Pyne, sorrindo

enquanto ele terminavade responder aum longo interrogatório

queabsolutamentenãotinhacompreendido.

—Oquefoiqueeudisse?—perguntoueleaoalemão.

— Que o primeiro nome de seu pai é Turista, que a sua

profissãoéCharles,queonomedesolteiradesuamãeéBagdad

equeosenhorestávindodeHarriet.

—Seráquefazdiferença?

—Nãotemamínimaimportância.Respondaqualquercoisa;

ésóissoqueelesquerem.

Parker Pyne estava desapontado com Teerã. Achou-a

lastimàvelmentemoderna.Disseistonanoiteseguintequandose

encontrouporacasocomHerrSchlagal,opiloto,quandoestava

entrando no hotel. Num impulso, ele convidou o rapaz para

jantareoalemãoaceitou.

O garçom georgiano se aproximou e anotou os pedidos. A

comida chegou.Quando estavamna altura da torta, uma coisa

meiopegajosa,feitadechocolate,oalemãofalou:

—EntãoosenhorvaiparaShiraz?

—É,voudeavião.DepoisvoltoporIsfahan,vindoparaTeerã

pelaestrada.ÉvocêquevaipilotaroaviãoamanhãparaShiraz?

—Ach,não.VoltoparaBagdad.

Page 178: Agatha christie o detetive parker pyne

—Vocêjáestáaquihámuitotempo?

— Três anos. Nosso serviço foi estabelecido há três anos.

Nuncativemosumacidente—unberufen!—bateunamesa.

Ocaféfoiservidoemxícarasmuitogrossas.Osdoishomens

fumavam.

—Meusprimeirospassageirosforamduassenhoras—disse

oalemão,relembrando.—Duassenhorasinglesas.

—Foi?—disseParkerPyne.

—Umadelaseraumamoçamuitobemnascida,filhadeum

ministro... como eramesmo o nome?. .. Lady Esther Carr. Era

linda,muitolinda,maslouca.

—Louca?

— Completamente louca. Ainda mora lá em Shiraz, numa

enormecasadalocalidade.Sóusaroupasorientais.Nuncarecebe

oseuropeus.Vejaseévidaparaumasenhoragrã-finaviver?

—Háoutras—disseParkerPyne.—HaviaumaLadyHester

Stanhope...

—Essa é louca— cortou o outro bruscamente.— A gente

percebenosolhos.Eramcomoosolhosdocomandantedomeu

submarino,naguerra.Agoraeleestánumhospício.

ParkerPyne ficoupensativo.Ele se lembravamuitobemde

LordMicheldever,opaideLadyEstherCarr.

Trabalhara sob suas ordens quando ele era Secretário do

Page 179: Agatha christie o detetive parker pyne

Interior. Um homem enorme, louro, com risonhos olhos azuis.

ViraLadyMicheldeverumavez—umafamosabeldadeirlandesa

de cabelos negros e olhos azul-violeta. •Eram ambos elegantes,

pessoas normais, mas apesar de tudosabia-se que havia uma

loucuranafamília.Apareciadevezemquando,semprepulando

umageração.Eramuitoestranho,pensouele,queHerrSchlagal

destacasseofato...

—Eaoutrasenhora?—perguntouvagamente.

—Aoutrasenhora...morreu.

SuavozdealgumaformachamouaatençãodeParkerPyne,

queoolhouvivamente.

—Tenhocoração—disseHerrSchlagal.—Sintoascoisas.

Para mim ela era muito, muito linda, a outra moça. O senhor

sabecomoé,essascoisasacontecemcomagentesemquerer,de

repente.Elaeraumaflor...umaflor—suspirouprofundamente.

— Fui vê-las uma vez — na casa de Shiraz. Lady Esther me

convidou.Minhapequenaflor,minhaflor...elaestavacommedo

dealgumacoisa;eupercebi.QuandovolteideBagdad,soubeque

elatinhamorrido.Morta!

Fezumapausaeacrescentoupensativo—Épossível quea

outraatenhaassassinado.Elaestavalouca,possolhegarantir.

SuspirououtravezeParkerPynepediudoisBenedictines.

—Ocuraçau émuitobom—disse o garçomdaGeórgia, e

trouxe-lhesdoiscuraçaus.

Page 180: Agatha christie o detetive parker pyne

Logodepoisdomeio-diadodiaseguinte,ParkerPynetevea

sua primeira visão de Shiraz. Tinham voado sobre cadeias de

montanhas, entremeadas de vales estreitos e desolados, todos

áridos, ermos, estéreis. De repente, surgiu Shiraz — uma jóia

verde-esmeraldanocoraçãododeserto.

Parker Pyne gostou mais de Shiraz do que de Teerã. As

características primitivas do hotel não o apavoraram, nem

tampoucooaspectoigualmenteprimitivodasruas.

Estavanomeio deuma festa persa.OFestival deNanRuz

tinhacomeçadonanoiteanterior—operíododequinzediasem

queospersascelebramoseuAnoNovo.Passeouentreosbazares

desertosevagoupelasgrandesextensõesabertasdoladonorteda

cidade.Shirazinteiraestavaentregueàscelebrações.

Umdiaelefoiatéoladodeforadacidade.Estiveranotúmulo

deHafiz,opoeta,eaovoltardeláficoufascinadoporumacasa.

Eraumacasatodarecobertadeazulejosazuis,rosaseamarelos,

engastada nomeio de um jardimmuito verde, cheio de fontes,

rosaselaranjeiras.Pareciaumacasadesonho.

Naquelanoite, jantandocomoCônsul inglês,perguntoude

quemeraacasa.

— Fascinante, não é? Foi construída por um antigo e rico

GovernadordoLuristãoqueseaproveitoumuitodesuaposição

social. Hoje é de uma inglesa. Você deve ter ouvido falar dela.

Lady Esther Carr. Doida varrida. Vive completamente à nativa.

NãoquersaberdeninguémnemdenadaligadoàInglaterra.

—Éjovem?

Page 181: Agatha christie o detetive parker pyne

— Ainda é moça demais para bancar a louca desta forma.

Deveterunstrintaanos.

—Tinhaumaoutrainglesacomela,nãoé?Umamulherque

morreu?

—É,foiháunstrêsanos.Elamorreunodiaseguinteaoda

minhaposseaqui,imagine.Barham,meuantecessor,morreude

repente,lembra-se?

—Comofoiqueelamorreu?—perguntouParkerPynesem

prestaratenção.

—Caiudaquelavarandaoudobalcãodoprimeiroandar.Era

empregada ou dama de companhia de Lady Esther, não me

lembrobem.Dequalquermaneira, estava levandoabandejado

café damanhã e tropeçou no beiral.Muito triste, não se podia

fazernada;quebrouacabeçanaspedrasláembaixo.

—Comoeraonomedela?

—King,acho;oueraWills?Não,Willséamissionária.Era

umamoçamuitobonita.

—LadyEstherficoucontrariada?

—Ficou...não,nãosei.Elaémuitoexcêntrica;

nuncaentendiseussentimentos.Elaémuito...bem,éuma

criaturamuito altiva. Vê-se que é alguém importante, acho que

você entende o quequerodizer.Elameassustaumpouco com

suasmaneirasmandonaseseusolhosescurosefaiscantes.

Riucomosesedesculpasse.Olhoucomcuriosidadeparaseu

Page 182: Agatha christie o detetive parker pyne

companheiro.AparentementeParkerPyneestavaolhandoparao

espaçovazio.Ofósforoqueriscavaparaacenderocigarroestava

se consumindo, esquecido em sua mão. Foi queimando, até à

pontadosdedos,eeleolargoucomumaexclamaçãodedor.Foi

entãoquepercebeuaexpressãointrigadadoCônsulesorriu.

—Perdão—disse.

—Estavadistraído,nãoestava?

— Distraído até demais — disse Parker Pyne

enigmaticamente.

Falaramdeoutros,assuntos.

Naquela noite, à luz de uma pequena lamparina a óleo,

Parker Pyne escreveu uma carta. Hesitou muito sobre a sua

fórmula.Finalmenteelafoifeitademodomuitosimples:

O Sr.Parker Pyne apresenta seus cumprimentos a Lady

EstherCarr e lembra-lhe que estáhospedadonoHotel Farsnos

próximostrêsdias,casoelaqueiraconsultá-lo.

Colocouanexoumrecorte—ofamosoanúncio:

"Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne. Rua

Richmond,17."

— Isto deve ser suficiente—disse Parker Pyne ao se deitar

Page 183: Agatha christie o detetive parker pyne

meiosemjeito,emsuacamadesconfortável.—Deixever,quase

trêsanos;é,achoqueissobasta.

No dia seguinte, por volta das quatro horas da tarde, a

respostachegou.Foi trazidaporumcriadopersaquenãosabia

falaringlês.

Lady Esther Carr ficará satisfeita se o Sr. Parker Pyne for

visitá-laàsnovehorasdanoitedehoje.

ParkerPynesorriu.

Foi o mesmo criado que o recebeu naquela noite. Foi

conduzidoatravésdeumescuro jardimatéumaescadaexterna

quelevavaàpartedetrásdacasa.Delá,passouporumaporta

quedavaparaopátiocentral,umaespéciedebalcãotodoaberto

para o céu. Um enorme diva estava colocado junto à parede, e

sobreelesereclinavaumafiguraimpressionante.

Lady Esther estava vestida com roupas orientais e podia-se

imaginarqueumadasrazõesparaasuapreferênciaeraqueelas

destacavam aindamais o seu tipo suntuoso de beleza oriental.

Altiva,disseraoCônsulaseurespeito,eeramesmoaltivaqueela

parecia.Tinhaoqueixoerguidoeassobrancelhasarrogantes.

—ÉoSr.ParkerPyne?Sente-seali.

Suamãoapontouparaumamontoadodealmofadas.Emseu

terceiro dedo faiscava uma enorme esmeralda esculpida com o

brasão de sua família. Devia ser parte da herança e valer uma

Page 184: Agatha christie o detetive parker pyne

pequenafortuna,pensouParkerPyne.

Ele se abaixou obedientemente, se bem que comuma certa

dificuldade.Paraumhomemdeseuporte,nãoerafácilsentar-se

commuitadestrezanochão.

Apareceuumacriada como café. ParkerPyne recebeuuma

xícaraesaboreouolíquidoescuro.

Sua anfitrioa adquirira o hábito oriental da calma infinita.

Ela não se apressava em sua conversa. Também tomava o café

comosolhossemicerrados.Finalmentefalou:

—Entãoosenhorajudaaspessoasinfelizes—disse.—Pelo

menoséoquesustentaoseuanúncio.

—É.

— Por que o mandou para mim? É seu hábito... fazer

negóciosemsuasviagens?

Haviaqualquercoisadedecididamenteofensivoemsuavoz,

masParkerPyneignorou.Respondeusimplesmente.—Não.Para

mimasviagenssignificamfériascompletasdosmeusnegócios.

—Porqueentãoomandou?

— Porque tenho razões para acreditar que a senhora ... é

infeliz.

Houve um momento de silêncio. Ele estava muito curioso.

Como é que ela aceitaria isso? Ela ficou umminuto pensando

sobreisso.Depoissorriu.

Page 185: Agatha christie o detetive parker pyne

—Suponho que o senhor pensou que qualquer pessoa que

abandona este mundo, que vive como eu vivo, completamente

afastadadaminharaça,domeupaís,deveserumapessoamuito

infeliz! Tristezas, frustrações ... pensa que foi uma coisa desse

tipo que me obrigou a este exílio? Ora, como posso fazê-lo

compreender? Lá... na Inglaterra... eu era como um peixe fora

dágua.Aquisoueumesma.Souumaorientaldecoração.Adoroa

minhareclusão.Duvidoqueosenhorpossaentenderisso.Parao

senhor,devoparecer—hesitou—umalouca.

—Asenhoranãoélouca—disseParkerPyne.Haviaumtom

afirmativonasuavoz,umagrandesegurança.Elaoolhoucom

curiosidade.

— Mas é o que todos dizem que sou, suponho. Tolos! É

preciso gente de todos os tipos para se formar o mundo. Sou

absolutamentefeliz!

—E,noentanto,asenhoramechamou—disseParkerPyne.

—Devoadmitirquefiqueicuriosaparaconhecê-lo—hesitou.

— Além disso, não quero nunca mais voltar para lá... para a

Inglaterra...masdequalquerforma,àsvezesgostodesaberoque

estásepassandoporlá...

—Nomundoqueabandonou?

Elaconcordoucomafrasebalançandoacabeça.

Parker Pyne começou a falar. Sua voz era suave e

reconfortanteeselevantavadevezemquando,quandoenfatizava

umououtropontoimportante.

Page 186: Agatha christie o detetive parker pyne

Falou de Londres, dos mexericos sociais, de homens e

mulheres famosos, dos novos restaurantes e dos novos clubes

noturnos,das corridasde cavalos edos campeonatosde tiroao

alvoedosescândalosquesepassavamnascasasdecampo.Falou

deroupas,damodadeParis,daslojinhasemruasestreitasonde

se conseguiam pechinchas incríveis. Descreveu os teatros e os

cinemas,faloudosnovosfilmes,descreveuosedifíciosdosnovos

jardinssuburbanos,faloudebulbos,deplantasedejardinagem

e terminou com uma descrição da noite de Londres, com os

ônibuseaquelamultidãoapressadavoltandoparacasadepoisde

umdia de trabalho, e de suas casinhas que os esperavam e de

todaaestranhaeíntimaformadavidafamiliaringlesa.

Foi uma cena extraordinária, uma demonstração vasta e

insólita de conhecimentos e uma clara exposição dos

acontecimentos. A cabeça de Lady Esther estava curvada, a

arrogância de sua pose tinha desaparecido. Algumas vezes, as

lágrimasquasecaíam,eagoraqueeleterminara,elapôsdelado

todaasuapretensãoesoluçouabertamente.

ParkerPynenãodissenada.Ficoualisentado,observando-a.

Seurosto tinhaaquelaexpressãocalmaesatisfeitadequem fez

umaexperiênciaeconseguiuoresultadodesejado.

Finalmenteela levantouacabeça.—Muitobem—disse,—

estácontente?

—Agorasim...achoqueestou.

— Como é que eu podia suportar; como é que eu podia

suportarisso?Nuncamaisviverlá;nuncamaisver...ninguém!—

o choro veio violentamente. Ela se recompôs, enrubescendo.—

Page 187: Agatha christie o detetive parker pyne

Muito bem? — perguntou impetuosamente. — Não vai fazer o

comentárioóbvio?Nãovaidizeragora:"Setemtantavontadede

voltar,porquenãovolta?"

—Não—oSr.ParkerPynebalançouacabeça.-Nãoéassim

tãofácilparaasenhora.

Pelaprimeiravezumarmedrosoapareceuemseusolhos—

Osenhorsabeporquenãopossovoltar?

—Achoquesim.

— Está enganado — ela balançou a cabeça. — Não posso

voltarporummotivoqueosenhornuncaadivinharia.

— Não adivinho — disse Parker Pyne. — Observo... e

classifico.

Outra vez ela balançou a cabeça— O senhor não sabe de

nada,denada.

— Pelo que vejo tenho de convencê-la— disse Parker Pyne

com um ar simpático.— Quando veio para cá, Lady Esther, a

senhoraveiodeavião,suponho,pelanovalinhadeBagdad.

—Foi?

—Foitrazidaporumjovempiloto,HerrSchlagal,quetempos

depoisveiovisitá-la.

—Foi.

Umfoidiferente-umfoimaissuave.

— E a senhora tinha uma amiga, ou uma acompanhante,

Page 188: Agatha christie o detetive parker pyne

que...morreu—avozagoraeradeaço—fria,ofensiva.

—Minhaacompanhante.

—Onomedelaera...?

—MurielKing.

—Asenhoragostavadela?

—O que quer dizer com "gostava dela"?— fez uma pausa,

controlando-se.—Elaeraútilparamim.

Disse isso desdenhosamente, e Parker Pyne se lembrou do

que tinhadito oCônsul: "Vê-se que ela é importante, acho que

vocêentendeoquequerodizer".

—Ficoutristequandoelamorreu?

— Eu... naturalmente! Realmente, Sr. Pyne, é preciso

relembrartudoisso?—falounumtomzangadoecontinuousem

esperar resposta: — Foi muito gentil o senhor ter vindo. Mas

estouumpoucocansada.Semedisserquantolhedevo...?

Mas Parker Pyne não fez o menor movimento. Continuou

calmamentecomsuasperguntas,—Desdequeelamorreu,Herr

Schlagalnãovoltou.Suponhamosqueeleviesseaqui...asenhora

oreceberia?

—Claroquenão.

—Recusa-seterminantemente?

—Terminantemente.HerrSchlagalnãoseráadmitidoaqui.

Page 189: Agatha christie o detetive parker pyne

— Sim — disse Parker Pyne pensativo. — A senhora não

podiapensardeoutraforma.

Aarmaduradedefesadesuaarrogânciadiminuiuumpouco.

Disse,meioincerta:—Eu...nãoseiaondeosenhorquerchegar.

—Asenhorasabia,LadyEsther,queojovemSchlagalestava

apaixonadoporMurielKing?Eleéumrapazsentimental.Ainda

hojeprezamuitoasuamemória.

—Serámesmo?—suavozeraquaseummurmúrio.

—Comoeraela?

—Oquequerdizercomisso...comoeraela?Comoeupodia

saber?

—Asenhoradeveterolhadoparaelaalgumasvezes—disse

ParkerPynecalmamente.

—Ah,éisso.Eraumamoçamuitobonita.

—Maisoumenosdasuaidade?

— É — fez uma pausa e falou em seguida. — Por que o

senhorachaqueeste...queesteSchlagalgostavadela?

— Porque ele me disse. Sim, da maneira mais inequívoca.

Comojálhefalei,eleéumrapazsentimental.Ficousatisfeitode

poder confiar emmim. Ficoumuito triste ao saber damaneira

comoamoçamorreu.

LadyEsther ficoudepédeumpulo—Osenhorpensaque

euaassassinei?

Page 190: Agatha christie o detetive parker pyne

ParkerPynenãoficoudepédeumpulo.Elenãoerahomem

parafazeressascoisas.—Não,minhacaracriança—disseele.—

Nãopensoquevocêaassassinou,eporissoaconselho-aaparar

com esta representação o mais depressa possível, e voltar logo

paracasa.Quantomaiscedo,melhorparavocê.

—Oquequerdizercomesta...representação?

—Averdadeéquevocêperdeuocontroledeseusnervos.É,

perdeumesmo.Perdeucompletamenteocontrole. ..Pensouque

iaseracusadadeassassinarasuapatroa.

Amoçafezummovimentorápido.

ParkerPynecontinuou:—VocênãoéLadyEstherCarr.Eu

sabia disso antes de vir aqui,mas testei-a para ter certeza...—

seusorrisoapareceu,suaveebondoso.—Quandorepresenteia

minha peça ainda agora, eu a estava observando. Você reagia

semprecomo Muriel King, e não como Esther Carr. As lojas

barateiras,osnovosjardinssuburbanos,oscinemas,aspessoas

quevoltavamparacasadeônibusedetrem—vocêreagiuatudo

isso. Escândalos no campo, os novos clubes noturnos, os

falatóriosdeMayfair,ascorridasdecavalos—nadadissodisse

qualquercoisaparavocê.

Sua voz se tornou cada vez mais persuasiva e paternal —

Sente-se e conte tudo o que aconteceu. Você não matou Lady

Esther,maspensouquepodiaseracusadadisso.Contecomofoi

queaconteceu.

Ela tomou fôlego; deixou-se cair pesadamente sobre o diva

maisumavezecomeçouafalar.Aspalavraschegavamdepressa,

porvezesnumatropelo.

Page 191: Agatha christie o detetive parker pyne

—Deveriacomeçar...pelocomeço!...eu...eutinhamedodela.

Elaeralouca...nãoeradoidavarrida...sóumpouquinholouca.

Ela me trouxe para cá. Como uma tola, eu estava encantada;

acheiqueeratãoromântico.Pobretolinha!Era istoqueeuera,

uma pobre tola! Houve um caso com um motorista. Ela era

ninfomaníaca... absolutamente ninfomaníaca. Ele não queria

nadacomelaeelapercebeu;osamigosdelaficaramsabendoeela

foimotivoderisoparaeles.Rompeucomafamíliaeveioparacá.

— Era apenas uma atitude para livrá-la da vergonha ... a

solidãododeserto...etodasessascoisas.Elaiaficaralgumtempo

aquiedepoisvoltaria.Masfoificandocadavezmaisesquisita.E

entãoapareceuopiloto.Ela...elaseapaixonouporele.Eleveio

aquiparamevereelapensou...Bom,osenhorentende?Masele

deveterfaladoclaramentecomela.

— E aí, de repente, ela se virou contra mim. Foi horrível,

assustadora.Dissequenuncamaiseuvoltariaparacasa.Disse

queeuestavaemseupoder.Queeunãopassavadeumaescrava!

Queelatinhapoderdevidaedemortesobremim.

Parker Pyne concordava com a cabeça. Acompanhou o

desenvolvimento da situação. Lady Esther se aproximando do

limite da loucura, como já acontecera com outros membros da

família, eaquelamoçaassustada, ignorante, equenunca tinha

viajado,acreditandoemtudoqueeladizia.

—Masumdiaaconteceuumacoisaquemefezvoltaràrazão.

Enfrentei-a.Dissequeseessediachegasseeueramais fortedo

queela.Dissequeeua jogariasobreaspedras lá embaixo.Ela

ficouassustada,muitoassustadamesmo.Achoqueelapensava

Page 192: Agatha christie o detetive parker pyne

queeueraumvermedesprezível.Deiumpassoemsuadireção.

Nãoseioquefoiqueelapensouqueeuiafazer.Elarecuou;ela...

ela tropeçou no beirai! — Muriel King cobriu o rosto com as

mãos.

—Edepois?—ParkerPyneincitou-aacontinuar.

—Perdiacabeça.Penseique iamdizerqueeuaempurrara

doterraço.Seiqueninguémmeiaouvir.Penseiqueiammeatirar

numaprisãohorrorosadaqui—seulábiostremiam.ParkerPyne

viuclaramenteoterrorirracionalqueapossuíra.—Foientãoque

meocorreua idéia... se eume fizessepassarpor ela!Sabiaque

haviaumnovoCônsulinglêsquenuncatinhavistonenhumade

nósduas.Umadelasmorrera...

Acheiquepoderiacontrolaroscriados.Paraeles,nóséramos

duasinglesasloucas.Quandoumamorreu,aoutratomouoseu

lugar. Dei-lhes bons presentes em dinheiro e mandei que eles

chamassem o Cônsul inglês. Quando ele chegou, eu o recebi

comoLadyEsther.Estavacomoaneldelanomeudedo.Elefoi

muitosimpáticoearranjoutudo.Ninguémteveamenorsuspeita.

ParkerPynebalançouacabeça,pensativo.Oprestígiodeum

nome famoso, Lady Esther Carr podia ser doida varrida, mas

aindaeraLadyEstherCarr.

—Edepois—continuouMuriel,—mearrependideterfeito

aquilo. Vi que também tinha ficado louca. Estava condenada a

ficar aqui representando o meu papel. Não via como podia

escapar.Seeuconfessasseaverdadeagora,iapareceraindamais

culpadadoqueseativessemesmoassassinado.Oh!Sr.Pyne,o

queéqueeupossofazer?Oqueéqueeupossofazeragora?

Page 193: Agatha christie o detetive parker pyne

— Fazer? — Parker Pyne se pôs de pé com tanta rapidez

quanto permitia o seu corpo. — Minha cara criança, você vai

comigo até o Cônsul inglês, que é uma pessoamuito amável e

delicada. Haverá uma série de formalidades desagradáveis a

cumprir. Não lhe prometo que vá tudo se passar em brancas

nuvens,masvocênãovaiserenforcadaporassassinato.Porfalar

nisso,porquefoiqueabandejadocaféfoiencontradaaoladodo

corpo?

—Euajogueilá.Achei...acheiquepareceriamaisautêntico

sehouvesseumabandejaao ladodocorpo.Foi tolicedeminha

parte?

—Foiumtoquedegênio—disseParkerPyne.—Defato,foi

esse ponto que me fez pensar se você realmente não teria

assassinadomesmoLadyEsther...istoé,atéeuvê-la.Quandoa

vi,soubequevocêeracapazdequalquercoisanavida,menosde

mataralguém.

—Osenhorquerdizerqueeunãoteriacoragem?

— Seus reflexos não funcionariam — disse Parker Pyne

sorrindo.—Agora,vamosindo?Háumtrabalhodesagradávela

serfeito,maseucuidodetudo,edepois...vamosparacasaem

StreathamHill...éemStreathamHillquevocêmora,nãoé?É,eu

imaginavaqueera.Vi o seu rosto se contrairquando faleinum

determinadonúmerodeônibus.Vamos,minhacara?

MurielKingoseguiu—Elesnuncavãomeacreditar—disse

ela com nervosismo. — A família e os outros. Eles não vão

acreditarqueelaestavaagindodaquelamaneira.

—Pode deixar comigo—disse Parker Pyne.—Sei deuma

Page 194: Agatha christie o detetive parker pyne

porçãodecoisassobreafamíliadela,sabe?Vamosmenina,não

continueabancaracovarde.Lembre-sedequeháumrapazem

Teerãsuspirandoporvocê.Vouarranjarparaquevocêvoltepara

Bagdadnoaviãodele.

A moça sorriu e corou — Estou pronta — disse com

simplicidade.Aosairemdireçãoàporta,virou-separaele:—O

senhordissequeantesdemever já sabiaqueeunãoeraLady

EstherCarr.Comopodiatercerteza?

—Estatísticas—disseParkerPyne.

—Estatísticas?

—É.Osdois,LordeLadyMicheldever,tinhamolhosazuis.

Quando o Cônsul falou que a filha deles tinha olhosescuros e

faiscantes, percebi que havia algo errado. Pessoas de olhos

castanhospodemterumacriançadeolhosazuis,masocontrário

éimpossível.Umfatocientifico,possolhegarantir.

—Osenhorémaravilhoso!—disseMurielKing.

Page 195: Agatha christie o detetive parker pyne

10

UmaPérolaValiosa

O GRUPO DE TURISTAS teve um dia muito longo e cansativo.

TinhamsaídodemanhãcedodeAmman,comumatemperatura

de 37° à sombra e chegaram por fim, já ao escurecer, ao

acampamentosituadonocoraçãodagrotescaefantásticacidade

depedrasvermelhas—Petra.

Eramseteaotodo.OSr.CalebP.Blundell,umbemnutridoe

próspero magnata norte-americano. Seu secretário, um rapaz

moreno e bem apessoado, chamado Jim Hurst. Sir Donald

Marvel, M. P.1, um político inglês de aparência cansada. Dr.

Carver, um arqueólogo idoso conhecido mundialmente. Um

francêsgalante,CoronelDubosc.UmSr.ParkerPyne,quetalvez

nãodemonstrassecomtantaevidênciaqualeraasuaprofissão,

masqueexalavaumaatmosferabritânicadeseriedade.Eporfim,

aSra.CarolBlundell—linda,mimadaeextremamentesegurade

si,porseraúnicamulhernomeiodemeiadúziadehomens.

lMembrodoParlamento

Eles jantaram numa enorme tenda, depois de escolher as

tendasegrutasondeiriamdormir.FalaramdepolíticanoOriente

Próximo — o inglês, com cautela; o francês, com discrição; o

americano, de maneira insensata; o arqueólogo e o Sr. Parker

Pyne, de modo nenhum. Ambos pareciam preferir o papel de

ouvintes.IgualmenteofezJimHurst.

Page 196: Agatha christie o detetive parker pyne

Falaramdepoisdacidadequeacabavamdevisitar.

—Éromânticademaisparaserdescritaempalavras—disse

Carol. — Só de pensar que aqueles... como era mesmo que se

chamavam?...nabateus,vivendoaquihátantosanos,quaseque

antesdoiníciodostempos!

—Nãoétantoassim—disseParkerPynesuavemente.—Não

émesmo,Dr.Carver?

— Ah, é só uma questão de uns insignificantes dois mil

anos...esemalfeitorespodemserconsideradosromânticos,nesse

casoachoqueosnabateussãotambém.Eleseramumbandode

salteadores abastados, eu diria, que obrigavam os viajantes a

usaremas rotasdeles, fazendo comque todasas outras fossem

inseguras. Petra era uma espécie de depósito de seus lucros

ilícitos.

—Osenhorachaqueeleseramsósalteadores?—perguntou

Carol.—Apenasladrõescomuns?

— Ladrões é uma palavra pouco romântica, Srta. Blundell.

Um ladrão sugere um larápio insignificante. Salteador sugere

algumacoisamaior.

—E o que diremos deummoderno financista?—arriscou

ParkerPynecomumpiscardeolhos.

—Estaéparavocê,papai!—disseCarol.

—Umhomemqueganhadinheirobeneficiaahumanidade—

sentenciouoSr.Blundell.

—Ahumanidade—murmurouParkerPyne—étãoingrata.

Page 197: Agatha christie o detetive parker pyne

— O que é a honestidade? — perguntou o francês. — É

apenasumanuance,umaconvenção.Empaísesdiferentes, tem

significadosdiferentes.Umárabenão se envergonhade roubar.

Nãoseenvergonhadementir.Paraele,oquecontaédequemele

roubaeparaquemelemente..

—É...éesteopontodevistadeles—concordouCarver.

—OqueprovaasuperioridadedoOcidentesobreoOriente

—disseBlundell.—Quandoestaspobrescriaturasseeducarem.

SirDonaldentrouindolentementenaconversa—Aeducação

está toda errada, vocês sabem. Ensina às pessoas uma

quantidadedecoisasinúteis.Oqueeuquerodizeréquenãohá

nadaquealtereoquevocêé.

—Comoassim?

—Oqueeuquisdizeréque...umavezladrão,sempreladrão.

Duranteumminuto,fez-seumsilênciopesado.EntãoCarol

começou a falar fervorosamente sobre mosquitos e seu pai a

apoiou.

Sir Donald, um pouco intrigado, murmurou para seu

vizinho,ParkerPyne:—Parecequecometiumagafe,nãoacha?

—Écurioso—dissePyne.

Fossequalfosseoembaraçomomentâneocriado,umapessoa

nãosederacontadele.Oarqueólogosesentaracalado,osolhos

abstraídosesonhadores.Quandohouveumapausanaconversa,

elefalourepentinaebruscamente.

Page 198: Agatha christie o detetive parker pyne

—Vocêssabem—disse—concordocomisso...pelomenos,

do ponto de vista oposto. Um homem é fundamentalmente

honesto...ouentãonãoé.Dissoninguémescapa.

— O senhor não acredita que uma tentação súbita, por

exemplo,possatransformarumhomemhonestonumcriminoso?

—Impossível!—disseCarver.

Parker Pyne balançou a cabeça devagar — Eu não diria

impossível. O senhor sabe, há tantos fatores que devem ser

levadosemconta.Agotadágua,porexemplo.

— O que é que o senhor chama de a "gota dágua"? —

perguntouojovemHurst,falandopelaprimeiravez.Suavozera

profunda,muitoagradável.

—Océrebroestáajustadoparaagüentarumacertacarga.O

que precipita uma crise, o que transforma um homem honesto

numhomemdesonesto...podeserumacoisainsignificante.Épor

issoquemuitoscrimessãoabsurdos.Acausa,novevezesemdez,

éaquela insignificânciadesobrecarga,apalhaquedescadeirao

lombodocamelo.

—Épurapsicologiaoqueosenhorestáusando,meuamigo

—disseofrancês.

—Seumcriminosofosseumpsicólogo,quegrandecriminoso

ele seria! — por seu tom de voz, via-se que Parker Pyne tinha

gostadodaidéia.—Quandopensamosqueemcadadezpessoas

queencontramos,pelomenosnovepoderiamserinduzidasaagir

da maneira que quisermos, apenas pela aplicação do estímulo

correto.

Page 199: Agatha christie o detetive parker pyne

—Hum,expliqueisso!—disseCarol.

—Háoshomensarrogantes.Gritemaisaltodoqueeles...e

eles o obedecerão.Há os homens contraditórios. Intimide-os na

direção oposta à que você quer que eles sigam. Enfim, há os

impressionáveis,otipomaiscomumdetodos.Sãoaspessoasque

viram um automóvel porque ouviram uma buzina; quevêem o

carteiroporqueouviramumbarulhinhonacaixadocorreio;que

vêem uma faca num ferimento porque sedisse que alguém foi

apunhalado; ou queouviram uma pistola se alguém disser que

umhomemlevouumtiro.

—Achoqueninguémmeconvenceriadessascoisas—disse

Carolincrédula.

—Vocêéespertademaisparaisso,queridinha—disseopai.

—Éapuraverdadeoquedisse—falouofrancêsrefletindo.

—Aidéiapreconcebidaenganaosprópriossentidos.

Carol bocejou— Vou para aminha gruta. Estoumorta de

cansada. Abbas Effêndi disse que nós temos que sair cedo

amanhã.Ele vainos levar ao local dos sacrifícios... ou lá o que

seja.

—É onde sacrificavammoças jovens e bonitas— disse Sir

Donald.

—Tenhadó,esperoquenãomepeguem!Bem,boanoitepara

todos.Ah,deixeicairmeubrinco!

OCoronelDuboscoapanhoueentregouaela.

—Sãoverdadeiros?—perguntouSirDonaldderepente.Ele

Page 200: Agatha christie o detetive parker pyne

olhava de um jeito descortês para as duas enormes pérolas

solitáriasemsuasorelhas.

—Sãoverdadeiros,sim—disseCarol.

—Custaram-meoitentamildólares—disseopaidela com

prazer.—Eelaosaparafusatãopoucoqueelesvivemcaindoe

rolandopelasmesas.Quermearruinar,menina?

—Ora,papai,osenhornão ficariaarruinadose tivesseque

compraroutropar—disseCarolcommeiguice.

—Achoquenão—concordouopai.—Poderialhecomprar

trêsparesdebrincoseissonãofariadiferençanomeusaldono

banco—deuumaolhadaorgulhosaàsuavolta.

—Queótimoparaosenhor!—exclamouSirDonald.

—Bom, cavalheiros, acho que vou dormir também—disse

Blundell.—Boanoite.

OjovemHurstoseguiu.

Os outros quatro sorriram uns para os outros, como se

tivessemtidoomesmopensamento.

—Bem—faloudevagar,Sr.Donald—ébomsaberqueele

não sentiria falta desse dinheiro. Egoísta orgulhoso! —

acrescentoucomrancor.

—Estesamericanostêmdinheirodemais!—disseDubosc.

—Édifícil—disseParkerPynetranqüilo—queumhomem

ricosejaapreciadopelospobres.

Page 201: Agatha christie o detetive parker pyne

Duboscriu—Invejaemalícia?—sugeriu.—Osenhortem

razão Monsieur. Todos nós queremos ser ricos, para comprar

brincos de pérolas quantas vezes quisermos. Exceto Monsieur,

talvez.

ElefezumareverênciaparaoDr.Carver,que,comosempre

acontecia, estava outra vez distraído. Estava revirando um

pequenoobjetonasmãos.

— Hein?— saiu de sua abstração. — Não, não ambiciono

pérolas grandes.Mas o dinheiro, o dinheiro é sempre útil— o

tomcomodisseistocolocavaodinheiroemseudevidolugar.—

Mas, olhem isso aqui— disse ele.— Aqui está uma coisa cem

vezesmaisinteressantedoqueaspérolas.

—Oqueéisso?

—Éumcarimbocilíndricodehematitanegra,comumacena

gravada: um deus apresentando um suplicante a um deus

entronizado e mais importante. O suplicante está carregando

umacriançacomooferendaeoaugustodeusqueestánotrono

temumlacaioqueabanaumafolhadepalmeiraparaespantaras

moscas.A inscriçãoestámuitonítida,edizqueohomeméum

servodeHammurabi, logo issodeve tersido feitoháquatromil

anos.

Apanhou um pedacinho de massa plástica no bolso,

amassou-asobreamesa,passouumpouquinhodevaselinapor

cima e apertou o carimbo sobre ela, rolando de um lado para

outro.Depois,comumcanivete,destacouumquadradodemassa

elevantou-adelicadamentedamesa.

—Estãovendo?

Page 202: Agatha christie o detetive parker pyne

A cena que ele descrevera estava impressa para eles em

plasticina,nítidaebemdefinida.

Porummomento o encantamentodopassadodesceu sobre

todos eles.Então, lá de fora, a voz doSr.Blundell se fez ouvir

desafinada.

— Ei, camaradas! Vou levarminha bagagem dessamaldita

gruta para uma tenda! Os maruins estão mordendo pra valer,

Aindanãoconseguipregaroolho!

—Maruins?—perguntouSirDonald.

— Provavelmente são mosquinhas de areia — disse o Dr.

Carver.

Gostomaisdemaruins—disseParkerPyne.—Éumnome

bemmaissugestivo.

O grupo partiu bem cedo na manhã seguinte, depois de

váriasexclamaçõessobreacoreo formatodaspedras.Acidade

"cor-de-rosa" era na verdade uma extravagância inventada pela

natureza numde seus diasmais pródigos e coloridos.O grupo

andavadevagar,jáqueoDr.Carvercaminhavacomosolhospara

o chão, curvando-se ocasionalmente para apanhar pequenos

objetos.

— Você conhece logo um arqueólogo — disse o Coronel

Dubosc, sorrindo. — Ele nunca olha para o céu, para as

montanhas, nem para as belezas da natureza. Anda sempre de

Page 203: Agatha christie o detetive parker pyne

cabeçabaixa,àprocura...

—Sim,masàprocuradequê?—disseCarol.—Oqueéque

osenhorestácatando,Dr.Carver?

Comumligeirosorriso,oarqueólogomostrou-lheumparde

fragmentosdecerâmicabarrenta.

—Issonãovalenada!—exclamouCarolcomdesdém.

—Cerâmica émais interessantedoqueouro—disseoDr.

Carver.Carololhou-oincrédula.

Chegaramaumacurvafechadaepassarampordoisoutrês

túmuloscavadosnasrochas.Asubidatornou-semaispenosa.Os

guardasbeduínos iamna frente,oscilando indiferentesentreas

encostasabruptas, semnemolharparabaixo,paraoprecipício

queficavadeumdosladosdocaminho.

Carol ficoumuitopálida.Umdos guardas inclinou-se e lhe

deu a mão. Hurst deu um pulo para a frente e estendeu seu

bastãocomosefosseumcorrimãodooutroladodoprecipício.Ela

agradeceucomumolhar, eumminutodepois já estavaa salvo

num passe mais largo das pedras. Os outros continuaram

lentamente. O sol agora estava alto, e já se começava a sentir

calor.

Finalmentechegaramaumplatôlargo,quasenotopo.Uma

subida fácil conduzia ao cimo, um grande bloco quadrado de

rocha. Blundell disse ao guia que o grupo subiria sozinho. Os

beduínos se colocaram confortavelmente contra as pedras e

começaram a fumar. Mais alguns minutos e todos estavam no

altodapedra.Eraumlocalcurioso,completamenteescalvado.A

Page 204: Agatha christie o detetive parker pyne

vistaeramaravilhosa,abarcandoovaleportodosos lados.Eles

estavamdepésobreumassoalhoretangulardepedra,comuma

pequena depressão rochosa em volta e uma espécie de altar de

sacrifíciosnocentro.

— Um lugar divino para sacrifícios — disse Carol com

entusiasmo. — Mas, puxa! Eles deviam ter um trabalhão para

trazerasvítimascáparacima!

—Haviaoriginalmenteumaespéciedeestradadepedrasem

ziguezague — explicou o Dr. Carver. — Vocês poderão ver os

vestígiosdooutrolado,porondevamosdescer.

Passaram algum tempo comentando e conversando.

EscutaramentãoumligeirotinidoeoDr.Carverdisse:—Acho

quedeixoucairseubrincooutravez,Srta.Blundell.

Carollevouamãoàorelha—Ah,deixeimesmo!

DubosceHurstsepuseramaprocurar.

— Deve estar por aqui — disse o francês. — Não pode ter

roladopralonge,porquenãoháporonderolar.Olugarécomo

umacaixaquadrada.

— Não pode ter caído dentro de uma fenda?— perguntou

Carol.

— Não há fenda nenhuma — disse Parker Pyne. — Você

mesma pode ver. O local é absolutamente liso. Achou alguma

coisa,Coronel?

—Sóumpedregulho—disseDuboscsorrindoeatirando-o

longe.

Page 205: Agatha christie o detetive parker pyne

Poucoapouco,umestadodeespíritodiferente—umestado

detensão—foitomandocontadaspessoas.Ninguémfalounada,

mas as palavras "oitenta mil dólares" estavam presentes na

consciênciadetodos.

— Você tem certeza de que estava com ele, Carol? —

perguntoucomrispidezseupai.—Istoé,vocênãoterádeixado

cairnasubida?

—Eu estava com ele até a hora emquenós pusemos o pé

aquinaplataforma—disseCarol.—Eusei,porqueoDr.Carver

reparou que ele estava frouxo e o apertou para mim. Não foi,

Doutor?

ODr.Carverconfirmou.FoiSirDonaldquemfezaproposta

queestavanacabeçadetodomundo.

—Éumassuntomuitodesagradável,Sr.Blundell

—disseele.—Osenhorestavanosfalandoanoitepassada

sobre o valordessesbrincos.Sóumdeles já valeumapequena

fortuna.Seessebrinconãoforencontrado

—eaoqueparece,nãoserá—cadaumdenósvaificarsob

suspeita.

—Edeminhaparte,insistoemserrevistado—adiantou-seo

Coronel Dubosc. — Não estou pedindo, exijo isso como um

direito.

— Podemme revistar também— disse Hurst. Sua voz era

áspera.

—Oqueachamvocês?—perguntouSirDonald,olhandoem

Page 206: Agatha christie o detetive parker pyne

torno.

—Certamente—disseParkerPyne.

—Umaexcelenteidéia—disseoDr.Carver.

— Faço questão de ser revistado também — disse o Sr.

Blundell.—Tenhominhas razões, cavalheiros, sebemquenão

possadeclará-las.

—Comoqueira—disseSirDonald,cortesmente.

— Carol, minha querida, quer descer e esperar lá com os

guias?

Semdizer uma palavra amoça os deixou. Seu rosto estava

tensoesombrio.Haviaumardedesesperonoolharquechamou

aatençãodepelomenosumdosmembrosdácomitiva,quesepôs

aimaginaroquesignificariaaqueleolhar.

A busca prosseguiu. Foi drástica e completa — e

completamenteinútil.Umacoisaeracerta.Ninguémestavacomo

brinco.Foiumpequenogrupoabatidoqueempreendeuadescida

equeescutouindiferenteasdescriçõeseinformaçõesdoguia.

Parker Pyne acabara de se vestir para o almoço quando

apareceuumapessoaàportadesuatenda.

—Possoentrar,Sr.Pyne?

—Éclaro,minhacarajovem,éclaro.

Carolentrouesentou-seàbeiradacama:Seurostotinhao

mesmoarsombrioqueelejánotaranamanhãdaqueledia.

Page 207: Agatha christie o detetive parker pyne

— O senhor diz que soluciona os problemas das pessoas

infelizes,nãoé?—perguntouela.

— Estou de férias, Srta. Blundell. Não estou aceitando

nenhumcaso.

— Bem, o senhor vai ter que aceitar este — disse a moça

calmamente.—Olheaqui,Sr.Pyne,eusoumais infelizdoque

qualqueroutrapessoanestemundo!

—Oqueéqueaperturba?—perguntouele.—Éocasodo

brinco?

— Exatamente. O senhor disse tudo. Jim Hurst não o

roubou,Sr.Pyne.Euseiquenãofoiele.

— Não estou entendendo bem, Srta. Blundell. Por que

alguémhaveriadepensarquefoiele?

—Porcausadoseupassado.JimHurstjároubouumavez.

Elefoiapanhadolánanossacasa.Eu...eufiqueicompenadele.

Pareciatãomoçoedesesperado...

Etãobonito,pensouParkerPyne.

— Convenci papai a lhe dar uma chance de se endireitar.

Meupaifaztudooquequero.Bem,eledeuumaoportunidadea

Jim e Jim correspondeu. Papai passou a confiar nele e a lhe

contartodosossegredosdeseusnegócios.Enofinal,elelevoua

melhor,outerialevado,seissonãotivesseacontecido.

—Porquevocêdiz"levouamelhor"...?

—QuisdizerqueeuqueromecasarcomJimeelequerse

Page 208: Agatha christie o detetive parker pyne

casarcomigo.

—ESirDonald?

— Sir Donald é idéia domeu pai. Não éminha. O senhor

achaqueeu iaquerercasarcomumpeixeempalhadocomoSir

Donald?

Semexpressarseuspontosdevistaaestadescriçãodojovem

inglês,ParkerPyneperguntou:—EoqueéqueSirDonaldacha

dissotudo?

— Não nego que ele acharia bom para as suas terras

arruinadas—disseCarolcomdesprezo.

ParkerPyne consideroua situação.—Gostariade lhe fazer

duas perguntas — disse ele. — A noite passada fizeram uma

observação:"Umavezladrão,sempreladrão".

Amoçafezquesimcomacabeça.

—Agoraperceboarazãodoconstrangimentoqueaquilolhe

causou.

— É, foi muito desagradável para Jim... para mim e para

papai também. Fiquei com medo de que o rosto de Jim

demonstrassealgumacoisaeentãomudeideassuntoe faleina

primeiracoisaquemeveioàcabeça.

ParkerPyneconcordou.Perguntouentão—Porqueseupai

insistiuemserrevistadohojedemanhã?

—Nãoentendeu?Euvi logo.Papai tinhanacabeçaqueeu

poderiapensarquetudoaquiloeraumamaquinaçãocontraJim.

Page 209: Agatha christie o detetive parker pyne

Comoosenhorpodeperceber,eleestádoidoparaqueeumecase

comoinglês.Bem,elequeriamemostrarquenãoestavafazendo

nenhumasujeiracomJim.

— Meu Deus! — disse Parker Pyne. — Isso é muito

esclarecedor,masnumsentidogeral,querodizer.Nãoajudaem

nadaonossoinquéritoparticular.

—Eunãovouentregarospontos!

—Não,não—eleficouemsilêncioporummomentoedepois

perguntou:—Oquequerexatamentequeeufaça,Srta.Carol?

—ProvarquenãofoiJimquempegouaquelapérola.

—Esuponhamos...meperdoeafranqueza...quetenhasido

elemesmo?

—Seosenhorachaquefoiele,estáenganado,redondamente

enganado.

—Sim,masa senhoritapensoumesmonocaso?Nãoacha

que a pérola possa ter tentado subitamente oSr.Hurst?A sua

vendaresultarianumagrandesomadedinheiro...umabasepara

futurasespeculações,digamos?...queotornariamindependente,

parapodercasar-se,mesmosemoconsentimentodeseupai.

—Jimnão faria isso—disseamoça ingenuamente.Dessa

vezParkerPyneaceitouoseujulgamento—

Bem,voufazeroqueforpossível.

Ela fez que sim com a cabeça, impetuosamente, e saiu da

tenda. Parker Pyne sentou-se por sua vez à beira da cama.

Page 210: Agatha christie o detetive parker pyne

Entregou-se a seus pensamentos. De repente, riu por entre os

dentes.

—Estouficandocomoraciocíniomuitolento—disseemvoz

alta.

Duranteoalmoçoestavamuitoalegre.Atardecorreucalma.

Amaiorpartedaspessoasdormiu.

Quando Parker Pyne entrou na tenda grande, às quatro e

quinze da tarde, só o Dr. Carver estava lá, examinando alguns

fragmentosdecerâmica.

—Ah!—disseParkerPyne,puxandoumacadeiraparaperto

da fesa. — Era o senhor mesmo que eu queria ver. Pode me

mostrar aquele pedaço de plasticina que está sempre com o

senhor?

Oarqueólogoapalpouobolso,pegouobastãodeplasticinae

oentregouaPyne.

—Não—disseParkerPyne,afastando-ocomamão,—nãoé

estequeeuquero.Queroaquelepedacinhodeontemànoite.Para

serfranco,nãoéaplasticinaquequero,esimoqueestádentro

dela.

Houveumapausa,eoDr.Carverdissedevagar—Achoque

nãooestouentendendo.

—Achoqueestásim—disseParkerPyne.—Queroobrinco

depéroladaSrta.Blundell.

Houve um silênciomortal que durou umminuto. Então, o

Dr.Carverenfiouamãonobolsoetirouumpedaço informede

Page 211: Agatha christie o detetive parker pyne

plasticina.

— Muito hábil de sua parte — disse. Seu rosto estava

inexpressivo.

—Gostariaquemecontassetudo—disseParkerPyne.Seus

dedosestavamocupados.Comumresmungo,extraiuumbrinco

de pérola um pouco besuntado.—Sei, é só por curiosidade—

disseelesedesculpando,—maseugostariadeouvircomofoi.

— Eu lhe conto— disse Carver, — se o senhor me disser

comofoiquedescobriuquetinhasidoeu.Osenhornãoviunada,

viu?

ParkerPynebalançouacabeça—Eusópensei—disse.

—Foirealmenteacidentaloinício—disseCarver.

— Eu estava atrás de todo mundo hoje de manhã, e o

encontrei caído no chão, na minha frente; deve ter caído da

orelha da moça um pouco antes. Ela não percebeu. Ninguém

tinhareparado.Apanheio-oepusnobolso,pensandodevolvê-lo

assimqueosalcançasse.Masesqueci...Foientãoque,nomeioda

subida, comecei a pensar. A jóia não queria dizer nada para

aquelamoçatola;seupaipodiacomprar-lheumoutrosemligar

paraopreço.Eparamimqueriadizermuito.Avendadapérola

equiparia uma expedição — seu rosto impassível se contraiu e

pareceuvoltaràvida.—Osenhorsabequaissãoasdificuldades

que há hoje em dia para conseguirmos contribuições para

escavações?Não,osenhornempodeimaginar!Avendadapérola

facilitariatudo.Háumlugarondeeuqueroescavar... lánoalto

do Beluquistão. Há um capítulo inteiro do passado esperando

paraserdescoberto...

Page 212: Agatha christie o detetive parker pyne

—Oquesedisseontemànoitemeveioàcabeça...sobreuma

testemunha impressionável. Pensei que a moça era desse tipo.

Quandochegamosláemcima,eulhedissequeseubrincoestava

solto.Fizmençãodeapertá-lo.Oquefiznaverdadefoiencostar

uma ponta de lápis em sua orelha. Minutos depois deixei cair

umapedrinha.Elaestavaprontaajurarqueobrincoestavaem

sua orelha e que acabara de cair. Neste meio tempo, apertei a

péroladentrodeumpedaçodemassaplásticaemmeubolso.E

estáaíaminhahistória.Nãoémuitoedificante,nãoé?Agoraéa

suavez.

—Não hámesmo uma história— disse Parker Pyne.—O

senhor era oúnicohomemque apanhava coisas do chão— foi

isso o queme fez pensar. E o encontro daquele pedregulho foi

muitosignificativo.Medeuaidéiadeseuestratagema.Eentão...

—Continue—disseCarver.

—Bem,ontemosenhorfalousobrehonestidadecommuita

veemência. Protestou demais... lembra-se de Shakespeare? Me

pareceu que estava querendo se convencer asimesmo e depois

faloudedinheirocomumcertoconstrangimento.

O rosto do homem à sua frente estava muito marcado e

deprimido. — Então foi isso — disse ele. — Estou perdido. O

senhorvaientregarobalangandãdevoltaàmoça,nãoé?Coisa

estranha, este instinto bárbaro de ornamentação. Vem desde a

erapaleolítica.Umdosprimeirosinstintosdosexofeminino.

— Acho que o senhor está subestimando a Srta. Carol —

disse Parker Pyne. — Ela tem cabeça... e o que é mais, tem

Page 213: Agatha christie o detetive parker pyne

coração.Achoquenãovaitocarnesseassuntocomninguém.

—Mascertamenteopaivaifalar—disseoarqueólogo.

—Tenhocertezaquenão.Vejaosenhorqueo"papai"temlá

assuasrazõesparaficarcalado.Nãoháotoquedosquarentamil

dólarespelobrinco.Umameranotadecincoéoqueelevale.

—Osenhorquerdizerque...?

— É. A moça não sabe. Ela pensa que eles são mesmo

verdadeiros.Comecei a suspeitar ontem à noite.OSr. Blundell

falou um pouquinho demais sobre todo o dinheiro que tinha.

Quandoascoisasvãomalealguémlhepega...bem,omelhoré

enfrentarcomcoragemasituaçãoeblefar...

DerepenteoDr.Carverfezumacareta.Pareciaumtrejeitode

criança, muito estranho, no rosto de um homem idoso — Nós

somos todos uns pobres-diabos!— Exatamente— disse Parker

Pyne,efezcitação:

"Maisvaleaamizadedoqueseisvinténs."

Page 214: Agatha christie o detetive parker pyne

11

MortenoNilo

LADYGRAYLEestavanervosa.Desdeomomentoquepuseraos

pésabordodoS.S.Fayoumquesequeixavadetudo.Nãogostou

da sua cabina. Suportava bem o sol da manhã, mas não

suportava o sol da tarde. Pamela Grayle, sua sobrinha,

amavelmenteabriumãodesuacabinanooutrolado.LadyGrayle

aceitouooferecimentoresmungando.

Falou violentamente para a Srta. MacNaughton, "sua

enfermeira,porlheterdadoolençoerradoepornãoterdeixado

foradamalaoseupequenotravesseiro.Faloucomimpertinência

comseumarido,SirGeorge,porlhetercompradoocolarerrado.

Eraemlápis-lazúliqueelaqueria,enãoemcornalina.Georgeera

umidiota!

SirGeorge disse aflito:—Desculpe, querida, desculpe. Vou

trocar.Temostempo.

ElasónãoreclamavadeBasilWest,osecretárioparticularde

Sir George, porque nunca ninguém conseguia reclamar o que

querquefossedeBasil.Seusorrisodesarmavaaspessoasantes

quepudessemcomeçar.

Mas o pior de tudo recaiu sobre o intérprete — um

personagem imponente, ricamente vestido, incapaz de se

perturbar com o que quer que fosse. Quando Lady Grayle deu

com os olhos num estranho sentado numa cadeira de vime e

soubequeeleeratambémumcompanheirodeviagem,suacólera

Page 215: Agatha christie o detetive parker pyne

transbordoucomoáguadatorneira!

—Elesmedisseramcomabsolutasegurançanoescritórioda

companhiaquenósseríamososúnicospassageiros!Éo fimda

estaçãoenãohaviamaisninguémviajando!

—Tácerto,Lady—disseMohammed.—Somenteasenhora,

seugrupoeumcavalheiro,maisninguém.

—Masmedisseramquesónósestaríamosabordo!

—Támuitocerto,Lady.

—Nãoestáabsolutamente certo!Foiumamentira!Oqueé

queestehomemestáfazendoaqui?

— Ele veio depois, Lady. Depois que a senhora comprou

passagens.Elesóresolveuirhojedemanhã.

—Fuienganada!

—Tátudocerto,Lady;eleéumcavalheiromuitosossegado,

muitosimpático,muitosossegado.

—Osenhoréumidiota!Nãosabedenada.OndeestáaSrta.

MacNaughton?Ah,estáaí?Jálherepetiumaporçãodevezesque

quero que fique sempre a meu lado. Posso ter uma tontura.

Ajude-mea irparaacabinaemedêumaaspirina,enãodeixe

Mohammed se aproximar demim. Ele vive repetindo "Tá certo,

Lady",eachoqueseouvirissomaisumavez,eugrito.

ASrta.MacNaughtonlhedeuobraçosemdizerumapalavra.

Era umamulher alta, de uns trinta e cinco anos, sossegada e

tranqüilaàsuamaneira.LevouLadyGrayleatéacabina,ajeitou-

Page 216: Agatha christie o detetive parker pyne

acomalmofadas,deu-lheumaaspirinaeouviuassuasqueixas

inconsistentes.

Lady Grayle tinha quarenta e oito anos. Sofrerá desde os

dezesseis pelo fato de ter dinheiro demais. Casara-se com um

baronetearruinado,SirGeorgeGrayle,hádezanos.

Eraumamulhergraúda,jeitosadecorpo,masseurostoera

rabugentoecheioderugas,eamaquilagemsuperabundanteque

usava apenas acentuava as marcas do tempo e do seu

temperamento.Seucabelojáfora—porturno—louroplatinado

ecastanhoavermelhado,eemconseqüênciadisso,agoraparecia

cansado e sembrilho.Ela se enfeitavademais eusava jóias em

profusão.

— Diga a Sir George — terminou ela ante a silenciosa e

inexpressivaSrta.MacNaughton,—digaaSirGeorgequeeletem

demandarestehomememboradobarco!Precisode isolamento!

Depoisdetudoquepasseiultimamente...—elafechouosolhos.

—Sim,LadyGrayle-disseaSrta.MacNaughton,edeixoua

cabina.

Oofensivopassageirodeúltimahoraaindaestavasentadona

cadeiradoconvés.EstavadecostasparaLuxor eolhavaparao

RioNilo,deondeascolinasdistantessurgiamdouradasporcima

deumalinhaverde-escuro.ASrta.MacNaughtonlhelançouum

olharaopassar.

EncontrouSirGeorgenosalãodeestar.Eletinhanasmãos

um colar e o olhava duvidoso—Diga-me, Srta. MacNaughton,

seráqueesteaquivailheagradar?

Page 217: Agatha christie o detetive parker pyne

ASrta.MacNaughtonolhourapidamenteparao lápis-lazúli

—Émuitolindomesmo—disseela.

—SeráqueLadyGraylevaificarsatisfeita,hein?

—Ah,não,nãoacredito,SirGeorge.Osenhorsabequenada

asatisfaz.Estaéqueéaverdade.Porfalarnisso,elalhemandou

umrecado:querqueosenhorselivredopassageiroextra.

OqueixodeSirGeorgecaiu—Comoéqueeuposso?Oqueé

queeuvoudizeraocamarada?

—Éclaroqueosenhornãopodefazernada—avozdeElsie

MacNaughton era viva e terna. — Diga apenas que não podia

fazernada—acrescentouparaencorajá-lo.—Tudovaidarcerto.

— Você acha que sim, hein? — O rosto dele estava

pateticamentecômico.

AvozdeElsieMacNaughtonfoiaindamaisternaquandoela

respondeu:—Osenhornãodevelevarestascoisasmuitoasério,

SirGeorge.Éasaúdedela,osenhorsabe.Nãoseaborreçaàtoa.

— Você acha que ela está mal mesmo, enfermeira? Uma

sombrapassoupelorostodaenfermeira.Haviaalgoestranhoem

suavozquandoelarespondeu:—Sim,eu...nãoestougostando

do estado de saúde dela. Mas, por favor, não se preocupe, Sir

George.Osenhornãodevetermaisaborrecimentos—elalhedeu

umsorrisoamigávelesaiu.

Pamela entrou, insípida e calma, vestida de branco.—Olá,

Nunks.

—Alô,Pam,querida.

Page 218: Agatha christie o detetive parker pyne

—Oqueéqueosenhortemnamão?Oh,quelindo!

—Aindabemquevocêgostou.Achaquesuatiatambémvai

gostar?

—Elaéincapazdegostardoquequerqueseja.Nãoseipor

queosenhorsecasoucomessamulher,Nunks.

SirGeorge ficoucalado.Umpanoramaconfusodeazarnas

corridas, credores que o perseguiam e uma mulher bonita e

dominadoradesenrolou-seemseupensamento.

— Coitadinho — disse Pamela. — Acho que o senhor foi

obrigado.Maselanosinfernaavida,nãoé?

—Desdequeficoudoente...—começouSirGeorge.

Pamela o interrompeu — Ela não está doente! Não é uma

doença mesmo! Ela sempre faz o que quer. Sabe, quando o

senhor foi a Assuan ela estava alegre como um passarinho!

ApostoqueaSrta.MacNaughtonsabequeadoençaéfalsa.

—Nãoseioquenós faríamossemaSrta.MacNaughton—

disseSirGeorgecomumsuspiro.

—Éuma criatura eficiente—admitiuPamela.—Mas com

franqueza, não acho que ela seja assim tão formidável, como o

senhor,Nunks.Ah,o senhorachaqueela é formidável!Nãová

dizerquenão.Osenhorachaqueelaémaravilhosa.Edecerta

forma,émesmo.Maséumacriaturaestranha.Nuncaseioque

elaestápensando.Mesmoassim,elamanobramuitobemagata

velha.

Page 219: Agatha christie o detetive parker pyne

—Olheaqui,Pam,vocênãodevefalarassimdesuatia.Que

diabo,elaémuitoboaparavocê!

—É,elapagaasnossascontas,nãopaga?Maséuminferno

devida,láissoé.

SirGeorgemudouparaumassuntomenosdoloroso—Oque

é que nós vamos fazer com este sujeito que vai viajar conosco?

Suatiaquerobarcosóparaela.

— Bom, dessa vez não vai ser possível — disse Pamela

indiferente.—Ohomemmeparecemuitoapresentável.Onome

dele é Parker Pyne. Acho que ele era um funcionário civil em

algum departamento de estatística... se é que isso existe. Coisa

estranha, parece que já ouvi esse nome antes em algum lugar.

Ah,Basil!—osecretárioacabaradeentrar.—Ondeseráquejávi

onomeParkerPyne?

— Na primeira página doTimes. Coluna dos Anúncios

Pessoais—replicouorapazprontamente.—"Vocêéfeliz?Senão

for,consulteoSr.ParkerPyne."

— Não! Que coisa engraçada! Vamos contar a ele todos os

nossosproblemasduranteanossaviagemparaoCairo?

— Eu não tenho nenhum — disse Basil West. — Vamos

deslizar pelo dourado Rio Nilo e ver os templos — ele olhou

rapidamenteparaoladodeSirGeorge,queapanharaumjornal

—juntos.

A última palavra fora apenas um sopro, mas Pamela a

entendeu.Seusolhosseencontraram.

Page 220: Agatha christie o detetive parker pyne

—Temrazão,Basil—disseelacomalegria.—Ébomviver.

SirGeorge levantou-seedeixou-os.OrostodePamela ficou

sombrio.

—Oquefoiquehouve,meubem?

—Minhadetestadatiaporafinidade...

—Nãoseaflija—disseBasildepressa.—Oque importao

queelatemnacabeça?Nãoacontrarie.Sabe—eleriu,—éuma

boapolítica.

AfigurabondosadeParkerPyneentrounosalão.Atrásdele

apareceuafigurapitorescadeMohammed,prontopararecitaro

seupapel.

— Senhoras, senhores, vamos começar agora. Dentro de

algunsminutosvamospassarpelostemplosdeKarnakpelolado

direito. Vou contar a história de um menininho que queria

comprarumcarneiroassadoparaopai...

ParkerPyneenxugouatesta.Acabaradevoltardeumavisita

aoTemplodeDendera.Montarnumjumento,raciocinouele,não

eraumexercíciocondizentecomasuafigura.Iatrocardecamisa

quando um bilhete colocado sobre sua cômoda lhe chamou a

atenção.Eleoabriu.Diziaoseguinte:

Carosenhor,

Page 221: Agatha christie o detetive parker pyne

FicareimuitoagradecidaaosenhorsenãoforvisitaroTemplo

deAbydos,epermanecernobarco,poisgostariadeconsultá-lo.

Sinceramente,

AriadneGrayle

Surgiu um sorriso no rosto largo e afável de Parker Pyne.

Apanhouumafolhadepapeletirouatampadacaneta.

CaraLadyGrayle(escreveuele),

Sintomuitodesapontá-la,masnomomentoestoude fériase

nãopossoassumirnenhumcompromissoprofissional.

Assinou seu nome e mandou a carta por um servente.

Quandoterminavadesevestir,chegououtranota.

CaroSr.ParkerPyne,

Seiqueosenhorestáde férias,masestoudispostaapagar

cemlibrasporumaconsulta.Sinceramente,

AriadneGrayle

Parker Pyne ergueu as sobrancelhas. Bateu pensativamente

Page 222: Agatha christie o detetive parker pyne

nosdentescomacaneta.ElequeriamuitoverAbydos,mascem

libraseramcemlibras.EoEgitoforahorrivelmentedispendioso,

muitomaisdoqueelecalculara.

Cara Lady Grayle (escreveu ele),Não visitarei o Templo de

Abydos.Sinceramente,

J.ParkerPyne

ArecusadeParkerPyneemdeixarobarcofoiummotivode

grandetristezaparaMohammed.

—Templomuito bonito. Todos osmeus cavalheiros gostam

de ver aquele templo. Arranjo uma condução. Arranjo cadeira,

marinheiroscarregamosenhor.

ParkerPynerecusoutodasestasofertastentadoras.

Os outros partiram. Parker Pyne estava curioso e ficou à

espera no convés. Neste instante, a porta da cabina de Lady

Grayleseabriueelaprópriasaiuparaoconvés.

—Que tarde quente!— observou ela com delicadeza.—Vi

queosenhornãoquispassear,Sr.Pyne.Muitodiscretodesua

parte.Vamostomarchájuntosnosalão?

Parker Pyne levantou-se imediatamente e a seguiu.Ele não

podianegarqueestavacurioso.

Pareceu-lhe que Lady Grayle sentia alguma dificuldade em

Page 223: Agatha christie o detetive parker pyne

abordaroassunto.Elamudavadeconversafreqüentemente.Mas

finalmentefaloucomavozalterada.

—Sr.Pyne,oquelhevoudizerédamaisestritaconfidencia!

Osenhorcompreende,nãoé?

—Naturalmente.

Elafezumapausa,respiroufundo.ParkerPyneesperou.

—Querosabersemeumaridoestáounãomeenvenenando.

Fosse o que fosse que estivesse esperando, não era

absolutamenteisso.Demonstrouclaramenteoseuespanto.—É

uma acusação muito séria que a senhora está fazendo, Lady

Grayle.

—Bem,nãosounenhumatolaenemnasciontem.Hámuito

tempo que tenho as minhas suspeitas. George viaja, eu fico

melhor.Minhacomidanãome fazmaismaleeumesintouma

mulherdiferente.Devehaverumarazãoparaisso.

—Oqueasenhoraestádizendoémuitosério,LadyGrayle.

Deveselembrardequenãosouumdetetive.Sou,semepermite,

umespecialistaemassuntosdocoração...

Ela o interrompeu — Além... e não acha que isso me

preocupa?Nãoéumpolicialqueeuquero...possotomarcontade

mim mesma, obrigada. É apenas a certeza que eu quero. Eu

precisosaber.Nãosouumamulherperversa,Sr.Pyne.Souleal

paraaquelesquesão leaiscomigo.Negócioénegócio.Cumpria

minhaparte.Pagueiasdívidasdemeumaridoenuncaopriveide

dinheiro. Parker Pyne sentiu um ligeiro sentimento de piedade

Page 224: Agatha christie o detetive parker pyne

porSirGeorge.

— E quanto àmoça, ela temmuitas roupas, vai a festas e

tudoomaisquequer.Apenasagratidãonormaléoqueeupeço:

— Gratidão não é algo que se possa encomendar, Lady

Grayle.

—Tolice!—disseLadyGrayle.Elacontinuou:—Bem,éesta

ahistória!Descubraaverdadeparamim.Quandoeusouber...

Ele a olhou comcuriosidade:—Quandoa senhora souber,

LadyGrayle,oquevaifazer?

—Aíoproblemaémeu—elaapertouoslábios.ParkerPyne

hesitouummomentoedepoisdisse:

— A senhora vai me perdoar, Lady Grayle, mas tenho a

impressãodequenãoestásendoabsolutamentefrancacomigo.

— Que absurdo! Já lhe disse exatamente o que eu queria

descobrir.

—Sim,masnãoporquequerdescobrir.

Eleaolhounosolhos.Elabaixouosseusprimeiro.

—Achoquearazãoeraevidenteporsimesma—disseela.

—Não,porqueeutenhoumadúvidasobreumdeterminado

ponto.

—Qualé?

—Asenhoraquerqueassuassuspeitassejamconfirmadas

Page 225: Agatha christie o detetive parker pyne

ounegadas?

—Francamente,Sr.Pyne!—asenhorasepôsdepé,trêmula

deindignação.

ParkerPynebalançouacabeçamansamente—Sim,sim—

disse.—Mascomistonãorespondeuàminhapergunta,nãoé?

—Oh!—Aspalavrasfaltaram.Elasaiudasalabruscamente.

Sozinho, Parker Pyne ficou muito pensativo. Estava tão

mergulhado em seus próprios pensamentos que teve um ligeiro

sobressalto quando alguém se sentou a seu lado. Era a Srta.

MacNaughton.

—Comovocêsvoltaramcedo—disseParkerPyne.

—Os outros ainda não voltaram. Eu disse que estava com

dordecabeçaevolteisozinha—elahesitou.—OndeestáLady

Grayle?

—Achoqueestádescansandonasuacabina.

—Ah,entãoestácerto.Nãoqueroqueelasaibaqueeuvoltei.

—Entãoasenhoritanãovoltouporcausadela?

A Srta. MacNaughton balançou a cabeça negativamente —

Não,volteiporquequeriavê-lo.

ParkerPyneficousurpreso.TeriaditosemhesitarqueaSrta.

MacNaughton era totalmente capaz de cuidar de seus próprios

problemassemprecisardeconselhosdeninguém.Viaagoraque

estavaerrado.

Page 226: Agatha christie o detetive parker pyne

—Desde que embarcamos que estou observando o senhor.

Achoqueosenhoréumapessoademuitaexperiênciaecapazde

julgamentoscorretos.Eeuprecisourgentementedeumconselho.

—E,noentanto...perdoe,Srta.MacNaughton...masnãome

pareceserdotipoqueusualmentepedeconselhos.Eudiriaqueé

uma pessoa que se satisfaz plenamente com o seu próprio

julgamento.

— Normalmente, sim. Mas estou numa situação muito

delicada — hesitou um instante. — Geralmente não falo a

respeitodosmeuspacientes.Mascreioqueépreciso,nestecaso

específico.Sr.Pyne,quandodeixeiaInglaterracomLadyGrayle,

elaeraumcasosimples.Empoucaspalavras,nãohavianadade

malcomela.Talvezissonãofosseaexataexpressãodaverdade.

Nãotinhanadaquefazeretinhadinheirodemais,oqueproduz

uma bem definida condição patológica. Se tivesse alguns

assoalhos para esfregar todo dia e umas cinco ou seis crianças

para tomar conta, LadyGrayle seria umamulher perfeitamente

sadiaemuitomaisfelizdoqueé.

ParkerPyneconcordou.

—Comoenfermeiradehospital,jáviumaporçãodecasosde

nervosos.LadyGraylegostadasuasaúdeprecária.Meupapelé

nãominimizarseussofrimentos,tertodootatoquepuder...eme

divertiromaispossívelnaviagem.

—Muitoplausível—disseParkerPyne.

— Mas, Sr. Pyne, as coisas já não são como antes. Os

sofrimentos de que se queixa Lady Grayle agora não são mais

imaginários,masreais.

Page 227: Agatha christie o detetive parker pyne

—Oquequerdizercomisso?

— Comecei a suspeitar de que Lady Grayle está sendo

envenenada.

—Desdequandovocêsuspeitadisso?

—Nasúltimastrêssemanas.

—Vocêdesconfiade...alguémemparticular?

Seus olhos baixaram. Pela primeira vez, sua voz denotava

faltadesinceridade—Não.

— Acho, Srta. MacNaughton, que suspeita de uma

determinadapessoa,equeestapessoaéSirGeorge.

— Não, não, não acho que ele seja capaz disso! Ele é tão

delicado, às vezes parece uma criança. Não poderia ser um

assassinoasangue-frio—avozdelatinhaumtoquedeangústia.

—E,noentanto, jápercebeuquesemprequeSirGeorgese

ausenta sua esposa melhora e que seus períodos de recaída

correspondemàsuavolta.

Elanãorespondeu.

—Dequevenenodesconfia?Arsênico?

—Umacoisadessas.Arsênicoouantimônio.

—Equeprovidênciastomou?

— Tenho feito o que posso para supervisionar tudo o que

Page 228: Agatha christie o detetive parker pyne

LadyGraylecomeoubebe.

Parker Pyne concordou com a cabeça — Acha que Lady

Grayledesconfiadealgumacoisa?—perguntou.

—Não,não!Tenhocertezaquenão.

—Aí é que a senhorita se engana—disse Parker Pyne.—

LadyGrayledesconfia.

ASrta.MacNaughtondemonstrouoseuespanto.

—LadyGrayle émuitomais capaz de guardar segredos do

queimagina—disseParkerPyne.—Elaéumamulherquesabe

oquequerequefazoquequer.

— Issome surpreendemuito—disse aSrta.MacNaughton

lentamente.

— Gostaria de lhe fazer mais uma pergunta, Srta.

MacNaughton.AchaqueLadyGraylelhequerbem?

—Nuncapenseinisso.

Foraminterrompidos.Mohammedentrou,orostobrilhando,

asroupagensflutuandonoar.

—ALady,elaouviuasenhoravoltar;estálhechamando.Ela

disse,porquenãofoilogovê-la?

Elsie MacNaughton se levantou às pressas. Parker Pyne

tambémselevantou.

—Umencontroamanhãdemanhã cedo seria conveniente?

—perguntouele.

Page 229: Agatha christie o detetive parker pyne

— Sim, seria amelhor hora. Lady Grayle dorme até tarde.

Nestemeiotempo,voutomaromaiorcuidado.

—AchoqueLadyGrayletambémvaitomarcuidado.ASrta.

MacNaughtondesapareceu.

ParkerPynenãoviuLadyGrayleatépoucoantesdo jantar.

Ela estava sentada fumando um cigarro e queimava uma coisa

quepareciaumacarta.Nemolhouparaele,oqueofezimaginar

queaindaestavaofendida.

Depoisdojantar,ele jogoubridgecomSirGeorge,Pamelae

Basil. Todos pareciam um pouco distraídos e o jogo terminou

cedo.

Algumas horas depois, Parker Pyne foi acordado por

Mohammed.

— Senhora idosa, ela muito doente. Enfermeira, ela muito

assustada.Eutenteiarranjarmédico.

ParkerPynevestiu-secorrendo.Chegouàportadacabinade

LadyGrayleaomesmotempoqueBasilWest,SirGeorgeePamela

jáestavamládentro.ElsieMacNaughtondesvelava-sefebrilmente

emcuidadoscomsuapaciente.NomomentoemqueParkerPyne

chegou,apobresenhorafoiacometidaporumaconvulsãofinal.

Seu corpo arqueou-se, contorceu-se e depois enrijeceu. Caiu

sobreostravesseiros.

ParkerPynepuxouPamelagentilmenteparaoladodefora.

—Quecoisahorrível!—amoçaestavasoluçando.

—Quecoisahorrível!Seráqueelaestá...elaestá...?

Page 230: Agatha christie o detetive parker pyne

—Morta?Sim,achoquesim.

Ele a deixou aos cuidados de Basil. Sir George saiu da

cabina,comumaratordoado.

— Nunca pensei que ela estivesse doente de verdade —

murmurouele.—Nemmepassoupelacabeça.

Parker Pyne passoupor ele e entrouna cabina.O rosto de

ElsieMacNaughton estava branco e abatido.—Eles chamaram

ummédico?—perguntouela.

—Sim—disseele,edepoisperguntou:—Estriquinina?

— É. Estas convulsões são inconfundíveis. Não, não posso

acreditar!—elasedeixoucairnumacadeira,chorando.Elebateu

levementeemseuombroparaconfortá-la.

De repente, uma idéia passou por sua cabeça. Deixou a

cabina apressadamente e foi para o salão.Haviaumpequenino

pedaçodepapelquenãoforaqueimadonocinzeiro.Distinguiam-

seapenasalgumaspalavras:

...psuladesonhos

Queimeisso!

—Muitobem,issoémuitointeressante!—disseParkerPyne.

Page 231: Agatha christie o detetive parker pyne

ParkerPyneestavasentadonoescritóriodeumaltooficialdo

Cairo.—Eeisocaso—disseelepensativo.

—Sim,completo.Ohomemdeveserumcompletoidiota.

—EunãochamariaSirGeorgedeintelectual.

—Masmesmoassim!—Ooutrorecapitulou:—LadyGrayle

pedeumaxícaradecaldodecarne.Aenfermeiraprepara.Então,

ela pede que coloquem um pouco desherry. Sir George traz o

sherry. Duas horas depois, Lady Grayle morre com sintomas

inconfundíveisdeenvenenamentoporestriquinina.Umpacotede

estriquinina é encontrado na cabina de Sir George e um outro

dentrodopaletóqueusouparaojantar.

—Completo—disseParkerPyne.—Porfalarnisso,deonde

veiotodaaestriquinina?

—Háuma ligeiradúvidaa respeito.Aenfermeira tinhaum

pouco,paraocasodeocoraçãodeLadyGraylefalhar;maselase

contradisse uma ou duas vezes. Primeiro disse que o seu

suprimentoestavaintatoeagoradizquenãoestá.

—Nãoédeseufeitioestaremdúvidas—foiocomentáriode

ParkerPyne.

—Ameuver,osdoisestãojuntosnahistória.Achoquetêm

umfracoumpelooutro.

— Possivelmente, mas se a Srta. MacNaughton estivesse

planejando o assassinato, ela o teria praticado de modo bem

melhor.Elaéumamoçamuitoeficiente.

—Bem, o quehá é isto.Naminha opinião, SirGeorge é o

Page 232: Agatha christie o detetive parker pyne

culpado.Elenãotemamínimachance.

—Bem,bem—disseParkerPyne,—precisoveroqueposso

fazer.

Saiu à procura da linda sobrinha. Pamela estava pálida de

indignação. — Nunks nunca teria feito uma coisa dessas —

nunca—nunca—nunca!

—Entãoquemfez?—perguntoucalmamenteParkerPyne.

Pamela se aproximou—Sabe o que penso?Foi elamesma.

Ela andava muito esquisita ultimamente. Vivia imaginando

coisas.

—Quetipodecoisas?

— Coisas estranhas. Basil, por exemplo. Ela vivia dando

indiretas de que Basil estava apaixonado por ela. E Basil e eu

estamos...nósestamos...

—Jáimaginavaisso—disseParkerPynesorrindo.

—Tudo isso a respeito deBasil era pura imaginação.Acho

queelaestavacomódiodopobretioNunkseforjouessahistória

que eu lhe disse; depois pôs estriquinina na cabina e no bolso

deleeseenvenenou.Hápessoasquefazemcoisasdessetipo,não

é?

—Fazem— admitiu Parker Pyne.—Mas não acredito que

Lady Grayle tenha feito isso. Se me permite dizer, elanão era

dessetipo.

—EsuasilusõessobreBasil?

Page 233: Agatha christie o detetive parker pyne

—Sim,gostariadeperguntaralgumacoisaaoSr.Westsobre

isso.

Eleencontrouorapazemseuquarto.Basilrespondeuatudo

comrapidez.

— Não quero parecer um tolo, mas ela tinha mesmo uma

quedapormim.Eraporissoqueeunãoqueriaqueelasoubesse

nadaarespeitodePamela.ElateriafeitoSirGeorgemedespedir.

— Então o senhor acha que a teoria da Srta. Grayle é

plausível?

— Bom, acho que pode ser possível — o rapaz estava em

dúvida.

— Mas, não o satisfaz plenamente — disse Parker Pyne

devagar.—Não,nósprecisamosacharumateoriamelhor—ele

seperdeuemsuasmeditaçõesporumoudoisminutos.—Acho

que uma confissão seria o melhor — disse com vivacidade.

Apresentoua sua caneta euma folhadepapel.—Quer fazer o

favordeescrevê-la?

BasilWest olhou espantadopara ele—Eu?O que é que o

senhorestáinsinuando?

—Meucarorapaz...—ParkerPynesetornouquasepaternal.

— Eu sei de tudo. Como foi que conquistou a pobre senhora.

Como ela tinha escrúpulos. Como foi que se apaixonou pela

sobrinha, linda e sem vintém. Como foi que arranjou a trama.

Envenenamento lento. Poderia passar por morte natural por

gastrenterite;senãopassasse,seriaimputadoaSirGeorge,pois

vocêteveocuidadodecoincidirosataquescomapresençadele.

Page 234: Agatha christie o detetive parker pyne

Então houve a sua descoberta de que a senhora suspeitava de

tudo e que falara comigo a esse respeito. Uma ação rápida!

Apanhou um pouco de estriquinina da reserva da Srta.

MacNaughton.PôsumpouconacabinaenobolsodeSirGeorge,

eosuficientenumacápsula,quemandouparaasenhorajuntoa

umbilhete,dizendoqueerauma"cápsuladesonhos".Umaidéia

romântica. Ela a tomaria assim que a enfermeira a deixasse e

ninguém saberia nada a respeito. Mas você cometeu um erro,

meu caro rapaz.É inútil pedir aumamulher que queime suas

cartas. Elas nunca o fazem. Tenho toda a sua encantadora

correspondência,inclusiveaquefalasobreacápsula.

BasilWest estava verde de raiva. Todo o seu ar de bonitão

tinha desaparecido. Ele parecia mais um rato dentro de uma

ratoeira.

—Maldito!— rosnou ele.—Então o senhor sabe de tudo!

Seuintrometidoabelhudo!

Parker Pyne foi salvo da violência física pela chegada de

testemunhasqueelecuidadosamentecolocaraàescutaatrásda

portasemicerrada.

Parker Pyne estava discutindo o caso outra vez com seu

amigo,ooficialimportante.

—Eeunãotinhaamenorsombradeevidência!Apenasum

fragmentoquase indecifrável, com "queime isso!" escrito.Deduzi

todaahistóriae tentei impingi-la.Funcionou.Acerteiemcheio.

As cartas fizeram o resto. Lady Grayle tinha queimado mesmo

cadabilhetequeelelheescrevera,masdissoelenãosabia.

Page 235: Agatha christie o detetive parker pyne

Elaeramesmoumamulhermuitoestranha.Fiqueiintrigado

quandome procurou.O que queria era que eu lhe assegurasse

queseumaridoaestavaenvenenando.Nessecaso,pretendiafugir

com o jovem West. Mas ela queria agir com lealdade. Era um

carátercurioso.

—Aquelapobremoçavaisofrermuito—disseooutro.

—Elavaiserefazerlogo—disseParkerPyne,insensível.—

Ela é jovem. Estou ansioso para que Sir George consiga um

pouco de felicidade antes que seja tarde demais.Ele foi tratado

comoumvermenestesdezanos.Agora,ElsieMacNaughtonvai

serboaparaele.

Seu rosto estava risonho. Então deu um suspiro — Estou

pensandoemirincógnitoparaaGrécia.Estouprecisandomesmo

deumasférias!

Page 236: Agatha christie o detetive parker pyne

12

OOráculodeDelfos

A VERDADE, A SRA. Willard J. Peters não gostava muito da

Grécia.Eno fundo,elanão tinhamesmoeraopiniãonenhuma

sobreDelfos.

Os lares espirituais da Sra. Peters eram Paris, Londres e a

Riviera.Eraumamulherquegostavadavidadehotel,masasua

idéiadequartodehoteleraumtapetemacio,umacamaluxuosa,

uma profusão de arranjos de luz elétrica — incluindo uma

lâmpada de cabeceira sombreada — enormes quantidades de

água quente e fria e um telefone ao lado da cama, de onde ela

pudessemandarbuscarchá,refeições,águasminerais,coquetéis,

efalarcomosamigos.

No hotel de Delfos não havia nada disso. Tinha uma vista

maravilhosapelasjanelas;acamaeralimpaeoquartotambém,

caiado de branco. Havia uma cadeira, uma pia e uma cômoda

comgavetas.Osbanhoserammarcadoscomantecedênciaeeram

decepcionantesnoquediziarespeitoàáguaquente.

DeviaserbemdizerqueseesteveemDelfos,eaSra.Peters

tinhatentadomesmoseinteressarpelaGréciaAntiga,masachou

que era muito difícil. Suas estátuas pareciam inacabadas,

faltando cabeças, braços e pernas. Secretamente, ela preferia o

lindoanjodemármore,inteirinhocomsuasasas,quetinhasido

erigidosobreotúmulodofalecidoSr.WillardPeters.

Mas todas essas opiniões secretas, ela as guardava

Page 237: Agatha christie o detetive parker pyne

cuidadosamenteparasimesma,commedoqueseufilhoWillarda

desprezasse.Erapor amor aWillard que ela estava ali, naquele

quartofrioedesconfortável,comumaempregadarabugentaeum

motoristadesagradável.

PoisWillard (até bem pouco tempo chamado Júnior— um

apelido que ele detestava) era o filho de dezoito anos da Sra.

Peters e ela o adorava. Era Willard quem tinha esta estranha

paixão pela arte antiga. ForaWillard,magro, pálido, de óculos,

dispéptico,quearrastarasuaadoradamãenestaviagematravés

da Grécia. Eles tinham estado em Olímpia, que a Sra. Peters

achara de uma desordem triste. Ela gostara do Partenon, mas

considerava Atenas uma cidade sem esperanças. E a visita a

CorintoeMicenasforaumaagoniaparaelaeomotorista.

Delfos,pensaracomtristezaaSra.Peters,foraaúltimagota.

Não havia absolutamente nada a fazer a não ser andar pela

estrada e olhar para as ruínas. Willard passava horas inteiras

ajoelhado,decifrandoinscriçõesgregasedizendo:—Mãe,escute

sóisso!Nãoéformidável?—eliaalgumacoisaquepareciaparaa

Sra.Petersaquintessênciadamonotonia.

Esta manhã, Willard saíra muito cedo para ver alguns

mosaicosbizantinos.ASra.Peters,sentindoinstintivamenteque

os mosaicos bizantinos a deixariam fria (tanto literal como

espiritualmente),desculpou-sepornãoir.

— Compreendo,mãe— disseraWillard.— A senhora quer

ficarsozinhaparasesentarnoanfiteatroounoestádio,olharese

sentirmergulhadanaantigüidade.

—Éissomesmo,queridinho—disseraaSra.Peters.

Page 238: Agatha christie o detetive parker pyne

— Eu sabia que este lugar a encantaria — disse Willard

exultante,efoiembora.

Agora, com um suspiro, a Sra. Peters se preparava para

levantaretomaroseucafé.

Apenas quatro outras pessoas estavam no refeitório. Uma

senhora e sua filha, vestidas com um estilo muito peculiar na

opinião da Sra. Peters e que discursavam sobre a arte de

expressãonadança;umcavalheirodemeia-idade,gordinho,que

aajudaraatiraramalaquandodesceradotremecujonomeera

Thompson,eumrecém-chegado,umcavalheirotambémdemeia-

idade,comacabeçacalva,equechegaranatardeanterior.

EsteúltimopersonagemficounasaladocaféeaSra.Peters

logo puxou conversa com ele. Ela era uma mulher cordial e

gostavadeteralguémparaconversar.OSr.Thompsontinhasido

distintamentedesanimadoremsuasmaneiras(reservabritânica,

diziaaSra.Peters)easenhoraesuafilhaerammuitoemproadas

e intelectuais, se bem que a moça se desse muito bem com

Willard.

A Sra. Peters achou o recém-chegado uma pessoa muito

amável. Era informativo sem ser intelectual. Falou-lhe sobre

detalhes interessantes e agradáveis da Grécia, que a fizeram

sentir que os gregos eram afinal de contas pessoas reais e não

apenasahistóriacansativaemaçantedoslivros.

ASra.PeterscontouaseunovoamigotudosobreWillard:o

rapaz inteligente que ele era e de como ele podia se chamar

Cultura.Haviaalgoemsua figuraafávelebondosaque tornava

muitofácilaconversacomele.

Page 239: Agatha christie o detetive parker pyne

Oque ele fazia, ou qual era o seunome, a Sra. Peters não

tinha descoberto. Além do fato de estar viajando e de um

completo afastamento de seus negócios (que negócios?) ele não

eramuitocomunicativoaseurespeito.

Talvez por isso, o dia passou com mais rapidez do que o

costume. A senhora, sua filha e o Sr. Thompson continuavam

insociáveis.ASra.Peterseseunovoamigoencontraram-secomo

Sr. Thompson quando este último saía do museu, e ele

imediatamentevirou-senadireçãooposta.

Onovoamigooviuafastar-secomumaruganatesta—Não

imaginoquempossaserestecamarada.

A Sra. Peters lhe deu o nome do outro, mas não pôde

acrescentarmaisnada.

—Thompson...Thompson...Não,achoquenãooconheço;e,

no entanto, o seu rosto me parece familiar. Mas não consigo

descobrirdeonde.

ASra.Peters aproveitoua tardepara tirarumcochilonum

lugar protegido pela sombra. O livro que levara não era o

excelente tratado sobre a arte grega recomendadopor seu filho,

mas,pelocontrário,umoutrointituladoOMistériodaLanchado

Rio. Tinha quatro assassinatos, três raptos e uma enorme e

variadaquadrilhadeperigososmalfeitores.ASra.Peterssesentiu

maisanimadaecontentecomaleitura.

Eram quatro horas da tarde quando voltou ao hotel. Ela

estavaseguradequeWillard jádeviaestarchegando.Tão longe

estavademauspressentimentosquequaseseesqueceudeabriro

bilhetequeodonodohotellhedera,dizendotersido'deixadopor

Page 240: Agatha christie o detetive parker pyne

umhomemdesconhecidoduranteatarde.

Era um envelope muito sujo. Indolentemente, ela rasgou o

envelope.Aolerasprimeiraslinhas,seurostoempalideceueela

se segurou com uma das mãos para se amparar. A letra era

estranha,masalínguaempregadaeraoinglês.

Senhora(começavaassim):

Isto é para avisar à senhora que seu filho está em nossas

mãosemlocaldegrandesegurança.Nadademalaconteceráao

distinto rapaz se a senhora obedecer nossas ordens ao pé da

letra. Pedimos por ele um resgate de dezmil libras inglesas. Se

falarsobreissoaoproprietáriodohotelouàpolíciaouaqualquer

outra pessoa seu filho será morto. Este aviso é para que a

senhorapensebem.Amanhãasenhorareceberáinstruçõessobre

aformacomoodinheirodeveráserentregue.Senãoobedecer,as

orelhasdodistintorapazserãocortadaselheserãoenviadas.Se

no dia seguinte insistir em não obedecer, ele será morto. Mais

umavez —isto não é uma ameaça vã. Pense bem Kyria, —e

acimadetudo—nãofalenada.

Demetrius,ohomemdassobrancelhasnegras.

Seria inútildescreveroestadodeespíritodapobresenhora.

Pormaisabsurdae infantilque fosseaproposta,ela lhe trouxe

umaatmosferacrueldeperigo.

Willard, seu garoto, seu queridinho, o sério e delicado

Page 241: Agatha christie o detetive parker pyne

Willard!

Iria imediatamente a, polícia; poria toda a vizinhança em

polvorosa.Mastalvezsefizesseisto...estremeceu.

Então, recompondo-se, saiu à procura do proprietário do

hotel,aúnicapessoacomaqualelapodiafalaringlês.

—Jáestáficandotarde—disseela.—Meufilhoaindanão

voltou.

O simpático homenzinho sorriu para ela — Verdade.

Monsieurdespachouasmulasdevolta.Quisvoltarapé.Jádevia

terchegadoaqui,massemdúvidadeixou-seficarpelocaminho—

sorriucontente.

— Diga-me — disse a Sra. Peters bruscamente, — existem

pessoasdemaucaráterpelasredondezas?

Mau caráter não era um termo que estivesse dentro dos

conhecimentos de inglês do homenzinho. A Sra. Peters se

explicoumelhor.Recebeuemrespostaacertezadequetodosque

viviamemtornodeDelfoserampessoasboas,muitosossegadas

—todossempresimpáticosaosestrangeiros.

As palavras tremeram em seus lábios, mas ela se forçou a

engoli-las. A ameaça sinistra refreou sua língua. Podia ser um

simples blefe.Mas, e senão fosse?Umaamiga suanaAmérica

tiveraumacriançaraptadae,porteravisadoapolícia,acriança

foimorta.Estascoisasacontecem.

Elaestavaquasealucinada.Oquepodiafazer?Dezmillibras

oqueeraissoemcomparaçãocomasegurançadeWillard?Mas

Page 242: Agatha christie o detetive parker pyne

comopoderiaelaobter talsoma?Existiamdificuldadessem fim

em relação à operações de câmbio e à retirada de dinheiro em

espécie.Umaordemdecréditodealgumascentenasdelibrasera

tudooquetinhaemseupoder.

Será que os bandidos compreenderiam isto? Seriam

razoáveis?Esperariam?

Quando a empregada se aproximou, ela a mandou embora

violentamente.Quandotocouacampainhaparaojantar,apobre

senhora se viu obrigada a ir para o refeitório. Comeu

mecanicamente. Não viu ninguém. Por ela, a sala podia estar

vazia,quenãoteriareparado.

Com as frutas, uma nota foi colocada à sua frente. Ela

piscou,masaletraeracompletamentediferentedaquetemiaver

— era muito inglesa, clara, profissional. Abriu-a sem muito

interesse,masachouseuconteúdoestranho:

EmDelfos já não se pode consultar oOráculo,mas pode-se

consultaroSr.ParkerPyne.

Anexo havia um recorte de anúncio pregado ao papel e em

cima da folha uma fotografia de tamanho passaporte. Era o

retratodeseuamigocarecadestamanhã.

ASra.Petersleuoanúncioduasvezes:

Page 243: Agatha christie o detetive parker pyne

Vocêéfeliz?Senãofor,consulteoSr.ParkerPyne.

Feliz? Feliz? Será que alguém já tinha sido tãoinfeliz? Era

comosefosseumarespostaàssuaspreces.

Rapidamenteelaescreveuunsrabiscosnumafolhadepapel

limpaqueencontrouporacasoemsuabolsa:

Porfavor,meajude.Podeseencontrarcomigodoladodefora

dohoteldentrodedezminutos?

Elaafechouemumenvelopeemandouogarçomentregá-la

ao cavalheiro que estavanamesa perto da janela.Dezminutos

depois, enrolada numabrigo de pele, pois a noite estavamuito

fria,aSra.Peterssaiudohotel esepôsaandar lentamenteao

longo da estrada entre as ruínas. Parker Pyne estava à sua

espera.

—Foiaprovidênciadivinaqueotrouxeaqui—disseaSra.

Petersquasesemfôlego.—Mascomofoiqueadivinhouoterrível

problemaquemepreocupa?Éistoqueeuquerosaber.

—Ocomportamentohumano,minhacarasenhora—disse

Parker Pyne gentilmente.—Vi logo que haviaalgo errado,mas

estavaàesperaquemecontasse.

Elacontoutudodeumavez.Mostrou-lheacarta,queeleleu

comaajudadeumapequenalanternadebolso.

— Hum... — disse. — Um documento singular. Um

Page 244: Agatha christie o detetive parker pyne

documentobastantesingular.Hácertospontos...

MasaSra.Petersnãoestavaemestadoparadiscutirquaisos

melhores pontos da carta. O que ela devia fazer a respeito de

Willard?SeufrágilequeridoWillard!

ParkerPynetentouacalmá-la.Pintouumatrativoretratoda

vidados fora-da-leinaGrécia.Teriamumcuidado especial com

seuprisioneiro,umavezqueelerepresentavaumaminadeouro

empotencial.Aospoucosconseguiuacalmá-la.

—Masoquedevofazer?—lamentou-seaSra.Peters.

—Espereatéamanhã—disseParkerPyne.—Istoé,amenos

queprefirairimediatamenteàpolícia.

A Sra. Peters interrompeu-o com um grito de terror. Seu

adoradoWillardseriaassassinadoimediatamente!

—Osenhorachaqueconseguirei terWillarddevoltasãoe

salvo?

— Não há a menor dúvida — disse Parker Pyne para

tranqüilizá-la.—Aúnicadúvidaéseasenhoraconseguiráreavê-

losemterdepagarasdezmillibras.

—Tudooqueeuqueroéomeumenino.

—Sim, sim—disse Parker Pyne acalmando-a.—Por falar

nisso,quemfoiquetrouxeacarta?

— Um homem que o dono do hotel não conhece. Um

estranho.

Page 245: Agatha christie o detetive parker pyne

— Ah! Aí está uma possibilidade! O homem que trouxer a

carta amanhã pode ser seguido. O que está dizendo para o

pessoaldohotel,sobreaausênciadeseufilho?

—Nãotinhapensadonisso...

— Sei— Parker Pyne refletiu.— Acho que a senhora deve

demonstrar com naturalidade que está alarmada e preocupada

comsuaausência.Umgrupodebuscasdevesairparaprocurá-lo.

—Nãoachaqueestesdemônios...—elaengasgou-se.

—Não,não.Enquantonãohouvernenhumapalavrasobreo

rapto ou o resgate, eles não se tornarão perigosos. Apesar de

tudo,nãosepodeesperarqueasenhoraaceiteodesaparecimento

deseufilhosemnenhumespalhafato.

—Possodeixarporsuaconta?

—Éesteomeunegócio—disseParkerPyne.Caminharam

de volta para o hotel, mas quase esbarraram numa figura

troncuda.

—Quemera?—perguntourapidamenteParkerPyne.

—AchoqueeraoSr.Thompson.

— Ah! — disse Parker Pyne. — Seria o Thompson?

Thompson...hum...

ASra.Peterspensouaodeitar-sequeaidéiadeParkerPyne

sobrea carta eramuitoboa.Fossequem fossequea trouxesse,

Page 246: Agatha christie o detetive parker pyne

tinha de estar em contato com os bandidos. Ela se sentiu

consoladaeadormeceumaisdepressadoqueteriaimaginado.

Quando se vestia na manhã seguinte, reparou de repente

numacoisa caídano chãopertoda janela.Apanhou-a e—seu

coração quase parou de bater. O mesmo envelope sujo e

ordinário,amesmaletraodiada.Elaabriu.

Bomdia,senhora.Jápensoubem?Seufilhoestábemeileso

—atéagora.Masnósqueremosodinheiro.Talveznãoseja fácil

paraasenhoraconseguirestaquantia,masnóssabemosquea

senhora tem um colar de brilhantes. Pedras muito boas.

Ficaremos satisfeitos comele emvezdodinheiro.A senhora, ou

alguémdesuaconfiança,deverá trazerocolaraoestádio.De lá

atéondeháumaárvorepertodeumapedragrande.Olhosficarão

observando se vem apenas uma pessoa. Então o seu filhoserá

trocadopelocolar.Ahoraseráamanhãàsseishorasdamanhã,

logodepoisdaaurora.Sepuserapolíciaemnossoencalçodepois

disso, nós atiraremos em seu filho quando seu carro for para a

estação.

Esta é a nossa última palavra, senhora. Se não tivermos o

colar amanhã, lhe mandaremos as orelhas de seu filho. No dia

seguinteelemorrerá.

Minhassaudações,senhora.Demetrius

ASra.PeterscorreuparaseencontrarcomParkerPyne.Ele

leuacartacommuitaatenção.

Page 247: Agatha christie o detetive parker pyne

—Éverdade—perguntouele,—oquedizsobreocolarde

brilhantes?

—A pura verdade.Meumarido pagou cemmil dólares por

ele.

—Nossos ladrõessãobem informados—murmurouParker

Pyne.

—Oquefoiqueosenhordisse?

—Estavaapenasconsiderandoalgunsaspectosdestecaso.

—Palavra,Sr.Pyne,nósnãotemostempoparaosaspectos.

Eutenhodereavermeumenino.

—Masasenhoraéumamulherdebrio,Sra.Peters.Gostaria

deserintimidadaeroubadaemdezmillibras?Agrada-lheaidéia

deentregarseusdiamantessemnenhumareaçãoparaumbando

derufiões?

—Bem,éclaroquenão,seosenhorcolocaascoisasdessa

forma! — os brios da Sra. Peters estavam em luta com o seu

sentimento maternal. — Como eu queria pegar esses sujeitos!

Estes brutos covardes! Assim que conseguirmeu filho de volta,

Sr. Pyne, vou pôr toda a polícia para dar uma batida pelas

vizinhanças.Sefornecessárioalugoumcarroblindadoparalevar

Willardeamimparaaestação!—aSra.Petersestavacoradae

queriavingança.

— S-sim — disse Parker Pyne. — Minha cara senhora, é

possívelqueelesestejampreparadosparaessegestodesuaparte.

SabemqueumavezqueWillardestejadevolta,nadalheimpedirá

Page 248: Agatha christie o detetive parker pyne

decolocartodaaredondezaemestadodealerta.

—Bem,oqueéqueosenhorquerfazer?ParkerPynesorriu

—Querotentarumplanoqueimaginei—olhouemtornodasala

de jantar. Estava vazia e ambas as cortinas dos lados estavam

fechadas. — Sra. Peters, conheço um homem em Atenas... um

joalheiro.Eleéespecialistaemótimosdiamantesartificiais...um

trabalhodeprimeiraclasse...—suavozeraquaseumsussurro,

agora: — Vou chamá-lo pelo telefone. Ele pode vir aqui hoje à

tarde,trazendoumaboacoleçãodepedras.

—Querdizerque...

—Elevaiextrairosdiamantesverdadeirosecolocaráemseu

lugarduplicatasfalsas.

—Mas,éacoisamaisformidávelquejáouvi!—aSra.Peters

olhou-ocomadmiração.

—Shhh!Nãofaleassimtãoalto.Quermefazerumfavor?

—Claro,

—Nãodeixeninguémseaproximardotelefoneenquantoeu

falo.

ASra.Petersconcordoucomacabeça.

Otelefoneeranoescritóriodogerente.Eleodesocupoucom

gentileza, depois de ter ajudado Parker Pyne a conseguir sua

chamada.Quandosaiudelá,encontrouaSra.Petersdoladode

fora.

—EstouapenasesperandooSr.ParkerPyne—disseela.—

Page 249: Agatha christie o detetive parker pyne

Vamosdarumpasseio.

—Ah,sim,Madame.

O Sr. Thompson também estava no saguão. Aproximou-se

deles e começou a conversar com o gerente. Havia vilas para

alugaremDelfos?Não?Masdeviahaveralgumapertodohotel?

— Esta pertence a um senhor grego, Monsieur. Ele não a

aluga.

—Enãoháoutrasvilas?

— Há uma outra que pertence a uma senhora americana.

Ficadooutroladodacidade.Estáfechadaagora.

Eaindaháumaoutraquepertenceaumsenhoringlês,um

artista...ficanabeiradaencostaquedáparaItea.

ASra.Peters entrouna conversa.Anatureza lhederauma

vozalta,epropositadamenteelafaloubemalto—Ah!—disseela,

euadoraria terumavilaaqui!É tãosingelo, tãonatural.Estou

simplesmenteencantadacomolugar,nãoacha,Sr.Thompson?

Mas é claro que o senhor também deve estar gostando, para

querer alugar uma vila. É a primeira visita que faz aqui? Não

diga!

Continuoucomdeterminação,atéqueParkerPynesaíssedo

escritório.Elelhedirigiuumlevesorrisodeaprovação.

OSr. Thompsondesceu lentamente os degraus e se dirigiu

paraaestrada,ondesejuntoucomamãeintelectualesuafilha,

quepareciamestarsentindofrionosbraçosnus.

Page 250: Agatha christie o detetive parker pyne

Tudo correu bem. O joalheiro chegou um pouco antes do

jantaremumônibuscheiodeoutrosturistas.ASra.Peterslevou

ocolaratéoquartodele.Eledeuumgrunhidodeaprovação.

—Madamepode ficar tranqüila.Vou fazero trabalho—ele

tiroualgumas ferramentasdeumapequenasacolae começoua

trabalhar.

Àsonzehoras,ParkerPynebateuàportadoquartodaSra.

Peters—Aquiestá!

Ele lhe entregou uma bolsinha de camurça. Ela deu uma

olhada:—Meusdiamantes!

—Silêncio!Aquiestáocolarcomaspedras falsasno lugar

dosdiamantes.Muitobom,nãoficou?

—Simplesmentemaravilhoso.

—Aristopouloséumsujeitoesperto.

—Nãoachaqueelesvãosuspeitar?

— Como? Eles sabem que a senhora está com o colar. A

senhoravaientregá-lo.Comopodemdesconfiardesseardil?

— Bem, acho que é maravilhoso — disse outra vez a Sra.

Peters,entregando-lheocolardevolta.—Seráqueosenhorpode

levá-loparaeles?Ouseráqueépedir-lhemuito?

—Éclaroquepossolevá-lo.Dê-meapenasacarta,paraque

eupossateradireçãosemenganos.Obrigado.Agora,boanoitee

boncourage.Seufilhoestaráaquiamanhãparatomarcafé.

Page 251: Agatha christie o detetive parker pyne

—Tomaraquesim!

—Vamos,nãosepreocupe.Deixetudoporminhaconta.

A Sra. Peters não passou uma boa noite. Quando dormiu,

tevesonhoshorríveis.Sonhosondebandidosarmadosemcarros

blindados abriam uma fuzilaria contra Willard, que descia

correndodeumamontanhaemseuspijamas.Ficousatisfeitapor

acordar.Finalmentesurgiuoprimeirolampejodaaurora.ASra.

Petersselevantouesevestiu.Ficousentada—àespera.

Assetehorasbateramàsuaporta.Suagargantaestava tão

secaqueelaquasenãopôderesponder.

—Entre—disseela.

AportaabriueentrouoSr.Thompson.Elaolhouparaele.

Faltaram-lhe as palavras. Teve um pressentimento sinistro de

desgraça. E, entretanto, quando ele falou, sua voz era

absolutamentetranqüila.Eraumavozsuave,agradável.

—Bomdia,Sra.Peters—disseele.

—Comoseatreve,senhor!Comoseatreve...

—Asenhoradeve-medesculparestavisitatãoextemporânea

eaumahoratãomatinal—disseoSr.Thompson.—Mascomo

vê,tenhoumpequenonegócioaresolver.

ASra.Petersavançouparaafrentecomolhosacusadores.—

Entãofoiosenhorquemraptoumeumenino!Nãoerambandidos

afinal!

—Élógicoquenãoerambandidos.Acheiaquelaparte,aliás,

Page 252: Agatha christie o detetive parker pyne

muitopoucoconvincente.Nomínimo,muitosemgosto,eudiria.

ASra.Peterseraumamulherdeumasóidéia—Ondeestáo

meufilho?—perguntouelacomolhosdeumaonçaraivosa.

—Para falar a verdade—disse oSr. Thompson—ele está

atrásdaporta.

—Willard!

A porta escancarou-se. Willard, pálido, de óculos e com a

barbaporfazer,foiesmagadocontraocoraçãodesuamãe.OSr.

Thompsonficoualidepé,bondosamenteobservandoacena.

—Dequalquerjeito—disseaSra.Peters,recompondo-sede

repente e voltando-se para ele, vou pôr a polícia em cima do

senhor.Ah,sim,éoqueeuvoufazer.

— A senhora não está entendendo nada, mãe — disse

Willard.—Foiestesenhorquemmesalvou.

—Ondeéquevocêestava?

—Numacasasobreaencosta.Aumquilômetroemeiodaqui.

—Epermita-me,Sra.Peters—disseoSr.Thompson,—de

lhedevolveroquelhepertence.

Entregou-lheumpequenopacotemalamarradoempapelde

embrulho.Opapelcaiu,revelandoocolardebrilhantes...

— Não precisa guardar o outro saquinho de pedras, Sra.

Peters—disseoSr.Thompsonsorrindo.—Aspedrasverdadeiras

ainda estão no colar. O saquinho de camurça contém algumas

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ótimaspedrasdeimitação.Comodisseoseuamigo,Aristopoulos

équaseumgênio.

—Não estou entendendo nemumapalavra—Disse o Sra.

Petersdèbilmente.

—Deveobservarestecasodomeupontodevista—disseo

Sr. Thompson. — O que me chamou a atenção foi um

determinadonome.Tomeialiberdadedeseguirasenhoraeseu

amigogorduchopordetrásdasportaseouvitudo...admitocom

franqueza... tudo sobre a sua conversa altamente interessante.

Achei-a tão extraordinariamente sugestiva que fiz minhas

confidencias ao gerente. Ele tomou nota do número que o seu

possívelamigochamoupelotelefone,e feztambémcomqueum

garçomescutasseasuaconversaontemdemanhãnorefeitório.

O plano funcionou às mil maravilhas. A senhora ia sendo

vítimadeumadupladevivíssimosladrõesdejóias.Elessabiam

sobreoseucolardebrilhantes;seguiram-naatéaqui; raptaram

seufilhoeescreveramaquelaquasecômicacartados"bandidos";

econseguiramqueasenhoraconfiassenochefee inspiradordo

conluio.

Depois, foi tudo muito simples. O gentil cavalheiro lhe

entrega a bolsinha com os brilhantes falsos... foge com seu

companheiro.Hojedemanhã,quandoseufilhonãoaparecesse,a

senhora ficaria desesperada. A ausência de seu amigo levaria a

crer que ele também fora raptado. Imagino que eles tenham

arranjado alguém para ir até á vila amanhã. Esta pessoa

descobriria seu filho, e aí então, os dois raciocinando juntos,

talvezdescobrissemumavaga insinuaçãodoplano.Masaestas

horasosbandidosjáteriamumaboadianteira.

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—Eagora?

— Ah, agora eles estão bem seguros atrás das grades. Já

arranjeitudo.

—Aquelebandido—disseaSra.Peters,relembrandofuriosa

as suas próprias confidencias. Aquele patife falador e sem-

vergonha!

—Umcamaradamuitoàtoa—concordouoSr.Thompson.

— Não posso imaginar como foi que descobriu — disse

Willardcomadmiração.—Foigenialdesuaparte.

O outro balançou a cabeça modestamente — Não, não —

disse. — Quando se está viajando incógnito e se escuta o seu

próprionomeserproclamadoporaí...

ASra.Petersolhou-o—Queméosenhor?—perguntouela

inopinadamente.

—EusouoSr.ParkerPyne—explicouocavalheiro.

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SobreaAutora

AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo

livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro

romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um

mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao

mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação

psicológica.

NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,

Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai

americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na

infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo

descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,

seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o

criadordeSherlockHolmes.

Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm

papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos

quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz

Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando

especialmenteosrefugiadosbelgas.

Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da

vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha

de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando

pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,

durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e

detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por

envenenamento”,costumavadeclarar.

“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro

mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão

traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões

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deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela

quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão

apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.

Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a

mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.