agatha christie o detetive parker pyne
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Na página de classificados do The Times, um anúncio insiste em provocar curiosidade nos leitores: “VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR, CONSULTE O SR. PARKER PYNE”. Depois de 35 anos compilando estatísticas em uma repartição pública, o detetive Parker Pyne decide empregar seu conhecimento de forma inovadora: salvando casamentos, acrescentando aventura ou dando sentido à vida de seus clientes. No lugar de crimes insolúveis, ele se dedica a investigar os recônditos do coração humano. Porém seus talentos não se restringem a seu escritório; quando viaja de férias, incógnito, o consultor sentimental é forçado a usar seu conhecimento da natureza humana para enfrentar ladrões, e até mesmo desvendar assassinatos.Publicado primeiramente em 1934, o livro reúne catorze histórias protagonizadas por este improvável detetive.
1
OCasodaEsposadeMeia-idade
QUATROGRUNHIDOS,umavoz indignadaperguntandoporque
alguémnãodeixavaempazumchapéu,umaportafechadacom
estrondo e o Sr. Packington saiu para pegar o trem das oito e
quarenta e cinco para a cidade. A Sra. Packington sentou-se à
mesadocafé.Tinhaorostoruborizadoeoslábiosapertados:esó
nãochoravaporqueamágoatinhasidosubstituídapelaraiva.
— Não agüento mais — disse a Sra. Packington. — Não
agüentomais!— ficoupensativaporalgunsmomentosedepois
murmurou: — Aquela sirigaita. Que mulherzinha hipócrita e
indecente!ComoGeorgepôdesertãoestúpido!
A raiva passou; voltou a mágoa. As lágrimas encheram os
olhosdaSra.Packingtonerolaramlentamentepeloseurostode
mulhermadura.
—Émuitofácildizerqueeunãoagüentomais,masoqueé
queeupossofazer?
De repente, sentiu-se sozinha e indefesa, completamente
abandonada.Comgestoslentos,pegouojornaleleu—nãopela
primeiravez—umanúnciodeprimeirapágina:
CONFIDENCIAL
VOCÊÉFELIZ?SENÃOFOR,CONSULTEOSR.PARKER
PYNE.RUARICHMOND,17.
— Absurdo! — disse a Sra. Packington. — Completamente
absurdo!—edepois:—Enfim,nãocustatentar...
Eisporque,àsonzehorasdamanhã,aSra.Packington,um
pouconervosa,entrounoescritórioparticulardoSr.ParkerPyne.
ASra.Packingtonestavanervosa, sim,masa simples visão
doSr.ParkerPynelhedeuumaimpressãodesegurança.Eleera
forte, para não dizer gordo; tinha uma cabeça calva bem
proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos
brilhantes.
—Sente-se,porfavor—disseoSr.ParkerPyne.
—Viuomeuanúncio?—perguntou,paraajudá-la.
—Sim—disseaSra.Packington,enãodissemaisnada.
—Enãoéfeliz—disseoSr.ParkerPynenumavozjoviale
prática. — Muito poucas pessoas o são. A senhora ficaria
surpresasesoubessequemuitopoucaspessoassãofelizes.
—Émesmo?—perguntouaSra.Packingtonsemconvicçãoe
pouco se importando que as outras pessoas fossem ou não
infelizes.
— Eu sei que isso não lhe interessa — disse o Sr. Parker
Pyne,—masamiminteressamuito.Vejaasenhoraquedurante
trintaecincoanosdaminhavidaeusófizcompilarestatísticas
numarepartiçãodoGoverno.Agoraquemeaposentei,meocorreu
aidéiadeaproveitardeumamaneiradiferentetodaaexperiência
queadquiri.Étudomuitosimples.Asdesgraçastodaspodemser
classificadasemcincocategoriasprincipais
— nem mais nem menos, posso lhe garantir. Uma vez
conhecida a causa de uma doença, a cura passa a ser
perfeitamente possível. Eu me coloco no papel de um médico.
Primeiroomédicodiagnosticaomaldopaciente,depoisprescreve
otratamento.Hácasosemquenenhumtratamentodáresultado.
Quandoéassim,digocomtodaafranquezaquenãopossofazer
nada.Maslhegaranto,Sra.Packington,queseeutomarcontade
seucaso,acuraépraticamentegarantida.
Seria possível? Seria uma tolice ou seria verdade? A Sra.
Packingtonolhouesperançosaparaele.
— Podemos diagnosticar o seu caso?— disse o Sr. Parker
Pyne sorrindo. Recostou-se em sua cadeira e juntou as pontas
dosdedosdasmãos.—Oproblemadizrespeitoaseumarido.De
ummodogeralasenhorateveumcasamentofeliz.Creioqueseu
marido prosperou. Suponho que haja uma jovem neste caso...
talvezumamoçaquetrabalhenoescritóriodeseumarido.
— Uma datilografa — disse a Sra. Packington. — Uma
sirigaitazinhafalsaeindecente,cheiadebatomemeiasdesedae
cachinhos.Aspalavrassaíramaosborbotões..
O Sr. Parker Pyne balançou a cabeça de maneira
apaziguadora.—Nãohánadademalnisso...certamenteéissoo
queoseumaridodiz...
—Éexatamenteisso.
—Eporquenãopoderiaelemanterumaamizadepuracom
estamoçaeproporcionarumpouquinhodealegriaeprazerasua
existência tão monótona? Pobre menina! Ela se diverte tão
pouco...Suponhoquesejamestesosseussentimentos.
ASra.Packington fezquesimcomacabeça,vigorosamente
— Um embuste... tudo um embuste! Ele a leva ao rio... eu
tambémgostomuitodeiraorio,masháunscincoouseisanos
elemedissequeissoatrapalhavaogolfedele.Agoraeledeixouo
golfedeladoporcausadela.Eugostodeteatro,masGeorgevivia
dizendoque estavamuito cansadopara sairdenoite.Agora sai
com ela para dançar —dançar! E volta às três damadrugada!
Eu...eu...
—Esemdúvidaelelamentaofatodequeasmulheressejam
tão ciumentas... tão injustificàvelmente ciumentas, quando não
hánenhummotivoparaociúme?
NovamenteaSra.Packingtonfezquesimcomacabeça—É
isso—perguntousecamente:—Comoéqueosenhorsabedisso?
—Estatísticas—disseoSr.ParkerPynecomsimplicidade.
—Eusoutãoinfeliz—disseaSra.Packington.—Semprefui
umaesposadedicadaparaGeorge.Gasteiasminhasunhasatéo
sabugonosprimeirosanosdanossavida.Euoajudeiavencer.
Nunca olhei para outro homem. Suas roupas estão sempre em
ordem, a comida é boa, cuido muito bem da casa, e com
economia.Eagoraquesuperamosasdificuldadesepoderíamos
nosdivertir,sairumpoucoe fazer todasascoisasqueeutinha
vontadedefazeralgumdia...vaiacontecerisso!—elaengoliuem
seco.
OSr.ParkerPyneconcordougravemente—Podeficarcerta
dequecompreendoperfeitamenteoseucaso.
— E... pode fazer alguma coisa? — ela quase sussurrou a
pergunta.
—Certamente,minhacarasenhora.Hácura.Certamenteque
hácura.
—Equalé?—elaaguardavaansiosa,osolhosarregalados.
OSr.ParkerPynefaloucomumavozcalmaefirme
— A senhora vai se colocar em minhas mãos, e meus
honoráriosserãodeduzentosguinéus.
—Duzentosguinéus!
—Exatamente.Asenhorapodepagar isto,Sra.Packington.
Pagariaporumaoperação.Afelicidadeétãoimportantequantoa
saúdedocorpo.
—Suponhoquevoupagardepois.
—Pelocontrário—disseoSr.ParkerPyne.—Asenhoravai
mepagaradiantado.
ASra.Packingtonselevantou—Nãovejoporque...
—Asenhoratemecomprargatoporlebre?—disseoSr.Pyne
jovialmente. — Bem, talvez a senhora tenha razão. É muito
dinheiroparaarriscar.Asenhoratemqueconfiaremmim.Pagar
ecorrerorisco.Sãoestasasminhascondições.
—Duzentosguinéus!
— Exatamente. Duzentos guinéus. É muito dinheiro. Bom
dia,Sra.Packington.Meavisesemudardeidéia
—apertou-lheamão,sorrindo,imperturbável.
Depois que ela saiu, apertou um botão na suamesa. Uma
moçadeóculosearseverorespondeuaochamado.
—Umfichário,porfavor,Srta.Lemon.Epodetambémavisar
aClaudequeeutalvezváprecisardelebrevemente.
—Umanovacliente?
—Umanovacliente.Porenquantoelaestárelutante,masvai
voltar. Provavelmente hoje à tarde, lá pelas quatro horas. Pode
deixarentrar.
—EsquemaA?
—EsquemaA,élógico.Éengraçadocomotodomundopensa
queoseuprópriocasoéúnico.Bom,aviseClaude.Diga-lhepara
nãoparecermuitoexótico.Nadadeperfume,eémelhorelecortar
ocabelo.
Passavam quinze minutos das quatro horas quando a Sra.
PackingtonentroudenovonoescritóriodoSr.ParkerPyne.Tirou
dabolsaumlivrodecheques,preencheuumdeleseoentregou.
Emtrocaobteveumrecibo.
—Eagora?—aSra.Packingtonolhouesperançosaparaele.
—Agora—disseoSr.Pynesorrindo,—asenhoravaivoltar
paracasa.Peloprimeirocorreiodeamanhãvai receberalgumas
instruçõesqueeugostariamuitodevercumpridas.
A Sra. Packington voltou para casa num estado de alegria
antecipada. O Sr. Packington voltou com ar defensivo, pronto
para discutir a situação, caso a cena damanhã fosse reaberta.
Ficou aliviado, entretanto, ao ver que amulher não estava com
espíritocombativo.Elapareciaestranhamentepensativa.
George ficou ouvindo rádio, imaginando se aquela pobre e
queridaNancyconsentiriaqueelelhedesseumcasacodepeles.
Ele sabia que ela era muito orgulhosa. Não queria ofendê-la.
Apesardisso,elasequeixaradofrio.Aquelecasacodelãeratão
ordinário; nem a protegia do frio. Talvez ele conseguisse
convencê-la,talvez...
Breve elespoderiamnovamente sair juntosànoite.Eraum
prazersaircomumamoçaassimelevá-laaumdosrestaurantes
da moda. Ele se sentia invejado por muitos rapazes. Ela era
extraordinariamentebonita.Egostavadele.Para ela—como já
lhedissera—elenãoeranemumpouquinhovelho.
Levantou os olhos e percebeu o olhar damulher. Sentiu-se
repentinamente culpado e isto o aborreceu. Que mulher
intoleranteeraMaria!Negava-lheatéumpinguinhodefelicidade.
Desligouorádioefoiparaacama.
A Sra. Packington recebeu duas cartas inesperadas, na
manhãseguinte.Umadelas eraum impressoconfirmandouma
horamarcadanumconhecidoespecialistadebeleza.Asegunda
marcava uma hora com uma costureira. A terceira era do Sr.
Parker Pyne, solicitando o prazer de sua companhia para um
almoçonoRitznaqueledia.
OSr.Packingtonavisouquetalveznãopudessevirjantarem
casa, pois tinha que ver um homem de negócios. A Sra.
Packington abanou a cabeça distraidamente, e ele saiu de casa
satisfeitoporterescapadodatempestade.
Oespecialistadebelezafoiadmirável:—Masquenegligência!
Porquê?Porque,Madame?Hámuitotempoqueasenhoradevia
terfeitoalgumacoisa.Felizmente,aindanãoétarde!
Umaporçãodecoisasforamaplicadassobreoseurosto;ele
foimassageado, apertado e tratado a vapor. Aplicaram-lhe uma
máscara de lama. Aplicaram-lhe cremes diversos. Passaram pó-
de-arroz.Edepoishouveumasériederetoquesfinais.
Por fim lhe deram um espelho.Acho que estou mesmo
parecendomaismoça,pensouela.
Ahoracomacostureirafoi igualmenteexcitante.Saiudelá
sesentindoelegante,atualizada,norigordamoda.
Aumaemeiadatarde,aSra.PackingtonchegavaaoRitz.O
Sr.ParkerPyne,impecàvelmentevestido,eenvoltonumaaurade
serenaconfiança,estavaesperandoporela.
—Encantadora—disse,comumolhoexperienteaexaminá-
ladacabeçaaospés.—MeantecipeielheencomendeiumWhite
Lady.
A Sra. Packington não tinha o hábito de tomar coquetéis,
masnãodissenada.Enquantobebiacautelosamenteoexcitante
líquido,ouviaoseupacienteinstrutor.
—Seumarido,Sra.Packington—disseoSr.Pyne,—vaiser
obrigado aficar em guarda. Compreendeu?Se interessar. Para
ajudá-la,vouapresentá-laaumjovemamigomeu.Asenhoravai
almoçarcomelehoje.
Neste instante entrou um rapaz, olhando de um lado para
outro. Ao avistar o Sr. Parker Pyne, caminhou em sua direção,
comelegância.
—OSr.ClaudeLuttrell,Sra.Packington.
OSr.ClaudeLuttrelltalvezaindanãotivessetrintaanos.Era
atraente,desembaraçado, impecàvelmentevestido,extremamente
bonito.
—Muitoprazeremconhecê-la—murmurou.
Trêsminutosdepois,aSra.Packingtonestavafrenteafrente
comseunovomentor,numapequenamesaparadois.
Estavaumpoucotímidano início,masoSr.Luttrell logoa
colocouà vontade.Ele conheciaParismuitobemepassaraum
bom tempo na Riviera. Perguntou à Sra. Packington se ela
gostava de dançar. Ela disse que gostava, mas quase não saía
para dançar, atualmente, porque o Sr. Packington não gostava
muitodesairdenoite.
—Maselenãopodesertãocruelassim,apontodeprendê-la
em casa — disse Claude Luttrell, sorrindo e mostrando uma
deslumbrante fileiradedentes.—Asmulheresnãodevemmais
tolerarociúmemasculino,emnossosdias.
A Sra. Packington quase disse que o problema não era o
ciúme,masaspalavrasnãosaíram.Apesarde tudo,a idéiaera
agradável.
Claude Luttrell falou superficialmente de boates. Ficou
combinado que na noite seguinte a Sra. Packington e o Sr.
LuttrelliriamconheceropopularArcanjoMenor.
A Sra. Packington se sentia um pouco nervosa ante a
perspectivadeanunciarofatoaomarido.ImaginouqueGeorgeia
achar muito estranho e talvez ridículo. Mas teve sorte. Estava
muitonervosapara falarcomeleduranteocafédamanhã,e lá
pelasduashorasdatardeumtelefonemalheinformouqueoSr.
Packingtoniajantarnacidade.
Anoitadafoiumsucesso.ASra.Packingtondançavamuito
bem quando era moça, e, sob a sábia orientação de Claude
Luttrell, não demorou a aprender os passosmodernos. Ele lhe
deu os parabéns pelo vestido e pelo penteado. (Tinham-lhe
marcadoumahoranaquelamanhãcomumdoscabeleireirosda
moda). Ao se despedir, ele beijou a sua mão de uma maneira
eletrizante.Hámuitos anos que aSra. Packingtonnão passava
umanoitetãodivertida.
Seguiram-se dez dias fantásticos. A Sra. Packington
almoçava, lanchava, dançava tango, jantava, valsava e ceava.
Ficou sabendo tudo sobre a triste infância de Claude Luttrell.
Conheceu as desafortunadas circunstâncias nas quais o pai
perderatodooseudinheiro.Ouviuahistóriadotrágicoromance
que lheamarguravaos sentimentos em relaçãoàsmulheres em
geral.
No décimo primeiro dia, eles foram dançar no Almirante
Vermelho.ASra.Packingtonviuseumaridoantesqueeleavisse.
Georgeestavacomamoçadoescritório.Osdoiscasaisestavam
dançando.
—Olá,George—dissebaixinhoaSra.Packington,quando
passouporele.
Foi com certa satisfação que ela viu o rosto de seumarido
ficar primeiro vermelho e depois roxo de espanto. Além do
espanto,haviaumaexpressãodequemdescobreumerro.
ASra.Packingtonsesentiudivertidamentedonadasituação.
CoitadodoGeorge!Devoltaàsuamesa,elasepôsaobservá-lo.
Como estava gordo, como estava careca, como cambaleava! Ele
dançavacomoháunsvinteanosatrás.Coitado,queforçaestava
fazendo para parecer jovem! E aquela pobremoça que dançava
com ele e fingia que estava gostando. Ela agora parecia muito
chateada, o rosto por cima do ombro dele para que ele não
pudessevê-lo.
ASra.Packingtonpensoumuitosatisfeitaqueasuasituação
era bem mais invejável. Olhou de relance para o maravilhoso
Claude,agora taticamente emsilêncio.Comoelea compreendia
bem! Nunca discordava dela — os maridos sempre discordam
depoisdealgunsanos.
Tornou a olhar para ele. Seus olhos se encontraram. Ele
sorriu; seus lindos olhos escuros, tão melancólicos, tão
românticos,olharamternamentedentrodosdela.
—Vamosdançaroutravez?—murmurouele.
Dançaramnovamente.Eraoparaíso.
Ela sentia o olhar apoplético deGeorge a segui-los. A idéia
tinhasidodela,elaselembrava,deprovocarciúmesemGeorge.
Há tanto tempo! Mas agora ela não queria mais despertar os
ciúmesdeGeorge.Poderiaaborrecê-lo.Porqueaborrecê-lo,afinal
decontas?Coitadinho!Todomundoestavatãofeliz...
OSr.Packington já estavaemcasaháumahoraquandoa
Sra.Packingtonentrou.Elepareciaconfusoeinseguro.
—Hum—resmungou.—Afinalvocêchegou.
ASra.Packingtonatiroulongeumxalequelhetinhacustado
quarentaguinéus,naquelamesmamanhã.—É—dissesorrindo,
—cheguei.
Georgetossiu—Er...foiestranhoencontrarvocê.
—Foimesmo,nãoé?—disseaSra.Packington.
—Eu...bem,eupenseiqueseriaumgestodelicadodaminha
parte levar aquela moça a algum lugar. Ela tem tido tantos
problemas em casa. Eu pensei. .. bem, delicadeza, você
compreende.
ASra.Packingtonfezquesimcomacabeça.PobreGeorge—
saltitandoeseentusiasmandoetãosatisfeitoconsigomesmo.
—Quemeraaquelecamaradaqueestavacomvocê?Eunãoo
conheço,conheço?
—Chama-seLuttrell.ClaudeLuttrell.
—Comofoiquevocêoconheceu?
— Oh, alguém me apresentou — disse a Sra. Packington
vagamente.
—Éesquisitovocêsairdançandoporaí...nasuaidade.Não
váficarridícula,minhaquerida.
A Sra. Packington sorriu. Ela estava se sentindo muito
satisfeita,comomundointeiropariadararespostaóbvia.—Uma
mudançaésempreagradável—disseamistosamente.
— Você precisa ter cuidado, sabe? Há uma porção destes
dançarinosprofissionaisporaí.Mulheresdemeia-idadeàsvezes
fazempapéis ridículos.Estousó lheavisando,minhacara.Não
gostariadevervocêfazendooquenãodeve.
—Achomuitobomoexercício—disseaSra.Packington.
—Hum...bom...
— Espero que você também ache— disse simpática a Sra.
Packington.—Oimportantemesmoéagentesesentirfeliz,não
é?Melembroquevocêmedisseissoháunsdezdias.
Omarido olhou rapidamente para ela,mas não havia nem
umapontadesarcasmonasuaexpressão.Elabocejou.
—Voume deitar. Antes que eume esqueça,George, tenho
sido horrivelmente extravagante neste últimos dias. Algumas
contasterríveisvãochegar.Vocênãoseimporta,nãoé?
—Contas?—perguntouoSr.Packington.
—É.Vestidos.Emassagens.E tratamentoparaoscabelos.
Horrivelmente extravagante... mas eu sei que você não se
importa...
Elasubiuasescadas.OSr.Packingtonficoudebocaaberta.
Maria tinha sido maravilhosamente gentil em relação ao que
acontecera aquela noite; parecia não ter dado a menor
importância.Maseraumapenaquederepenteelacomeçassea
gastardinheiro.Maria—ummodelodeeconomia!
Mulheres! George Packington balançou a cabeça. As
confusõesemqueosirmãosdaquelagarotasetinhammetidonos
últimosdias...Bem,elecontinuavadispostoaajudá-la.Apesarde
tudo...bolas!Ascoisasjánãoestavamindoassimtãobemlápela
cidade.
Suspirando,oSr.Packingtonsubiuasescadasdevagar.
Àsvezes,sómaistardeprestamosatençãoapalavrasquena
hora não pareceram importantes. Só namanha seguinte certas
palavras que o Sr. Packington disse entraram realmente na
consciênciadesuamulher.
Dançarinos profissionais; mulheres de meia-idade; cair no
ridículo.
A Sra. Packington era uma mulher corajosa. Sentou-se e
enfrentouosfatos.Umgigolô.Elasempreleuhistóriasdegigolôs
nos jornais. Leu também a respeito de loucuras cometidas por
mulheresdemeia-idade.
Claude seria um gigolô? Ela calculou que sim. Mas então
como é que os gigolôs eram sempre pagos e era Claude quem
pagavatodasasdespesas?Sim,maseraoSr.ParkerPynequem
pagava, não Claude — ou melhor, eram os seus próprios
duzentosguinéus.
Seria ela uma estúpida mulher de meia-idade? Será que
ClaudeLuttrellriadelapelascostas?Aestepensamentoseurosto
ficouvermelho.
Bem,ese fossemesmo?Claudeeraumgigolô.Elaerauma
ridícula mulher de meia-idade. Logo ela devia lhe dar um
presente.Umacigarreiradeouro,qualquercoisanogênero.
Um impulso excêntrico levou-a até o Asprey's. Escolheu e
comprou uma cigarreira. Ia se encontrar com Claude para
almoçarnoClaridge.
Quando tomavam o café ela mexeu na bolsa — Um
presentinho—murmurou.
Eleolhouparaela,franziuassobrancelhas—Paramim?
—É.Eu...esperoquevocêgoste.Elepegouacigarreiraea
empurrou violentamente para o outro lado damesa— Por que
vocêmedeuisso?
Não quero. Leve de volta. Leve de volta!— estava zangado.
Seusolhosescurosfaiscavam.
—Desculpe—murmurouela,eacolocoudevoltanabolsa.
Houveumcertoconstrangimentoentreosdoisnaqueledia.
Namanhãseguinteeletelefonou—Precisovervocê.Possoir
àsuacasahojeàtarde?
Elamarcouparaastrêsdatarde.
Claudechegoumuitopálido,muitotenso.Cumprimentaram-
se.Oconstrangimentosetornoumaisevidente.
Derepenteelesepôsdepéeficouemfrentedela—Oqueé
quevocêpensaqueeusou?Foi issoqueeuvim lheperguntar.
Nóstemossidoamigos,nãoémesmo?Sim,amigos...Masapesar
detudovocêpensaqueeusou...é,éissomesmo,umgigolô.Uma
criaturaqueviveàscustasdemulheres.É issoquevocêpensa,
nãoé?
—Não,não!
Ele interrompeu seu protesto. Seu rosto estava ainda mais
pálido—Éissomesmoquevocêpensa!Bom,éverdade.Foiisso
queeuvimdizer.Éverdade!Eurecebiordensparasaircomvocê,
para lhe fazer a corte, fazer você esquecer seumarido.É este o
meuemprego.Umempregoabjeto,nãoé?
—Porquevocêmecontouissotudo?—perguntouela.
—Porqueeuestoucheiodessahistóriatoda.Nãopossomais
continuar. Não comvocê. Você é diferente. Você é o tipo da
mulher em quem eu pude confiar, acreditar, gostar. Você vai
pensar que eu estou dizendo isso porque é parte do negócio—
aproximou-sedela.—Voulheprovarquenãoéverdade.Vou-me
emboraporsuacausa.Voutentarserumhomemdeverdade,em
vezdacriaturarepulsivaquefuiatéhoje.
Derepenteeleatomounosbraços.Seuslábiosseapertaram
contraosdela.Soltou-aeseafastouumpouco.
—Adeus.Sempre fui abjeto.Sempre.Mas juroquedehoje
emdiantevaiserdiferente.Selembraquevocêfalouumavezque
gostava de ler os Anúncios Pessoais? No dia de hoje, todos os
anos,vocêvaiencontrarumrecadomeudizendoqueeusempre
melembrodevocêequecontinuonobomcaminho.Vocêvaiver
entãooquantosignificouparamim.Maisumacoisa.Nãoquero
nadadevocê.Masqueroqueguardealgumacoisaminha—tirou
dodedoumaneldeouro.—Foideminhamãe.Queroquevocê
fiquecomele.Agora,adeus...
George Packington voltou cedo para casa. Encontrou a
mulher sentada em frente da lareira com um olhar diferente.
Falougentilmentecomele,maspareciaestranhaealheiaàsua
presença.
—Olheaqui,Maria—começouele,aosarrancos.—Aquela
moça.
—Sim,querido?
—Eu...eununcaquisaborrecervocê,sabe.Comela.Nãohá
nada.
—Eusei.Fuiumaboba.Podevê-laquantasvezesquiser,se
istofazvocêficarfeliz.
Tais palavras deviam ter alegrado George Packington, é
lógico.Pormaisestranhoquepossaparecer,elasoaborreceram.
Comopodiaelesedivertirsaindocomamoça,seasuaprópria
mulherpraticamenteoobrigavaaisto?Francamenteissonemera
decente! Toda aquela sensação de poder, de homem forte que
brincavacomfogo,sedesvaneceuemorreumelancòlicamente.De
repente, George Packington se sentiu cansado, esvaziado. A
garotaeramuitoesperta...
—Nóspodíamos sairumpouco, se você quisesse,Maria—
sugeriutimidamente.
—Nãosepreocupecomigo.Estoumuitofeliz.
—Mas eu gostaria de levar você para passear; podíamos ir
paraaRiviera.
ASra.Packingtonsorriulevemente.
PobreGeorge...Ela se orgulhavadele.Eraumvelhinho tão
terno!Nãohavianavidaumsegredotãolindoquantoodela.Ela
sorriuaindacommaisternura.
—Seriaótimo,querido—disse.
O Sr. Parker Pyne estava falando com a Srta. Lemon —
Despesascomosdivertimentos?
—Centoeduaslibras,quatorzeshillingseseispence.
A porta abriu e entrou Claude Luttrell. Estava com um ar
amuado.
—Bomdia,Claude—disseParkerPyne.—Foitudo
bem?
—Achoquesim.
—Oanel?Qualfoionomequevocêmandougravar,porfalar
nisso?
—Matilda—disseClaudetaciturno.—1899.
—Ótimo.Easpalavrasdoanúncio?
—Continuobem.Aindamelembrodevocê.Claude.
— Tome nota, por favor, Srta. Lemon. Na coluna dos
Anúncios Pessoais. No dia três de novembro... deixe ver...
despesas de cento e duas libras, quatorzeshillings e seis pence.
Pordezanos,acho.Istonosdeixaumlucroliquidodenoventae
duas libras, doisshillingsequatropence.Correto.Perfeitamente
correto.
Asecretáriasaiu.
—Olheaqui—explodiuClaude.—Não gostodisso.Éum
jogosujo.
—Meurapazinho!
— Jogo sujo. Uma mulher decente... uma mulher direita.
Contar todas estas mentiras. Enganá-la com estas histórias
sentimentais,quehorror.Issomedeixoudoente!
Parker Pyne endireitou os óculos e olhou para Claude com
uma espécie de interesse científico. — Meu caro — disse
secamente,—nãomerecordodenenhummomentoemqueasua
consciência o tenhapreocupado em toda a sua... ahn... notória
carreira... Seus negócios na Riviera foram particularmente
inescrupulosos, e a suaexploraçãodaSra.HattieWest,mulher
do Rei dos Pepinos da Califórnia, foi notável, pelo instinto
mercenárioeempedernidoquevocêdemonstrou.
—Bem,estoucomeçandoamesentirdiferente—resmungou
Claude.—Nãoédireito...essetipodejogo.
ParkerPyne falounumtomdevozcomoodoprofessorque
repreende o aluno favorito — Claude, meu caro, você praticou
umaboaação.Deuaumamulherinfelizoquetodasasmulheres
precisam—umromance.Umamulherpodedestruirumapaixão
e não aproveitar nada de bom dela,mas um romance pode ser
guardado com carinho e relembrado por muitos anos. Eu
conheçoanaturezahumana,meujovem,epossolhegarantirque
uma mulher alimentará um romance por muitos anos —
pigarreou.— Cumprimos com pleno êxito nossamissão com a
Sra.Packington.
—Bem—murmurouClaude.—Masissonãomeagrada—e
deixouasala.
Parker Pyne apanhou um fichário novo numa gaveta.
Escreveu:Curiosos vestígios de consciência num gigolô
empedernido.Nota:acompanharodesenvolvimento.
2
OCasodoSoldadoInsatisfeito
MAJORWILBRAHAM hesitou em frente à porta do escritório de
Parker Pyne para ler— não pela primeira vez— o anúncio do
matutinoqueotrouxeraatéali.Eramuitosimples:
CONFIDENCIAL
VOCÊÉFELIZ?SENÃOFOR,CONSULTEOSR.PARKER
PYNE.RUARICHMOND,17.
OMajor respirou fundo e bruscamente avançou pela porta
giratóriadoescritório.Umajovemdemaneirassimples levantou
osolhosdamáquinadeescrevereolhouinterrogativamentepara
ele.
— O Sr. Parker Pyne? — disse o Major Wilbraham, meio
envergonhado.
—Poraqui,porfavor.
Ele a seguiu até um escritório interno —: até chegarem à
presençadoafávelSr.ParkerPyne.
—Bomdia—disseoSr.Pyne.—Sente-se,porfavor.Eme
digaoquepossofazerpelosenhor.
—MeunomeéWilbraham...—começouooutro.
—Major?Coronel?—perguntouoSr.Pyne.
—Major.
— Ah! E voltou há pouco tempo do exterior? índia? África
Oriental?
—ÁfricaOriental.
—Umlugaresplêndido,imagino.Então,estádevoltaaolar...
enãogostoudaqui.Éesteoproblema?
—Osenhorestáabsolutamentecerto.Comofoiquesoube...
OSr.ParkerPynebalançouamão,numgestoimponente—
Meu negócio é saber. Veja o senhor que durante trinta e cinco
anos da minha vida eu só fiz compilar estatísticas numa
repartição do Governo. Agora que me aposentei, me ocorreu a
idéiadeaproveitar,deumamaneiradiferente,todaaexperiência
queadquiri.Étudomuitosimples.Asdesgraçastodaspodemser
classificadasemcincotiposprincipais—nemmaisnemmenos,
possolhegarantir.Umavezconhecidaacausadeumadoença,a
curapassaaserperfeitamentepossível.Eumecoloconopapelde
um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do paciente,
depois prescreve o tratamento. Há casos em que nenhum
tratamento dá resultado. Quando é assim, digo com toda a
franquezaquenãoposso fazernada.Masse eu tomarcontado
caso, a cura é praticamente garantida. Eu lhe garanto, Major
Wilbraham,quenoventaeseisporcentodosantigosconstrutores
do Império — que é como eu os chamo — são infelizes. Eles
trocaram uma vida ativa, uma vida cheia de responsabilidades,
uma vida de possíveis perigos, por... pelo quê? Restrições
mesquinhas,umclimamelancólicoeumsentimentogeneralizado
dequeviraramumaespéciedepeixeforadágua.
— Tudo verdade — disse o Major. — É o tédio que me
persegue.Otédioeestatagarelicesemfimsobreosprobleminhas
fúteisdeumvilarejo.Masoqueéqueeupossofazer?Tenhoum
poucodedinheiroalémdaminhapensão.Tenhoumapequena
casade campopertodeCobham.Nãopossomedar ao luxode
caçar,atiraroupescar.Nãosoucasado.Meusvizinhossãotodos
pessoassimpáticas,masnãotêmnenhumaidéiadomundoalém
destailha.
—Emsuma,osenhorachaqueavidaéinsípida—disseo
Sr.ParkerPyne.
—Tremendamenteinsípida.
—Gostariadeemoções,deperigos,talvez?
O militar deu de ombros — Não, nesta terrinha não
acontecemcoisasdessetipo.
—Perdão—disse com seriedade o Sr. Pyne.—É aí que o
senhorseengana.Hámuitoperigo,muitaemoção,aquimesmo
em Londres, se o senhor souber onde procurar. Acho que o
senhor conhece a nossa vida inglesa apenas na sua superfície,
calma,inofensiva.Masexisteoutrafaceta.Sequiservê-la,eulhe
mostrareiooutrolado.
O Major Wilbraham olhou pensativo para ele. Havia algo
tranqüilizadornoSr.Pyne.Eraforte,paranãodizergordo;tinha
umacabeçacalvabemproporcionada,óculosdelentesgrossase
pequenos olhos brilhantes. E havia em torno dele uma aura...
umaauradeconfiança.
—Devolheavisar,entretanto—continuouoSr.Pyne,—que
haveráumelementoderisco.
Osolhosdomilitarfaiscaram—Nãoháproblemas—disse.E
bruscamente:—E...seushonorários?
—Meushonorários—disseParkerPyne—sãodecinqüenta
libras, adiantadas. Se dentro de um mês o senhor estiver
sentindoomesmotédio,eulhedevolvoodinheiro.
Wilbrahampensouummomento.
—Estácerto—disseporfim.—Concordo.Voulhedarum
chequeagoramesmo.
A transação foi completada, Parker Pyne apertou um botão
emsuamesa.
—Éumahoradatarde—disse.—Voulhepedirparalevar
umajovemparaalmoçar.
Aportaabriu.—Ah,Madeleine,minhaquerida,deixequeeu
lheapresenteoMajorWilbraham,quevailevá-laparaalmoçar.
Wilbraham piscou ligeiramente, o que era bastante
justificável. A moça que entrou na sala era uma morena
langorosa, com olhosmaravilhosos e longas pestanas negras, a
pele perfeita e uma boca voluptuosa e muito vermelha. Seu
vestidorequintadodestacavaagraçaealevezadeseucorpo.Da
cabeçaaospéselaeraperfeita.
—Ahn...prazer—disseoMajorWilbraham.
—MissdeSara—disseoSr.ParkerPyne.
—Muitogentildasuaparte—murmurouMadeleinedeSara.
— Fiquei com o seu endereço — anunciou o Sr. Pyne. —
Amanhãdemanhãosenhorreceberáminhasnovasinstruções.
OMajorWilbrahamsaiucomaencantadoraMadeleine.
Eram três horas da tarde quandoMadeleine voltou. Parker
Pynelevantouacabeça—Comofoi?—perguntou.
Madeleinefezquenão—Estácommedodemim—disse.—
Pensaquesouumamulherfatal.
—Eraoqueeucalculava—disseParkerPyne.—Cumpriu
asinstruções?
—Cumpri.Conversamossobreaspessoasdasoutrasmesas.
O tipoqueele gosta é loura, olhosazuis, ligeiramente franzina,
nãomuitoalta.
— Deve ser fácil — disse o Sr. Pyne. — Vá me buscar o
EsquemaBevejaoquetemosemestoquenomomento
— correu o dedo sobre uma lista e parou na altura de um
nome. — Freda Clegg. É, acho que Freda Clegg é o ideal. É
melhorirfalarcomaSra.Oliver.
NodiaseguinteoMajorWilbrahamrecebeuumbilhete:
"Na segunda-feira de manhã, às onze horas, vá até
Eaglemont, na Rua Friars, emHampstead, e pergunte pelo Sr.
Jones. Apresente-se como o representante da Companhia de
ExportaçãoGuava."
Nasegunda-feira(queporcoincidênciaeraferiadobancário),
o Major Wilbraham dirigiu-se obedientemente para Eaglemont,
RuaFriars.Dirigiu-separalá,disseeu,masnãochegoulá.Pois
antesdechegaraconteceuumaoutracoisa.
O mundo inteiro — com as respectivas esposas — parecia
estaracaminhodeHampstead.OMajorWilbrahamemaranhou-
se emmultidões, quase foi sufocado nometrô e não conseguiu
descobrirondeficavaaRuaFriars.
A Rua Friars era um beco sem saída, uma estrada
abandonadaecheiadeburacos,comcasasdeambososladosdas
calçadas. Eram casas grandes que pareciam ter conhecido dias
melhoreseagoraestavammeioabandonadas.
Wilbraham andou pelas calçadas prestando atenção nos
nomes semi-apagados nos portões, quando de repente ouviu
alguma coisa e parou, atento. Era uma espécie de soluço, um
gritomeioabafado.
Escutou outra vez o mesmo barulho, mas desta vez
reconheceu levemente a palavra "Socorro!". Vinha de dentro da
casaemfrenteàqualeleestavapassando.
Semuminstantedehesitação,oMajorWilL.ahamempurrou
o portão vacilante e correu a toda velocidade pelo caminho
cobertodeervasdaninhas.Nomeiodeunsarbustosumamoça
lutava em desespero contra dois negros enormes. Lutava com
bravura,torcendo-seechutando-os.Umdosnegroslhetapavaa
boca com a mão, a despeito de seus esforços furiosos para
desvencilharacabeça.
Empenhadosnalutacorriamoça,osnegrosnãoperceberam
aaproximaçãodeWilbraham.Aprimeiracoisaqueperceberamfoi
umviolentosoconoqueixodohomemquecobriaabocadamoça
equecaiuparatrás.Surpreendido,ooutroabandonouamoçae
se virou. Wilbraham esperava por ele. Uma vez mais seu soco
partiueooutronegrocaiudecostas.Wilbrahamvirou-separao
primeirohomem,queestavaseaproximandodeleportrás.
Mas para os dois aquilo tinha sido suficiente. O segundo
levantou engatinhando, sentou-se, pôs-se de pé num pulo e
correu para o portão. O companheiro o seguiu. Wilbraham se
preparouparapersegui-los,masmudoudeidéiaesevirouparaa
moça,queestavarecostadanumaárvore,ofegante.
— Oh, muito obrigada! — falou ela, com uma voz
entrecortada.—Foihorrível!
Pelaprimeiravez,oMajorWilbrahamviuquemeraapessoa
queeletãooportunamentesalvara.Eraumajovemdeunsvintee
um a vinte e dois anos, loura, de olhos azuis, de uma beleza
tranqüila.
—Seosenhornãotivessechegado!—suspirouela.
—Ora, ora— disse oMajorWilbraham para acalmá-la.—
Agoraestátudobem.Achomelhornósirmosembora,elespodem
voltar.
Um levesorrisosurgiunos lábiosdagarota—Nãoacredito
queelesvoltem...depoisdoqueosenhorfez.Oh,foimaravilhoso
dasuaparte!
O Major Wilbraham ficou envergonhado com o olhar de
admiraçãodamoça—Nãofoinada—disse,confuso.—Acontece
todo dia. Estavam aborrecendo a senhora. Olhe, será que pode
andarapoiadanomeubraço?Foiumchoquemuitodesagradável,
eusei.
—Jáestoubem—disseamoça.Masaceitouaproteçãodo
braço. Ainda estava toda trêmula. Olhou de relance para trás
quandosaírampeloportão—Nãoentendo—murmurouela.—
Estacasaestávisivelmentevazia.
—É,estávaziamesmo—concordouoMajor,reparandonas
janelasfechadasenaaparênciadeabandono.
— Mas Whitefriars é aqui — ela apontou o nome meio
apagadonoportão.—EWhitefriarseraolugarondeeudeviavir.
—Nãofiquepreocupadacomisso—disseWilbraham.—Em
doisminutosnóspegamosumtáxievamosaalgumlugartomar
umaxícaradecafé.
Nofimdaruaentraramnumaoutrabemmaismovimentada
e,porsorte,umtáxitinhaacabadodedeixaralguémemumadas
casas.Wilbrahamchamouotáxi,deuumendereçoaomotoristae
foramembora.
— Não fale— advertiu à companheira. — Fique recostada.
Vocêpassouporumaexperiênciadesagradável.
Elasorriuagradecida.
—Porfalarnisto...ahn...meunomeéWilbraham.
—OmeuéClegg—FredaClegg.
Dezminutosdepois,Fredaestavatomandoumcaféquentee
olhandoagradecidaparaoseusalvadordooutroladodamesa.
— Parece até um sonho — disse ela. — Um pesadelo —
estremeceu.—Edizerqueaindahápoucoeuestavapedindoa
Deusqueacontecessealgumacoisa... qualquercoisa!É, eunão
gostodeaventuras!
—Contecomofoiqueaconteceu.
— Bom, para contar tudo, acho que precisaria falar uma
porçãodecoisassobremimmesma.
—ótimoassunto—disseWilbrahambalançandoacabeça.
— Sou órfã.Meu pai era capitão.Morreu quando eu tinha
oitoanos.Minhamãehátrêsanos.Trabalhonocentrodacidade.
NaCompanhiadeGás,comorecepcionista.Umanoitedasemana
passada,aovoltarparacasa,encontreiumsenhoresperandopor
mim.Eraumadvogado, umSr.Reid, deMelbourne. Foimuito
delicado e me fez várias perguntas sobre a minha família.
Explicou que tinha conhecido meu pai há muitos anos. Na
verdade, eles fizeram algumas transações juntos. Foi então que
ele me contou o objetivo de sua visita. "Srta. Clegg", disse ele,
"tenho razões para acreditar que a senhorita poderá ser
beneficiada com os resultados de uma transação comercial
realizada por seu pai muitos anos antes de sua morte." Fiquei
muitosurpresa,éclaro."Éprovávelqueasenhoritanuncatenha
ouvido falar dessa história"— explicou ele— "pois JohnClegg
nunca levou o negócio muito a sério, acho eu. Mas tudo se
concretizoudemodo inesperado.Temoquepara legalizara sua
situação será necessário ter certos documentos. Esses papéis
devemfazerpartedoinventáriodeseupai,etalvezatéjátenham
sidodestruídos,nasuposiçãodequenãotinhamnenhumvalor.
Asenhoritaguardoualgunspapéisdeseupai?"
—Expliqueiqueminhamãeguardavaváriascoisasdomeu
pai numa velha arca. Eu já tinha dado uma olhada, mas não
descobri nada de interessante. "Dificilmente a senhorita
reconheceria a importância destes documentos" disse ele
sorrindo.Fuiatéàarca,apanheialgunspapéisqueestavamláe
mostreiaele.Examinou-os,masdissequeera impossívelassim
derepentesaberquaisosqueestariamounãoligadosaoassunto
emquestão.Eleoslevariaesecomunicariacomigoseaparecesse
algumacoisa.
— Pelo último correio de sábado, recebi uma carta que
sugeriaqueeufosseàcasadeleparadiscutirmosoassunto.Me
deu este endereço: Whitefriars, Rua Friars, Hampstead. A hora
marcada era quinze para as onze. Me atrasei um pouco
procurando o lugar. Entrei com pressa pelo portão e estava
andando para a casa quando de repente aqueles dois homens
horríveis pularam em cima demim de dentro dasmoitas. Nem
tive tempo de gritar. Um deles pôs a mão na minha boca.
Consegui dar um arranco com a cabeça e gritei por socorro.
Felizmenteo senhormeouviu.Senão fosse isso...—seuolhar
eramaiseloqüentequequaisqueroutraspalavras.
—Felizmenteeuestavapassandoporali.Juroqueeuqueria
apanhar aqueles dois. Suponho que você nunca os tenha visto
antes.
Ela fez quenão coma cabeça—Oqueachaque isso tudo
significa?
—Édifícil.Masumacoisaparececlara.Háalgumacoisaque
alguémquerequeestáentreospapéisdeseupai.EstetalReid
lhecontouumahistóriadacarochinhapara teraoportunidade
dedarumaespiadaneles.Éevidentequeoqueeleprocuravanão
estavalá.
— Ah! — exclamou Freda. — Agora eu estou entendendo.
Quando voltei para casano sábadoachei queasminhas coisas
tinhamsidoremexidas.Paradizeraverdade,suspeiteidequea
senhoria tivesse entrado no meu quarto por curiosidade. Mas
agora...
— Depende. Alguém conseguiu entrar no seu quarto e dar
uma busca, mas não achou o que procurava. Achou que você
sabia o valor deste papel, ou lá o que seja, e que o mantinha
guardado.Entãoplanejouestaemboscada.Sevocêestivessecom
opapel,elesapanhariam.Senão,vocêficariapresaenquantoeles
tentavamfazê-laconfessarondeotinhaescondido.
—Masafinaloquepodeseristo?—exclamouFreda.
—Nãosei.Masdeveseralgumacoisademuito importante,
paraelesedaratodoessetrabalho.
—Masnãoépossível!
—Nãosei.Seupai eraummarinheiro. Iaamuitos lugares
estranhos. Talvez tenha achado alguma coisa cujo verdadeiro
valornuncachegouasaber.
—Vocêachamesmo?—umleverubordeexcitaçãocoloriuas
pálidasfacesdamoça.
— Acho. A questão é o que fazer agora? Você não está
pretendendoiràpolícia,ouestá?
—Não,porfavor!
— Ótimo. Não vejo o que a polícia poderia fazer, e isso só
trariaaborrecimentosparavocê.Agorasugiroquevocêváalmoçar
comigoemalgumlugaredepoismedeixeacompanhá-laatéoseu
apartamento, para que eu fique certo de que você chegou sã e
salva. Aí, se você quiser, nós podemos dar uma olhada nos
papéis.Porqueépossívelqueelesestejamescondidosemalgum
lugar.
—Talveztenhasidoomeupaimesmoquemdestruiuopapel.
—Talvez,maspodeserquenão,enessecasonóspodemos
achá-lo.
—Oqueserá?Umtesouroescondido?
—MeuDeus,ébempossível—exclamouoMajorWilbraham,
comoseu lado infantil todoexcitadocomaperspectiva.—Mas
agora,Srta.Clegg,aoalmoço!
Oalmoçofoiagradável.WilbrahamcontoutudoaFredasobre
asuavidanaÁfricaOriental.Descreveucaçadasdeelefantesea
garotaficouemocionada.Quandoacbaram,eleinsistiuemlevá-la
detáxiparacasa.
O apartamento era perto de Notting Hill Gate. Ao chegar,
Freda teve uma rápida conversa com a senhoria. Voltou para
pertodeWilbrahamesubiucomeleatéosegundoandar,onde
elamoravanumminúsculoapartamentodequartoesala.
— Exatamente como pensamos— disse ela.— Esteve aqui
um sujeito, sábado de manhã, para fazer um conserto na
instalação elétrica. Disse que a do meu quarto estava com um
defeito,eficouláalgumtempo.
—Memostreaarcadoseupai—pediuWilbraham.Fredalhe
mostrou uma caixa com um anel de latão em volta — Veja —
disseelalevantandoatampa.—Estávazia.
Omilitar fezquesimcomacabeça,pensativo—Enãotem
nenhumpapelemoutrolugar?
—Tenhocertezaquenão.Mamãeguardavatudoaqui.
Wilbrahamexaminouaparteinternadaarca.Derepenteteve
uma surpresa — Há uma fenda no forro! — cuidadosamente,
enfiou a mão para examinar o interior. Um leve estalido o
recompensou—Algumacoisaescorregouparabaixo!
Umminuto depois ele terminava sua busca. Um pedaço de
papel sujo, todo dobrado. Alisou-o em cima da mesa; Freda
olhavaporcimadoombroeficouumpoucodesapontada.
—Nãopassadeummontederabiscosesquisitos.
— Meu Deus, está escrito emswahili! — gritou o Major
Wilbraham.—OdialetonativodaÁfricaOriental,sabe?
—Quecoisa incrível!—disseFreda.—Evocêconsegue ler
isso?
—Maisoumenos.Masquecoisaestranha!—levouopapel
parapertodajanela.
— É alguma coisa? — perguntou Freda toda trêmula.
Wilbrahamleuduasvezesopapelevoltouparajuntodamoça,—
Bem — disse com uma careta, — aqui está o seu tesouro
escondido.
— Tesouro escondido?Mesmo?Ou seja, ouro espanhol. ..
galeãoafundado...essascoisas?
— Não chega a ser tão romântico, mas... o resultado é o
mesmo.Estepapelindicaoesconderijodemarfim.
—Marfim?—perguntouamoçaespantada.
—É.Elefantes,sabe?Háumaleiqueproíbemataralémde
umcertonúmero.Algumcaçadorconseguiuescapareburlaresta
lei em grande escala. Ele começou a ser perseguido e teve que
esconderomarfim.Parecequehámuitomarfim,eeleindicacom
precisãoorumoparaencontrá-lo.Olhe,precisamosiratrásdisso,
euevocê.
—Vocêachaquehámesmomuitodinheironessahistória?
—Umabelafortunaparavocê.
—Mas como foi que este papel foi parar nasmãos domeu
pai?
Wilbraham sacudiu os ombros— Talvez o sujeito estivesse
morrendo,oucoisaqueovalha.Talvez tenhaescritoemswahili
para se proteger, e entregou ao seu pai, que talvez o tenha
ajudado de algum modo. Seu pai, como não sabia ler o
documento, não deu a menor importância. É apenas uma
conjetura minha, mas posso lhe garantir que não deve estar
muitolongedaverdade.
Fredasuspirou—Comoéespantosoeexcitante!
— O problema agora é: o que fazer com este documento
precioso — disse Wilbraham. — Não gostaria de deixá-lo aqui.
Talvezelesvenhamprocurá-looutravez.Vocêodeixariacomigo?
—Claroquedeixo.Mas...nãovaiserperigosoparavocê?—
disseela,hesitante.
—Souumossodurode roer—disseWilbrahamcomuma
careta.—Nãoprecisasepreocuparcomigo—dobrouopapeleo
colocounobolsodedentrodopaletó.—Possovirvê-laamanhã
de noite? — perguntou. Amanhã já terei alguns planos, e vou
olhar certos lugares no meu mapa. A que horas você volta da
cidade?
—Àsseisemeia.
—ótimo.Teremosumaconferênciasecreta,evocêtalvezme
permitalevá-laparajantar.Precisamoscomemorar.Atéamanhã,
então.Àsseisemeia.
OMajorWilbrahamchegoupontualmentenahoramarcada.
TocouacampainhaeperguntoupelaSrta.Clegg.Umacriadafoi
quematendeu.
—Srta.Clegg?Nãoestá.
— Ahn!—Wilbraham não quis sugerir que podia entrar e
esperar.—Euvoltomaistarde—disse.
Ficoudoladodefora,narua,esperandoatodominutoque
Fredasurgisse.Osminutos iampassando.Quinzeparaassete.
Sete. Sete e quinze. Nem sinal de Freda. Um sentimento de
desassossego começou a tomar conta dele. Voltou ao edifício e
tocouacampainha.
—Porfavor—disse,—eutinhamarcadoumencontropara
as seis e meia com a Srta. Clegg. Tem certeza de que ela não
está...oudequenãodeixounenhumrecado?
— O senhor é o Major Wilbraham? — perguntou a
empregada.
—Sou.
—Entãotemumrecadoparaosenhor.Foiumportadorque
deixou.
Wilbrahamabriuoenvelope.Diziaoseguinte:
MeucaroMajorWilbraham:
Aconteceu uma coisa muito estranha. Não posso escrever
mais nada agora; pode se encontrar comigo em Whitefriars?
Venhaomaisdepressapossível.
Suaamiga,
FredaClegg
Wilbraham pôs-se rapidamente a pensar com um ar
preocupado. Distraidamente pôs a mão no bolso e tirou uma
carta endereçada ao seu alfaiate. — Será — perguntou à
empregada,—queasenhorapodiamearranjarumselo?
—TalvezaSra.Parkinspossalhearranjar.
Emseguida voltava como selo. Pagou comumshilling. Um
minuto depois Wilbraham estava andando para a estação do
metrô, e colocou a carta ao passar por uma caixa coletora do
correio.
AcartadeFredaodeixoumuitoinquieto.Oqueterialevadoa
garota,sozinha,àcenadosinistroencontrodavéspera?
Balançou a cabeça. Que coisa mais imprudente! Será que
Reidvoltara?Teriadealgummodoconvencidoagarotaaconfiar
nele?OqueaterialevadoaHampstead?
Olhouorelógio.Quaseseteemeia.Eladeviaestarpensando
que ele sairia de lá às seis e meia. Uma hora de atraso. Era
demais.Sepelomenoselativessedadoalgumapista...
A carta o deixara intrigado. Seu tom, muito independente,
nãoeramuitoprópriodeFredaClegg.
FaltavamdezminutosparaasoitoquandoelechegouàRua
Friars. Começava a escurecer. Olhou de relance para os lados;
não havia ninguém à vista. Devagar, empurrou o portão, que
girousilenciososobreasdobradiças.Aalamedaestavadeserta.A
casa,àsescuras.Seguiupelocaminho,muitocauteloso,olhando
para os dois lados. Não estava disposto a ser apanhado de
surpresa.
Derepenteparou.Porumrápidoinstantebrilhouumraiode
luzatravésdeumadaspersianas.Acasanãoestavavazia.Tinha
alguémládentro.
Wilbraham entrou cuidadosamente por uma moita e
procurouocaminhodosfundosdacasa.Finalmenteencontrouo
que procurava. Uma das janelas do andar térreo não estava
trancada. Era a janela de uma espécie de copa. Levantou a
vidraça—eraumajanelacorrediça
—acendeualanterna(elecompraraumanocaminho)
paraespiarointeriordeserto.Pulouparadentro.
Com muito cuidado abriu a porta da copa. Não ouviu
qualquer ruído.Outra vez acendeu a lanterna.Uma cozinha—
vazia.Dooutroladodacozinhahaviaumameiadúziadedegraus
e uma porta que evidentemente dava para a parte da frente da
casa.
Abriuaportaeprocurouescutar.Nada.Entrou.Agoraestava
nasaladafrente.Aindanãotinhaouvidonada.Haviaumaporta
àdireitaeoutraàesquerda.Escolheuaportadadireita,afiouo
ouvidoevirouotrinco.Aportacedeu.Abriudevagar,centímetro
porcentímetro,eentrou.
Tornou a acender a lanterna. A peça estava completamente
vazia.
Neste momento, ouviu um ruído atrás dele, virou — tarde
demais! — Alguma coisa bateu na sua cabeça e ele caiu,
inconsciente...
Wilbraham não tinha idéia do tempo que tinha ficado sem
sentidos.Voltouàvida,penosamente,acabeçadoendo.Tentouse
mexermasviulogoquenãopodia.Estavaamarradocomcordas.
Rapidamenterecobrouarazão.Agoraselembrava.Tinhasido
atingidonacabeça.
Uma luz fraca lá no alto da parede indicava que ele estava
numapequenaadega.Olhouemvoltaeseucoraçãopulou.Perto
dele,jaziaFreda,tambémamarrada.Osolhosestavamfechados,
mas se abriram logo depois, enquanto a moça suspirava,
observada ansiosamente por Wilbraham. Seu olhar perplexo se
concentrounele,eaoreconhecê-lobrilhoudealegria.
—Vocêtambém?—disseela.—Oquefoiqueaconteceu?
—Deixeivocêemmásituação—disseWilbraham.—Caíde
cabeçanaarmadilha.Mediga,vocêescreveuumbilhetepedindo
queeuviesseencontrá-laaqui?
Osolhosdamoçasearregalaramdeespanto.—Eu?Masfoi
vocêquemmemandouumbilhete.
—Ah,eumandeiumbilheteparavocê?
—Foi.Eurecebinoescritório.Pediaqueeuviesseencontrá-
loaquienãoláemcasa.
— O mesmo método — resmungou ele, explicando a ela a
situação.
—Estouentendendoagora—disseFreda.—Entãooplano
era...
—Conseguiropapel.Alguémdeveternosseguidoontem.Foi
comoelesmelocalizaram.
—E...elesconseguiramopapel?—perguntouFreda.
—Infelizmentenãopossomemexerparaverificar—disseo
militarolhandopesarosoparaasmãosamarradas.
De repente eles estremeceram. Ouviu-se uma voz, uma voz
quepareciavirdovácuo.
—Sim,muitoobrigado—disse.—Jáconseguiopapel.Não
precisamsepreocupar.
Osdoissearrepiaramcomavozinvisível.
—Reid—murmurouFreda.
—Reidéumdosmeusnomes,minhacarajovem—dissea
voz.—Masapenasumdeles.Agora,sintomuitodizerquevocês
doisinterferiramnosmeusplanos—umacoisaqueeunãoposso
permitir.Adescobertadestacasaémuitoséria.Vocêsaindanão
falaramnadaàpolícia,maspodeserquevenhamafazê-lo.Temo
que não possa confiar em vocês. Podem prometer. .. mas nem
semprepodemoscumpriraspromessas.Ecomovêem,estacasaé
muitoútilparamim.Éumaespéciedepontosemretorno.Daqui
todossaem. ..paraumoutro lugar...É,sintomuito,masvocês
vãoembora...Émuitotriste...masépreciso.
A voz fez uma pequena pausa e resumiu: — Não haverá
derramamento de sangue. Tenho horror a carnificinas. Meu
métodoémaissimples.Enaverdadenãoédoloroso.Bem,tenho
queirandando.Boanoiteparaambos.
—Olheaqui—eraWilbrahamquemfalavaagora.
—Façaoquequisercomigo,masestamoçanãolhefez
nada... nada! Não lhe fará a menor diferença se ela for
embora.
Masnãohouveresposta.
NesteinstanteFredadeuumgrito.
—Aágua...aágua!
Apesar da dor, Wilbraham virou-se e seguiu a direção dos
olhos dela. De um buraco perto do teto, a água começou a
borbulhar.
Fredadeuumgritohistérico—Elesvãonosafogar!
OsuorbrotounorostodeWilbraham—Aindanãoestamos
perdidos—disse.—Vamosgritarporsocorro.Équasecertoque
alguémouça.Agora:aomesmotempo.
Berraramomais fortequepuderam.Sópararamquando já
estavamroucos.
—Nãoadianta—disseWilbrahamcomtristeza.—Estamos
muitoabaixodoníveldochãoeachoqueasportasdevemserà
prova de som. É claro que se pudéssemos ser ouvidos aquele
estúpidonosteriaamordaçado.
—Oh!— gritouFreda.—E tudoporminha culpa. Fui eu
quemenvolveuvocênessahistória.
—Nãosepreocupe,minhaquerida.Éemvocêqueeuestou
pensando.Jáestiveemsituaçõespioreseconseguimelivrar.Não
perca a coragem.Do jeito que a água está caindo, ainda temos
muitashoras.antesqueopioraconteça.
— Você é maravilhoso! — disse Freda. — Nunca conheci
ninguémcomovocê...sónoslivros.
— Bobagem... é só uma questão de senso comum. Agora,
precisoafrouxarestasmalditascordas.
Quinze minutos depois, à força de puxar e se torcer,
Wilbrahamteveasatisfaçãodeconstatarqueosnósestavambem
mais frouxos. Tentou abaixar a cabeça e suspendeu os punhos
atéconseguiratacarosnóscomosdentes.
Comasmãoslivres,orestofoiapenasumaquestãodetempo.
Cheiodecãibras,endurecido,maslivre,elesedebruçousobrea
moça.Umminutodepoiselatambémjáestavalivre.
Aestaalturaaáguaestavapelostornozelos.
—Eagora—disseomilitar—vamossairdaqui.
Aportadaadegaficavanotopodealgunsdegraus.0Major
Wilbrahamaexaminou.
—Nãotemproblema—disse.—Éfraca.Vaiserfáciltirá-la
dasdobradiças—encostouosombrosnaportaeempurrou.
Amadeiraestaloueaportasedeslocoudasdobradiças.
Doladodeforaencontraramumlancedeescada.Emcima,
outraporta—estabemdiferente—demadeirasólidaereforçada
comtrancasdeferro.
—Estaéumpoucomaisdifícil—disseWilbraham.—Mas
quesorte!Nãoestátrancada!
Eleempurrou,olhouepediuàgarotaqueoseguisse.Saíram
numapassagemquedavaparaacozinha.Umminutodepois já
estavamaoarlivre,naRuaFriars.
—Ai!—Fredadeuumpequenosoluço.—Quecoisahorrível!
—Minhaquerida—eleatomounosbraços.—Vocêfoitão
maravilhosamente corajosa. Freda...meuanjo... será que você...
querodizer,sevocê...teamo,Freda.Quersecasarcomigo?
Depois de um breve intervalo, altamente satisfatório para
ambasaspartes,oMajorWilbrahamdissecomumsorriso:
—Eomelhoréquenósaindatemososegredodotesourodo
marfim.
—Maselesapanharam!
O Major tornou a sorrir — Foi exatamente o que eles não
fizeram. Fiz uma cópia falsa e antes deme encontrar com você
pusooriginalnumacartaque iamandarparaomeualfaiatee
coloqueinocorreio.Elespegaramacópiafalsae...tomaraquese
divirtam!Sabeoquenósvamosfazer,meuanjo?Vamospassara
lua-de-melnaÁfricaOrientalesairàcaçadonossotesouro.
Parker Pyne saiu de seu escritório e subiu dois lances de
escada. Numa sala do alto do edifício estava a Sra. Oliver, a
sensacionalnovelista,queeraagoraumdosmembrosdaequipe
doSr.Pyne.
Parker Pyne bateu na porta e entrou. A Sra. Oliver estava
sentada a uma mesa sobre a qual havia uma máquina de
escrever,várioscadernosdenotas,umaconfusãodemanuscritos
soltoseumagrandecestademaçãs.
— Ótima história, Sra. Oliver — disse Parker Pyne, com
entusiasmo.
— Deu tudo certo? — perguntou a Sra. Oliver. — Fico
satisfeita.
—Onegóciodaáguanoporão—disseParkerPyne.—Não
acha quedaqui por diante podíamospensar alguma coisamais
original...talvez?—fezasugestãocomumacertatimidez.
A Sra. Oliver balançou negativamente a cabeça e apanhou
umamaçãdacesta—Achoquenão,Sr.Pyne.Nãoseesqueçade
queaspessoasestãoacostumadasalerhistóriasdessetipo.Água
subindodentrodeumaadega,gasesvenenosos,etc.Ofatodejá
conhecer as coisas provoca uma excitação maior quando elas
acontecemcomagente,Opúblicoéconservador,Sr.Pyne.Eles
gostamdostruquesantiquados.
— Bem, a senhora é quem sabe — admitiu Parker Pyne,
levando-seemcontaqueelaeraautoradequarentaeseisnovelas
deficçãomuitobemsucedidas,todascomrecordesdevendasna
Inglaterra e naAmérica e já traduzidas para o francês, alemão,
italiano,húngaro,finlandês,japonêseabissínio.Easdespesas?
A Sra. Oliver pegou uma folha de papel — Ao todo muito
pouca coisa. Os dois negros, Percy e Jerry, cobraram muito
pouco.OjovemLorrimer,oator,sedeuporfelizemfazerppapel
de Reid por cinco guinéus. O discurso lá na adega era uma
gravação,éclaro.
—Whitefriarstemsidomuitoútilparamim—dissePyne.—
Compreiacasaporumaninharia,eelajáserviudecenáriopara
onzedramasmisteriosos.
— Ah, estava esquecendo — disse a Sra. Oliver. — O
pagamentodeJohnny.Cincoshillings.
—Johnny?
—É.Foiomeninoquederramouaáguadosgarrafõespelo
buracodaparede.
— Ah, sim. Por falar nisso, Sra. Oliver, como foi que a
senhoraaprendeuswahili?
—Eunãoseiswahili.
—Ah,sei.FoioMuseuBritânico,talvez?
—Não.OCentrodeInformaçõesdeDelfridge.
— Como são maravilhosos hoje em dia os recursos do
comérciomoderno—murmurouele.
—Aúnicacoisaquemepreocupaéqueaquelesdois jovens
nãovãoencontrarnenhumtesouroescondidoquandochegarem
lá.
—Ninguémpodetertudonestemundo—disseParkerPyne.
—Elesvãoterumalua-de-mel.
A Sra.Wilbraham estava sentada numa espreguiçadeira no
convés.Seumaridoescreviaumacarta—Quediaéhoje,Freda?
—Dezesseis.
—Dezesseis!MeuDeus!
—Oquefoi,querido?
—Nada.EstavamelembrandodeumsujeitochamadoJones.
Pormais felizesquefossemosrecém-casados,hácoisasque
ninguémpodeimaginar.
— Que inferno— pensou o Major Wilbraham,eu devia ter
voltadoláepedidoomeudinheirodevolta.
Mas,porserumhomemcorreto,pesoutambémooutrolado
da questão.Afinal de contas, fui eu que quebrei o contrato.
Suponho que se tivesse ido ver o tal Jones alguma coisa teria
acontecido. De qualquer maneira, do jeito que aconteceu, se eu
nãotivesseidoverotalJones,nuncateriaouvidoogritodeFreda
e talvez nós não nos encontraríamos nunca. Por tudo isso,
indiretamente,talvezeletenhadireitoàquelascinqüentalibras!
ASra.Wilbrahamtambémfaziaumraciocínio:Comofuiboba
deacreditarnaqueleanúncioepagar três librasàquelagente.É
claroqueelesnunca fizeramnadaporaquiloenuncaaconteceu
nada.Seaomenoseusoubesseoqueiaacontecer.Primeiro,oSr.
Reid e depois a maneira estranha e romântica na qual Charlie
entrounaminhavida.Epensarquefoiporpuracoincidênciaque
euoconheci!
Elasevirouesorriuencantadaparaseumarido.
3
OCasodaSenhoraAngustiada
ACAMPAINHAdamesadeParkerPynesooudiscretamente.
—Sim?—disseograndehomem.
—Umamoçaquerverosenhor—falouasecretária.—Não
temhoramarcada.
—Mandeentrar,Srta.Lemon.
Umminuto depois ele apertava amãoda recém-chegada—
Bomdia—disse.—Sente-se,porfavor.
—ParkerPyneéosenhor?—perguntou.
—Sou.
—Odoanúncio?
—Odoanúncio.
—Osenhordizqueseaspessoasnãosão...nãosãofelizes...
que...quevenhamfalarcomosenhor.
—É.
Ela falou depressa — Bem, é que eu estou muito infeliz.
Entãopenseiemapareceraquisópara...só
paraver.
Parker Pyne ficou parado, porque sentiu que havia mais
coisa.
—Eu... eu estou comumproblemahorrível— apertava as
mãosnervosamente.
—Estouvendo—disseParkerPyne.—Podemecontaroque
estáacontecendo?
Parecequeeraexatamenteissooqueamoçanãosabiamuito
bem.OlhouparaParkerPynecomumaatençãodesesperada.De
repente,começouafalaraosborbotões.
—Voucontar...Játomeiumadecisão.Quase fiqueimaluca
depreocupação.Nãosabiaoquefazerouparaquemapelar.Foi
então que vi o seu anúncio. Pensei que talvez fosse uma
brincadeira, mas ficou na minha cabeça. Fosse o que fosse,
pareciatãoreconfortante.Aíeupensei—bom,nãocustanadair
láver.Eupodiadarumadesculpaesairsenão...bem,senão...
—Compreendo,compreendo—disseParkerPyne.
—Osenhorsabe—disseamoça,— issosignifica...bem...
confiaremalguém.
—Easenhoraachaquepodeconfiaremmim?—perguntou
elesorrindo.
— É estranho — disse a moça com uma simplicidade
inconsciente, — mas confio. Sem saber nada a seu respeito!
Tenhocertezadequepossoconfiarnosenhor.
— Posso lhe garantir — disse Parker Pyne — que a sua
confiançanãoestátraída.
— Então — disse a moça, — posso lhe contar tudo. Meu
nomeéDaphneSt.John.
—Poisnão,Srta.St.John.
—Senhora.Eu...eusoucasada.
—Ora!—murmurouoSr.Pyneaborrecidoconsigomesmo
aoveroarodeplatinanoterceirodedodesuamãoesquerda.—
Quebobagemdaminhaparte.
—Seeunão fosse casada—continuouamoça,—nãome
importaria tanto.Quero dizer. .. não teria tanta importância. E
pensarqueGerald...Bem,aí...aíéqueestátodooproblema!
Elaenfiouamãonabolsaetirouumacoisaquecintilavae
entregouaParkerPyne.
Eraumaneldeplatinacomumenormediamantesolitário.
Pyneopegou,foiatéàjanela,olhoucontraavidraça,colocou
umalentedejoalheiroeexaminoudeperto.
— Um diamante extraordinariamente valioso — falou ao
voltaràmesa;—devevaler,calculo,cercadeduasmillibras,no
mínimo.
—É.Efoiroubado!Euroubei!Enãoseioquefazeragora!
— Meu Deus — disse Parker Pyne. — Mas que coisa
interessante.
Suaclientesedescontrolouecomeçouasoluçareseassoar
numlençomeioamarrotado.
—Ora,oqueéisso—dissePyne.—Vaitudoacabarbem.
Amoça enxugou os olhos e fungou—Vai?—disse ela.—
seráquevai?
—Éclaroquevai.Agora,meconteahistóriatoda.
—Bem,tudocomeçouquandoeufiqueiapertadadedinheiro.
Soumuitoextravagante.Geraldficoumuitoaborrecidocomisso.
Geraldémeumarido.Eleémuitomaisvelhodoqueeu,etem...
bem, ele tem umas idéias muito austeras. Acha que contrair
dívidaséumacoisahorrível.Porisso,nãofaleinadacomele.Fui
atéoLeTouquetcomalgunsamigosepenseique talvez tivesse
sorte no bacará para arranjar as coisas outra vez. Comecei
ganhando, mas depois passei a perder e achei que tinha de
continuar.Econtinuei.E...e...
— Sei, sei — disse Parker Pyne. — Não precisa entrar em
detalhes.Vocêficounumaenrascadamaiordoquenoinício,não
é?
DaphneSt.Johnconcordou—Eàquelaalturaeunãopodia
maiscontaraGerald.Porqueeledetestajogo.Aminhasituação
era desesperadora. Então, nós fomos passar uns dias com os
Dortheimers, perto de Cobham. Eles são muito ricos, claro. A
mulher dele, Naomi, foi minha colega de escola. Ela é um
encanto,emuitobonita.Duranteanossaestadalá,oengastedo
anel se soltou.Namanhãquenós fomos embora, elamepediu
paralevá-loàcidadeedeixá-lonoseujoalheiro,naBondStreet
—fezumapausa.
— E agora vem a parte mais difícil — disse Parker Pyne,
procurandoajudar.—Continue,Sra.St.John.
—Osenhornãovaicontaraninguém,nãoé?—imploroua
moça.
— As confidencias dos meus clientes são sagradas. E de
qualquermaneira,Sra.St.John,asenhora jámecontou tanta
coisaqueagoratalvezeupudesseterminarahistóriasozinho.
—Eusei,maséqueeunãogostode falarnisso...achotão
terrível. Fui a Bond Street. Lá tem uma outra loja— a Viro's.
Eles...fazemcópiasdejóias.Derepente,perdiacabeça.Pegueio
aneledissequequeriaumacópiaexata;dissequeiaviajarparao
exteriorenãoquerialevarcomigoajóiaverdadeira.Elesacharam
tudomuitonatural.
— Bom, consegui a cópia falsa — era tão perfeita que
qualquerumconfundiriacomooriginal—emandei,pelocorreio,
registrada, para Lady Dortheimer. Eu tinha uma caixa com o
nome do joalheiro, parecia perfeito, então, com um ar muito
profissional, fiz um embrulho. Aí, eu... eu. .. empenhei a jóia
verdadeira—elaescondeuorostocomasmãos.—Comoéque
eufuifazerisso?Comoéqueeufuifazerisso?Nãopassodeuma
ladramesquinhaeordinária.
Parker Pyne pigarreou — Acho que a senhora ainda não
terminou—disse.
— Não, ainda não. Isso foi há umas seis semanas. Paguei
todasasminhasdívidaseacerteitudo,maséclaroqueestavame
sentindo péssima. Foi então quemorreuuma velha prima e eu
recebialgumdinheiro.Aprimeiracoisaquefizfoitirarodiabodo
aneldopenhor.Bom,atéaífoitudobem.Oanelestáaqui.Mas
derepenteaconteceuumacoisaterrível.
—Ah,foi?
—NóstivemosumabrigacomosDortheimers.Foiporcausa
de umas ações que Sir Reuben tinha convencido Gerald a
comprar.EleperdeumuitodinheiroedisseunsdesaforosaSir
Reuben...foihorrível!Eagora,comoosenhorestávendo,eunão
possodevolveroanel.
— Não poderia enviá-lo anonimamente para Lady
Dortheimer?
— Iria tudo por água abaixo. Ela examinaria o outro anel,
descobririaqueéumaimitaçãoeadivinhariaoqueaconteceu.
—A senhoradisseque ela é suaamiga.Que tal lhe contar
todaaverdade...apelandoparaasuaindulgência?
A Sra. St. John balançou a cabeça — Nós não somos tão
amigas assim. Em matéria de dinheiro e jóias, Naomi é muito
severa. Talvez ela não pudesseme processar se eu devolvesse o
anel, mas ia contar a todo mundo o que eu fiz e eu estaria
perdida. Gerald ia saber e nunca me perdoaria. Ai, é tudo tão
complicado! — recomeçou a chorar. — Pensei, pensei e não
encontrei uma solução! Oh, Sr. Pyne, será que o senhor pode
fazer alguma coisa? ' — Uma porção de coisas— disse Parker
Pyne.
—Podemesmo?Será?
— Sem dúvida. E lhe sugiro que se faça tudo da maneira
mais simples. A minha experiência me diz que a simplicidade
sempre dá certo. Evite as situações complicadas. Apesar disso,
compreendo que as suas objeções são bastante razoáveis. No
momento,quemmaissabedestestristesfatosalémdasenhora?
—Osenhor—disseaSra.St.John.
—Não,semcontarcomigo.Bom,porenquantooseusegredo
estáasalvo.Precisamosapenastrocarosanéisdeumaformaque
nãodespertesuspeitas.
—Éexatamenteporisso—disseamoçaansiosa.
— Não vai haver problema nenhum. Precisamos de um
tempinhoparaimaginaromelhormétodo...
Ela interrompeu— Mas não há tempo! É por isso que eu
estouquaselouca.Elavaireformaroanel.
—Comoéqueasenhorasabe?
— Por coincidência. Eu estava almoçando com uma amiga
outrodiaeelogieioanelqueelaestavausando—umaesmeralda
enorme. Ela me disse que era a última moda... e que Naomi
Dortheimeriamudaroaneldebrilhantedelaparaaquelaforma.
—Oquequerdizerquenósvamosterquetrabalhardepressa
—disseParkerPyne,pensativo.
—Poisé.
—Istoé,teracessoàcasa...sepossívelnãocomoumcriado.
Os empregadosnãopodemmexer emanéis valiosos. A senhora
temalgumaidéia;Sra.St.John?
—Bom,Naomivaidarumagrandefestaquarta-feira.Eessa
minha amiga contou que ela estava procurando uns bailarinos
profissionais.Nãoseiseelajáacertoualgumacoisa...
—Achoqueeupossodarumjeito—disseParkerPyne.—Se
já estiver combinado, vai ficar só um poucomais caro, só isso.
Outracoisa.Poracaso,asenhorasabeondeficaachavegeralda
luz?
— Por acaso eusei onde fica,porqueumavezqueimouum
fusívelbemtarde,eosempregadosjáestavamtodosdeitados.É
umacaixaqueficanofundodocorredor—dentrodeumarmário
pequeno.
ApedidodeParkerPyne,elafezumesboço.
—Eagora—disseParkerPyne,—vaidartudocerto,nãose
preocupeSra.St.John.Eoanel?Querqueeuoguardeagoraou
prefereficarcomeleatéquarta-feira?
—Bem,talvezsejamelhoreuficarcomele.
— Agora, nem uma preocupação a mais, ouviu bem? —
ParkerPynearepreendeu.
—E...opagamento?—perguntoutimidamente.
—Issopodeficarparadepois.Eulheavisoquarta-feiraquais
foram as despesas necessárias. Meus honorários serão
insignificantes,lhegaranto.
Levou-aatéaportaedepoistocouacampainhadesuamesa.
—VáchamarClaudeeMadeleine.
Claude Luttrell era um dos mais atraentes espécimes de
bailarinosprofissionaisencontráveisna Inglaterra.Madeleinede
Saraeraamaissedutoradasmulheresfatais.
Parker Pyne observou-os com aprovação — Meus filhos —
disse, — tenho um serviço para vocês. Vocês vão ser dois
bailarinos internacionais muito famosos. Agora Claude, preste
muitaatençãoaoquevoudizerevejaseentendetudodireito...
Lady Dortheimer estava plenamente satisfeita com os
preparativosparaoseubaile. Inspecionouosarranjosde flores,
deuasúltimasordensparaomordomoelembrouaomaridoque
atéagoraestavadandotudocerto!
FicouligeiramentedesapontadaquandosoubequeMichaele
Juanita,osbailarinosdoAlmiranteVermelho,àúltimahora,não
iam poder cumprir o contrato, por causa de uma torção no
tornozelo de Juanita, mas no lugar deles iam mandar dois
bailarinosnovos(pelomenosfoioquedisseramnotelefone)que
haviamfeitofuroremParis.
OsbailarinoschegarampontualmenteeLadyDortheimeros
aprovou.Anoitadatranscorreuesplendidamente.JuleseSanchia
se exibiram e foram sensacionais. Uma selvagem dança da
Revolução Espanhola. Depois uma dança chamadaO Sonho de
um Degenerado. Depois uma fascinante exibição de danças
modernas.
Quando oshow terminou, todo mundo começou a dançar
normalmente.ObeloJulespediuoprazerdeumadançaaLady
Dortheimer.Osdoiscomeçaramarodar.NuncaLadyDortheimer
tiveraumpartnertãoperfeito.
EmvãoSirReubenprocuravaa sedutoraSanchia.Elanão
estavanosalão.
Paradizeraverdade,elaestavanocorredordeserto,pertode
umapequenacaixa,osolhosfixosnorelógioemseupulso.
—Nãodeveseringlesa...nãopodeseringlesa!...paradançar
assim como dança — murmurou Jules no ouvido de Lady
Dortheimer. É como uma fada, o espírito do vento.Droushcka
petrovkanavarouchi.
—Quelínguaéessa?
— Russo— disse Jules mentiroso. — Falei em russo uma
coisaquenãoousariadizereminglês.
LadyDortheimerfechouosolhos.Julesaapertouaindamais
contrasi.
Repentinamenteasluzesseapagaram.Naescuridão,Julesse
debruçouebeijouamãoquerepousavaemseuombro.Quando
elatentouretirá-la,eleaseguroueaapertounovamentecontra
oslábios.
Umanelescorregoudeumdedoparaapalmadesuamão.
Lady Dortheimer achou que tinha passado apenas um
segundoantesqueasluzesvoltassem.JulessorriaParaela.
—Seuanel—disse.—Escorregou.Permite?—recolocou-o
no dedo. Seus olhos disserammuitas coisas enquanto ele fazia
isso.
SirReubenfalavasobreachavecentral—Algumidiota.Uma
brincadeirademaugosto,suponho.
Lady Dortheimer não estava interessada. Aqueles poucos
instantesdeescuridãotinhamsidomuitoagradáveis.
Ao chegar no escritório na quinta-feira de manhã, Parker
PynejáencontrouaSra.St.Johnàsuaespera.
—Mandeentrar—dissePyne.
—Comofoi?—elaestavaansiosa.
—Asenhoraestámuitopálida—disseeleemtomacusador.
Elaabanouacabeça—Nãoconseguidormirdenoite.Estava
imaginando...
—Agora,anotinhadasdespesas.Passagensdetrem,roupas,
cinqüentalibrasparaMichaeleJuanita.Sessentaecincolibrase
dezesseteshillings.
— Sei, sei! Mas ontem de noite... foi tudo bem? Deu tudo
certo?
Parker Pyne olhoupara ela, surpreso—Minha cara jovem,
claroquedeucerto.Penseiquejátinhapercebido.
—Ah,quealívio!Euestavacommedo...
Parker Pyne balançou a cabeça com ar de reprovação —
Derrota é uma palavra proibida neste estabelecimento. Se não
tenho certeza de que vai dar certo não aceito o caso... Quando
aceitoumcaso,osucessoépraticamenteoresultadoinevitável.
— Então ela já está de novo com o anel verdadeiro e não
desconfiadenada?
— De absolutamente nada. A operação foi realizada de
maneiradelicadíssima.
DaphneSt.Johnsuspirou—Osenhornão imaginaopeso
que me tirou da consciência. O que estava dizendo sobre as
despesas?
—Sessentaecincolibrasedezesseteshillings.
A Sra. St. John abriu a bolsa e contou o dinheiro. Parker
Pyneagradeceuepreencheuumrecibo.
—Mas,eosseushonorários?—murmurouDaphne.—Issoé
sóparaasdespesas.
—Nestecasonãoháhonorários.
—Oh,Sr.Pyne!Nãopossoaceitar,nunca!
—Minha cara jovem, insisto. Não vou receber um centavo.
Seriacontraosmeusprincípios.Eisoseurecibo.Eagora...
Com o sorriso de um feliz prestidigitador que acaba de
realizar um truque de sucesso, tirou uma caixinha do bolso e
empurroupara o outro lado damesa.Daphne a abriu.Dentro,
paratodososefeitos,estavaoaneligualaodebrilhante.
—Cretino!—disseaSra.St.Johnfazendoumacaretapara
ele.—Como eu o odeio! Sónão o atiro pela janela porque sou
muitoboazinha!
— Eu não faria isso— disse Pyne.— Poderia surpreender
muitagente.
— O senhor tem certeza de que não é o verdadeiro? —
perguntouDaphne.
—Claro que tenho! O quememostrou outro dia está bem
seguronodedodeLadyDortheimer.
—Entãoestá tudocerto—Daphnese levantoualegre,com
umsorriso.
—Éengraçadoasenhorameperguntarisso—disseParker
Pyne.—ÉclaroqueClaude,coitadinho,nãoémuitoesperto.Ele
podia perfeitamente ter-se confundido. Por isso, para me
certificar,mandei um especialista dar uma olhada nele hoje de
manhã.
ASra.St.Johntornouasesentar,precipitadamente—Eo
quefoiqueeledisse?
— Que era uma imitação muito bem feita — disse Parker
Pyne, sorridente.— Um trabalho de primeira ordem. Acho que
comissoasuaconsciênciaficatranqüila,nãoé?
A Sra. St. John abriu a boca para dizer alguma coisamas
ficoucalada.OlhavafixamenteparaParkerPyne.
Ele se sentou novamente atrás da mesa e a observou
benevolentemente—Tirarascastanhasdofogocommãodegato
—dissecomarsonhador—nãoéumpapelmuitoagradável.Pelo
menos eu não gostaria que alguém da minha equipe o
representasse.Perdão.Asenhoradissealgumacoisa?
—Eu...não,nada.
—Ótimo.Quero lhe contar umahistorinha, Sra. St. John.
Sobreoutrajovemsenhora.Umamoçaloura,acho.Nãoécasada.
O sobrenome dela não é St. John. O primeiro nome não é
Daphne.Pelocontrário,onomedelaéErnestineRichards,eaté
poucotempoatráselaerasecretáriadeLadyDortheimer.
— Bem, um dia o engaste do anel de brilhante de Lady
DortheimerficoufrouxoeaSrta.Richardsolevouàcidadepara
ser consertado. Parecida com a sua história, não é? A mesma
idéia que lhe ocorreu também ocorreu à Srta. Richards. Ela
mandoufazerumacópiadoanel.Maselaeraumamoçaquevia
longe. Sabia que um dia LadyDortheimer ia descobrir a troca.
Quandoissoacontecesse,elaselembrariadequemlevaraoanelà
cidadeeaSrta.Richardsseriaaprimeirasuspeita.
—Então,oquefoiqueaconteceu?Primeiro,suponhoquea
Srta. Richards fez um investimento para a metamorfose de
Cinderela— cabelos repartidos do lado, imagino— seus olhos
pousaraminocentementenoscachosondulados—corcastanho
escuro.Então, apareceuaqui.Memostrou o anel, permitiu que
eu verificasse que era verdadeiro, destruindo assim qualquer
suspeitapossíveldeminhaparte.Feitoisso,ecomumplanopara
atroca jáarquitetado,a jovemlevouoanelao joalheiro,queno
devidotempooenviouaLadyDortheimer.
— Ontem à tarde, o outro anel, o anel falso, foi entregue
apressadamente na estação de Waterloo. Com razão, a Srta.
Richards achou que Luttrell não devia ser uma autoridade em
diamantes.Masapenasparasatisfazeraminhacuriosidade,um
caprichomeu,pediaumamigo,comerciantedediamantes,que
estivessenomesmotrem.Eleolhouoaneledisseimediatamente:
"Estediamantenãoéverdadeiro;éumaexcelenteréplica".
— A senhora está vendo onde eu quero chegar, é evidente,
não é, Sra. St. John? Quando Lady Dortheimer descobrisse a
perda,dequemselembraria?Doencantadordançarinoquefizera
deslizaroanelquandoapagoualuz!Elaiainvestigaredescobrir
que os bailarinos contratados anteriormente tinham sido
subornados para não comparecer. Se as pistas levassem até o
meuescritório,aminhahistóriadeumacertaSra.St.Johnseria
extremamente frágil. Lady Dortheimer não conhecia nenhuma
Sra.St.John.Ahistóriapareceriaumafarsainconsistente...
— Está vendo agora por que eu não poderia permitir uma
coisadessas?EfoiassimqueomeuamigoClauderecolocouno
dedodeLadyDortheimeromesmoanelqueeletirara.
—Estávendoporqueeunãopossocobrarnada?Euprometo
afelicidade.Eéclaroqueeunãoatorneifeliz.Sóquerolhedizer
mais uma coisa. A senhora é jovem; possivelmente é a sua
primeira tentativa de fazer alguma coisa no gênero. Eu, pelo
contrário, já estou em comparaçãomuito avançado nos anos, e
tenho muita experiência em matéria de estatísticas. Com essa
experiência, posso lhe garantir que em oitenta e sete por cento
dos casos, a desonestidade não compensa. Oitenta e sete por
cento!Pensenisso!
Comummovimento brusco, a pseudo-senhora St. John se
levantou — Velho estúpido! Idiota! — exclamou. — Me
enganando!Me fazendopagarasdespesas!Eo tempotodo...—
engasgou-seeseencaminhouapressadaparaaporta.
—Seuanel—disseParkerPynecomacaixinhanamão.
Elaaapanhoucomrispidezeatiroupelajanelaaberta.
Aportabateueelasaiu.
Parker Pyne olhou pela janela com um certo interesse. —
Como eu pensava — disse ele. — Surgiram consideráveis
surpresas...
4
OCasodoMaridoDesgostoso
SEMDÚVIDAumadasmaioresqualidadesdeParkerPyneerao
seuarsimpático.Eraumjeitopropícioàsconfidencias.Elesabia
muito bemqueuma espécie deparalisia se apoderavados seus
clientes quando eles entravam no seu escritório. Preparar o
terrenoparaasnecessáriasrevelaçõesfaziapartedoseutrabalho.
Nestamanhã,eleestavasentadodiantedeumnovocliente,
Sr.ReginaldWade.OSr.Wade,Pyne logodeduziu, erado tipo
enrolado.Osujeitoquetemamaiordificuldadeemdescrevercom
palavrasqualquercoisaqueserelacionecomsuasemoções.
Era um homem alto e forte, com uma expressão amena e
agradável nos olhos azuis e a pele bastante queimada do sol.
Sentou-se e puxou distraidamente o pequeno bigode, enquanto
olhava para Parker Pyne com o ar patético de um animal
taciturno.
—Vioanúncio,sabe?—falounumarranco.—Acheiqueera
bomvirvê-lo.Eramuitoesquisito,masagentenuncasabe,não
é?
Parker Pyne interpretou corretamente estas observações
enigmáticas — Quando as coisas vão mal, a gente sempre se
dispõeacorrerriscos—sugeriu.
— É isso mesmo. Exatamente isso. Estou disposto a me
arriscar...acorrerqualquerrisco.Ascoisasvãomalparaomeu
lado, Sr. Pyne. Não sei o que fazer. É muito difícil, sabe?
Terrivelmentedifícil.
—Éexatamenteaí—dissePyne,—éexatamenteaíQueeu
entro. Sei o que faço! Souum especialista em qualquer tipo de
problemahumano.
—Eusei!Umcampomeiovasto,nãoé?
— Nem tanto. Os problemas humanos são facilmente
classificáveis em alguns tipos principais. Há as doenças. Há o
tédio.Háasmulheresquetêmproblemascomosmaridos.Háos
maridos... — fez uma pausa — que têm problemas com as
mulheres.
—Paraserfranco,osenhoracertou.Acertouemcheio.
—Mecontetudoaseurespeito—pediuParkerPyne.
—Nãotemmuitacoisa.Minhamulherquerqueeulhedêo
divórcioparaqueelapossasecasarcomumoutrocamarada.
—Émuito comumhoje emdia.E o senhor, suponho,não
estácemporcentodeacordocomela,nãoé?
— Gosto dela — disse o Sr. Wade com simplicidade. — O
senhorsabe...eugostodela.
Foiumaafirmaçãosimpleseatémeioinsípida,masseoSr.
Wade tivesse dito: "Eu a adoro. Venero o próprio chão que ela
pisa. Por ela eu arrancaria os cabelos" — não teria sido mais
explícitoparaParkerPyne.
—Ésempreassim,osenhorsabe—continuouoSr.Wade.
—Masoqueéqueeupossofazer?Querodizer,umapessoaétão
vulnerável.Seelapreferemesmoesteoutrosujeito...bem,agente
temdeseguirasregrasdojogo;sairdocaminho,etudoomais.
—.Apropostaéqueelasedivorciedosenhor?
—Éclaro.Eununcadeixariaqueelafosselevadaàcortede
justiça.
ParkerPyneolhoupensativoparaele—Masosenhorvem-
meprocurarporquê?
Ooutroriumeioenvergonhado—Nãosei.Sabecomoé,não
souumsujeitomuito esperto.Não sei pensar coisas.Achei que
talvez o senhor pudesse... bem, sugerir alguma coisa.Consegui
umprazodeseismeses,sabe?Elaconcordou.Senofimdeseis
meses ela não tivermudado de idéia... bom, achei que talvez o
senhor me daria uma ou duas sugestões. Atualmente ela se
aborrececomtudooqueeufaço.
—Vejaosenhor,oproblemaéumsó:nãosoumuitoesperto!
Gostodeesporte.Gostodeumjoguinhodegolfe.Gostodeuma
boapartidade tênis.Não soumuitobomemmúsica, arte, este
tipo de coisa. Minha mulher é muito inteligente. Ela gosta de
pintura, ópera, concertos, e se aborrece comigo. Esse outro
sujeito— detestável, cabeludo— sabe tudo sobre essas coisas.
Consegueperfeitamentefalarsobreelas.Eunão.Atécertoponto
eu entendopor queumamulher inteligente ebonita se chateia
comumabestacomoeu.
Parker Pyne suspirou— Há quanto tempo está casado?. ..
Nove anos? E suponho que desde o início tenha adotado esta
atitude. Errado, meu caro senhor, desastrosamente errado!
Nuncaadoteaatitudededesculpar-secomumamulher.Elavai
julgá-loporseupróprio julgamento,eserábemmerecido.Devia
terglorificadosuasproezasesportivas.Deviaterfaladodemúsica
earte como "essasbobagensqueaminhamulher gosta".Devia
mostrar-se desgostoso por ela não jogar bem. O espírito de
humildade, meu caro senhor, é o fracasso completo do
matrimônio! Nenhumamulher tem obrigação de agüentar isso.
Nãomeadmiraqueasuamulhernãotenhaconseguidoaturá-lo!
O Sr. Wade estava olhando espantado para ele. — Bem—
disseele,—oqueosenhorachaqueeudevofazer?
—Aperguntaéesta,semdúvida.Oquedevia tersido feito
nove anos atrás, agora é muito tarde para'fazer. Novas táticas
precisamseradotadas.Játevecasoscomoutrasmulheres?
—Claroquenão.
—Talvezfossemaisexatodizerumligeiroflerte?
—Nuncamepreocupeimuitocomasmulheres.
—Errado.Vaicomeçaragora.
OSr.Wadealarmou-se—Por favor,seriamuitodifícilpara
mim.Querodizer...
— Não vou lhe criar qualquer problema. Uma pessoa da
minhaequipeserádestacadaparaoseucaso.Elavailhedizero
que é preciso fazer e todas as atenções que lhe dedicar serão
entendidas,claro,comopartedonossotrato.
O Sr. Wade ficou mais aliviado — Assim é melhor. Mas o
senhor achamesmo... quero dizer, acho que íris vai ficar mais
ansiosadoquenuncaparaseverlivredemim.
—Osenhornãocompreendeanaturezahumana,Sr.Wade.
Emuitomenos a natureza humana feminina.Nomomento, do
ponto de vista feminino o senhor não passa de um refugo.
Ninguémquersaberdosenhor.Oqueéqueumamulhervaifazer
comumacoisaquenãointeressaaninguém?Nada.Masolhede
outro ângulo. Suponhamos que suamulher descubra que você
tambémestáloucopararecuperaraliberdade,damesmamaneira
queela.
—Elaiaficarmuitosatisfeita.
— Ia, mas não vai! Além do mais, ela vai ver que você
conseguiu interessar uma moça fascinante... uma moça que
poderiaescolherquembemquisesse.Issovailogoaumentarasua
cotaçãonabolsa.Suamulhersabequeosamigosvãodizerque
vocêestavacansadodelaequersecasarcomumamulhermais
atraente.Eissovaiaborrecê-la.
—Osenhoracha?
—Tenhocerteza.Vocênãovaisermaiso"coitadodoReggie".
Vai ser o "esperto do Reggie". Que diferença, meu caro. Sem
renunciaraooutroelavaitentarreconquistarvocê.Masvocênão
vai ser reconquistado. Vai se mostrar sensível e usar todos os
argumentosqueelaprópriausa."Achomelhornossepararmos".
"Incompatibilidade de gênios". Você vai notar que embora seja
verdade o que ela diga — que você nunca a compreendeu —
também é verdade queela nunca compreendeuvocê. Mas não
vamos entrar agora nesses detalhes; no momento certo você
saberáasinstruçõescompletas.
OSr.Wadepareciaaindaestaremdúvida—Osenhoracha
mesmoqueoplanovaidarresultado?—perguntouhesitante.
— Não vou lhe dizer que tenho certeza absoluta — disse
Parker Pyne com cautela.—Háuma vaga possibilidade de que
suamulher esteja tão perdidamente apaixonada por esse outro
sujeito quenadaque vocêdisser ou fizer vai afetá-la,masacho
queoproblemanãoéesse.Provavelmenteelacomeçouestecaso
por causa do tédio _— um tédio criado pela atmosfera de sua
devoção fácil de contentar e da absoluta fidelidade com que a
cercou, de uma maneira muita errada. Se seguir minhas
instruções, suas possibilidades são, digamos, de noventa e sete
porcento.
— Bastante boas— disse o Sr.Wade.— Vou arriscar. Por
falarnisso...ahn...quantovaiser?
—Meu preço é duzentos guinéus, adiantados. O Sr. Wade
tirouotalãodechequesdobolso.
Os jardinsdeLorrimerCourt eramencantadores ao sol" da
tarde. írisWade, deitadanuma espreguiçadeira, tornava a visão
ainda mais agradável à vista. Ela estava com uma roupa em
delicados tonsde lilás, e apinturaaplicada comhabilidade lhe
davaarmaisjovemdoqueosseustrintaecincoanos.
Estava conversando com a Sra. Massington, que sempre
achou muito simpática. Ambas viviam atribuladas com seus
maridos atléticos, que falavam ora de ações, ora demercado de
valores,oradegolfe.
— ... E assim nós aprendemos a viver e deixar os outros
viverem—finalizouíris.
— Você é maravilhosa, minha querida — disse a Sra.
Massington, e rapidamente acrescentou: — Me diga quemé a
moça?
íris levantou os ombros com ar enfastiado — Nem me
pergunte! Reggie foi quem a descobriu. Ela é a amiguinha de
Reggie! Foi tão engraçado!Você sabe que elenunca olhoupara
outramulher. Me procurou e hesitoumuito para falar até que
dissequequeriaconvidaraSrta.Saraparapassarcomeleofim
desemana.Éclaroeuri...Nãopudeevitar.Reggie,imagine!Eaí
estáela.
—Ondefoiqueeleaconheceu?
—Nãosei.Nãodeumaioresexplicações.
—Talvezjáaconheçahámuitotempo.
—Nãoacredito!—disseaSra.Wade.—Éclaro—continuou
ela,— que estoumuito satisfeita... satisfeitíssima. Quero dizer,
issosimplificatantoascoisasparamim.Vocêsabe,fiqueimuito
preocupadacomReggie;eleétãoindefeso!Foiporissoquefalei
com Sinclair... íamos ferir tanto o Reggie! Mas ele insistiu que
Reggieiaesquecerlogo;parecequeeletinharazão.Hádoisdias
Reggie parecia inconsolável. .. e agora ele convida esta moça!
Como lhe disse, estouencantada! Gosto de ver Reggie se
distraindo.Imaginoqueopobrecoitadopensouqueeufosseficar
comciúmes.Queidéiaabsurda!"Claro—disseeu—tragaasua
amiguinha". Coitado do Reggie, como se aquela moça desse
algumaatençãoaele.Elasóquersedivertir.
—Elaémuitoatraente—disseaSra.Massington.—Muito
perigosa, não sei se você entende. O tipo de garota que só se
interessaporhomens.Nãosei,masnãomepareceserumamoça
direita.
—Provavelmentenãoémesmo—disseaSra.Wade.
—Elatemroupasmaravilhosas—disseaSra.
Massington.
—Talvezumpoucoexóticasdemais,nãoacha?
—Mascaríssimas.
—Grã-finas.Elatemumarmuitogrã-fino.
—Estãochegando—disseaSra.Massington.
Madeleine de Sara e Reggie Wade vinham pela alameda.
Riam,conversavamepareciammuitofelizes.Madeleineseatirou
numacadeira,tirouobonéqueestavausandoepassouasmãos
pelosseusbelíssimoscachosnegros.Erarealmentemuitobonita.
— Passamos uma tarde maravilhosa! — exclamou ela. —
Estoumorrendodecalor.Devoestarcomumacarahorrorosa.
Reggiecomeçouafalarcomnervosismoquandoouviuasua
deixa— Você está... você está... — sorriu. — Não vou dizer—
completou.
Os olhos de Madeleine encontraram os dele. A Sra.
Massingtonreparou.
—Asenhoradeviajogargolfe—disseMadeleineparaasua
anfitrioa.—Não sabe o que está perdendo, por quenão tenta?
Tenho uma amiga que começou há pouco tempo e aprendeu
muitobem.Eelajáerabemmaisvelhaqueasenhora.
—Nãoligoparaessetipodecoisa—disseíriscomfrieza.
—Vocênãojogabem?Ah,coitada!Issodeixaumapessoatão
porforadetudo.Mas,realmenteSra.Wade,ostreinamentoshoje
em dia são tão bons que qualquer um pode jogar bem. Treinei
muitotênisnoverãopassado.Éclaroquenogolfeeunemtenho
esperanças...
—Bobagem!—disseReggie.—Você sóprecisa treinarum
pouquinhomais. Reparou como você conseguiu dar umas boas
tacadasestatarde?
—Porquevocêmeensinou.Vocêéumprofessormaravilhoso!
Muitas pessoas simplesmente não têm o dom de ensinar aos
outros.Vocêtemessedom.Devesermaravilhososerfeitovocê...
saberfazertudo!
—Ora,eunãoseifazernada...nãosirvoparanada—Reggie
estavaconfuso.
— A senhora deve ser muito orgulhosa dele — disse
MadeleineparaaSra.Wade.—Comofoiqueconseguiumantê-lo
preso esses anos todos? Deve ter sido muito esperta. Ou o
escondeuotempotodo?
Sua rival não deu resposta. Apanhou um livro com amão
trêmula.
Reggieresmungouqueprecisavatrocararoupaesaiu.
— Foi tão gentil da sua parte me receber aqui — disse
Madeleine para ela. — Algumas mulheres suspeitam tanto das
amigasdosseusmaridos.Sempreacheiqueociúmeéumacoisa
absurda,asenhoranãoacha?
— Acho sim. Nunca me passou pela cabeça ter ciúmes de
Reggie.
—Étãomaravilhosodasuaparte!Porquequalquerpessoavê
logo que ele é um homem terrivelmente atraente para as
mulheres. Foi um choque paramim quando soube que ele era
casado. Por que todos os homens atraentes são agarrados tão
cedo?
— Fico satisfeita de ver que você acha Reggie assim tão
atraente—disseaSra.Wade.
—Ah,sim!Bom,eémesmo,nãoé?Tãobonitoetãobomnos
esportes.Eestapretensaindiferençacomasmulheres.Istoatiça
agenteéclaro.
—Suponhoquevocêtemumaporçãodeamigoshomens—
disseaSra.Wade.
—É; tenhosim!Gostomaisdoshomensquedasmulheres.
Nuncasimpatizomuitocomasmulheres.Nãoseiporquê.
—Talvezporquevocêsejasimpáticademaiscomosmaridos
delas—disseaSra.Massingtoncomumarisadinhaaguda.
—Bem,agenteàsvezes ficacompenadaspessoas.Tantos
homenssimpáticospresosaumasmulhereschatas.Sabe,nãoé,
mulherespseudo-artísticas,metidasaintelectuais.Éclaroqueos
homenspreferemalguémmaismoço,maisalegre,paraconversar.
Acho que as concepçõesmodernas de casamento e divórcio são
muitosensatas.Começardenovoenquantoaindaseéjovem,com
alguémquetenhaosmesmosgostoseasmesmasidéias.Nofinal
das contas, é melhor para todo mundo. Isto é, as mulheres
intelectualizadasprovavelmentevãoagarraralgumcabeludoque
assatisfaça.Achoquecomeçardenovoenquantoétempoéuma
coisamuitocerta,nãoacha,Sra.Wade?
—Semdúvida.
Ofrioqueestavafazendopareceupenetrarnaconsciênciade
Madeleine.Elaresmungouqueprecisavatrocarderoupaparao
cháedeixouasoutrasduas.
— Estas moças modernas são detestáveis — disse a Sra.
Wade.—Nãotêmnadanacabeça.
— Ela tem uma idéia na cabeça, íris — disse a Sra.
Massington.—EstamoçaestáapaixonadaporReggie.
—Bobagem!
—Estásim.Euvicomoolhouparaeleaindaagora.Elaestá
poucoligandoqueelesejacasadoounão.Elaquerficarcomele.
Achoissorevoltante.
ASra.Wadeficoualgunsminutosemsilêncio,edepoisriu,
indecisa—Afinaldecontas—disseela,—oquemeimporta?
Como Madeleine, a Sra. Wade também subiu. O marido
estavatrocandoderoupanoquarto.Cantarolava.
—Divertiu-se,querido?—perguntouaSra.Wade.
—Ah,sim...muito.
—Ficosatisfeita.Queroquevocêsesintafeliz.
—Sei, sei... estoume sentindo feliz. Representar não era o
fortedeReggieWade,masdo jeitoqueas coisasaconteceramo
constrangimento provocado pelo fingimento funcionou às mil
maravilhas.Ele evitouo olhardamulher e teveumsobressalto
quando ela falou. Sentiu-se envergonhado, odiou toda aquela
farsa. Nada teria produzido um efeitomelhor. Ele era o retrato
perfeitodeumaconsciênciaculpada.
—Háquantotempovocêaconhece?—perguntouderepente
aSra.Wade.
—Ahn...quem?
—ASrta.deSara,éclaro.
—Bom,nãoseidireito.Istoé...ora,háalgumtempo.
—Ah,é?Vocênuncamefaloudela.
—Não?Achoquemeesqueci.
—Esqueceumesmo!—disseaSra.Wade,edepoissaiu,num
torvelinhodebabadoslilases.
Depoisdochá,oSr.WadefoimostraroroseiralaMadaleine.
Andaram pela alameda sentindo os dois pares de olhos que os
seguiampelascostas.
—Olheaqui!—asalvodosolhares,lánoroseiral,oSr.Wade
desabafou.— Olhe aqui, acho que vou desistir. Minhamulher
passouameolharcomosemeodiasse!
— Não se preocupe — disse Madeleine. — Está tudo indo
bem.
— Você acha mesmo? Bom, é que eu não queria que ela
ficasse com raiva demim.Ela disse coisasmuito desagradáveis
duranteochá.
— Está tudo certo — insistiu Madeleine. — Você está
representandomuitobem.
—Vocêachamesmo?
—Acho—abaixouavoz.—Suamulherestádandoavolta
doterraço.Elaquerveroquenósestamosfazendo.Émelhorvocê
mebeijar.
— Ahn!— disse o Sr.Wade nervoso.—É precisomesmo?
Querodizer...
—Mebeije!—repetiuMadeleineautoritária.
OSr.Wadeabeijou.Suafaltadeentusiasmofoiamplamente
compensadaporMadeleine.Elaoenlaçounosbraços.OSr.Wade
titubeou.
—Detestoutantoassim?—perguntouMadeleine.
—Ahn,claroquenão—disseelegalantemente.—Só... só
quemepegoudesurpresa—acrescentouansioso:—Achoquejá
ficamosmuitotempoaquinoroseiral,nãoé?
—Achoquesim—disseMadeleine.Missãocumpridaaqui.
Voltaramparaogramado.ASra.Massingtoninformouquea
Sra.Wadetinhaidosedeitar.
Mais tarde, o Sr. Wade procurou Madeleine com o rosto
perturbado.
—Elaestánumestadodeplorável...histérica.
—ótimo.
—Elameviubeijandovocê.
—Bom,eraoquenóspretendíamos.
—Eusei,maseunãopodiadizerisso,nãoé?Eunemsabia
oquedizer.Disseapenasque...que...bom,queaconteceu.
—Ótimo.
—Eladissequevocêestavapensandoemcasarcomigoeque
não valia nada. Isso me aborreceu... me pareceu muito
desagradávelparavocê. Istoé,porquevocêestásó representado
umpapele fazendooseu trabalho.Eudisseque tinhaomaior
respeitoporvocêeoqueelaestavadizendonãoeraverdade,de
modo nenhum. Acho que cheguei ame zangarmesmo quando
faleiisso.
—Fantástico!
—Entãoeladisseparaeuirembora.Dissequenuncamais
falariacomigo.Falouemfazerasmalase iremboradeumavez
portodas—orostodeleestavaconsternado.
Madeleinesorriu—Voulhedizeroquedevefazeragora.Diga
paraelaquevocêéquemvaiembora,quevaifazerasmalasevai
paraacidade.
—Maseunãoqueroir!
—Estábem.Vocênãoprecisa ir.Suamulhervaidetestara
idéiadesaberquevocêestásedivertindoemLondres.
Namanhã seguinteReggieWade tinhaumnovo relatório a
comunicar.
"Eladissequeestevepensandoquenãoédireitoelairembora
agoraqueconcordouemficarmaisseismeses.Masdissequese
eutenhoodireitodetrazerminhasamigasaqui,elanãovêpor
quenãohádetrazertambémosamigosdela.ConvidouSinclair
Jordan."
—Éele?
— É, e eu não admito que este homem ponha os pés em
minhacasa!
—Épreciso—disseMadeleine.—Nãosepreocupe.Eucuido
dele.Digaaelaquepensouumpoucoechegouàconclusãode
que não tem nenhum problema e que ela também não se
importaráquevocêmeconvideparaficarmaisumpouco.
—Ai,meuDeus!—suspirouoSr.Wade.
—Vamos,nãopercaacabeça—disseMadeleine.
— Está tudo correndo àsmil maravilhas. Mais uns quinze
dias—etodososseusproblemasvãoacabar.
— Mais uns quinze dias?. . . Você acredita mesmo? —
perguntouoSr.Wade.
—Seeuacredito?Tenhocerteza—respondeuMadeleine.
UmasemanadepoisMadeleinedeSara entrouno escritório
deParkerPyneeafundoupesadamentenumacadeira.
— Entrou a Rainha dasVamps — disse Parker Pyne,
sorrindo.
—Vamps!—disseMadeleine.Sorriuligeiramente.—Nunca
fiztantaforçaparaserumavamp.Aquelehomeméobcecadopela
mulher.Jáédoença.
Parker Pyne sorriu — É mesmo. Bom, de certa forma isso
facilitouonossotrabalho.Nãoéqualquerhomem,minhaquerida
Madeleine, que eu exporia ao seu fascínio com tanta
tranqüilidade.
Amoçariu—Sesoubesseadificuldadequeeutiveparafazer
elemebeijarcomoseestivessegostando!
—Umaexperiêncianovaparavocê,minhaquerida.Eoseu
trabalhoterminou?
—Terminou.Achoquedeucerto.Houveumacenatremenda
ontemdenoite.Esperaaí,meuúltimorelatóriofoihátrêsdias?
—Foi.
— Bom, como já disse, tive que olhar para aquele verme
miserável, o Sinclair Jordan. Ele ficou logo caído por mim...
principalmenteporqueachou,pelasminhasroupas,queeutinha
dinheiro.ASra.Wadeficoufuriosa,éclaro:seusdoishomensse
desdobrando em atenções comigo. Mostrei logo quem é que eu
preferia.ZombeideSinclairJordan...na frentedela ena frente
dele.Ridasroupasdeleedotamanhodocabelo.Mostreiqueele
tinhaaspernastortas.
—Excelentetécnica—dissePyne,satisfeito.
—Acoisaferveuontemànoite.ASra.Wadeabriuojogo.Me
acusou de destruir o seu lar. Reggie Wade falou de Sinclair
Jordan. Ela disse que aquilo tinha sido o resultado de sua
infelicidade e de sua solidão. Ela já notara o ar ausente do
marido,mas não tinha idéia da causa.Disse que sempre tinha
sidofeliz,queadoravaomaridoeelesabiadisso,equesóqueria
aele,amaisninguém.
—Eudissequeeratardedemais.OSr.Wadeseguiuàrisca
as instruções.Disse a ela quenão ligava amínima! Ia se casar
comigo! A Sra. Wade podia ficar com seu Sinclair o quanto
quisesse. Não havia razão para esperar seis meses. Era um
absurdo! Os papéis do divórcio podiam ser tratados
imediatamente.
— Dentro de mais alguns dias, disse ele, tudo estaria
esclarecido e ela podia instruir seus advogados. Disse que não
podia viver semmim. A Sra.Wade apertou o peito e falou que
estava com o coração enfraquecido e tiveram de lhe dar um
conhaque.Elenãosedeixouamolecer.Veioparaacidadehojede
manhãetenhocertezadequeaestashoraselajáveioatrásdele.
—Entãoestátudocerto—dissePynealegremente.
—Umresultadomuitosatisfatório.
AportaabriueapareceuReggieWade.
— Ela está aqui? — perguntou ele, entrando pela sala. —
Ondeestáela?—viuMadeleine.—Querida!—gritouesegurou-
lheasduasmãos.—Querida, querida.Você sabia,não é?Que
eratudoverdadeontemànoite...quetudooquedisseaírisera
verdade?Nãoseicomopudeficarcegotantotempo.Maspercebi
nosúltimostrêsdias...
—Percebeuoquê?—disseMadeleine,baixo.
—Queeuadorovocê.Quenãohánenhumaoutramulherno
mundo igual a você. íris podepedir o divórcio e quando estiver
tudo resolvido você vai se casar comigo, não é? Diga que sim.
Madeleine,euadorovocê!
Ele apertou a paralisada Madeleine nos seus braços,
enquanto a porta se abria outra vez, agora para deixar passar
umamulhermagra,comumvestidoverdedesajeitado.
— Eu sabia! — disse a recém-chegada. — Eu segui você!
Sabiaquevocêvinhaseencontrarcomela!
—Eulheasseguro...—começouParkerPyne,recuperando-
sedoespanto.
Aintrusanãotomouconhecimentodele.Continuou:
— Ah, Reggie, você não pode despedaçar assim o meu
coração!Volteparamim!Nãovoudizerumapalavrasobre tudo
isso! Vou aprender golfe! Só terei amigos de que você goste.
Depoisdetodosessesanosquenósfomosfelizesjuntos..,
—Atéagoraeununca fui feliz—disseoSr.Wadeolhando
paraMadeleine.—Esqueça, íris, você não queria se casar com
aquelamuladoJordan?Porquenãocasalogo?
A Sra. Wade deu um gemido — Odeio você! Odeio a sua
própria sombra! — virou-se para Madeleine: —Mulher viciosa!
Seuvampirohorrível!Roubandoomeumarido!
—Eunãoquerooseumarido—disseMadeleinedistraída.
—Madeleine!—oSr.Wadeolhouangustiadoparaela.
—Porfavor,váembora—pediuMadeleine.
—Veja,meubem,nãoestoufingindo.Foiissomesmoqueeu
quisdizer!
—Váembora!—gritouMadeleine,histérica.—Váembora!
Reggie caminhou relutante até a porta— Eu vou voltar—
avisou. — Você não está me vendo pela última vez — saiu,
batendoaporta.
—Moçascomovocêdeviamseraçoitadasemarcadasaferro!
—gritouaSra.Wade.—Reggieeraumanjoparamimatévocê
aparecer.Agoraeleestátãomudadoqueeunemoconheçomais!
—comumsoluço,correuatrásdomarido.
MadeleineeParkerPyneseentreolharam.
—Nãopossofazernada—disseMadeleinedesorientada.—
Eleéumhomemmuitosimpático...umamor!...masnãoquero
me casar com ele. Eu nem suspeitava disso tudo. Se visse a
dificuldadequetiveparafazercomquemebeijasse!
— Bom!— disse Parker Pyne.— Sintomuito admitir isto,
mas foi um erro de julgamento da minha parte — balançou a
cabeçatristementee,puxandooficháriodoSr.Wade,escreveu:
FRACASSO: causas naturais. N.B. —Deviam ter sido
previstas.
5
OCasodoEmpregadodeEscritório
PARKERPYNEreclinou-sepensativoemsuacadeiragiratóriae
observouoseuvisitante.Eraumhomembaixo,troncudo,deuns
quarentaecincoanos,queolhavaparaelecomolhosaomesmo
tempo tímidos, sôfregos e intrigados, e que deixavam entrever
umaesperançaaflita.
— Vi o seu anúncio no jornal — disse o homenzinho
nervosamente.
—Osenhortemalgumproblema,Sr.Roberts?
—Não...nãoébemumproblema.
—Osenhoréfeliz?
—Eunãodiriaquesouinfeliz.Tenhomuitooqueagradecer
davida.
—Todosnós temos—disseParkerPyne.—Masquando é
precisoselembrardisso,émausinal.
—Eusei—disseohomenzinhovivamente.—Éexatamente
isso!Osenhoracertouemcheio!
—Quetalosenhormecontartudo,hein?—sugeriuParker
Pyne.
—Não tenhomuita coisapara contar.Como lhedisse,não
possome queixarmuito da vida. Tenho um emprego; consegui
economizarumpoucodedinheiro;ascriançassãofortesesadias.
—Entãoosenhorquer...oquê?
—Eu...nãosei—corou.—Achoqueosenhorestáachando
queeusouumidiota.
—Absolutamente—dissePyne.
Comumhábilinterrogatório,extraiuasoutrasconfidencias.
FicousabendoarespeitodotrabalhodoSr.Robertsnumafirma
muitoconhecidaedeseusprogressos,lentosmasfirmes.Soube
de seu casamento, de sua luta para manter uma aparência
decente,paraeducarascriançase tê-lassempre"bemvestidas";
dos planos, dos projetos, das economias e das dificuldades em
economizar todo ano algumas libras. Conheceu, na verdade, a
sagade,umavidadeesforçoscontínuospelasobrevivência.
—Bem,agoraosenhorvêcomoé—confessouoSr.Roberts.
—Amulherestáfora.Foipassarunsdiascomamãeelevouas
duascrianças.Umamudançaparaeleseumdescansoparaela.
Nãotemquartoparamimenósnãotemosmeiosdeirparaoutro
lugar. E sozinho, lendo o jornal, vi o seu anúncio e eleme fez
pensar. Tenho quarenta e oito anos. Fiquei pensando...
Acontecem coisas em todos os lugares— concluiu, toda a sua
almasuburbanaeansiosaemseusolhos.
—O senhor queria—disse oSr. Parker Pyne,— viver dez
minutosdeumavidagloriosa?
—Bem,eunãocolocariaascoisasdessamaneira.Mastalvez
osenhortenharazão.Eusógostariadesairdarotina.Voltariaa
ela outra vez,mesmo comprazer... se aomenos tivesse alguma
coisaparamelembrar—olhouinquietoparaooutrohomem.—
Seráqueépossível,senhor?Temo...temoquenãopossapagar
muito.
—Quantoosenhorpodepagar?
—Possoarranjarumascincolibras,senhor—eleesperou,a
respiraçãopresa.
—Cinco libras— disse Parker Pyne.—Acho... acho... que
possoarranjaralgumacoisaporcincolibras.Osenhorseopõeao
perigo?—acrescentoucomvivacidade.
UmleveruborapareceunorostodescoradodoSr.Roberts.—
Perigo,osenhordisse?Oh,não,absolutamente.Eu...eununca
fiznadaperigoso.
ParkerPynesorriu—Apareçaaquiamanhãdenovoeeulhe
digooquepossofazerpelosenhor.
OBonVoyageuréumahospedariapoucoconhecida.Émais
umrestaurante freqüentadoporalgunspoucos freguesescertos.
Elesnãogostamdeestranhos.
FoinoBonVoyageurqueParkerPynechegoue foirecebido
com respeitosa consideração. — O Sr. Bonnington está? —
perguntouele.
—Sim,senhor.Estánasuamesahabitual.
—ótimo.Vouvê-lo.
OSr.Bonnington era um cavalheiro de aparênciamilitar e
com um rosto um tanto ou quanto bovino. Cumprimentou o
amigocomprazer.
—Alô,Parker.Édifícilvervocêporessesdias.Nãosabiaque
vinhaporestasbandas.
— Venho de vez em quando. Especialmente quando quero
encontrarumvelhoamigo.
—Vocêquerdizereu?
— Você mesmo. Por falar nisso, Lucas, estive pensando
naquelaconversadooutrodia.
—O caso Peterfield? Viu as últimas nos jornais? Não, não
devetervistoainda.Nãovaisairnadaantesdehojeànoite.
—Quaissãoasúltimas?
—ElesassassinaramPeterfieldanoitepassada—disseoSr.
Bonningtoncomendoplàcidamentesuasalada.
—DeusdoCéu!—gritouPyne.
—Poiseuhãomesurpreendi—disseoSr.Bonnington.—
Eraumvelhoteimoso,oPeterfield.Nãoescutavaoquedizíamos.
Sempreinsistiaemguardarosplanoscomele.
—Elesconseguiramosplanos?
— Não, parece que apareceu uma mulher que deu ao
professor uma receita para ferver presunto. A mula velha,
distraídocomosempre,guardouareceitanocofreeosplanosna
cozinha.
—Foimuitasorte.
—Providencial, eudiria.Masaindanãoseiqueméquevai
levá-los paraGenebra.Maitland está no hospital. Carslake está
emBerlim.Eunão posso ir. Só resta o jovemHooper— olhou
paraoamigo.
—Suaopiniãoéamesma?—perguntouParkerPyne.
—Amesmíssima.Elesocompraram!Eusei.Nãoháamenor
prova, Parker, mas eu sei quando um sujeito é velhaco! E eu
queroqueestesplanoscheguemaGenebra.Pelaprimeiravezna
históriaumainvençãonãovaiservendidaaumanação.Vaiser
doadavoluntariamente.Éomaiorgestodepazquejáaconteceue
éprecisoqueseconcretize.EHooperéumvigarista.Vocêvaiver,
eleseránarcotizadonotrem!Sefordeavião,vaiaterraremalgum
lugarconveniente!Mas,apesardetudo,nãopossoabrirmãodele
paraosoutros!Disciplina!Éprecisoterumacertadisciplina!Foi
sobreistoqueeulhefalavaoutrodia.
—Vocêmeperguntouseeunãoconheciaalguém.
— Sim. Pensei que talvez no seu tipo de negócio. .. Algum
espadachimloucoparaentrarnumabriga.Qualquerumqueeu
mandar corre um grande risco de ser liquidado. O seu homem
provavelmentenãoseriasuspeitodenada.Maséprecisoqueele
tenhamuitacoragem.
—Achoquetenhoalguémparaisso.
—GraçasaDeusaindatemgentequegostadecorrerriscos.
Estácombinado,então?
—Combinado—disseParkerPyne.
ParkerPyneestavaresumindosuasinstruções—Então,está
tudoclaro?Vocêvaiviajarnumcarro-leitodaprimeiraclasseaté
Genebra. Deixará Londres às dez e quarenta e cinco, via
FolkestoneeBoulogne.Pegaocarro-leitoemBoulogne.Chegaem
Genebraàsoitohorasdamanhãseguinte.Estáaquioendereço
onde deverá se apresentar. Por favor, guarde-o de memória e
destrua o papel. Depois vá para o hotel e aguarde as futuras
instruções. Aqui tem dinheiro suficiente em notas francesas e
suíçasebastantetrocado.Compreendeu?
—Sim,senhor—osolhosdeRobertsbrilhavamdeemoção.
— Perdão, senhor,mas eu tenho o direito de saber... ahn... de
saberalgumacoisasobreoqueestoulevando?
Parker Pyne sorriu benevolentemente — Você está levando
um criptograma que revela o esconderijo secreto das jóias da
coroa da Rússia — disse solenemente. — Evidentemente, há
agentesbolcheviquesapostos,prontosparainterceptá-lo.Sefor
necessário falar sobre a sua própria pessoa, recomendo-lhe que
digaqueherdouumpoucodedinheiroequeestáaproveitando
paratirarumasfériasnoexterior.
OSr.Robertstomouumaxícaradecaféeolhouparaolago
deGenebra.Estavafeliz,masaomesmo'tempodesapontado.
Estava felizporquepelaprimeiravezemsuavidaeleestava
numpaísestrangeiro.Alémdisso,estavahospedadonumtipode
hotelnoqualnuncasehospedariaoutravezepelomenosagora
nãotinhaquesepreocuparcomdinheiro!Tinhaumquartocom
banheiro particular, refeições deliciosas, um serviço perfeito.
TodasestascoisasoSr.Robertsapreciavamuitíssimo.
Estava desapontado porque nada que pudesse ser descrito
comoaventuraacontecera emsuaviagem.Nenhumbolchevique
disfarçadooualgumrussomisteriosocruzaraoseucaminho.Um
bate-papoagradávelno tremcomumviajante comercial francês
quefalavauminglêsexcelenteforaoúnicocontatohumanoque
tivera até aqui. Escondera os papéis junto com sua esponja de
banho,comolheforadito,eosentregaraseguindoasinstruções.
Não houve nenhum risco, nenhuma fuga mirabolante. O Sr.
Robertsestavamuitodesapontado.
Foi nesse momento que um homem alto, barbado,
murmurou:—Pardon—esentou-sedooutro ladodamesinha.
—Osenhorvaimedesculpar—disse,—masachoqueconhece
umamigomeu.AsiniciaissãoP.P..
O Sr. Roberts ficou eletrizado. Finalmente, um russo
misterioso—Co...conheçosim.
—Entãoachoquepodemosnosentender—disseoestranho.
OSr.Robertsolhou-oatentamente.Issoeramaisdoqueele
tinha imaginado! O estranho era um homem de cerca de
cinqüenta anos, de aparência distinta, porém estrangeirada.
Usavaummonóculoeumapequenafitacoloridanalapela.
— A sua missão foi cumprida com muito êxito — disse o
estranho.—Estápreparadoparaexecutaroutra?
—Certamente.Claroquesim!
— Bom. O senhor vai reservar um lugar no carro-leito do
tremGenebra—Parisparaamanhãànoite.Peçao leitoNúmero
Nove.
—Esehãoestivervago?
—Vaiestarvago.Issojáfoiarranjado.
—LeitoNúmeroNove—repetiuRoberts.—Jácompreendi.
—Duranteaviagemalguémvailhedizer."Pardon,Monsieur,
mas acho que esteve há pouco tempo em Grasse, não?". Vai
responder: "Foi, nomês passado". A outra pessoa vai dizer: "O
senhorseinteressaporessências?"eosenhorresponderá:"Sim,
sou fabricantede óleode jasmimsintético".Depois o senhor se
colocará inteiramente à disposição da pessoa que lhe falou. Por
falarnisso,osenhorestáarmado?
—Não—disseoSr.Robertscomumlevetremor.—Não,eu
nãopensei,istoé...
— Dá-se um jeito — disse o homem barbado, olhando em
torno. Não havia ninguém por perto. Algo duro e brilhante foi
colocado nasmãos do Sr. Roberts.— Uma arma pequenamas
muitoeficaz—disseoestranhosorrindo.
O Sr. Roberts, que nunca dera um tiro de revólver em sua
vida,colocou-onobolso,meiodesajeitado.Tinhaumasensação
desagradáveldequeaquiloiadispararaqualquermomento.
Repetiram novamente as palavras da senha. Então o novo
amigoselevantou.
—Desejo-lheboasorte—disseele.—Queosenhorpossase
desincumbir sem problemas. É um homem de coragem, Sr.
Roberts.
Sou mesmo? pensou Roberts quando o outro foi embora.
Tenhocertezadequenãoqueromorrer.Issonãovaleapena.
Uma vibração agradável percorreu a sua espinha,
contrabalançada por uma. outra vibração que não era lá tão
agradável.
Foiparao seuquarto e examinouaarma.Aindanão sabia
comofuncionavaedesejouquenãofossenecessáriousá-la.
Saiuparamarcarapassagem.
O tremdeixouGenebra àsnove emeia.Roberts chegouna
estaçãoatempo.Ocondutordocarro-leitopegouseubilheteeo
passaporteeficoudeladoenquantoumcarregadorlevavaamala
deRoberts.Haviaumaoutrabagagemali:umavalisedecourode
porcoeumamaladevigemdedoiscompartimentos.
—NúmeroNoveéoleitoinferior—disseocondutor.
Ao se virar para sair da cabina, deu um encontrão num
homenzarrão que entrava. Eles se afastarampedindo desculpas
—Roberts em inglês e o estranho em francês. Era um homem
alto,corpulento,comacabeçaraspadaeóculosespessosatravés
dosquaisseviamunsolhosquebrilhavamdesconfiados.
Umapessoaatemer,disseRobertsparasimesmo.
Pressentiualgovagamentesinistrosobreoseucompanheiro
de viagem. Teria sido para vigiar este homem que lhe fora
indicadooleitoNúmeroNove?Calculouquefosse.
Saiuoutravezparaocorredor.Ainda faltavamdezminutos
para o trem partir e ele pensou em andar um pouco pela
plataforma.Ameiocaminhodocorredorpôs-sedeladoparadar
passagem a uma senhora. Ela estava entrando no vagão e o
condutoraprecediacomobilhetenamão.AopassarporRoberts
ela deixou cair a bolsa. O inglês apanhou-a e entregou-lhe de
volta.
—ObrigadaMonsieur—ela faloueminglês,masasuavoz
eraestrangeira,umavozsonora,graveemuitosedutora.Quando
elaestavaquasepassandoporele.hesitouemurmurou:Pardon,
Monsieur,masachoqueestevehápoucotempoemGrasse,não?
O coração de Roberts deu um pulo de excitação. Ele devia
pôr-se à disposição desta adorável criatura — porque ela era
adorável, disso ele não tinha a menor dúvida. Não somente
adorável,masaristocráticaerica.Usavaumcasacodepelespara
viagem,umchapéuelegante.Haviapérolasemtornodopescoço.
Eramorenaetinhaoslábiosvermelhos.
Robertsdeuarespostaadequada:—Foi,nomêspassado.
—Osenhorseinteressaporessências?
— Sim, sou fabricante de óleo de jasmim sintético. Ela
abaixou a cabeça e seguiu, deixando um leve sussurro: — No
corredorassimqueotremsair.
Os próximos dez minutos pareceram uma eternidade para
Roberts.Enfimotremsaiu.Eleandoulentamenteatéocorredor.
Asenhoradocasacodepelesestavalutandocontraumajanela.
Apressou-seemajudá-la.
— Obrigada, Monsieur. Apenas um pouco de ar antes que
elesfechemtudo—econtinuouemvozsuave,baixaeapressada:
—Depoisda fronteira, quando onosso companheirode viagem
estiver dormindo. .. não antes... vá até o lavatório e entre na
cabinadooutrolado.Compreendeu?
—Sim—abaixouajanelaedisseemvozmaisalta:—Está
melhorassim,Madame?
Retirou-se para o seu compartimento. Seu companheiro de
viagem já estava estendido no leito de cima. Seus preparativos
paraanoitetinhamsidovisivelmentesimples.Limitou-seatirar
acapaeasbotas.
Robertspensounoproblemadasuaroupa.Eraclaroque,se
eleiaparaacabinadeumasenhora,nãoiasedespiragora.
Procurou um par de chinelos, trocou-os pelas botinas e
deitou-se,apagandoasluzes.Algunsminutosdepoisohomemlá
decimacomeçouaressonar.
Logo depois das dez horas eles alcançaram a fronteira. A
portafoiaberta;umaperguntasuperficial:Messieurstêmalgoa
declarar? A porta foi fechada novamente. O trem partiu de
Bellegarde.
O homem do leito de cima estava ressonando outra vez.
Robertsdeixoupassarvinteminutos,pôs-sedepéeabriuaporta
do compartimento do lavatório. Uma vez lá dentro, trancou a
porta atrás dele e olhou para a que estava do outro lado. Não
estavatrancada.Hesitou.Deveriabater?
Talvezfosseumabsurdobaternaporta.Maselenãogostava
daidéiadeentrarsembater...Decidiu-se,abriuaportadevagar,
maisoumenosumapolegada,eesperou.Aventurou-semesmoa
umapequenatosse.
A resposta foi imediata. A porta foi escancarada e ele foi
agarrado por um braço, puxado para a outra cabina e a moça
fechouepassouotrinconaporta.
Roberts ficou sem fôlego. Nunca imaginara nada assim tão
maravilhoso.Elaestavausandoumalevíssimacamisolacomprida
degazecremeerendas.Encostou-secontraaportaquedavapara
o corredor, ofegante. Roberts lera a respeito de belas criaturas
perseguidaseacuadas.Agora,pelaprimeira vez, ele viauma—
quevisãoemocionante!
—GraçasaDeus!—murmurouamoça.
Elaeramuito jovem,Robertsnotou,eoseuencantoeratal
quepareciaumserdeoutromundo.Eisoromancefinalmente—
eeleestavaali!
Elafalouemvozbaixaerápida.Seuinglêseraperfeito,maso
sotaqueera totalmenteestrangeiro—Estoumuitocontenteque
tenha vindo — disse ela. — Estava horrivelmente assustada.
Vassilievitchestánotrem.Sabeoquequerdizerisso?
Roberts não tinha idéia do que isso queria dizer, mas
concordoucomacabeça.
—Pensei que tivesse conseguidodespistá-lo.Devia ter visto
logo.Oquepodemosfazer?Vassilievitchestánacabinapegadaà
minha.Aconteçaoqueacontecer,elenãopodeconseguirasjóias.
Mesmoqueelememate,nãodevepôramãonasjóias.
—Elenãovaimatá-laenãovaipôramãonasjóias—disse
Robertscomdeterminação.
—Entãooquepossofazercomelas?
Robertsolhouparaaportatrancada—Aportaestátrancada
—disse.
Amoçariu—OquesãoportastrancadasparaVassilievitch?
Roberts sentia-se cada vezmais emaisnomeio deumade
suasnovelasfavoritas—SóháUmacoisaafazer.Dê-measjóias.
Elaolhou-oduvidosa.—Elasvalem250mil.
Robertscorou—Podeconfiaremmim.
A moça hesitou ainda um momento e falou — Sim, vou
confiar em você — disse ela. Fez um movimento rápido. Em
seguida entregou a ele umpar demeias enroladas—meias de
seda teia de aranha. — Guarde-as, meu amigo — disse ela ao
espantadoRoberts.
Aoapanhá-laseleentendeulogo.Emvezdeseremlevescomo
oar,asmeiasestavamestranhamentepesadas.
— Leve-as para a sua cabina — disse ela. — Você pode
devolvê-lasdemanhã,se...se...seeuaindaestiveraqui.
Robertspigarreou—Olheaqui—disse.—Aseurespeito—
fezumapausa.—Eu...euprecisotomarcontadevocê—aíele
enrubesceu,numarroubodeemoção.—Aquinão,querodizer...
Vouficarali—apontouparaocompartimentodolavatório.
— Se quiser pode ficar aqui... — ela olhou para o leito
superiordesocupado.
Robertscorouatéaraizdoscabelos—Não,não—protestou
ele.—Aliestábom.Seprecisardemim,ésóchamar.
—Muitoobrigada,meuamigo—disseamoçasuavemente.
Ela se deitou no leito de baixo, puxou o cobertor e sorriu
agradecidaparaRoberts.Esteseretirouparaolavatório.
De repente — deve ter sido umas duas horas depois —ele
achou que tinha ouvido alguma coisa. Ficou à escuta— nada.
Talvez tivesse se enganado. E, no entanto, parecia que tinha
ouvidoumleveruídonacabinaao lado.Suponhamos...apenas
suponhamos...
Abriuaportadevagar.Acabinaestavadomesmojeitoquea
deixara,comumaluzinhafracaeazuladanoteto.Ficoualidepé
comosolhosseacostumandopoucoapoucocomapenumbra.
Conseguiuentreveroleito.
Viuqueestavavazio!Amoçanãoestavamaislá!
Acendeualuzgrande.Acabinaestavavazia.Nessemomento,
sentiu um cheiro. Apenas um sopro, mas reconheceu o odor
adocicadoedoentiodoclorofórmio!
Saiu da cabina (agora a porta estava destrancada, reparou)
paraocorredoreolhouemtodasasdireções.Vazio!Seusolhosse
dirigiram para a porta mais próxima da cabina da moça. Ela
dissera que Vassilievitch estava na cabina ao lado.
Desajeitadamente, tentou girar a maçaneta. A porta estava
trancadapordentro.
O que devia fazer? Pedir para entrar? Mas o homem se
negaria e apesar de tudo, talvez a moça não estivesse lá! E se
estivesse,iriaporacasoficarmuitosatisfeitaporeleterfeitouma
demonstração pública do assunto? Já tinha sentido que o
segredoeraessencialnapartidaqueestavamjogando.
Umhomenzinhopreocupadovagoulentamentepelocorredor.
Fez uma pausa na última cabina. A porta estava aberta e o
condutor estava deitado, dormindo. E, por cima dele, num
gancho,estavampenduradososeucasacomarromeoboné!
Num lampejo, Roberts decidiu o que ia fazer. Um minuto
depoiselejátinhavestidoocasacoeobonéecorriadevoltapelo
corredor.Parouàportapróximadacabinadamoça,armou-sede
todaasuaresoluçãoebateuperemptòriamente.
Aoverquesuasbatidasnãoeramrespondidas,bateuoutra
vezcommaisforça.
—Monsieur—disseelecomseumelhorsotaque.
A porta abriu-se um pouquinho e uma cabeça espiou para
fora—cabeçadeumestrangeirodecabelosraspados,àexceção
deumbigodepreto.Eraumrostozangado,malévolo.
—Qu'est-cequ'ilya?—perguntousecamente.
—Votrepasseport,Monsieur—Robertsdeuumpassoatrás
efezumacenocomacabeça.
O outro hesitou e deu um passo para fora do corredor.
Roberts contaraexatamentecom isto.Seporacasoele estivesse
mesmocomamoçaládentro,naturalmentenãoiaquererqueo
condutorentrasse.ComoumrelâmpagoRobertsagiu.Comtoda
a sua força, empurrou o estrangeiro paraum lado—ohomem
nãoestavaprevenidoeobalançodotremajudou—puloupara
dentrodocompartimento,fechouaportaetrancou-sepordentro.
Amoçaestavadeitadano leito,comumamordaçanabocaeos
pulsos amarrados. Libertou-a imediatamente e ela agarrou-se a
elecomumsoluço.—Estoumesentindotãofracaeinsegura—
murmurou ela. — Acho que foi o clorofórmio. Ele... ele as
conseguiu?
—Não—Roberts bateu em seu bolso.—Que vamos fazer
agora?—perguntouele.
A moça sentou-se. Estava voltando à razão. Olhou para a
roupadele—Comovocêfoiesperto!Queboaidéiateve!Eledisse
que me mataria se eu não dissesse onde estavam as jóias. Eu
estavacomtantomedo!Eentãovocêchegou!—derepenteelariu
—Masnóspassamosapernanele!Nãoousaráfazermaisnada.
Nãopodenemmesmovoltarparaasuaprópriacabina.
— Vamos ficar aqui até de manhã. Provavelmente ele vai
saltaremDijon;vamosparar ládaquiaumameiahora.Elevai
telegrafar para Paris e vão pegar a nossa pista lá. Neste meio
tempoémelhorvocêjogarforaestecasacoeestebonépelajanela.
Elespodemdeixá-loemapuros.
Robertsobedeceu.
—Nãopodemosdormir—decidiuamoça.—Precisamosficar
deguardaatédemanhã.
Foiumavigíliaestranha,excitante.Àsseishorasdamanhã
Roberts abriu a porta cautelosamente e deu uma olhada para
fora.Nãohavianinguémàvista.Amoçaentroudepressanasua
própria cabina. Roberts a seguiu. O local fora visivelmente
saqueado.Entroudevoltaemseuprópriocompartimentoatravés
do lavatório. O seu companheiro de viagem continuava
ressonando.
Chegaram a Paris às sete horas. O condutor reclamava a
perdadocasacoedoboné.Eleaindanãodescobriraafaltadeum
dospassageiros.
Iniciaram uma caçada muito divertida. A moça e Roberts
tomaramtáxiatrásdetáxiatravésdeParis.Entraramemhotéise
restaurantes por uma porta e saíram por outra. Finalmente a
moçadeuumsuspiro.
—Tenhocertezadequenãovamosmaisserseguidos—disse
ela.—Nósosdespistamos.
Tomaram café e dirigiram-se para Le Bourget. Três horas
depois estavam chegando ao aeroporto de Croydon. Roberts
nuncavoaraantes.
Em Croydon, um senhor alto e idoso que lembrava
vagamente o mentor do Sr. Roberts em Genebra esperava por
eles.Cumprimentouamoçacomumrespeitoespecial.
—Ocarroestáaqui,Madame—disse.
—Estecavalheironosacompanhará,Paul—disseamoça.E
aRoberts:—OCondePaulStepanyi.
O carro era uma enorme limusine. Andaram cerca de uma
hora,entraramnosterrenosdeumacasadecampoepararamem
frente às portas de uma imponente mansão. O Sr. Roberts foi
levadoparaumasalamobiliadacomoumestúdio.Ali,entregouo
preciosopardemeias.Foideixadoasósporummomento.Neste
momentooCondeStepanyivoltou.
—Sr.Roberts—disseele,—nossagratidãoeterna.Osenhor
provouserumhomemdecoragemedemuitahabilidade—trazia
nas mãos uma caixa de marroquino vermelho. — Permita-me
conferir-lheaOrdemdeSantoEstanislau—décimaclassecom
lauréis.
Como num sonho Roberts abriu a caixa e olhou para a
condecoraçãopreciosa.Oidosocavalheiroaindaestavafalando.
— A Grã-Duquesa Olga deseja lhe agradecer pessoalmente
antesdepartir.
Foilevadoatéumaenormesaladevisitas.Ali,mui-3lindaem
umvestidovaporoso,estavaasuacompanheiradeviagem.
—Devo-lheminhavida,Sr.Roberts—disseaGrã-Duquesa.
Ela estendeu a mão. Roberts beijou-a. Ela se inclinou
subitamenteparaele.
—Vocêéumhomemdecoragem—disseela.Seuslábiosse
encontraram;umsoprodeumricoperfumeorientalorodeou.Por
um momento ele teve entre os braços aquele corpo lindo e
esbelto...
Ainda estava sonhando quando alguém lhe disse: — O
automóvelolevaráaondeosenhorquiser.
Uma hora depois o carro voltou para a Grã-Duquesa Olga.
Ela entrou, seguida pelo cavalheiro de cabelos brancos, que" já
tirara a barba para refrescar-se.O carro deixou aGrã-Duquesa
Olga em uma casa em Streatham. Ela entrou e uma senhora
idosaolhou-aporcimadeumamesapostaparaochá.
—Ah,Maggie,querida,vocêjáestádevolta!
No expresso Genebra—Paris esta moça era a Grã-Duquesa
Olga;noescritóriodeParkerPyneelaeraMadeleinedeSara;na
casa de Streatham, era Maggie Sayers, a quarta filha de uma
famíliahonestaetrabalhadeira.
Comoaspessoasseenganam!
ParkerPynealmoçavacomumamigo.—Parabéns—disseo
último. — Seu homem levou tudo a cabo sem um tropeço. A
quadrilha de Tormali deve estar dando tratos à bola para
descobrir como foi que os planos da arma lhe escaparam. Você
disseaseuemissáriooqueeraqueeleestavalevando?
—Não.Acheimelhor...fantasiar.
—Muitodiscretodesuaparte.
— Não foi exatamente discrição. Eu queria que ele se
divertisseumpouco.Imagineiquetalvezachasseestahistóriade
arma um pouco enfadonha. Queria que ele tivesse umas
aventuras.
—Enfadonha?—disseoSr.Bonnington,olhandoparaele.
—Olhe,elesoteriamassassinadoassimquetopassemcomele
—Eu sei— disse Parker Pyne suavemente.—Mas eu não
queriaqueelefosseassassinado.
—Vocêganhamuitodinheiroemseusnegócios,Parker?—
perguntouoSr.Bonnington.
—Àsvezespercoquandovaleapena.disseParkerPyne.—
Istoé,quandovaleapena.
Trêshomensfuriososxingavam-semutuamenteemParis.—
AquelemalditoHooper!—diziaumdeles.—Elenostraiu.
—Osplanosnão foram levadosporninguémdoServiço—
disse o segundo. — Mas eles vieram na quarta-feira, tenho
absoluta certeza. E é por isto que eu digo que foivocê quem
trabalhoumal.
— Eu não — disse o terceiro mal-humorado;— não havia
nenhuminglêsnotremanãoserumempregadinhodeescritório.
Ele nunca ouvira falar de Peterfield ou da arma. Eu sei. Eu o
provoquei.Peterfieldeaarmanãoqueriamdizernadaparaele—
sorriu.—Eletinhaumcomplexobolchevistaqualquer.
OSr.Robertsestavasentadoem frenteaoaquecedoragás.
SobreosjoelhostinhaumacartadeParkerPyne.Juntocomela
chegaraumchequedecinqüentalibras"depessoasqueestavam
muitosatisfeitascomumacertamissãoexecutada".
Nobraçodesuacadeirarepousavaumlivrodabiblioteca.O
Sr.Roberts abriu-oaoacaso.Elaestavaencolhida juntoàporta
comoumalindacriaturaacuada.
Bem,elesabiaoqueeraisso.
Leu outra frase:Ele farejou oar.O odor suave edoentiodo
clorofórmiochegouàssuasnarinas.
Eletambémsabiaoqueeraisso.
Eleatomouemseusbraçosesentiuavibraçãonaresposta
deseuslábiosescarlates.
OSr.Robertsdeuumsuspiro.Nãoforaumsonho.Aconteceu
mesmo. A viagem de ida foi muito monótona, mas a de volta!
Comoele tinha gostado!Mas ele estava satisfeitode voltarpara
casa. Sentiu.vagamente que a existência não poderia ser vivida
indefinidamentenaquelecompasso.MesmoaGrã-DuquesaOlga
—mesmoaqueleúltimobeijo—jáfaziampartedeumsonho.
Mary e as crianças iam voltar para casa amanhã. O Sr.
Robertssorriufeliz.
Ela ia dizer: "Passamos umas férias tão agradáveis. Fiquei
triste quando pensei em você, sozinho aqui, meu velho". E ele
diria:"Foitudobem,minhavelha.TivedeiraGenebraparaum
negóciodafirma—umnegóciodelicado—eolheoqueelesme
mandaram".Emostrariaochequedecinqüentalibras.
Pensou na Ordem de Santo Estanislau, décima classe com
lauréis.Eleaesconderia,masseMaryaencontrasse...teriaque
darumaexplicaçãotãolonga...
Ah,issomesmo!—elediriaquetinhatrazidodoestrangeiro.
Umacuriosidade.
Abriunovamenteolivroeleucomfelicidade.Nãohaviamais
aquelaexpressãoansiosaemseurosto.
Agora ele também fazia parte daquele grupo privilegiado de
pessoasparaasquaisAsCoisasAconteceram...
6
OCasodaMilionária
ONOMEDA SRA. ABNER RYMER foi anunciado a Parker Pyne.
Eleconheciaestenomeefranziuassobrancelhas.
Nessemomentoasuaclienteentrounoescritório.
ASra.Rymereraumamulheralta,deossosfortes.
Tinha um ar deselegante e o vestido de veludo e o pesado
casacodepelesnãoconseguiamesconderisso.Orostoeragrande
elargo,decoresmuitovivas.Ocabelopretotinhaumpenteado
da moda e havia muitas pontas de penas de avestruz em seu
chapéu.—Bomdia—disseela.Suavoztinhaumsotaquerude.
—Se o senhor prestarmesmo vaimedizer como gastar omeu
dinheiro!
— Muito original — murmurou Parker Pyne. — Poucas
pessoasperguntamissohojeemdia.Então,asenhoraachaque
istoérealmentedifícil,Sra.Rymer?
— Acho— disse ela com rudeza.— Tenho três casacos de
pele,umaporçãodevestidosdeParisecoisasassim.Tenhoum
automóvel e uma casa em Park Lane. Tenho um iate mas não
gosto domar. Tenho uma porção de empregados de alta classe
que olhampara a gente por cima donariz. Viajei umbocado e
conheço muitos lugares. E não me ocorre rigorosamente mais
nada para comprar ou fazer — olhou esperançosa para Parker
Pyne.
—Háoshospitais—começouele.
—Oquê?Darmeudinheiro,osenhorquerdizer?Não,isso
eunãofaço!Sueiparaganharestedinheiro,deixeeulhecontar,
trabalheiparavaler.Sepensaquevoujogardinheirofora,como
se estivesse empoeirado...bem, o senhor está enganado. Quero
gastá-lo;gastá-loe tirardelealgumproveito.Agora,seosenhor
tiveralgumaidéiaquevalhaapena,podecontarcomumsalário
muitobom!
—Asuapropostame interessa—dissePyne.—Asenhora
nãofalouemnenhumacasadecampo.
—Esqueci,mastenhouma.Mechateiademais.
— Preciso saber mais coisas sobre a sua pessoa. Seu
problemanãoédefácilsolução.
—Contocomtodooprazer.Nãomeenvergonhodopassado.
Eutrabalhavanumafazendaquandoeragarota.Eraumtrabalho
duro, também.EntãocomeceianamoraroAbner—eleeraum
operárionummoinhopróximo.Cortejou-meduranteoitoanose
depoisnoscasamos.
—Easenhorafoifeliz?—perguntouPyne.
— Fui. Ele era um homem bom para mim, o Abner. Nós
tivemosumavidadifícil,e...Eleficoudesempregadoduasvezese
ascriançascomeçaramachegar.Tivemosquatro,trêsmeninose
uma menina. E nenhum deles chegou a crescer. Garanto que
seria diferente se eles tivessem vivido— seu rosto abrandou-se,
elapareceurepentinamentemaisjovem.
—Eleerafracodospulmões,oAbner.Nãoochamarampara
aguerra.Trabalhouaquimesmoemcasa.Foinomeadochefeda
seção. Era um sujeito inteligente, o Abner. Trabalhou num
processo industrial. Foi tratado com consideração, eu diria;
deram-lhe um bom dinheiro. Usou o dinheiro numa idéia sua.
Entrou dinheiro aos montes. Agora era mestre, tinha os seus
própriosempregados.Comprouduasempresasquetinhamidoà
falência e as tornou lucrativas. O resto foi fácil. O dinheiro
começouaentraraosborbotões.Continuaentrando.
— Veja bem, no início era divertido. Ter uma casa, um
banheirodeprimeiraecriadasparatodooserviço.Nãoprecisava
mais cozinhar, esfregar e lavar. Era só sentar em almofadas de
sedana salade visitas e tocar a campainhapara o chá... como
qualquercondessa!Muitodivertidomesmo!Enósaproveitamos.
Então viemospara Londres.Eu fui a costureiros damodapara
encomendarmeusvestidos.FomosparaPariseparaaRiviera.Foi
divertidíssimo!
—Edepois?—disseParkerPyne.
—Acho que ficamos acostumados com tudo isso—disse a
Sra.Rymer.—Depois deum certo tempo já não era assim tão
divertido. Olhe, havia dias em que nós nem aproveitávamos as
refeições—nós,queficávamossatisfeitoscomqualquerprato!E
os banhos — bem, afinal de contas, um banho por dia é o
suficienteparaqualquerpessoa.EasaúdedeAbnercomeçoua
preocupá-lo.Pagamosmuitodinheiroaosmédicos,pagamossim,
mas elesnãopuderam fazernada. Tentaram isso e aquilo.Mas
nãoadiantounada.Elemorreu—fezumapausa.—Eramoço,
sótinhaquarentaetrêsanos.
Pyneacenousimpàticamentecomacabeça.
— Isso foi há cinco anos. O dinheiro continua entrando a
rodo. Me parece uma perda de tempo não ser capaz de fazer
algumacoisacomele.Maseu lhedigocom franqueza,nãosou
capazdepensaremnadaqueeujánãotenhacompradoequejá
nãopossua.
—Emoutraspalavras—dissePyne,—suavidaémonótona.
Asenhoranãoaestáaproveitando.
—Estoucheiadavida—disseaSra.Rymermelancólica.—
Não tenhoamigos.A turmanovasóquer subscrições e riemde
mimpelascostas.Aturmavelhanãotemmaisnadaemcomum
comigo.Bastaeupassardeautomóvelpara fazê-losse sentirem
envergonhados.Podefazerousugeriralgumacoisa?
—Épossívelqueeupossa—dissePyne,lentamente.—Vai
serdifícil,masachoqueháumachancededarcerto.Achoqueé
possívelqueeulhedevolvaoqueasenhoraperdeu—ointeresse
pelavida.
—Como?—perguntouaSra.Rymerrapidamente.
—Isso—disseParkerPyne—ésegredoprofissional.Nunca
discutomeusmétodosdeantemão.Aquestãoé,asenhoraquer
correr o risco? Não garanto o sucesso, mas acho que há uma
possibilidaderazoáveldeêxito.
—Equantovaicustar?
—Tereideadotarmétodosexcepcionais,eporissovaicustar
caro.Meupreçoserádemillibras,adiantadas.
—Osenhorsabeabriraboca,nãoé?—disseaSra.Rymer.
—Bem,querocorrerorisco.Estouacostumadaapagaroquehá
demais caro.Sóque,quando,pagoumaconta, eu tomomuito
cuidadoemobtê-la.
—Asenhoraaterá—disseParkerPyne.—Nãosepreocupe.
— Eu lhe mandarei o cheque hoje à tarde — disse a Sra.
Rymerlevantando-se.—Nãoseiporquedevoconfiarnosenhor.
Tolos e seu dinheiro estão sempre se separando, dizem. Quase
diriaquesouumatola.Osenhortemnervos,paraanunciarnos
jornaisqueécapazdefazeraspessoasfelizes!
—Estesanúnciosmecustamdinheiro—dissePyne.—Seeu
não dissesse a verdade, esse dinheiro estaria perdido. Eusei o
quecausaainfelicidadeeporissotenhoumaidéiamuitoclarade
comocriarasituaçãooposta.
ASra.Rymer balançouduvidosa a cabeça e saiu, deixando
atrásdesiumanuvemdeumacaramisturadeperfumes.
O bonitão Claude Luttrell entrou no escritório. — Alguma
coisanaminhaespecialidade?
Pyne balançou negativamente a cabeça— Dessa vez não é
simples — disse. — Não, este é um caso difícil. Temo que
precisemoscorreralgunsriscos.Vamostentaroextraordinário.
—ASra.Oliver?
O Sr. Pyne sorriu à menção do nome da novelista
mundialmentefamosa.—ASra.Oliver—disseele—érealmente
amais convencional de todos nós. Estou pensando num golpe
maisafoitoeaudacioso.Porfalarnisso,quermeligarcomoDr.
Antrobus?
—Antrobus?
—É.Vouprecisardosserviçosdele.
Uma semana depois, a Sra. Rymer entrou novamente no
escritóriodeParkerPyne.Elesepôsdepépararecebê-la.
—Ademorafoinecessáriaeulheasseguro—disseele.—Foi
preciso conseguir uma porção de coisas, e tive de requisitar os
serviçosdeumhomemextraordinárioqueveiodooutro ladoda
Europa.
—Ah!—disseeladesconfiada.Oqueestavabemmarcadona
sua cabeça era que ela assinaraumchequedemil libras e que
estechequeforadescontado.
ParkerPyneapertouumbotão.Umajovemmorena,comum
ar oriental, mas vestida de branco, como uma enfermeira,
respondeu.
—Estátudopronto,enfermeiradeSara?
—Sim,oDr.Constantineestáesperando.
—Oqueosenhorvaifazer?—perguntouaSra.Rymercom
umsentimentodeapreensão.
— Vou apresentá-la a um mago do Oriente, minha cara
senhora—disseParkerPyne.
A Sra. Rymer seguiu a enfermeira até a sala ao lado. Ela
entrounumapeçaquenãotinhanadaavercomorestodacasa.
Tapeçarias orientais cobriam as paredes. Havia divas com
almofadasfofasebelíssimostapetespelochão.Umhomemestava
debruçado sobre um bule de café. Empertigou-se quando eles
entraram.
—Dr.Constantine—disseaenfermeira.
Odoutorestavavestidocomroupaseuropéias,masseurosto
eramorenoescuroeosolhosnegroseoblíquostinhamumpoder
defixaçãomuitopeculiar.
—Entãoéestaaminhapaciente?—disseeleemvozbaixae
vibrante.
—Nãosoupacientedeninguém—disseaSra.Rymer.
—Seucorponãoestádoente—disseodoutor.—Masasua
alma está deprimida. Nós do Oriente sabemos como curar este
mal.Sente-seetomeumaxícaradecafé.
ASra.Rymersentou-seeaceitouaminúsculaxícaracoma
fragranteinfusão.Enquantoelabebia,odoutorfalava:
— Aqui no Ocidente tratam apenas do corpo. O corpo é
apenaso instrumento.Nelese tocaumamelodia.Podeseruma
melodiatriste,deprimente.Podeserumamelodiaalegre,cheiade
encantos.Éestaúltimaqueeulhedarei.Asenhoratemdinheiro.
Devegastá-loetirarproveitodele.Avidavaleránovamenteapena
deservivida.Éfácil...fácil...tãofácil...
Umsentimentodeabandonoapossou-sedaSra.Rymer.Os
vultos do doutor e da enfermeira começaram a se tornar
enevoados.Elasesentiuimensamentefelizemuitosonolenta.O
mundointeiropareciaestarcrescendo.
Odoutorestavaolhandodentrodeseusolhos—Durma—
dizia ele.—Durma.Suaspálpebras estão-se fechando.Daquia
poucoasenhoraestarádormindo.Asenhoravaidormir...
AspálpebrasdaSra.Rymerse fecharam.Ela flutuavanum
mundoimensoemaravilhoso.
Quandoseusolhasseabrirampareceu-lhequetinhapassado
muito tempo. Ela se lembrava vagamente de algumas coisas—
sonhos estranhos, impossíveis; depois o sentimento de quem
acorda;depois, outros sonhos.Lembrava-sedequalquer coisaa
respeito de um automóvel e da moça linda e morena com um
uniformedeenfermeiradebruçadasobreela.
Dequalquer forma, agora ela estavamesmoacordada, e em
suaprópriacama.
Seráqueseriamesmoasuaprópriacama?Pareciadiferente.
Faltavaaqueladeliciosamaciezdesuaprópriacama.Lembrava-
lhevagamentediasquasequeesquecidos.Elasemexeueacama
rangeu. A cama da senhora Rymer em Park Lane não rangia
nunca.
Elaolhouemtorno.DecididamentenãoestavaemParkLane.
Seriaumhospital?Não, viu quenão eraumhospital. Também
não era um hotel. Era um simples quarto com as paredes
pintadas num tom indistinto de lilás. Havia um suporte para
bacianumcanto,comumacuiadáguaeumajarra.Umacômoda
depinhocomgavetaseumapequenavalisedefolhadeflandres.
Roupas estranhas penduradas em cabides na parede. A cama
cobertaporumamantabastanteremendadaeelaprópria.
—Ondeéqueeuestou?—perguntouaSra.Rymer.
Aportaseabriueumamulherzinharoliçaentrou.Tinhaas
bochechas vermelhas e uma aparência muito bem-humorada.
Tinhaasmangasarregaçadaseumavental.
— Enfim! — exclamou. — Ela está acordada. Pode entrar,
doutor.
ASra.Rymerabriuabocaparadizerumaporçãodecoisas—
mas não disse nada, porque o homem que entrou atrás da
mulherzinharoliçanãoseparecianemumpoucocomomorenoe
elegante Dr. Constantine. Era um velho encurvado que a
observavaatrásdeunsóculosdelentesmuitogrossas.
—Ótimo—disse ele aproximando-seda camaepegandoo
pulsodaSra.Rymer.Vocêvaificarboalogo,minhaquerida.
— O que foi que aconteceu comigo? — perguntou a Sra.
Rymer.
— Você teve uma espécie de ataque — disse o médico. —
Ficouinconscienteumoudoisdias.Nadadegrave.
— Você nos deu um susto, Hannah, se deu! — disse a
gordinha.—Vocêdeliroutambémedissecoisasmuitoestranhas.
— Foi sim, Sra. Gardner — disse o médico em tom de
repreensão.—Mas não devemos excitar a paciente. Logo, logo,
vocêvaiestarandandodeumladoparaooutro,minhaquerida.
—Masnão precisa se preocupar como serviço,Hannah—
disseaSra.Gardner.—ASra.Robertsmetemdadoumamãoe
nós damos conta de tudo. Fique deitada para ficar logo boa,
minhacara.
—PorqueestãomechamandodeHannah?—perguntoua
Sra.Rymer.
—Bem, porque o seunome é esse—disse a Sra.Gardner
comespanto.
—Nãoénão.MeunomeéAmélia.AméliaRymer.Sra.Abner
Rymer.
OmédicoeaSra.Gardnerseentreolharam.
—Bom,fiquedeitada—disseaSra.Gardner.
—Sim,nãosepreocupe—disseomédico.
Osdoissaíram.ASra.Rymer ficoudeitadae intrigada.Por
que a tinham chamado de Hannah e por que tinham trocado
aqueleolhardeincredulidadequandoelalhesdisseoseunome?
Ondeestariaelaeoqueteriaacontecido?
Saiudacama.Sentiufaltadefirmezanaspernas,masandou
devagaratéapequenajanelaeolhouparafora—umquintalde
fazenda! Completamente confusa, voltou para a cama. O que
estariaelafazendonumafazendaemquenuncatinhaestado?
ASra.Gardnerentrououtraveznoquartocomumatigelade
sopanumabandeja.ASra.Rymercomeçouafazerperguntas:—
Oqueéqueeuestoufazendonestacasa?—perguntou.—Quem
metrouxeparacá?
—Ninguématrouxeparacá,minhaquerida.Éasuacasa.
Pelomenos,éondevocêviveunosúltimoscincoanos—eeunão
sei se você tinha outro lugar para ir antes de vir trabalhar
conosco.
—Viviaqui?Cincoanos?
—Issomesmo.Ora,Hannah,nãovámedizerquevocêainda
nãoestáselembrandodenada!
—Eununcaviviaqui!Nuncavivocê!
—Sabe,depoisquevocê teveessadoençanãose lembrade
maisnada.
—Eununcaviviaqui.
— Viveu, querida — de repente a Sra. Gardner foi até a
cômoda cheia de gavetas e trouxe uma fotografia emoldurada e
meioapagadaparaaSra.Rymer.
Representava um grupo de quatro pessoas: um homem
barbado,umamulhergorda(aSra.Gardner),umhomemaltoe
magrocomumacaretaagradàvelmentetímidaealguémcomum
vestidoestampadoeumavental—elaprópria!
Estupefata, a Sra. Rymer olhou para a fotografia. A Sra.
Gardnerpôsopratodesopaaseuladoesaiudoquartosemfazer
barulho.
ASra.Rymer tomoua sopamecanicamente.Erauma sopa
gostosa, forte e quente. Durante todo esse tempo, seu cérebro
estava num torvelinho.Quem estava doida? A Sra.Gardner ou
ela?Umadasduasdeviaestar!Mastinhaomédicotambém...
—SouAméliaRymer—disseelacomfirmeza.—Euseique
souAméliaRymereninguémvaimedizerocontrário!
Terminoua sopa.Colocoua tigelade voltanabandeja.Um
jornal dobrado chamou sua atenção, ela o apanhou e olhou a
data:19deoutubro.Qualtinhasidoodiaquefoiaoescritóriodo
Sr. Parker Pyne? Talvez quinze ou dezesseis. Então ela estivera
doenteportrêsdias!
—Opatifedaqueledoutor!—disseaSra.Rymercomraiva.
Aomesmotempo,estavaumpoucoaliviada.Ouvira falarde
casos em que as pessoas esqueciam quem eram às vezes por
muitos anos. Teve medo de que alguma coisa lhe tivesse
acontecido.
Continuouafolhearojornalexaminandoascolunasdevagar,
quandoderepenteumparágrafochamouasuaatenção:
ASra.AbnerRymer,viúvadeAbnerRymer,oreidosbotões
de osso, foi removida ontemparauma casade saúdeparticular
paradoentesmentais.Nosúltimosdoisdias,aSra.Rymerinsistia
em declarar que não era ela mesma, mas uma empregadinha
chamadaHannahMoorhouse.
—HannahMoorhouse!Entãoé isso!—disseaSra.Rymer.
—Elasoueueeusouela!Umaespéciededuplicata,suponho.
Bom, vamos jádar um jeito nisso! Se aquele hipócrita nojento
daqueleParkerPyneestivermetidoemalgumaencrenca...
Mas nesse instante o nome Constantine chamou a sua
atenção numamatéria impressa na primeira página. Desta vez
eraumamanchete:
AFIRMAÇÃODODR.CONSTANTINE
Numaconferênciadedespedidananoitedavésperadesua
partida para o Japão, o Dr. Claudius Constantine expressou
diversasteoriassurpreendentes.Declarouqueerapossívelprovar
a existência da alma, transferindo-se aalma de um corpo para
outro.DuranteassuasexperiênciasnoOriente,elesustentaque
realizoucomsucessoumatransferênciadupla—aalmadocorpo
Ahipnotizadofoi transferidaparaocorpoBeaalmadocorpoB
paraocorpoA.Aoacordaremdosonohipnótico,Adeclarouque
eraBeBpensouqueeraA.
Paraqueaexperiênciativesseêxito,eranecessárioencontrar
duas pessoas de grande semelhança física. É fato inegável que
duas pessoas que se parecem muito estão en rapport.Isto é
facilmente notado no caso de gêmeos, mas dois estranhos,
mesmo que de posições sociais diferentes, porém com uma
marcada semelhança de traços, podem exibir esta mesma
harmoniadeestrutura.
ASra.Rymerjogoulongeojornal—Aquelecanalha!Aquele
canalhamiserável!
Agora ela via tudo! Tinha sido um plano traiçoeiro para
passaremamãonodinheirodela!EstaHannahMoorhouseera
um instrumento de Parker Pyne — possivelmente um
instrumento inocente. Ele e aquele demônio do Constantine
tinhamdadoumgolpefantástico!
Mas ela ia desmascará-los! Iamostrar quem era! Poria a lei
atrásdeles.Diriaatodomundo...
Abruptamente,aSra.Rymerpôsumfreioemsuaindignação.
Lembrou-sedoprimeiroparágrafo.HannahMoorhousenãotinha
sido um instrumento dócil. Ela protestara, declarara sua
individualidade.Eoqueaconteceu?
—Trancadanumasilo de lunáticos, pobremoça—disse a
Sra.Rymer.Umarrepiolhepercorreuaespinha.
Umasilode loucos.Elespõemvocê ládentroenuncamais
deixamvocêsair.Quantomaisvocêdisserqueestábom,menos
elesacreditam.Vocêestáláelávaificar.Não,aSra.Rymernão
iriacorreresserisco.
AportaabriueaSra.Gardnerentrou.
—Ah,tomouasuasopa,minhaquerida.Muitobem.Daquia
poucovocêvaificarboa.
—Quandofoiqueeuadoeci?—perguntouaSra.Rymer.
—Deixever...Foihátrêsdias...naquarta-feira.Achoquefoi
diaquinze.Vocêteveoataqueporvoltadasquatrohoras.
—Ah!—aexclamaçãoeramuitosignificativa.Foijustamente
àsquatrohorasqueaSra.RymerentrouemcontatocomoDr.
Constantine.
—Vocêescorregoudacadeira—disseaSra.Gardner.—Oh!
—vocêdisse. "Oh!"e foisó.Edepois: "Voudormir"—foioque
vocêdisse,comavozsonolenta."Voudormir".Edormiumesmo,
enóspusemosvocênacamaechamamosomédicoedesdeentão
vocêestáaí.
— Acho — arriscou a Sra. Rymer — que não há nenhum
outromeiodesaberquemeusou...querodizer,alémdaminha
cara.
—Bem,issoéumacoisaesquisita—disseaSra.Gardner.—
O que émelhor do que a cara de uma pessoa, não é? Se você
preferir,háasuamarcadenascença.
— Uma marca de nascença? — disse a Sra. Rymer se
alegrando.Elanuncateveessetipodecoisa.
—Umamarquinhavermelhacomoummorangodebaixodo
cotovelo direito — disse a Sra. Gardner. — Olhe você mesma,
querida.
Issovaiprovartudo,disseaSra.Rymerconsigomesma.Ela
sabia que não tinha nenhuma marca em forma de morango
debaixodocotovelodireito.Arregaçouamangadesuacamisola.
Amarcadomorangoestavalá.
ASra.Rymercaiuemprantos.
Quatro dias depois a Sra. Rymer se levantou da cama. Ela
tinhapensadoemdiversosplanosdeaçãoerejeitoutodos.
Poderia mostrar o parágrafo do jornal à Sra. Gardner e ao
médicoeexplicar.Acreditariamnela?ASra.Rymertinhacerteza
dequenão.
Seelafosseàpolícia.Acreditariamnela?Outravezachouque
não.
Pensou em ir ao escritório de Parker Pyne. Foi a idéia que
mais a agradou. Principalmente porque ela queria dizer àquele
patifenojentooquepensavadele.Mashaviaumobstáculovital
paraaexecuçãodesteplano.ElaestavanomomentoemCornwall
(assimlhedisseram)enãotinhadinheiroparairaLondres.Dois
shillings e quatro cêntimos numa bolsa usada, era esta a sua
situaçãofinanceira.
E assim, depois de quatro dias, a Sra. Rymer tomou uma
decisão esportiva. No momento ela aceitaria as coisas. Ela era
Hannah Moorhouse. Muito bem, ela seria Hannah Moorhouse.
Por enquanto aceitaria o papel e depois, quando tivesse
economizado o dinheiro suficiente, iria a Londres e pegaria o
trapaceiroemseucovil.
Etomadaestadecisão,aSra.Rymeraceitouopapelcomtoda
a boa vontade e mesmo com um certo regozijo sardônico. A
históriaestavamesmoserepetindo!Estavidapareciamuitocom
asuavidadejuventude.Háquantotempo!
O trabalho parecia umpouco duro depois de todos aqueles
anos de vida mansa, mas depois da primeira semana ela se
habituouaoserviçodafazenda.
ASra.Gardnereraumamulherdegênioexpansivoealegre.
O marido, um homem alto e taciturno, era também muito
simpático. O magricela desajeitado da fotografia fora embora;
ficououtroempregadoemseulugar,umgigantebem-humorado
de uns quarenta e cinco anos, lento no falar e no pensar,mas
comumbrilhoacanhadonosolhosazuis.
Passaram-seassemanas.PorfimchegouodiaemqueaSra.
Rymer já tinha o dinheiro suficiente para pagar sua passagem
para Londres.Mas não foi. Deixou o dinheiro guardado. Tinha
muito tempo, pensou. Ainda não tinha perdido o medo dos
hospícios. Aquele trapaceiro, Parker Pyne, era muito esperto.
Podia arranjar ummédico que ia dizer que ela era louca, e ela
seria trancafiada sem que ninguém soubesse o que tinha
acontecido.
—Alémdisso—disseaSra.Rymer,—umamudançadeares
semprefazbem.
Levantava-se cedo e ia para o batente. Joe Welsh, o novo
empregado, ficoudoentenaquele invernoeelaeaSra.Gardner
cuidaram dele. O homenzarrão dependia delas de um modo
comovente.
Veio a primavera e nasceram os carneirinhos; havia flores
silvestres pelas sebes, uma suavidade traiçoeira pelo ar. Joe
Welsh deu uma mão a Hannah em seu trabalho. Hannah
remendouasroupasdeJoe.
Algumas vezes, aos domingos, eles saíam para passear
juntos.Joeeraviúvo.Suamulhertinhamorridoháquatroanos.
Desdeasuamorte,eleconfessoucomfranqueza,passouatomar
unsgolinhosamais...
Ultimamenteelejánãoiamuitoàtaverna.Comproualgumas
roupasnovas.OSr.eaSra.Gardnersorriam.
HannahbrincavacomJoe.Elasedivertiacomosseusmodos
desajeitados.Joenãoligava.Pareciaencabulado,masfeliz.
Depois da primavera veio o verão— aquele ano houve um
bomverão.Todostrabalhavammuito.
A colheita terminou. As folhas das árvores se tornaram
vermelhasedouradas.
FoinodiaoitodeoutubroqueHannah,olhandoparacima
enquantocortavaumrepolho,viuParkerPynedebruçadosobrea
cerca.
—Osenhor!—disseHannah,aliásSra.AbnerRymer.—O
senhor...
Elacustouapôrparaforatudooquequeria,adizertudoo
queprecisavaserdito.Quaseperdeuofôlego.
Parker Pyne sorria mansamente — Estou plenamente de
acordocomasenhora—disseele.
—Umimpostoreummentiroso,éissooqueosenhoré!—
disse a Sra. Rymer, repetindo o que já havia dito.—O senhor
com os seus Constantines e seus hipnotizadores e .esta pobre
moçaHannahMoorhousetrancafiada...commalucos!
—Não—disse oSr. Pyne,—nãome julguemal.Hannah
Moorhouse não está no hospício porque Hannah Moorhouse
nuncaexistiu.
—Émesmo?—disseaSra.Rymer.—Eaqueleretratodela
queeuvicomosmeusprópriosolhos?
—Falsificado—disseoSr.Pyne.—Émuitofácildefazer.
—Eanotícianojornalsobreela?
—O jornal inteiro era falso,parapodermos incluirasduas
notícias de uma forma natural que a convenceriam. E que a
convenceram.
—Aqueletratante,oDr.Constantine!
— Um nome suposto... um amigomeu com talento para o
teatro.
A Sra. Rymer bufou de raiva — Ah! E suponho que eu
tambémnãofuihipnotizada?
—Paradizeraverdade,nãofoimesmonão.Asenhoratomou
no seu café uma droga parecida commaconha. Depois, outras
drogasforamadministradas,easenhorafoitrazidaparacá,onde
recobrouaconsciência.
—EntãoaSra.Gardnersabiadetudo?—perguntouaSra.
Rymer.
ParkerPynefezquesimcomacabeça.
—Subornadapelosenhor,suponho!Ouenganadacomuma
porçãodementiras!
—ASra.Gardnerconfiaemmim—dissePyne.—Jásalvei
umavezoseufilhoúnicodeumapenacriminal.
Alguma coisa em suas maneiras silenciou a Sra. Rymer e
mudouasuaconduta—Eamarcadenascença?—perguntou
ela.
Pyne sorriu— Já deve estar desaparecendo. Mais uns seis
mesesedesaparececompletamente.
—Eentãooquesignificatodaessabobagem?Fazendopouco
demim, me prendendo aqui como uma empregada. .. eu, com
todo aquele dinheiro no banco! Mas acho que nem preciso
perguntar.Osenhordeve estar se servindodele,não,meucaro
amigo?Éistoquequerdizer...
— É verdade — disse Parker Pyne — que eu obtive da
senhora, enquanto estava sob a influência de drogas, uma
procuração, e que durante a sua... ahn... ausência, assumi o
controledosseusassuntos financeiros.Mas lhegaranto,minha
senhora,queaforaaquelasmil libras iniciais,nenhumdinheiro
seuveiopararnomeubolso.Parafalaraverdade,devidoavários
investimentos criteriosos, a sua situação financeira melhorou
bastante—sorriuparaela.
—Então,porque...—começouaSra.Rymer.
—Vou lhe fazerumapergunta,Sra.Rymer—disseParker
Pyne. — A senhora é uma mulher honesta. Sei que vai me
responderhonestamente.Voulheperguntarseestáfeliz.
—Feliz!Boapergunta!Roubetodoodinheirodeumamulher
epergunteseelaestáfeliz!Émuitoengraçadaessa.
— A senhora ainda está zangada — disse ele. — É muito
natural. Mas esqueça os meus crimes por um momento, Sra.
Rymer. Quando a senhora apareceu no meu escritório, há
exatamente um ano, era umamulher infeliz. Vai me dizer que
aindaéinfeliz?Sefor,peçodesculpaseasenhoraestálivrepara
tomartodasasprovidênciasquequisercontramim.Ealémdisso
lhe devolvo asmil libras queme pagou. Vamos, Sra. Rymer, a
senhoraaindaéumamulherinfeliz?
Ela olhou para Parker Pyne, mas seus olhos se abaixaram
quandofaloufinalmente.
—Não—disseela.—Nãosouinfeliz—umtomdesurpresa
na voz.— Agora o senhorme pegou. Reconheço isso. Desde a
morte de Abner que eu não estava bem.Eu... eu voume casar
com um homem que trabalha aqui — Joe Welsh. Nossos
proclamas vão correr no domingo que vem, isto é,iam correr
domingoquevem.
—Masagora,éclaro—dissePyne,—tudoédiferente.
O rosto da Sra. Rymer se inflamou. Ela deu um passo à
frente—Oquequerdizer...diferente?Osenhorachaquetodoo
dinheirodomundo fariademimumagrandedama?Nãoquero
ser uma grande dama, não, obrigada; um bando de gente
desocupada, é o que elas são. Joeme entende e eu o entendo.
Gostamos um do outro e vamos ser felizes. E o senhor, Sr.
Abelhudo, dê o fora daqui e não semeta no que não é da sua
conta!
Parker Pyne tirouumpapel do bolso e entregou a ela—A
procuração—disse.—Rasgo?Suponhoqueagoravaiassumiro
controledasuaprópriafortuna.
Estampou-se uma expressão estranha no rosto da Sra.
Rymer.Elaempurrouopapeldevolta.
— Leve-o de volta. Eu lhe disse coisas desagradáveis.. . e
algumas delas o senhor mereceu. É um sujeito sabidão, mas
apesardetudoeuconfionosenhor.Ponhasetecentaslibrasaqui
no banco — isso dá para comprarmos uma fazenda em que
estamosdeolho.Orestododinheiro...bem,podedeixarparaos
hospitais.
—Asenhoranãoquerdizerquevaidoartodaasuafortuna
aoshospitais?
— Foi exatamente o que eu quis dizer. Joe é um amor de
criatura,maséfraco.Dê-lhedinheiroeoarruinará.Conseguique
eledeixassedebeberevoumantê-loassim.GraçasaDeus,seio
que estou fazendo. Não vou deixar o dinheiro se interpor entre
mimeafelicidade.
— A senhora é uma mulher extraordinária — disse Pyne
lentamente.—Sóumamulheremmilfariaoqueestáfazendo.
— Então só umamulher emmil tem juízo— disse a Sra.
Rymer.
—Tiroomeuchapéuparaasenhora—disseParkerPyne,e
haviaalgodeestranhoemsuavoz.Ergueuochapéusolenemente
eafastou-se.
—EfiquesabendoquenãopodecontarnuncaaoJoe,hein?
—aSra.Rymergritouenquantoeleiaembora.
Ela ficou ali de pé, com o sol do crepúsculo por trás, um
enorme repolho verde azulado entre as mãos, a cabeça jogada
para trás e os ombros firmes. Uma figura grandiosa demulher
camponesa,desenhadacontraosolqueseescondia.
7
VocêTemTudooqueQuer?
PARICIMadame—umamulheralta,comumcasacodevison,
seguiu o carregador sobrecarregado através da plataforma da
GaredeLyon.
Elausavaumchapéudetricômarromquelhecobriaumdos
olhoseumaorelha.Ooutroladorevelavaumperfilencantadore
pequenos cachos dourados que se enrolavam em torno de uma
orelha perfeita. Era tipicamente americana e muito atraente, e
mais de umhomem se voltara, ao vê-la passar pelos vagões do
tremparado.
Enormesplacas estavampenduradas emganchosdos lados
dosvagões:Paris—Atenas.Paris—Bucarest.Paris—Istambul.
Neste último o carregador parou bruscamente. Soltou a
correia que sustentava as malas e estas escorregaram
pesadamenteparaochão—Voici,Madame.
O condutor dowagon-lit estava de pé ao lado dos degraus.
Avançou, desejando um"Bonsoir,Madame"comumavivacidade
devidatalvezàriquezaeàelegânciadocasacodevison.
A mulher entregou-lhe o bilhete de papel vulgar do carro-
leito.
—NúmeroSeis—disse,—poraqui.
Ele pulou lèpidamente para dentro do trem e a mulher o
seguiu. Enquanto se apressava em acompanhá-lo 'elo corredor,
ela quase esbarrou num cavalheiro corpulento que saía do
compartimento pegado ao seu. Olhou e relance para um rosto
largoeafáveldeolhosbondosos.
—Voici,Madame.
Ocondutorlhemostrouacabina.Abriuajanelaechamouo
carregador. Um empregado subalterno pegou a bagagem e a
colocounasprateleiras.Amulhersentou-se.
A seu lado, deixou uma pequena frasqueira vermelha e a
bolsa.Ovagãoestavaquente,masnãolheocorreuaidéiadetirar
ocasaco.Olhavadajanelaparao ladodeforacomolhosvagos.
Pessoas passavam correndo de um lado para. o outro da
plataforma. Havia vendedores de jornais, de travesseiros, de
frutas,de chocolates,deáguasminerais.Elesanunciavamseus
pregõesparaela,masseusolhospassavamporelessemvê-los.A
GaredeLyonnãoestavaàsuavista.Emseurostohaviatristezae
ansiedade.
—SeMadamepudermedaropassaporte...
Aspalavrasnãolhechamaramaatenção.Ocondutor,depéà
porta,repetiu-as.ElsieJeffrieslevantou-secomumsobressalto.
—Perdão?
—Seupassaporte,Madame.
Ela abriu a bolsa, tirou o passaporte e o entregou ao
condutor.
—Nãoprecisasepreocupar,Madame,eucuidodetudo—fez
umapausacurta,significativa.—IreicomMadameatéIstambul.
Elsie tirou da bolsa uma nota de cinqüenta francos e
entregou a ele. Aceitou-a de uma maneira muito comercial e
perguntou quando ela queria que seu leito fosse preparado e
quandojantaria.
Resolvido isto,saiu,equaseemseguidaohomemdocarro-
restaurante apareceu no corredor batendo frenèticamente uma
sinetaeberrando:—Premierservice!Premierservice!
Elsie levantou-se, livrou-se do pesado casaco de peles, deu
umaolhadeladerelanceemseuespelhinhoe,pegandoabolsae
afrasqueiradasjóias,saiuparaocorredor.Deraapenasalguns
passos quando o homem do restaurante voltou correndo. Para
evitá-lo, Elsie recuou até a porta da cabina ao lado, que agora
estavavazia.
Enquanto o homem passava, seu olhar caiu por acaso na
etiquetadamalaqueestavacolocadanobanco.
Eraumavalisereforçadadecourodeporco,bastanteusada.
Na etiqueta estavam as seguintes palavras:J. Parker Pyne,
passageiroparaIstambul.Aprópriavalisetraziaasiniciais:P.P.
Uma expressão de curiosidade apareceu no rosto da jovem.
Elahesitouummomentono corredor, edepois, voltandoà sua
própria cabina, apanhou um exemplar doTimes que deixara
sobreamesinhacomoutroslivroserevistas.
Correu os olhos pela primeira página,mas pelo visto o que
procuravanãoestavaali.Comuma ligeira rugana testa, ela se
dirigiuparaocarro-restaurante.
Oserventeindicou-lheumacadeiranumapequenamesaque
jáestavaocupadaporoutrapessoa—ohomemnoqualelaquase
esbarraranocorredor.Naverdade,eraodonodavalisedecouro
deporco.
Elsie olhou para ele, sem querer dar a impressão de estar
olhando. Ele parecia muito delicado, muito bondoso e, de um
modo impossível de explicar, tremendamente reconfortante.
Comportava-sedeumamaneirabritanicamentereservada,efoisó
depoisdasfrutasestaremàmesaqueelefalou.
— Eles mantêm esses lugares horrivelmente abafados —
disse.
— Eu sei — disse Elsie. — Talvez se nós abríssemos uma
janela...
Elesorriupesaroso—Impossível!Aforanósdois,todomundo
iriaprotestar.
Ela respondeu com outro sorriso. Nenhum dos dois disse
maisnada.
Trouxeramocaféeaconta,indecifrávelcomosempre.Depois
de colocar algumas notas sobre ela, Elsie armou-se
repentinamentedecoragem—Desculpe—murmurouela.—Vio
seunomenavalise...ParkerPyne.Osenhoré...osenhorépor
acaso...?
Elahesitou,eeleseapressouemajudá-la.
— Acho que sim. Isto é— ele repetiu o anúncio que Elsie
notaramaisdeumaveznoTimeseprocurara inutilmentehoje:
—Vocêéfeliz?Senãofor,consulteoSr.ParkerPyne.Sim,sou
eumesmo.
—Ah,sim—disseElsie—Quecoisaextraordinária!
Ele balançou negativamente a cabeça — Não é não.
Extraordinária do seu ponto de vista, não do meu — sorriu
reconfortantementeeinclinou-separaafrente.Amaiorpartedos
passageirosjádeixaraocarro-restaurante—Entãoasenhoranão
éfeliz?—perguntouele.
—Eu...—começouElsieeparou.
— Se não, não teria dito "Que coisa extraordinária", —
adiantouele.
Elsie ficou em silêncio por um minuto. Ela se sentia
estranhamente tranqüilizada com a simples presença de Parker
Pyne—Sim—admitiuporfim.—Mesinto...infeliz.Pelomenos;
estoupreocupada.
Elefezquesimcomacabeça,compreensivo.
—Veja o senhor— continuou ela,— aconteceu uma coisa
muito curiosa... e eu não tenho a mínima idéia de como
interpretá-la.
—Quetalsemecontasse?—sugeriuPyne.
Elsiepensounoanúncio.ElaeEdwardtinhamcomentadoe
ridováriasvezes.Nuncapensaraqueela...talveznãodevesse...Se
o Sr. Parker Pyne fosse um charlatão... mas ele parecia tão
simpático!
Elsie tomou uma decisão. Qualquer coisa, contanto que
tirasseaquilodacabeça.
— Vou lhe contar. Vou para Constantinopla para me
encontrar com meu marido. Ele tem negócios no Oriente e
precisou ir lá este ano.Viajouháduas semanas.Disse que era
precisoumcerto tempopara conseguir acomodaçõesparamim.
Fiqueimuito excitada só de pensar na viagem. Sabe, eu nunca
tinha viajado para o exterior. Faz seis meses que estamos na
Inglaterra.
—Asenhoraeseumaridosãoamericanos?
—Somos.
—Suponhoquenãoestejamcasadoshámuitotempo?
—Háumanoemeio.
—Sãofelizes?
—Ah,somos!Edwardéumanjo—elahesitou.—Éle tem
muitacoisaboa.Sóqueéumpouquinho...comodirei?Austero.
Tem.umaporçãodeantepassadospuritanosetudoomais.Mas
eleéumamor—acrescentouapressadamente.
Parker Pyne olhou-a pensativo por um ou dois minutos e
disse:—Continue.
— Foi uma semana depois que Edward viajou. Eu estava
escrevendo uma carta no escritório dele e reparei que o mata-
borrão era novo e limpo, apenas com umas poucas linhas
escritas.Tinhaacabadodelerumahistóriadedetetiveemquea
pistaprincipalestavanomata-borrão,eaí,paramedivertir,euo
coloqueiemfrenteaumespelho.Eraapenasparamedivertir,Sr.
Pyne...nãoestavaespionandoEdwardoucoisaparecida.Quero
dizer,eleétãobonzinhoqueninguémnemsonhariacomcoisas
dessetipo.
—Sei,sei,compreendo.
—Estavamuitofácildeler.Primeirotinhaapalavra"esposa",
depois "Simplon Express" e, mais abaixo, "um pouco antes de
Venezaéomomentomaispropício"—elaparou.
—Curioso—disseoSr.Pyne.—Muitocuriosomesmo.Eraa
letradeseumarido?
—Era, sim.Maseu jáquebrei a cabeça enãopossoatinar
comascircunstânciasemquemeumaridoescreveriaumacarta
comestaspalavras.
—UmpoucoantesdeVenezaéomomentomaispropício—
repetiuPyne.—Muitocuriosomesmo.
ASra.Jeffriesinclinou-separaelecomumaesperançaqueo
lisonjeou—Oquedevofazer?—perguntouelacomsimplicidade.
—Temo—disseParkerPyne—queprecisemosesperaraté
umpoucoantesdeVeneza.
Tirouumfolhetodobolso—Eisohoráriodonossotrem.Ele
chegaráaVenezaàsduasevinteesetedatardedeamanhã.
Elesseentreolharam.
—Podedeixarcomigo—disseParkerPyne.
Eramduasecinco.OSimplonExpressestavaatrasadoonze
minutos.PassaraporMestrehámaisoumenosquinzeminutos.
Parker Pyne estava sentado ao ladodaSra. Jeffries em sua
cabina. Até ali a viagem tinha sido agradável e rotineira. Mas
agora, se fosse acontecer alguma coisa, tinha chegado o
momento.ParkerPyneeElsieestavamsentadosfrenteàfrente.O
coração dela batia apressado e seus olhos procuravam os dele
numaespéciedeangustiosoapelodeconforto.
— Fique completamente calma — disse ele. — Você está a
salvo.Estouaqui.
Derepente,umgritonocorredor.
—Olhem!Olhem!Otremestápegandofogo!
ComumsaltoElsieeParkerPyneestavamnocorredor.Uma
mulher agitada, de aparência eslava, apontava dramaticamente
comodedo.Deumdoscompartimentosdianteirosafumaçasaía
aosborbotões.ParkerPyneeElsiecorrerampelocorredor.Outros
sejuntaramaeles.Ocompartimentoemquestãoestavacheiode
fumaça. Os que chegaram na frente recuaram tossindo, O
condutorapareceu.
— A cabina está vazia! — gritou ele. — Não se alarmem,
messieursetdames.Lefeuvaisercontrolado.
— Surgiu uma dúzia de perguntas e respostas agitadas. O
tremcorriapelapontequeligaVenezaaocontinente.
DerepenteParkerPynevirou-se,forçousuapassagematravés
dopequenoaglomeradodepessoas e correupelo corredor até a
cabina de Elsie. A senhora de rosto eslavo estava sentada lá,
procurandotomarfôlegopelajanelaaberta.
—Desculpe,Madame—disseParkerPyne,masestanãoéa
suacabina.
— Eu sei, eu sei — disse a senhora eslava.Pardon. Foi o
choque,aemoção...meucoração.
Elasedeixourecostarnoassentoemostrouajanelaaberta.
Tomourespiraçãoemlargoshaustos.
Parker Pyne ficou de pé na porta. Sua voz era paternal e
confortadora—Nãoprecisatermedo—disseele.—Nemporum
minutoacheiqueoincêndiofossesério.
—Não?Ah,quealívio!Jáqueestoumesentindomelhor—
começoualevantar-se;—vouvoltarparaaminhacabina.
— Ainda não — a mão de Parker Pyne a empurrou
gentilmente de volta. — Peço-lhe que espere um momento,
Madame.
—Monsieur,istoéumultraje!
—Madame,asenhoravaificar.
Avozdeleera fria.Amulhersentou-sequietaolhandopara
ele.Elsiejuntou-seaeles.
—Parece que foi umabombade fumaça—disse ela quase
semfôlego.—Algumabrincadeiraridículadealguém.Ocondutor
estáfurioso.Estáperguntandoatodomundo...—interrompeu-se
aoverasegundaocupantedacabina.
—Sra.Jeffries—disseParkerPyne,—oqueéqueasenhora
levaemsuafrasqueiravermelha?
—Minhasjóias.
—Talvezasenhorapossamefazerofavordeverseestátudo
emordem.
Houveumatorrentedepalavrasdapartedasenhoraeslava.
Ela começou a imprecar em francês, da melhor maneira que
pudessevingarseussentimentos.
NestemeiotempoElsieapanharaacaixadasjóias.
—Oh!—gritouela.—Estáaberta!
—...etjeporteraiplainteàlaCompagniedesWagons-Lits—
terminouasenhoraeslava.
— Elas desapareceram! — gritou Elsie. — Tudo! Minha
pulseiradediamantes.Eocolarquepapaimedeu.Eosanéisde
rubiedeesmeraldas.Eunsbrochesencantadoresdebrilhantes.
GraçasaDeuseuestavausandoaspérolas.Oh!Sr.Pyne,oque
podemosfazer?
—Seforchamarocondutor—disseParkerPyne,—eume
encarregodenãodeixarestasenhorasairatéelechegar.
—Scélérat!Monstre!— esganiçava-se a senhora eslava. Ela
continuoucominsultosmaiores.OtremchegouaVeneza.
Os acontecimentos da meia hora seguinte podem ser
resumidos. Parker Pyne tratou com diferentes funcionários em
diferenteslínguas--efoiderrotado.Asenhorasuspeitaconsentiu
emser revistada—e saiude lá semnenhumamancha emseu
caráter.Asjóiasnãoestavamcomela.
EntreVenezaeTrieste,ParkerPyneeElsiediscutiramocaso.
—Quandofoiquevocêviuasjóiaspelaúltimavez?
—Hoje"demanhã.Guardeiunsbrincosdesafiraqueestava
usandoontemeapanheiumparsimplesdepérolas.
—Etodasasjóiasestavamlá?
— Bom, não vasculhei a caixa, naturalmente. Mas me
pareciam em ordem, como sempre. Talvez faltasse um anel, ou
qualquercoisaassim,masnadaalémdisso.
ParkerPyne fezquesimcomacabeça—Agora,quando foi
queocondutorarrumousuacabinahojedemanhã?
—Eu estava com a caixa nasmãos... no carro-restaurante.
Sempre a levo comigo. Nunca a deixo na cabina, a não ser
quandosaímoscorrendoagora.
— Desse modo — disse Parker Pyne, — esta inocente
ofendida,MadameSubayska—oucomoquerqueelasechame—
devetersidoaladra.Masquediabofezelacomasjóias?Elasó
ficouláumminutooudois...otempojustodeabriracaixacom
umaduplicatadachaveetirarascoisas...sim,masedaí?
—Poderiaterdadoparaoutrapessoa?
— Dificilmente. Eu já estava voltando pelo corredor. Se
alguémtivessesaídodedentrodocompartimento,euteriavisto.
—Talvezelatenhajogadopelajanelaparaalguém.
— Excelente sugestão; apenas, como aconteceu, nós
estávamos passando exatamente em cima do mar naquele
momento.Estávamossobreaponte.
—Entãoeladeveterescondidoasjóiasemalgumlugaraqui
dacabina.
—Vamosprocurá-las!
Com uma energia de americana, Elsie começou a procurar
portodososcantos.ParkerPyneparticipoudabuscademaneira
um tanto ou quanto ausente. Ele se desculpou por, não tentar
continuar.
— Estou pensando em passar um telegrama muito
importanteemTrieste—explicouele.
Elsie recebeu a explicação com frieza. Parker Pyne caíra
profundamenteemseuconceito.
— Sinto muito ter-lhe aborrecido, Sra. Jeffries — disse ele
humildemente.
—Bem,osenhornãofoimuitofeliz—respondeuela.
—Mas,minhacarasenhora,ébomlembrarqueeunãosou
um detetive. Roubo e crime não são absolutamente a minha
especialidade.Minhaáreaéocoraçãohumano.
—Bem,euestavaumpoucoinfelizquandoentreinessetrem
—disseElsie,—masnãoeranada,emcomparaçãocomoestou
agora! É de chorar.Minha pulseira linda, linda... e o anel que
Edwardmedeunodiadonoivado.
— Mas a senhora certamente está com as jóias seguradas
contraroubo?—perguntouParkerPyne.
— Será que estou? Não sei. Acho que sim. Mas é o valor
estimativo,Sr.Pyne.
Otremdiminuiudevelocidade.OSr.ParkerPyneespioupela
janela—Trieste—disseele.—Precisopassaromeutelegrama.
—Edward!—orostodeElsiese iluminouquandoelaviuo
marido correndo para encontrá-la na plataforma da estação em
Istambul.Nesteinstantenemmesmoaperdadasjóiaspreocupou
asuamente.Elaesqueceuaspalavrasestranhasquedescobrira
nomata-borrão.Esqueceutudo,anãoserofatodequeháquinze
diasnãoviaomarido,eque,apesardesóbrioeaustero,eleera
mesmoumapessoamuitoatraente.
Estavamquase deixando a estação quandoElsie sentiuum
tapinhaamistosonoombro,virou-seeviuParkerPyne.Seurosto
bonachãoestavairradiandobondade.
—Sra.Jeffries—disseele,—asenhorapodese encontrar
comigonoHotelTokatliandentrodemeiahora?Achoquevouter
boasnotíciasparaasenhora.
Elsie olhou insegura para Edward. Então ela fez a
apresentação:—Esteémeumarido...ahn...Sr.ParkerPyne.
—Achoqueasuasenhoralhetelegrafoudizendoqueasjóias
delaforamroubadas—disseParkerPyne.—Estoufazendooque
posso para reavê-las. Acho que vou ter boas notícias dentro de
meiahora.
ElsieolhouinterrogativamenteparaEdward.Esterespondeu
depressa: — É melhor você ir, querida. O Tokatlian, o senhor
disse, Sr. Pyne? Muito bem, vou fazer tudo para ela chegar a
tempo.
Exatamentemeiahoradepois,Elsieentravanasaladeestar
particulardeParkerPyne.Eleselevantoupararecebê-la.
—Asenhoraficoumuitodesapontadacomigo,Sra.Jeffries—
disse ele.—Não, não tente negar.Bem, eununca pretendi ser
ummágico,masfaçooqueposso.Dêumaolhadaaquidentro.
Eleempurrousobreamesaumapequenae resistentecaixa
depapelão.Elsieabriu-a.Anéis,broches,pulseiras,colar—tudo
lá.
— Sr. Pyne, que coisa maravilhosa! Que maravilha! Parker
Pyne sorriumodestamente—Fico satisfeito denão ter falhado,
minhacarajovem.
— Sr. Pyne, o senhor me faz sentir tão mesquinha! Desde
Trieste que eu tenho sido tão desagradável com o senhor. E
agora...isto!Mascomofoiqueasconseguiu?Quando?Onde?
Parker Pyne balançou a cabeça pensativamente — É uma
históriacomprida—disseele.—Umdiaasenhoravaiouvi-la.Na
verdade,muitobreveasenhoravaiouvi-la.
—Porquenãopossosaberagora?
—Tenhocertasrazões—disseParkerPyne.
EElsietevedeiremboracomsuacuriosidadeinsatisfeita.
Quando ela saiu, Parker Pyne pegou seu chapéu e sua
bengala e desceu para as ruas de Pera. Caminhou sorrindo
consigomesmo,echegoufinalmenteaumpequenocafé,deserto
naquelemomento,quedominavaoGoldenHorn.Dooutrolado,
asmesquitasdeIstambulalçavamseusesguiosminaretesparao
céudocrepúsculo.Eraumabeleza.Pynesentou-seepediudois
cafés,quevieramforteseadocicados.Malcomeçouatomaroseu
quandochegouumhomemesesentounacadeiradoladooposto.
EraEdwardJeffries.
—Jápedicaféparavocê—disseParkerPyne,mostrando-lhe
apequenaxícara.
Edwardempurrouocaféparaumlado.Debruçou-sesobrea
mesa—Comofoiquedescobriu?—perguntou.
ParkerPynebebeuoseucafésonhadoramente—Suamulher
jálhecontousobreadescobertadomata-borrão?Não?Oh,mas
elavailhecontar;eladeveter-seesquecidonomomento.
EcontouahistóriadadescobertadeElsie.
—Muitobem;istosecoadunaperfeitamentecomoincidente
queaconteceu justamenteumpoucoantesdeVeneza. Poruma
razãoouporoutravocêestavaplanejandoo roubodas jóiasde
suamulher.Masporqueafrase"umpoucoantesdeVenezaéo
momentomais propício"? Não parecia ter sentido. Por que você
nãodeixouparaoseu—agente—aescolhadomelhorlugaredo
momento?
— E então, de repente, percebi o sentido.As jóias de sua
mulher tinham sido roubadas antes de você deixar Londres e
tinhamsidosubstituídaspor falsasduplicatas.Masestasolução
nãoosatisfizera.Vocêéumhomemconsciencioso,cheiodebrios.
Tinhaopavordequealgumempregadoouqualqueroutrapessoa
inocente fosse acusada. Era preciso que ocorresse um roubo...
numdeterminadolocaledeumamaneiratalquenãolevantasse
suspeitas de ninguém de seu conhecimento ou das pessoas de
suacasa.
—Suacúmplicefoimunidacomumachavedacaixadejóias
e de uma bomba de fumaça. No momento exato ela daria o
alarme,correriaparaacabinadesuamulher,abririaacaixade
jóiasejogavaasfalsasduplicatasnomar.Sesuspeitassemdelae
arevistassem,nadapoderiaserprovadocontraela,umavezque
asjóiasnãoestavamemseupoder.
—Eassim,osignificadodolocalescolhidotorna-seaparente.
Se as jóias fossem meramente jogadas ao lado dos trilhos,
poderiamserencontradas.Daíaimportânciadoúnicomomento
emqueotrempassavasobreomar.
—Neste"meiotempo,vocêfezosseuscontatosparaavenda
dasjóiasaqui.Tinhasimplesmentedeentregaraspedrasquando
oroubo já tivessesidopublicamenteconhecido.Meu telegrama,
entretanto, o alcançou a tempo. Você obedeceu às minhas
instruçõesedepositouacaixanoTokatlianparaesperaraminha
chegada,sabendoquedestaformaeucumpriameutratodenão
entregaroassuntonasmãosdapolícia.Vocêobedeceutambém
àsinstruçõesdeseencontraraquicomigo.
Edward Jeffries olhou suplicante para Parker Pyne. Ele era
um homem atraente, louro e alto, com um queixo bem feito e
olhosmuito redondos.—Como fazer com queme entenda?—
disse sem esperanças. — Para o senhor eu devo parecer um
ladrãovulgar.
—Absolutamente—disseParkerPyne.—Pelocontrário,eu
diria que você é dolorosamente honesto. Estou acostumado a
classificar as pessoas. Você, meu caro, cai naturalmente na
categoriadasvítimas.Agora,mecontetodaasuahistória.
—Possolhecontarnumasópalavra...chantagem.
—Sim?
—Osenhorviuminhamulher;deveterpercebidoquetipode
criaturapurae inocenteelaé,semsaberouimaginaroqueéa
maldade.
—Sim,sim.
—Elatemideaismaravilhososepuros.Seelaviesseasaber
dequalquercoisaqueeujáfiz,medeixaria.
—Imagino.Masnãoéessaaquestão.Oquefoiquevocêfez
mesmo, meu jovem amigo? Presumo que seja algum caso com
mulheres.
EdwardJeffriesfezquesimcomacabeça.
—Depoisdeseucasamento...ouantes?
—Antes...antes!
—Bem,bem,oqueaconteceu?
—Nada, absolutamentenada.Esta é a partemais cruel da
história.FoinumhotelnasíndiasOcidentais.Haviaumamulher
muitoatraente...umatalSra.Rossiter...hospedadalá.Omarido
eraumhomemviolento;tinhaosmaisselvagensacessosderaiva.
Uma noite ele a ameaçou com o revólver. Ela escapou dele e
correuparaomeuquarto.Estavaquaseloucadeterror.Ela...ela
mepediuparadeixá-laficaraliatédemanhã.Eu...oqueéque
eupodiafazer?
ParkerPyneolhouparaorapazeorapazoencaroudevolta
comumaretidãoconscientedecaráter.ParkerPynesuspirou—
Emoutraspalavras,parafalarmosclaramente,osenhorbancouo
trouxa,Sr.Jeffries.
—Realmente...
—Sim, sim.Umgolpemuito antigo.Mas às vezes dá certo
comrapazesdogêneroD.Quixote.Suponhoquequandoo seu
casamentofoianunciadoelesapertaramocerco?
—Sim,recebiumacarta.Seeunãolhesenviasseumacerta
somaemdinheiro,meu futurosogro ficariasabendode tudo.A
maneira pela qual eu... alienara o amor desta jovem por seu
marido; como ela fora vista entrandonomeu quarto.Omarido
daria entrada comumpedidodedivórcio.Realmente,Sr. Pyne,
me pareceu muito torpe — enxugou a testa de uma maneira
atormentada.
—Sei,sei.Eentãovocêpagou.Edetemposemtempos,eles
lheapertamoutravez.
—É.Destavezfoiaúltimagota.Eujánãotinhamaiscomo
arranjardinheiro.Penseinesseplano—apanhouaxícaradecafé
frio, olhou-a distraído e bebeu todo.O que vou fazer agora?—
perguntoupateticamente.—Oquevoufazer,Sr.Pyne?
—Deixe-meorientá-lo—disseParkerPynecom firmeza.—
Eudouumjeitonosseuscarrascos.Quantoàsuamulher,você
vaidiretoaelaevai lhecontar todaaverdade...oupelomenos
partedela.Oúnicopontoquevocêvaidesviardaverdadeseráa
respeitodosfatosdasÍndiasOcidentais.Vocêprecisaescondero
pontoemqueserviu...bem,emquevocêbancouotrouxa,como
eujáfalei.
—Mas...
— Meu caro Sr. Jeffries, o senhor não compreende as
mulheres..Seumamulhertiverdeescolherentreumtrouxaeum
DonJuan, ela escolherá oDonJuan, sempre. Suamulher, Sr.
Jeffries,éumamoçaencantadora,inocenteeorgulhosa,eaúnica
maneira de ela se sentir satisfeita da vida é acreditar que
regenerouum,farrista.
EdwardJeffriesestavaolhandoparaeledebocaaberta.
— Foi isso mesmo que eu quis dizer — continuou Parker
Pyne.—Nopresentemomentosuamulherestáapaixonadapor
você,maseu jápercebivestígiosdequenãovai ficarpormuito
temposecontinuaralheapresentarumafiguradetantabondade
eretidão...quaseumsinônimodemonotonia.
Edwardestremeceu.
—Vávê-la,menino—disseoSr.ParkerPynegentilmente.—
Confesse tudo, isto é, tudo o que você puder imaginar. Então
explique-lhe que a partir do instante em que a encontrou você
abriumãodetodaasuavida.Chegouatéaroubarparaquenada
disso chegasse aos ouvidos dela. Ela vai perdoá-lo
entusiàsticamente!
—Masquandonãohánadaparaperdoar...
—O que é a verdade?— disse Parker Pyne.— Emminha
experiência,égeralmenteelaqueentornaocaldo!Êumaxioma
fundamental da vida de casado: vocêprecisa mentir para uma
mulher.Elas gostamdisso! Vá e seja perdoado,menino.E viva
felizparatodoosempre.Soucapazdeadivinharquesuamulher
vaisempreficardeolhoemvocêtodavezqueumamulherbonita
seaproximar...algunshomensseaborreceriam,maseugaranto
quevocênãovaiseimportar.
—Nãopretendoolharparanenhumaoutramulheralémde
Elsie—disseoSr.Jeffriescomsimplicidade.
108
—Esplêndido,meurapaz—disseParkerPyne—Masseeu
fosse você, nunca deixaria que ela soubesse disso. Mulher
nenhumagostadesesentirmuitoseguradesi.
EdwardJeffriesselevantou.Osenhoracharealmente...?
—Eusei—disseParkerPyne,comveemência.
8
OPortãodeBagdad
QUATROGRANDESPORTÕEStemaCidadedeDamasco..."
ParkerPynerepetiuosversosdeFleckeremvozbaixa:
"O Portal do Destino, o Portão do Deserto, a Caverna das
Desgraças,aFortalezadoTerror,
EusouoPortaldeBagdad,aportadeentradadeDiarbekir."
Estava em Damasco, e, espichando a cabeça para fora do
Hotel Oriental, viu um dos enormes ônibus Pullmans, de seis
rodas,queialevá-loatéBagdad,commaisonzepessoas,nodia
seguinte,atravésdodeserto.
"Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não
passesporaquicantando.
Escutaram
Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde, ainda
assim,algochilreiacomoumpássaro?
Passaste por aqui, ó Caravana, Caravana da Perdição,
CaravanadaMorte!"
Quecontraste,comosdiasdehoje.AntigamenteoPortãode
BagdaderaoPortaldaMorte.Seiscentosecinqüentaquilômetros
de deserto para atravessar em caravanas. Longos e cansativos
meses de viagem. Agora, estesmonstros ubíquos alimentados a
gasolinafaziamaviagememtrintaeseishoras.
—Oqueestavadizendo,Sr.ParkerPyne?
Era a voz muito viva da Srta. Netta Pryce, a mais jovem e
encantadoradetodoogrupodeturistas.Apesardeembaraçada
poruma tia intoleranteque tinhaumasombradebarbaeuma
sede de conhecimentos bíblicos, Netta conseguia divertir-se de
várias maneiras frívolas, que possivelmente a idosa Srta. Pryce
nãoaprovaria.
ParkerPynerepetiuosversosdeFleckerparaela.
—Quecoisaemocionante!—disseNetta.
Três homens com uniforme da Força Aérea estavam perto
deles,eum,admiradordeNetta,seaproximou
—Essaviagemaindaéemocionante—disseele.—Mesmo
hojeemdia,osbandidosàsvezesatacam.Tambémsepodeficar
perdido, de vez em quando acontece. E somos nós que vamos
procurar.Umcamaradaficoucincodiasperdidonodeserto.Por
sorte tinha bastante água. E também tem os solavancos. Que
trancos!Umavezumsujeitomorreu.Éapuraverdade!Eleestava
dormindo,bateucomacabeçanotetodocarroemorreu.
— Num ônibus desse tipo, Sr. O'Rourke? — perguntou a
velhaSrta.Pryce.
—Não...nãofoinumdesses—admitiuorapaz.
— Precisamos fazer alguma coisa — exclamou Netta. A tia
pegouumguiadeturistas.
Netta ficou impaciente— Ela quer ir num lugar onde São
Paulodesceudeumajanela—murmurouela.
—Eeuquequeriatantoverosbazares!
O'Rourke respondeu rapidamente — Venha comigo.
ComeçaremosporumaruachamadaStraight......
Osdoisseafastaram.
Parker Pyne virouparaumhomem tranqüilo que estava ao
lado, chamado Hensley, e que trabalhava no departamento de
serviçospúblicosdeBagdad.
—Damascoéumpoucodecepcionanteparaquemavêpela
primeira vez — disse ele se desculpando. — Civilizada demais.
Bondesecasasmodernaselojas.
Hensleyfezquesimcomacabeça.Eraumhomemdepoucas
palavras.
—Nãotem...aqueleencantomisterioso...queagentepensa
quevaiencontrar—acrescentou.
Apareceuumoutrohomem,umrapazlouro,comumavelha
gravatadeEton.Tinhaumaexpressãoamável,masligeiramente
estúpida e que nomomento parecia preocupada. Ele e Hensley
trabalhavamnomesmodepartamento.
—Olá,Smethurst—disseoamigo.—Perdeualgumacoisa?
O Capitão Smethurst balançou a cabeça, dizendo que não.
Eraumjovemderaciocínioumtantoouquantolento.
—Estavasódandoumaolhadaporaí—disseelevagamente.
Finalmente pareceu acordar. — Acho que vou fazer uma farra
hojeànoite.Quetal?
Osdoisamigos foramembora juntos.ParkerPynecomprou
umjornallocal,impressoemfrancês.
Não o achoumuito interessante. O noticiário local não lhe
dizianadaepareciaquenadadeimportanteestavaacontecendo
em qualquer outro lugar do mundo. Achou diversas notícias
procedentesdeLondres.
Aprimeirasereferiaaassuntosfinanceiros.Asegundafalava
dosupostodestinodeumtalSamuelLong,umfinancistafalido.
Seusdesfalquessubiamagoraàsomadetrêsmilhões,ecorriam
boatosdequeelejáestavanaAméricadoSul.
—Nadamauparaumhomemdepoucomaisdetrintaanos
—dissePyne.
—Como?
Parkervirouedeudecaracomumitalianoquehaviaviajado
nomesmobarcoqueele,deBrindisiaBeirute.
Parker Pyne explicou a sua observação. O italiano, Signor
Poli,balançouacabeçadiversasvezesemsinaldeaprovação.
— É um grande criminoso, este homem. Até na Itália nós
sofremos.Ele inspiravaconfiançaemtodoomundo.Dizemque
eraumhomemdemuitoboafamília.
—Bem,eleesteveemEtoneemOxford—disseParkerPyne
comcautela.
—Osenhorachaqueelevaiserapanhado?
—Dependedoqueeletemdedianteira.Aindapodeestarna
Inglaterra.Podeestar...emqualquerlugar.
—Aquiconosco?—oitalianoriu.
—Possivelmente—oSr. ParkerPynepermaneceu sério.—
Comoéqueosenhorpodeafirmarqueeunãosouele?
OSignorPolilançou-lheumolharespantado.Eseurostocor
deolivaseabriunumsorrisodecompreensão.
—Ora,essaémuitoboa!Muitoboamesmo!Masosenhor...
Seu olhar se desviou do rosto para o estômago de Parker
Pyne.
Esteinterpretouoolharcorretamente.
—Nãosedevejulgarninguémpelasaparências—disseele.
—Umpouquinhode... comodirei?debarriga... searranja com
facilidadeefazumefeitomuitobom.
Acrescentou sonhadoramente: — Existem as tinturas de
cabelo,éclaro;pode-setambémmudaracordapeleeatétrocar
denacionalidade.
Poli saiu meio em dúvida. Ele nunca sabia até onde os
inglesessãosérios.
Parker Pyne se divertiu naquela noite indo a um cinema.
DepoisfoiaoPalácioNoturnodasDiversões.Nãolhepareceuum
palácio, nem que era muito alegre. Várias senhoras dançavam
comevidentefaltadejeito.Osaplausoseramlânguidos.
De repente, Parker Pyne viu Smethurst. O rapaz estava
sentado sozinho em uma das mesas. Tinha o rosto
congestionado, e Parker Pyne imaginou que ele já tinha bebido
maisdoquedevia.Atravessouosalãoefoiparapertodele.
—Éabominávelcomoestasmoçastratamagente—disseo
CapitãoSmethurst.—Pagueiduasbebidasparaela...três..uma
porção de bebidas. E ai ela foi embora rindo com um outro
sujeito. Uma d-desgraça! Parker Pyne ficou com pena( dele.
Sugeriuumcafé.
— Já mandei pediraraq — disse Smethurst. — É uma
maravilha.Osenhorvaiprovar.
Parker Pyne conhecia algumas das propriedades doaraq.
Procurouagircomomaiortato.Smethurst,entretanto,balançou
acabeça.
—Estou numa complicação dos diabos— disse.— Preciso
meanimarumpouco.Nãoseioqueosenhorfariaemmeulugar.
Nãogostodedeixarumamigo emapuros, sabe comoé?Quero
dizer...mas...oqueéqueagentepodefazer?
Ele se pôs a estudar Parker Pyne como se o visse pela
primeiravez.
— Quem é o senhor? — perguntou com o laconismo
resultantedasuabebedeira.—Oqueéqueosenhorfaz?
—Meunegóciosãoasconfidenciasdosoutros—disseParker
Pynegentilmente.
Smethurstolhouparaelecomgrandeinteresse.
—Oquê?...osenhortambém?
ParkerPynetirouumrecortedejornaldacarteira.Colocou-o
emcimadamesa, em frente aSmethurst:Você é infeliz? Se for
consulteoSr.ParkerPyne.
Smethurst conseguiu focalizar os olhos depois de algum
esforço—Querdizerque... aspessoaschegame lhe contamas
coisas?
—Elesconfiamemmim...sim.
—Ummontedemulheresimbecis,suponho.
—Umaporçãodemulheres—admitiuParkerPyne.—Mas
homens também. Que tal você, meu jovem amigo? Não estava
agoramesmoquerendoumconselho?
—Caleessaboca—disseoCapitãoSmethurst.—Nãoéda
contadeninguém...sódaminha.Ondeestáessemalditoaraq?\
ParkerPynebalançoutristementeacabeça.
AbandonouoCapitãoSmethurstcomoseele fosseummau
negócio.
ApartidaparaBagdad foiàssetehorasdamanhã.Eraum
grupodedozepessoas.ParkerPyneeoSignorPoli,avelhaSrta.
Pryceesuasobrinha,ostrêsoficiaisdaAeronáutica,Smethurste
HensleyeumasenhoraArmêniaeseufilho,chamadoPentemian.
A viagem começou semnenhumacontecimento especial. As
árvoresfrutíferasdeDamascoforamlogodeixadaspartrás.Océu
estava nublado e o jovem motorista olhou-o duvidoso uma ou
duasvezes."TrocoualgumasimpressõescomHensley
—TemchovidomuitolápelosladosdeRutba.Tomaraquea
gentenãoseatole.
Fizeram uma parada aomeio-dia e as caixas quadradas de
papelão com o almoço foram distribuídas. Os dois motoristas
prepararam um chá que foi servido em copos de papel.
Recomeçaramaviagematravésdainterminávelplanície.
Parker Pyne pensava nas lentíssimas caravanas e nas
semanasdeviagem.
Exatamente ao pôr do sol, chegaram à fortaleza deserta de
Rutba. Os enormes portões estavam destrancados e o ônibus
entrounopátiointernodoforte.
—Queemocionante!—disseNetta.
Depoisdeumbanhoelaestavaansiosaparadarumpasseio.
O Tenente 0'Rourke e Parker Pyne se ofereceram como
acompanhantes. Quando iam sair, o agente de viagem se
aproximouepediuquenãoseafastassemmuitoporquepoderiam
ter dificuldades para achar o caminho de volta quando
escurecesse.
—Nóssóvamosdarumavoltinha—prometeuO'Rourke.
Na verdade, andar a pé por ali não eramuito interessante,
porcausadamonotoniadapaisagem.
DerepenteParkerPyneseabaixoueapanhoualgumacoisa
nochão.
— O que foi? — perguntou Netta com curiosidade. Ele
mostrou — Uma pedra pré-histórica, Srta. Pryce... parece uma
furadeira.
—Seráqueeles...sematavamcomisso?
— Não... devia ter um uso mais pacífico. Mas acho que se
quisessemelespodiammatarcomisso.Éavontadedematarque
conta...oinstrumentonãofazdiferença.Sempreseachaalguma
coisaquandosequer.
Jáestavaescurecendoeelesvoltaramparaoforte.
Depois deum jantar demuitas iguarias, escolhidas entre a
grande variedade de latarias, sentaram-se para fumar. À meia-
noiteocarrodeviaseguirviagem.
O motorista parecia inquieto — Há umas passagens muito
ruinspertodaqui—disseele.—Talvezagenteatole.
Subiramtodosnoônibuseseajeitaramemseus lugares.A
Srta. Pryce estava aborrecida por não ter conseguido alcançar
umadesuasvalises.
—Gostariamuitodepegarmeuschinelos—disseela.
—Émaisprovávelqueprecisedesuasbotasdeborracha—
disseSmethurst.—Sevaiaconteceroqueeuimagino,nósvamos
atolarnummardelama.
—Nãotenhonemumpardemeiasparatrocar—disseNetta.
—Nãotemimportância.Vocênãovaisairdeseulugar.Sóo
pessoaldosexoforteéquevaiterdesairparaempurrar.
— Sempre trago um par de meias sobressalentes — disse
Hensley, batendonobolsodo seu sobretudo.—A gentenunca
sabe...
Asluzesseapagaram.Oenormeônibusdesapareceunomeio
danoite.
A viagem não era tão ruim assim. Não sacolejavam tanto
comonumcarropequeno,masmesmoassim,devezemquando
haviaumsolavancofeio.
ParkerPyneestavasentadoemumdoslugaresdafrente.Do
outroladodapassagemestavaasenhoraarmêniatodaenrolada
emsuasmantasexales.Ofilhoestavaatrásdela.AtrásdePyne
estavamasduassenhoritasPryce.Poli,Smethurst,Hensleyeos
trêsoficiaisdaRAFestavamláatrás.
Oônibuscorriaatravésdanoiteescura.ParkerPyneachou
muitodifícildormir.Suaposiçãolhedavacãibras.
Ospésdasenhoraarmêniaestavamesticadoseelaosenfiara
emseusdomínios.Pelomenoselapareciaàvontade.
Todos os outros pareciam dormir. Parker Pyne começava a
sentirumasonolência,quandoumbaqueviolentooatiroucontra
otetodocarro.Eleouviuumprotestomeioadormecidovindoda
traseira:—Devagar!Querquebrarnossospescoços?
Então a sonolência voltou. Alguns minutos depois, com o
desconfortodopescoçoquecaíaparaolado,ParkerPynedormiu.
Acordou de repente. O carro parará. Alguns dos homens
estavamsaindo.Hensleyfalourapidamente:
—Atolamos.
Ansioso para ver o que estava se passando, Parker Pyne
desceudesajeitadoparaolamaçal.Jánãoestavamaischovendo.
Havia na verdade uma lua e, graças à sua luz, os motoristas
podiam ser vistos trabalhando frenèticamente com macacos e
pedras, esforçando-se para levantar as rodas. A maioria dos
homensestavaajudando.Das janelasdocarroastrêsmulheres
olhavamparafora,aSrta.PryceeNettacominteresseeasenhora
armêniacomumtédiomaldisfarçado.
A uma ordem do motorista, todos os passageiros homens
empurraramobedientemente.
— Onde é que está aquele sujeito armênio? — perguntou
O'Rourke.—Eletemquevirajudartambém..
—OCapitãoSmethursttambém—observouPoli.—Elenão
estáaqui.
—Aquelesem-vergonhaaindaestádormindo.Olhemsópara
ele.
Na verdade, Smethurst ainda estava sentado em sua
poltrona, a cabeça pendida para a frente e o corpo inteiro
encurvado.
—Vouacordá-lo—disseO'Rourke.
Entrou pela porta. Voltou um minuto depois. Sua voz
mudara.
— Imaginem!Acho que ele está doente... ou coisa parecida.
Ondeestáomédico?
O Comandante Loftus, médico da Força Aérea, era um
homem de ar tranqüilo, com os cabelos um pouco grisalhos.
Destacou-sedogrupoaoladodaroda.
—Oqueéquehácomele?—perguntou.
—Eu...nãosei.
O médico entrou no carro. O'Rourke e Parker Pyne o
seguiram.Ele se debruçou sobre a figura encurvada.Umúnico
toqueeumarápidaolhadaforamsuficientes.
—Estámorto—dissecalmamente.
Morto? Mas como? — as perguntas surgiram. — Ah! que
coisahorrível!—gritouNetta.
Loftusolhouemtorno,irritado.
—Deveterbatidocomacabeçanoteto—disse.—Houveum
solavancomuitoforte.
—Temcertezadequefoiissoqueomatou?—Nãohámais
nada?
— Não posso dizer antes de fazer um exame completo —
respondeuLoftus.Olhouemtornocomarinquieto.Asmulheres
estavamseaproximando.Oshomensláforatambémcomeçavam
aentrar.
ParkerPyne faloucomomotorista,umrapazmoço,de tipo
atlético.Carregoucadaumadasmulheres,levando-asatravésda
lama para um local seco.Madame Pentemian e Netta ele levou
comfacilidade,mascambaleousobopesodarobustaSrta.Pryce.
Ointeriordoônibusfoievacuadoparaqueomédicopudesse
fazeroseuexame.
Oshomensvoltaramaosseusesforçosparaergueroveículo.
Neste momento o sol apareceu no horizonte. O dia ia ser
maravilhoso. A lama estava secando com rapidez, mas o carro
ainda estava atolado. Já tinham quebrado três macacos, e até
agoraosesforçostinhamsidoinúteis.Osmotoristascomeçarama
prepararocafédamanhã,abrindo,latasdesalsichasefervendoa
águaparaochá.
Apequenadistância,oComandanteLoftusestavafazendoo
seudiagnóstico.
—Nãohánenhumamarcaouferidanele.Comojádisse,ele
deveterbatidocomacabeçacontraoteto.
— O senhor tem certeza de que ele teve morte natural?—
perguntouParkerPyne.
Alguma coisa em sua voz fez com que o médico o olhasse
rapidamente.
—Sóháumaoutrapossibilidade.
—Sim?
—Bem,quealguémtenhagolpeadosuanucacomalgoassim
como um saco de areia... — sua voz parecia a de quem pede
desculpas.
— Não parecemuito plausível— disseWilliamson, o outro
oficialdaForçaAérea,umrapazdearangelical.
—Istoé,ninguémpodiafazerissosemservisto.
—Esenósestivéssemosdormindo?—perguntouomédico.
— O camarada não podia ter certeza — falou o outro. —
Levantar-seefazertudoissoteriaacordadoalgumdenós.
—Aúnicamaneira—dissePoli—seriaalguémqueestivesse
sentadoatrásdele.Podiaescolheromomentoenemprecisavase
levantardapoltrona.
—QuemestavasentadoatrásdoCapitãoSmethurst?
—perguntouomédico.
0'Rourkerespondeuprontamente:
—Hensley,senhor...comoosenhorvê,nãoadiantounada.
HensleyeraomelhoramigodeSmethurst.
Houve um silêncio. Então a voz de Parker Pyne falou com
muitacerteza:
— Acho — disse ele — que o Tenente Williamson tem
qualquercoisaanosdizer.
—Eu,senhor?Eu...bem...
—Faledeumavez,Williamson—disse0'Rourke.
—Nãoénada...ora,nãoénada.
—Falelogo!
—Foisóumpedacinhodeconversaqueouvi—emRutba...
nopátio.Eu tinha voltadopara o carroparaprocurar aminha
cigarreira.Estavaprocurandopor todososcantos.Doissujeitos
estavamdo lado de fora conversando.Umdeles era Smethurst.
Eleestavadizendo..•
Fezumapausa.
—Ande,homem,faledeumavez!
— Alguma coisa de não deixar um companheiro em má
situação.Pareciamuitoaflito.Entãoeledisse: "Nãovousoltara
língua até a gente chegar a Bagdad—mas nem umminuto a
mais.Vocêtratedeescapardepressa".
—Eooutrohomem?
— Não sei quem era, senhor. Juro que não sei quem era.
Estava escuro e ele só disse uma ou duas palavras que eunão
pudeentender.
—QuemdevocêsconheciabemSmethurst?
— Acho que a palavracompanheiro só podia se referir a
Hensley — disse O'Rourke lentamente. — Eu conhecia
Smethurst, mas ligeiramente. Williamson é novo aqui... e o
Comandante Loftus também. Acho que nenhum dos dois já o
conhecia.
Ambosconcordaram.
—Você,Poli?
—Eununcatinhavistoesterapazantesdeatravessarmoso
LíbanonomesmocarroemqueviemosdeBeirute.
—Eaquelearmênio?
—Elenãopodia ser o companheiro—disseO'Rourke com
decisão.
—Talvezeutenhaumapequenapeçaadicionaldeevidência
—disseParkerPyne.
Repetiu a conversa que tivera com Smethurst no café em
Damasco.
— Ele usou a frase "Não gosto de deixar um amigo em
apuros"—disseO'Rourke,pensativo.—Eestavapreocupado.
— Ninguém tem mais nada a acrescentar? — perguntou
ParkerPyne.
O médico pigarreou — Talvez não tenha nada a ver com
isso...—começouele.Foiinstadoacontinuar.
— Foi só o que ouvi Smethurst falar a Hensley: "Você não
podenegarquehouveumdesfalquenoseudepartamento."
—Quandofoiisso?
— Logo depois que nós saímos de Damasco, ontem de
manhã. Pensei que ele estava falando só do trabalho. Não
imagineique...—parou.
—Meusamigos,istoémuitointeressante—disseoitaliano.
—Peçaporpeça,vocêscompõemasituação.
—Osenhordisseumsacodeareia—disseParkerPyne.—
Umhomempoderiafabricartalarma?
—Areia não falta—disse omédico secamente, apanhando
umpoucodeareianasmãosenquantofalava.
— Se o senhor puser um pouco dentro de uma meia ...—
começouO'Rourkeehesitou.
Todos se lembravamdas duas frases curtas deHensley, na
noite passada: "Sempre trago meias sobressalentes. A gente
nuncasabe."
Houveumsilêncio.EntãoParkerPynedisse calmamente—
ComandanteLoftus,achoqueopardemeiassobressalentedoSr.
Hensleyestánobolsodoseusobretudo,quenestemomentoestá
dentrodoônibus.
Todososolharesconvergiramparaafiguraquecaminhavade
um lado para outro, a distância. Hensley fora deixado em paz
desdeadescobertadomorto.Seudesejodesolidãofoirespeitado,
poistodomundosabiaqueeleeomortotinhamsidoamigos.
ParkerPynecontinuou:—Quer fazero favordebuscá-lase
trazê-lasatéaqui?
Omédico hesitou—Não gosto da idéia de...—murmurou
ele.Olhoudenovoparaafiguraquecaminhavaaolonge.—Me
pareceumabaixeza...
— Faça o favor de buscá-las — disse Parker Pyne. — As
circunstâncias não são formais. Nós estamos ilhados aqui. E
precisamos saber a verdade. Se o senhor for buscar as meias,
achoquevamosdarmaisumpasso.
Loftusvoltou-seobediente.
ParkerPynepuxouoSignorPoliparaumlado.
—Achoqueeraosenhorqueestavanobancodoladooposto
aodoCapitãoSmethurst.
—Erasim.
—Alguémselevantouepassouporlá?
—Sóasenhorainglesa,aSrta.Pryce.Elafoiatéolavatório
natraseiradoônibus.
—Elaporacasotropeçou?
— Ela se desequilibrou um pouco com o movimento do
Ônibus,énatural.
—Elafoiaúnicapessoaqueosenhorviupassar?
—Foi.
Oitalianoolhoucomcuriosidadeparaeleedisse:
— Estou imaginando quem é o senhor. Está comandando,
masnãoénenhumsoldado.
—Jávimuitacoisanavida—disseParkerPyne.
—Viajoumuito,foi?
— Não — disse Parker Pyne. — Fiquei sentado num
escritório.
Loftus voltou trazendoasmeias.ParkerPynepegou-as eas
examinou.Emumadelasaindahaviaumpoucodeareiaúmida.
ParkerPynesuspiroufundo.
—Agoraeusei—disse.
Todos os olhares se fixaram na figura que continuava a
caminharaolonge.
—Gostariadedarumaespiadanocorpo,sepuder—disse
ParkerPyne.
AcompanhouomédicoatéondejaziaocorpodeSmethurst,
cobertoporumalona.
Omédico levantou a cobertura—Nãohánada para ver—
disse.
Mas os olhes de Parker Pyne estavam fixos na gravata do
morto.
— Então Smethurst estudou em Eton — disse ele. Loftus
olhou-osurpreso.
ParkerPynesurpreendeu-oaindamais.
— O que sabe o senhor sobre o jovem Williamson? —
perguntou.
— Nada. Só o conheci em Beirute. Vim do Egito. Mas por
quê?Certamentenãofoieleque...
— Bem; é pela sua evidência que nós vamos enforcar um
homem,nãoé?—disseParkerPyne jovialmente.—Precisamos
sercuidadosos.
Ele ainda parecia interessado na gravata e no colarinho do
morto.Perguntou:
—Estávendoisso?
Napartedetrásdocolarinhohaviaumapequenamanchade
sangue.
Olhoumaisdepertoparaopescoçodescoberto.
—Estehomemnãofoimortoporumapancadanacabeça—
dissebruscamente.—Elefoiapunhalado...nabasedocrânio.O
senhorpodeveraminúsculapicada.
—Eeunãotinhavisto!
— O senhor estava com uma idéia preconcebida — disse
ParkerPynedesculpando-o.—Umapancadanacabeça.Maldá
para se ver a ferida. Uma punhalada rápida com um pequeno
instrumentoagudo,eamortefoiinstantânea.Avítimanemteve
tempodegritar.
—Osenhorquerdizerumestilete?—Achaque
Poli...?
— Italianos e estiletes estão sempre juntos na imaginação
popular.Umcarrochegando!
Surgiuumônibusdeturistas.
— Ótimo — disse O'Rourke juntando-se a eles. — As
senhoraspoderãoseguirnele.
—Eonossoassassino?—perguntouPyne.
—OsenhorquerdizerHensley...
— Não, não quero dizer Hensley — disse Parker Pyne. —
AcontecequeeuseiqueHensleyéinocente.
—Osenhor...mascomo?
—Bem,eletinhaareianasmeias.O'Rourkeolhouespantado
paraele.
—Eusei,meurapaz—disseParkerPynegentilmente,—que
não fazsentido,masé issomesmo.Smethurstnão foi feridona
cabeça;comoestávendo,elefoiapunhalado.
Fezumapausaecontinuou.
—Pensenaconversaqueeulhecontei...aconversaquetive
com ele no café. Você escolheu a frase que lhe parecia ter uma
significação. Mas foi a outra frase que me chamou a atenção.
Quandoeudisseaelequeouviaconfidenciasdosoutros,eleme
disse:"Oquê?—Osenhortambém?"Istonãolhediznada?Nãoé
estranho? Eu não sabia que vocês chamavam deconfidencias
uma série de irregularidades no departamento. Ouvir
confidências me parece mais a descrição de alguém como o
foragidoSamuelLong,porexemplo.
Omédicoseespantou.O'Rourkedisse:—É...talvez...
—EudissedebrincadeiraquetalvezodesaparecidoSr.Long
estivessenonossogrupo.Suponhamosqueissosejaverdade?
—Oque...maséimpossível!
—Absolutamente.Oquevocêssabemsobreaspessoasalém
deseuspassaportesedoqueelasdizemdesimesmas?Sereieu
realmenteoSr.ParkerPyne?OSignorPoliémesmoumitaliano?
E o que dizer dá idosa Srta. Pryce, que até parece que anda
precisandofazerabarba?
—Masele...masSmethurst...seráqueeleconheciaLong?
— Smethurst era um antigo aluno de Eton. Long também
esteve em Eton. Smethurst talvez o conhecesse, mas não nos
disse nada. É possível que o tenha reconhecido entre nós. E
sendo assim, o que fazer? Ele tinha uma mente simples e se
preocupoucomoassunto.Decidiuporfimquenãodirianadaaté
chegarmosaBagdad.Masdepois,ninguémmaissegurariaasua
língua...
—OsenhorachaqueumdenóséLong?—disseO'Rourke
aindaespantado.
Eletomoufôlego.
— Deve ser o italiano... só pode ser... Ou será que é o
armênio?
—Disfarçar-sedeumestrangeiroeconseguirumpassaporte
de outro país é na verdademuitomais difícil do que continuar
inglês—dissePyne.
—ASrta.Pryce?—gritouO'Rourkeincrédulo.
—Não—disseParkerPyne.—Éesteonossohomem!
Ele colocou uma mão quase amigável sobre o ombro do
homemqueestavaaseulado.Masnãohavianadaamigávelem
suavozeseusdedososeguraramcomosefossemgarras.
— Comandante Loftus ou Sr. Samuel Long, não importa
comoochamem!
—Masistoéimpossível!...Impossível!—gaguejouO'Rourke.
—LoftusestánaForçaAéreaháanos!
—Mas você nunca o tinha visto antes, não é? Ele era um
estranho para todos vocês. Não é o verdadeiro Loftus,
naturalmente.
Calmamente, o acusado falou:—Muito hábil de sua parte
adivinhar.Apropósito,comofoiquedescobriu?
— Sua declaração ridícula de que Smethurst fora morto
batendocomacabeça.O'Rourkelhedeuestaidéiaontemquando
nós estávamos conversando em Damasco. Você pensou... que
coisa simples! Era o únicomédico que estava conosco... tudo o
que dissesse seria aceito. Você tinha amaleta de Loftus. Tinha
seus instrumentos. Era simples escolher um estilete qualquer
para seus propósitos. Inclinou-se para conversar com ele e
enquanto falava enfiou-lhe o pequeno punhal na nuca.
Continuouconversandomaisumoudoisminutos.Estavaescuro
noônibus.Quemiasuspeitar?
— Então houve a descoberta do corpo. Você deu o seu
diagnóstico.Masnãofoitãofácilassim.Pelomenosnãofoicomo
você imaginava. Surgiram dúvidas. Você resolveu cair numa
segunda linhade defesa.Williamson repetiu a conversa que ele
escutara. Todos pensaram que se tratava de Hensley e você
acrescentouumapequenahistóriainventadasobreodesfalqueno
departamento de Hensley. Foi então que eu fiz o teste final:
mencioneiaareiaeasmeias.Mandeivocêbuscarasmeiaspara
que ficássemossabendodaverdade.Mascom issoeunãoquis
dizer exatamenteoqueestavapensando.Eu já tinhaexaminado
as meias de Hensley. Não havia areia em nenhuma delas. Foi
você quem a pôs. O Sr. Samuel Long acendeu um cigarro. —
Desisto—disseele.—Minhasortemudou.Bem,foimuitobom
enquantodurou.Eles jáestavamnosmeuscalcanharesquando
chegueiaoEgito.Encontrei-mecomLoftus.Eleestavadepartida
paraBagdadenãoconhecianinguémaqui.Erabomdemaispara
queeuperdesseaoportunidade.Comprei-o.Elemecustouvinte
mil libras. O que era isso para mim? Então, por um azar do
destino me encontrei com Smethurst — a maior besta que já
conheci!EleerapraticamentemeuescravoemEton.Faziatudoo
que eu queria.Me adorava como se eu fosseumherói, naquele
tempo.Nãogostoudaidéiadaminhafuga.Fizoquepudepara
convencê-lo,eafinaleleconcordoueprometeuquenãocontaria
nadaaninguématéchegarmosaBagdad.Qualaoportunidade
queeuteriaentão?Nenhuma.Sóhaviaumamaneira—eliminá-
lo. Mas lhes garanto que não sou um assassino por natureza.
Meustalentossãocompletamenteopostos.
Seu rosto mudou — contraiu-se. Ele vacilou e despencou
paraafrente.
O'Rourkedebruçou-sesobreele.
—Provavelmenteácidoprússico...nocigarro—disseParker
Pyne.—Ojogadorperdeuasuaúltimacartada.
Olhouemvolta—paraoimensodeserto.Osolbrilhavasobre
eles.OntemmesmoelestinhamdeixadoDamasco—peloPortão
deBagdad.
"Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não
passesporaquicantado.
Escutaram
Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde ainda
assim,algochilreiacomoumpássaro?"
9
ACasadeShiraz
ERAM SEIS HORAS da manhã quando Parker Pyne deixou a
PérsiadepoisdeumaparadaemBagdad.
Oespaçoparaospassageirosnopequenoaviãoeralimitado,
e a largura dos assentos não podia acomodar com conforto o
corpanzildeParkerPyne.Comeleviajavamduasoutraspessoas
—umhomemcorpulentoecoradoqueParkerPynejulgaraserdo
tipo falador e umamulhermagra com lábios apertados e ar de
determinação.
Dequalquermodo, pensou Parker Pyne,nãome parece que
queirammeconsultarprofissionalmente.
Enãoqueriammesmo.Amulherzinhaeraumamissionária
norte-americana, sobrecarregada de trabalho e de felicidade e o
homem corado era empregado de uma companhia de petróleo.
Fizeram um resumo de suas vidas para o seu companheiro de
viagem,antesqueoaviãolevantassevôo.
— Sinto muito, mas sou um mero turista — disse Parker
Pynedesculpando-se.—EstouindoparaTeerã,IsfahaneShiraz.
Eapuramusicalidadedestesnomesoencantava tantoque
eleosrepetiu.Teerã.Isfahan.Shiraz.
Parker Pyne olhava para o campo embaixo deles. Era um
desertosemrelevos.Sentiuomistériodestasvastasedesabitadas
regiões.
EmKermanshahoaparelhodesceuparaqueexaminassemos
passaportes e passassem pela alfândega. Uma das malas de
Parker Pyne foi aberta. Uma pequena caixa de papelão foi
examinada com excitação. Fizeram muitas perguntas. Como
Parker Pyne não falava nem compreendia o persa, o assunto
estavacomplicado.
Opilotodoaviãoseaproximou.Eraumrapazalemão,deboa
aparência, com olhos azuis profundos e um rosto queimado de
sol.—Precisadealgumacoisa?—perguntouelecomgentileza.
ParkerPyne,quesedesdobravanumapantomimarealistae
excelente, mas que, ao que parecia, não estava surtindo muito
êxito, virou-se aliviado para o outro.— É pó contra insetos—
disseele.—Seráquevocêpodeexplicarissoaeles?
Opilotooolhouintrigado—Porfavor?
ParkerPynerepetiuaexplicaçãoemalemão.Opilotofezuma
caretadecompreensãoetraduziuafraseparaopersa.Osgraves
etristonhosoficiaisficaramsatisfeitoscomaexplicação;osrostos
pesarosos relaxaram; sorriram. Um deles chegou até a rir.
Acharamcômicaaidéia.
Os três passageiros ocuparam seus lugares e o avião
continuou a viagem. Fizeramumadescida rápida emHamadan
paradeixaracorrespondência,masoaviãonemchegouaparar.
ParkerPynedeuumaespiadaparabaixo,tentandoversepodia
distinguirapedradeBehistun,oromânticolocaldeondeDario
descreveuaextensãodeseuimpérioedesuasconquistasemtrês
línguasdiferentes—babilônio,medoepersa.
Eraumahorada tardequando eles chegaramaTeerã.Não
houvemaisnenhumaformalidadedepolícia.Opilotoalemãose
adiantara e estava de pé ao lado de Parker Pyne, sorrindo
enquanto ele terminavade responder aum longo interrogatório
queabsolutamentenãotinhacompreendido.
—Oquefoiqueeudisse?—perguntoueleaoalemão.
— Que o primeiro nome de seu pai é Turista, que a sua
profissãoéCharles,queonomedesolteiradesuamãeéBagdad
equeosenhorestávindodeHarriet.
—Seráquefazdiferença?
—Nãotemamínimaimportância.Respondaqualquercoisa;
ésóissoqueelesquerem.
Parker Pyne estava desapontado com Teerã. Achou-a
lastimàvelmentemoderna.Disseistonanoiteseguintequandose
encontrouporacasocomHerrSchlagal,opiloto,quandoestava
entrando no hotel. Num impulso, ele convidou o rapaz para
jantareoalemãoaceitou.
O garçom georgiano se aproximou e anotou os pedidos. A
comida chegou.Quando estavamna altura da torta, uma coisa
meiopegajosa,feitadechocolate,oalemãofalou:
—EntãoosenhorvaiparaShiraz?
—É,voudeavião.DepoisvoltoporIsfahan,vindoparaTeerã
pelaestrada.ÉvocêquevaipilotaroaviãoamanhãparaShiraz?
—Ach,não.VoltoparaBagdad.
—Vocêjáestáaquihámuitotempo?
— Três anos. Nosso serviço foi estabelecido há três anos.
Nuncativemosumacidente—unberufen!—bateunamesa.
Ocaféfoiservidoemxícarasmuitogrossas.Osdoishomens
fumavam.
—Meusprimeirospassageirosforamduassenhoras—disse
oalemão,relembrando.—Duassenhorasinglesas.
—Foi?—disseParkerPyne.
—Umadelaseraumamoçamuitobemnascida,filhadeum
ministro... como eramesmo o nome?. .. Lady Esther Carr. Era
linda,muitolinda,maslouca.
—Louca?
— Completamente louca. Ainda mora lá em Shiraz, numa
enormecasadalocalidade.Sóusaroupasorientais.Nuncarecebe
oseuropeus.Vejaseévidaparaumasenhoragrã-finaviver?
—Háoutras—disseParkerPyne.—HaviaumaLadyHester
Stanhope...
—Essa é louca— cortou o outro bruscamente.— A gente
percebenosolhos.Eramcomoosolhosdocomandantedomeu
submarino,naguerra.Agoraeleestánumhospício.
ParkerPyne ficoupensativo.Ele se lembravamuitobemde
LordMicheldever,opaideLadyEstherCarr.
Trabalhara sob suas ordens quando ele era Secretário do
Interior. Um homem enorme, louro, com risonhos olhos azuis.
ViraLadyMicheldeverumavez—umafamosabeldadeirlandesa
de cabelos negros e olhos azul-violeta. •Eram ambos elegantes,
pessoas normais, mas apesar de tudosabia-se que havia uma
loucuranafamília.Apareciadevezemquando,semprepulando
umageração.Eramuitoestranho,pensouele,queHerrSchlagal
destacasseofato...
—Eaoutrasenhora?—perguntouvagamente.
—Aoutrasenhora...morreu.
SuavozdealgumaformachamouaatençãodeParkerPyne,
queoolhouvivamente.
—Tenhocoração—disseHerrSchlagal.—Sintoascoisas.
Para mim ela era muito, muito linda, a outra moça. O senhor
sabecomoé,essascoisasacontecemcomagentesemquerer,de
repente.Elaeraumaflor...umaflor—suspirouprofundamente.
— Fui vê-las uma vez — na casa de Shiraz. Lady Esther me
convidou.Minhapequenaflor,minhaflor...elaestavacommedo
dealgumacoisa;eupercebi.QuandovolteideBagdad,soubeque
elatinhamorrido.Morta!
Fezumapausaeacrescentoupensativo—Épossível quea
outraatenhaassassinado.Elaestavalouca,possolhegarantir.
SuspirououtravezeParkerPynepediudoisBenedictines.
—Ocuraçau émuitobom—disse o garçomdaGeórgia, e
trouxe-lhesdoiscuraçaus.
Logodepoisdomeio-diadodiaseguinte,ParkerPynetevea
sua primeira visão de Shiraz. Tinham voado sobre cadeias de
montanhas, entremeadas de vales estreitos e desolados, todos
áridos, ermos, estéreis. De repente, surgiu Shiraz — uma jóia
verde-esmeraldanocoraçãododeserto.
Parker Pyne gostou mais de Shiraz do que de Teerã. As
características primitivas do hotel não o apavoraram, nem
tampoucooaspectoigualmenteprimitivodasruas.
Estavanomeio deuma festa persa.OFestival deNanRuz
tinhacomeçadonanoiteanterior—operíododequinzediasem
queospersascelebramoseuAnoNovo.Passeouentreosbazares
desertosevagoupelasgrandesextensõesabertasdoladonorteda
cidade.Shirazinteiraestavaentregueàscelebrações.
Umdiaelefoiatéoladodeforadacidade.Estiveranotúmulo
deHafiz,opoeta,eaovoltardeláficoufascinadoporumacasa.
Eraumacasatodarecobertadeazulejosazuis,rosaseamarelos,
engastada nomeio de um jardimmuito verde, cheio de fontes,
rosaselaranjeiras.Pareciaumacasadesonho.
Naquelanoite, jantandocomoCônsul inglês,perguntoude
quemeraacasa.
— Fascinante, não é? Foi construída por um antigo e rico
GovernadordoLuristãoqueseaproveitoumuitodesuaposição
social. Hoje é de uma inglesa. Você deve ter ouvido falar dela.
Lady Esther Carr. Doida varrida. Vive completamente à nativa.
NãoquersaberdeninguémnemdenadaligadoàInglaterra.
—Éjovem?
— Ainda é moça demais para bancar a louca desta forma.
Deveterunstrintaanos.
—Tinhaumaoutrainglesacomela,nãoé?Umamulherque
morreu?
—É,foiháunstrêsanos.Elamorreunodiaseguinteaoda
minhaposseaqui,imagine.Barham,meuantecessor,morreude
repente,lembra-se?
—Comofoiqueelamorreu?—perguntouParkerPynesem
prestaratenção.
—Caiudaquelavarandaoudobalcãodoprimeiroandar.Era
empregada ou dama de companhia de Lady Esther, não me
lembrobem.Dequalquermaneira, estava levandoabandejado
café damanhã e tropeçou no beiral.Muito triste, não se podia
fazernada;quebrouacabeçanaspedrasláembaixo.
—Comoeraonomedela?
—King,acho;oueraWills?Não,Willséamissionária.Era
umamoçamuitobonita.
—LadyEstherficoucontrariada?
—Ficou...não,nãosei.Elaémuitoexcêntrica;
nuncaentendiseussentimentos.Elaémuito...bem,éuma
criaturamuito altiva. Vê-se que é alguém importante, acho que
você entende o quequerodizer.Elameassustaumpouco com
suasmaneirasmandonaseseusolhosescurosefaiscantes.
Riucomosesedesculpasse.Olhoucomcuriosidadeparaseu
companheiro.AparentementeParkerPyneestavaolhandoparao
espaçovazio.Ofósforoqueriscavaparaacenderocigarroestava
se consumindo, esquecido em sua mão. Foi queimando, até à
pontadosdedos,eeleolargoucomumaexclamaçãodedor.Foi
entãoquepercebeuaexpressãointrigadadoCônsulesorriu.
—Perdão—disse.
—Estavadistraído,nãoestava?
— Distraído até demais — disse Parker Pyne
enigmaticamente.
Falaramdeoutros,assuntos.
Naquela noite, à luz de uma pequena lamparina a óleo,
Parker Pyne escreveu uma carta. Hesitou muito sobre a sua
fórmula.Finalmenteelafoifeitademodomuitosimples:
O Sr.Parker Pyne apresenta seus cumprimentos a Lady
EstherCarr e lembra-lhe que estáhospedadonoHotel Farsnos
próximostrêsdias,casoelaqueiraconsultá-lo.
Colocouanexoumrecorte—ofamosoanúncio:
"Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne. Rua
Richmond,17."
— Isto deve ser suficiente—disse Parker Pyne ao se deitar
meiosemjeito,emsuacamadesconfortável.—Deixever,quase
trêsanos;é,achoqueissobasta.
No dia seguinte, por volta das quatro horas da tarde, a
respostachegou.Foi trazidaporumcriadopersaquenãosabia
falaringlês.
Lady Esther Carr ficará satisfeita se o Sr. Parker Pyne for
visitá-laàsnovehorasdanoitedehoje.
ParkerPynesorriu.
Foi o mesmo criado que o recebeu naquela noite. Foi
conduzidoatravésdeumescuro jardimatéumaescadaexterna
quelevavaàpartedetrásdacasa.Delá,passouporumaporta
quedavaparaopátiocentral,umaespéciedebalcãotodoaberto
para o céu. Um enorme diva estava colocado junto à parede, e
sobreelesereclinavaumafiguraimpressionante.
Lady Esther estava vestida com roupas orientais e podia-se
imaginarqueumadasrazõesparaasuapreferênciaeraqueelas
destacavam aindamais o seu tipo suntuoso de beleza oriental.
Altiva,disseraoCônsulaseurespeito,eeramesmoaltivaqueela
parecia.Tinhaoqueixoerguidoeassobrancelhasarrogantes.
—ÉoSr.ParkerPyne?Sente-seali.
Suamãoapontouparaumamontoadodealmofadas.Emseu
terceiro dedo faiscava uma enorme esmeralda esculpida com o
brasão de sua família. Devia ser parte da herança e valer uma
pequenafortuna,pensouParkerPyne.
Ele se abaixou obedientemente, se bem que comuma certa
dificuldade.Paraumhomemdeseuporte,nãoerafácilsentar-se
commuitadestrezanochão.
Apareceuumacriada como café. ParkerPyne recebeuuma
xícaraesaboreouolíquidoescuro.
Sua anfitrioa adquirira o hábito oriental da calma infinita.
Ela não se apressava em sua conversa. Também tomava o café
comosolhossemicerrados.Finalmentefalou:
—Entãoosenhorajudaaspessoasinfelizes—disse.—Pelo
menoséoquesustentaoseuanúncio.
—É.
— Por que o mandou para mim? É seu hábito... fazer
negóciosemsuasviagens?
Haviaqualquercoisadedecididamenteofensivoemsuavoz,
masParkerPyneignorou.Respondeusimplesmente.—Não.Para
mimasviagenssignificamfériascompletasdosmeusnegócios.
—Porqueentãoomandou?
— Porque tenho razões para acreditar que a senhora ... é
infeliz.
Houve um momento de silêncio. Ele estava muito curioso.
Como é que ela aceitaria isso? Ela ficou umminuto pensando
sobreisso.Depoissorriu.
—Suponho que o senhor pensou que qualquer pessoa que
abandona este mundo, que vive como eu vivo, completamente
afastadadaminharaça,domeupaís,deveserumapessoamuito
infeliz! Tristezas, frustrações ... pensa que foi uma coisa desse
tipo que me obrigou a este exílio? Ora, como posso fazê-lo
compreender? Lá... na Inglaterra... eu era como um peixe fora
dágua.Aquisoueumesma.Souumaorientaldecoração.Adoroa
minhareclusão.Duvidoqueosenhorpossaentenderisso.Parao
senhor,devoparecer—hesitou—umalouca.
—Asenhoranãoélouca—disseParkerPyne.Haviaumtom
afirmativonasuavoz,umagrandesegurança.Elaoolhoucom
curiosidade.
— Mas é o que todos dizem que sou, suponho. Tolos! É
preciso gente de todos os tipos para se formar o mundo. Sou
absolutamentefeliz!
—E,noentanto,asenhoramechamou—disseParkerPyne.
—Devoadmitirquefiqueicuriosaparaconhecê-lo—hesitou.
— Além disso, não quero nunca mais voltar para lá... para a
Inglaterra...masdequalquerforma,àsvezesgostodesaberoque
estásepassandoporlá...
—Nomundoqueabandonou?
Elaconcordoucomafrasebalançandoacabeça.
Parker Pyne começou a falar. Sua voz era suave e
reconfortanteeselevantavadevezemquando,quandoenfatizava
umououtropontoimportante.
Falou de Londres, dos mexericos sociais, de homens e
mulheres famosos, dos novos restaurantes e dos novos clubes
noturnos,das corridasde cavalos edos campeonatosde tiroao
alvoedosescândalosquesepassavamnascasasdecampo.Falou
deroupas,damodadeParis,daslojinhasemruasestreitasonde
se conseguiam pechinchas incríveis. Descreveu os teatros e os
cinemas,faloudosnovosfilmes,descreveuosedifíciosdosnovos
jardinssuburbanos,faloudebulbos,deplantasedejardinagem
e terminou com uma descrição da noite de Londres, com os
ônibuseaquelamultidãoapressadavoltandoparacasadepoisde
umdia de trabalho, e de suas casinhas que os esperavam e de
todaaestranhaeíntimaformadavidafamiliaringlesa.
Foi uma cena extraordinária, uma demonstração vasta e
insólita de conhecimentos e uma clara exposição dos
acontecimentos. A cabeça de Lady Esther estava curvada, a
arrogância de sua pose tinha desaparecido. Algumas vezes, as
lágrimasquasecaíam,eagoraqueeleterminara,elapôsdelado
todaasuapretensãoesoluçouabertamente.
ParkerPynenãodissenada.Ficoualisentado,observando-a.
Seurosto tinhaaquelaexpressãocalmaesatisfeitadequem fez
umaexperiênciaeconseguiuoresultadodesejado.
Finalmenteela levantouacabeça.—Muitobem—disse,—
estácontente?
—Agorasim...achoqueestou.
— Como é que eu podia suportar; como é que eu podia
suportarisso?Nuncamaisviverlá;nuncamaisver...ninguém!—
o choro veio violentamente. Ela se recompôs, enrubescendo.—
Muito bem? — perguntou impetuosamente. — Não vai fazer o
comentárioóbvio?Nãovaidizeragora:"Setemtantavontadede
voltar,porquenãovolta?"
—Não—oSr.ParkerPynebalançouacabeça.-Nãoéassim
tãofácilparaasenhora.
Pelaprimeiravezumarmedrosoapareceuemseusolhos—
Osenhorsabeporquenãopossovoltar?
—Achoquesim.
— Está enganado — ela balançou a cabeça. — Não posso
voltarporummotivoqueosenhornuncaadivinharia.
— Não adivinho — disse Parker Pyne. — Observo... e
classifico.
Outra vez ela balançou a cabeça— O senhor não sabe de
nada,denada.
— Pelo que vejo tenho de convencê-la— disse Parker Pyne
com um ar simpático.— Quando veio para cá, Lady Esther, a
senhoraveiodeavião,suponho,pelanovalinhadeBagdad.
—Foi?
—Foitrazidaporumjovempiloto,HerrSchlagal,quetempos
depoisveiovisitá-la.
—Foi.
Umfoidiferente-umfoimaissuave.
— E a senhora tinha uma amiga, ou uma acompanhante,
que...morreu—avozagoraeradeaço—fria,ofensiva.
—Minhaacompanhante.
—Onomedelaera...?
—MurielKing.
—Asenhoragostavadela?
—O que quer dizer com "gostava dela"?— fez uma pausa,
controlando-se.—Elaeraútilparamim.
Disse isso desdenhosamente, e Parker Pyne se lembrou do
que tinhadito oCônsul: "Vê-se que ela é importante, acho que
vocêentendeoquequerodizer".
—Ficoutristequandoelamorreu?
— Eu... naturalmente! Realmente, Sr. Pyne, é preciso
relembrartudoisso?—falounumtomzangadoecontinuousem
esperar resposta: — Foi muito gentil o senhor ter vindo. Mas
estouumpoucocansada.Semedisserquantolhedevo...?
Mas Parker Pyne não fez o menor movimento. Continuou
calmamentecomsuasperguntas,—Desdequeelamorreu,Herr
Schlagalnãovoltou.Suponhamosqueeleviesseaqui...asenhora
oreceberia?
—Claroquenão.
—Recusa-seterminantemente?
—Terminantemente.HerrSchlagalnãoseráadmitidoaqui.
— Sim — disse Parker Pyne pensativo. — A senhora não
podiapensardeoutraforma.
Aarmaduradedefesadesuaarrogânciadiminuiuumpouco.
Disse,meioincerta:—Eu...nãoseiaondeosenhorquerchegar.
—Asenhorasabia,LadyEsther,queojovemSchlagalestava
apaixonadoporMurielKing?Eleéumrapazsentimental.Ainda
hojeprezamuitoasuamemória.
—Serámesmo?—suavozeraquaseummurmúrio.
—Comoeraela?
—Oquequerdizercomisso...comoeraela?Comoeupodia
saber?
—Asenhoradeveterolhadoparaelaalgumasvezes—disse
ParkerPynecalmamente.
—Ah,éisso.Eraumamoçamuitobonita.
—Maisoumenosdasuaidade?
— É — fez uma pausa e falou em seguida. — Por que o
senhorachaqueeste...queesteSchlagalgostavadela?
— Porque ele me disse. Sim, da maneira mais inequívoca.
Comojálhefalei,eleéumrapazsentimental.Ficousatisfeitode
poder confiar emmim. Ficoumuito triste ao saber damaneira
comoamoçamorreu.
LadyEsther ficoudepédeumpulo—Osenhorpensaque
euaassassinei?
ParkerPynenãoficoudepédeumpulo.Elenãoerahomem
parafazeressascoisas.—Não,minhacaracriança—disseele.—
Nãopensoquevocêaassassinou,eporissoaconselho-aaparar
com esta representação o mais depressa possível, e voltar logo
paracasa.Quantomaiscedo,melhorparavocê.
—Oquequerdizercomesta...representação?
—Averdadeéquevocêperdeuocontroledeseusnervos.É,
perdeumesmo.Perdeucompletamenteocontrole. ..Pensouque
iaseracusadadeassassinarasuapatroa.
Amoçafezummovimentorápido.
ParkerPynecontinuou:—VocênãoéLadyEstherCarr.Eu
sabia disso antes de vir aqui,mas testei-a para ter certeza...—
seusorrisoapareceu,suaveebondoso.—Quandorepresenteia
minha peça ainda agora, eu a estava observando. Você reagia
semprecomo Muriel King, e não como Esther Carr. As lojas
barateiras,osnovosjardinssuburbanos,oscinemas,aspessoas
quevoltavamparacasadeônibusedetrem—vocêreagiuatudo
isso. Escândalos no campo, os novos clubes noturnos, os
falatóriosdeMayfair,ascorridasdecavalos—nadadissodisse
qualquercoisaparavocê.
Sua voz se tornou cada vez mais persuasiva e paternal —
Sente-se e conte tudo o que aconteceu. Você não matou Lady
Esther,maspensouquepodiaseracusadadisso.Contecomofoi
queaconteceu.
Ela tomou fôlego; deixou-se cair pesadamente sobre o diva
maisumavezecomeçouafalar.Aspalavraschegavamdepressa,
porvezesnumatropelo.
—Deveriacomeçar...pelocomeço!...eu...eutinhamedodela.
Elaeralouca...nãoeradoidavarrida...sóumpouquinholouca.
Ela me trouxe para cá. Como uma tola, eu estava encantada;
acheiqueeratãoromântico.Pobretolinha!Era istoqueeuera,
uma pobre tola! Houve um caso com um motorista. Ela era
ninfomaníaca... absolutamente ninfomaníaca. Ele não queria
nadacomelaeelapercebeu;osamigosdelaficaramsabendoeela
foimotivoderisoparaeles.Rompeucomafamíliaeveioparacá.
— Era apenas uma atitude para livrá-la da vergonha ... a
solidãododeserto...etodasessascoisas.Elaiaficaralgumtempo
aquiedepoisvoltaria.Masfoificandocadavezmaisesquisita.E
entãoapareceuopiloto.Ela...elaseapaixonouporele.Eleveio
aquiparamevereelapensou...Bom,osenhorentende?Masele
deveterfaladoclaramentecomela.
— E aí, de repente, ela se virou contra mim. Foi horrível,
assustadora.Dissequenuncamaiseuvoltariaparacasa.Disse
queeuestavaemseupoder.Queeunãopassavadeumaescrava!
Queelatinhapoderdevidaedemortesobremim.
Parker Pyne concordava com a cabeça. Acompanhou o
desenvolvimento da situação. Lady Esther se aproximando do
limite da loucura, como já acontecera com outros membros da
família, eaquelamoçaassustada, ignorante, equenunca tinha
viajado,acreditandoemtudoqueeladizia.
—Masumdiaaconteceuumacoisaquemefezvoltaràrazão.
Enfrentei-a.Dissequeseessediachegasseeueramais fortedo
queela.Dissequeeua jogariasobreaspedras lá embaixo.Ela
ficouassustada,muitoassustadamesmo.Achoqueelapensava
queeueraumvermedesprezível.Deiumpassoemsuadireção.
Nãoseioquefoiqueelapensouqueeuiafazer.Elarecuou;ela...
ela tropeçou no beirai! — Muriel King cobriu o rosto com as
mãos.
—Edepois?—ParkerPyneincitou-aacontinuar.
—Perdiacabeça.Penseique iamdizerqueeuaempurrara
doterraço.Seiqueninguémmeiaouvir.Penseiqueiammeatirar
numaprisãohorrorosadaqui—seulábiostremiam.ParkerPyne
viuclaramenteoterrorirracionalqueapossuíra.—Foientãoque
meocorreua idéia... se eume fizessepassarpor ela!Sabiaque
haviaumnovoCônsulinglêsquenuncatinhavistonenhumade
nósduas.Umadelasmorrera...
Acheiquepoderiacontrolaroscriados.Paraeles,nóséramos
duasinglesasloucas.Quandoumamorreu,aoutratomouoseu
lugar. Dei-lhes bons presentes em dinheiro e mandei que eles
chamassem o Cônsul inglês. Quando ele chegou, eu o recebi
comoLadyEsther.Estavacomoaneldelanomeudedo.Elefoi
muitosimpáticoearranjoutudo.Ninguémteveamenorsuspeita.
ParkerPynebalançouacabeça,pensativo.Oprestígiodeum
nome famoso, Lady Esther Carr podia ser doida varrida, mas
aindaeraLadyEstherCarr.
—Edepois—continuouMuriel,—mearrependideterfeito
aquilo. Vi que também tinha ficado louca. Estava condenada a
ficar aqui representando o meu papel. Não via como podia
escapar.Seeuconfessasseaverdadeagora,iapareceraindamais
culpadadoqueseativessemesmoassassinado.Oh!Sr.Pyne,o
queéqueeupossofazer?Oqueéqueeupossofazeragora?
— Fazer? — Parker Pyne se pôs de pé com tanta rapidez
quanto permitia o seu corpo. — Minha cara criança, você vai
comigo até o Cônsul inglês, que é uma pessoamuito amável e
delicada. Haverá uma série de formalidades desagradáveis a
cumprir. Não lhe prometo que vá tudo se passar em brancas
nuvens,masvocênãovaiserenforcadaporassassinato.Porfalar
nisso,porquefoiqueabandejadocaféfoiencontradaaoladodo
corpo?
—Euajogueilá.Achei...acheiquepareceriamaisautêntico
sehouvesseumabandejaao ladodocorpo.Foi tolicedeminha
parte?
—Foiumtoquedegênio—disseParkerPyne.—Defato,foi
esse ponto que me fez pensar se você realmente não teria
assassinadomesmoLadyEsther...istoé,atéeuvê-la.Quandoa
vi,soubequevocêeracapazdequalquercoisanavida,menosde
mataralguém.
—Osenhorquerdizerqueeunãoteriacoragem?
— Seus reflexos não funcionariam — disse Parker Pyne
sorrindo.—Agora,vamosindo?Háumtrabalhodesagradávela
serfeito,maseucuidodetudo,edepois...vamosparacasaem
StreathamHill...éemStreathamHillquevocêmora,nãoé?É,eu
imaginavaqueera.Vi o seu rosto se contrairquando faleinum
determinadonúmerodeônibus.Vamos,minhacara?
MurielKingoseguiu—Elesnuncavãomeacreditar—disse
ela com nervosismo. — A família e os outros. Eles não vão
acreditarqueelaestavaagindodaquelamaneira.
—Pode deixar comigo—disse Parker Pyne.—Sei deuma
porçãodecoisassobreafamíliadela,sabe?Vamosmenina,não
continueabancaracovarde.Lembre-sedequeháumrapazem
Teerãsuspirandoporvocê.Vouarranjarparaquevocêvoltepara
Bagdadnoaviãodele.
A moça sorriu e corou — Estou pronta — disse com
simplicidade.Aosairemdireçãoàporta,virou-separaele:—O
senhordissequeantesdemever já sabiaqueeunãoeraLady
EstherCarr.Comopodiatercerteza?
—Estatísticas—disseParkerPyne.
—Estatísticas?
—É.Osdois,LordeLadyMicheldever,tinhamolhosazuis.
Quando o Cônsul falou que a filha deles tinha olhosescuros e
faiscantes, percebi que havia algo errado. Pessoas de olhos
castanhospodemterumacriançadeolhosazuis,masocontrário
éimpossível.Umfatocientifico,possolhegarantir.
—Osenhorémaravilhoso!—disseMurielKing.
10
UmaPérolaValiosa
O GRUPO DE TURISTAS teve um dia muito longo e cansativo.
TinhamsaídodemanhãcedodeAmman,comumatemperatura
de 37° à sombra e chegaram por fim, já ao escurecer, ao
acampamentosituadonocoraçãodagrotescaefantásticacidade
depedrasvermelhas—Petra.
Eramseteaotodo.OSr.CalebP.Blundell,umbemnutridoe
próspero magnata norte-americano. Seu secretário, um rapaz
moreno e bem apessoado, chamado Jim Hurst. Sir Donald
Marvel, M. P.1, um político inglês de aparência cansada. Dr.
Carver, um arqueólogo idoso conhecido mundialmente. Um
francêsgalante,CoronelDubosc.UmSr.ParkerPyne,quetalvez
nãodemonstrassecomtantaevidênciaqualeraasuaprofissão,
masqueexalavaumaatmosferabritânicadeseriedade.Eporfim,
aSra.CarolBlundell—linda,mimadaeextremamentesegurade
si,porseraúnicamulhernomeiodemeiadúziadehomens.
lMembrodoParlamento
Eles jantaram numa enorme tenda, depois de escolher as
tendasegrutasondeiriamdormir.FalaramdepolíticanoOriente
Próximo — o inglês, com cautela; o francês, com discrição; o
americano, de maneira insensata; o arqueólogo e o Sr. Parker
Pyne, de modo nenhum. Ambos pareciam preferir o papel de
ouvintes.IgualmenteofezJimHurst.
Falaramdepoisdacidadequeacabavamdevisitar.
—Éromânticademaisparaserdescritaempalavras—disse
Carol. — Só de pensar que aqueles... como era mesmo que se
chamavam?...nabateus,vivendoaquihátantosanos,quaseque
antesdoiníciodostempos!
—Nãoétantoassim—disseParkerPynesuavemente.—Não
émesmo,Dr.Carver?
— Ah, é só uma questão de uns insignificantes dois mil
anos...esemalfeitorespodemserconsideradosromânticos,nesse
casoachoqueosnabateussãotambém.Eleseramumbandode
salteadores abastados, eu diria, que obrigavam os viajantes a
usaremas rotasdeles, fazendo comque todasas outras fossem
inseguras. Petra era uma espécie de depósito de seus lucros
ilícitos.
—Osenhorachaqueeleseramsósalteadores?—perguntou
Carol.—Apenasladrõescomuns?
— Ladrões é uma palavra pouco romântica, Srta. Blundell.
Um ladrão sugere um larápio insignificante. Salteador sugere
algumacoisamaior.
—E o que diremos deummoderno financista?—arriscou
ParkerPynecomumpiscardeolhos.
—Estaéparavocê,papai!—disseCarol.
—Umhomemqueganhadinheirobeneficiaahumanidade—
sentenciouoSr.Blundell.
—Ahumanidade—murmurouParkerPyne—étãoingrata.
— O que é a honestidade? — perguntou o francês. — É
apenasumanuance,umaconvenção.Empaísesdiferentes, tem
significadosdiferentes.Umárabenão se envergonhade roubar.
Nãoseenvergonhadementir.Paraele,oquecontaédequemele
roubaeparaquemelemente..
—É...éesteopontodevistadeles—concordouCarver.
—OqueprovaasuperioridadedoOcidentesobreoOriente
—disseBlundell.—Quandoestaspobrescriaturasseeducarem.
SirDonaldentrouindolentementenaconversa—Aeducação
está toda errada, vocês sabem. Ensina às pessoas uma
quantidadedecoisasinúteis.Oqueeuquerodizeréquenãohá
nadaquealtereoquevocêé.
—Comoassim?
—Oqueeuquisdizeréque...umavezladrão,sempreladrão.
Duranteumminuto,fez-seumsilênciopesado.EntãoCarol
começou a falar fervorosamente sobre mosquitos e seu pai a
apoiou.
Sir Donald, um pouco intrigado, murmurou para seu
vizinho,ParkerPyne:—Parecequecometiumagafe,nãoacha?
—Écurioso—dissePyne.
Fossequalfosseoembaraçomomentâneocriado,umapessoa
nãosederacontadele.Oarqueólogosesentaracalado,osolhos
abstraídosesonhadores.Quandohouveumapausanaconversa,
elefalourepentinaebruscamente.
—Vocêssabem—disse—concordocomisso...pelomenos,
do ponto de vista oposto. Um homem é fundamentalmente
honesto...ouentãonãoé.Dissoninguémescapa.
— O senhor não acredita que uma tentação súbita, por
exemplo,possatransformarumhomemhonestonumcriminoso?
—Impossível!—disseCarver.
Parker Pyne balançou a cabeça devagar — Eu não diria
impossível. O senhor sabe, há tantos fatores que devem ser
levadosemconta.Agotadágua,porexemplo.
— O que é que o senhor chama de a "gota dágua"? —
perguntouojovemHurst,falandopelaprimeiravez.Suavozera
profunda,muitoagradável.
—Océrebroestáajustadoparaagüentarumacertacarga.O
que precipita uma crise, o que transforma um homem honesto
numhomemdesonesto...podeserumacoisainsignificante.Épor
issoquemuitoscrimessãoabsurdos.Acausa,novevezesemdez,
éaquela insignificânciadesobrecarga,apalhaquedescadeirao
lombodocamelo.
—Épurapsicologiaoqueosenhorestáusando,meuamigo
—disseofrancês.
—Seumcriminosofosseumpsicólogo,quegrandecriminoso
ele seria! — por seu tom de voz, via-se que Parker Pyne tinha
gostadodaidéia.—Quandopensamosqueemcadadezpessoas
queencontramos,pelomenosnovepoderiamserinduzidasaagir
da maneira que quisermos, apenas pela aplicação do estímulo
correto.
—Hum,expliqueisso!—disseCarol.
—Háoshomensarrogantes.Gritemaisaltodoqueeles...e
eles o obedecerão.Há os homens contraditórios. Intimide-os na
direção oposta à que você quer que eles sigam. Enfim, há os
impressionáveis,otipomaiscomumdetodos.Sãoaspessoasque
viram um automóvel porque ouviram uma buzina; quevêem o
carteiroporqueouviramumbarulhinhonacaixadocorreio;que
vêem uma faca num ferimento porque sedisse que alguém foi
apunhalado; ou queouviram uma pistola se alguém disser que
umhomemlevouumtiro.
—Achoqueninguémmeconvenceriadessascoisas—disse
Carolincrédula.
—Vocêéespertademaisparaisso,queridinha—disseopai.
—Éapuraverdadeoquedisse—falouofrancêsrefletindo.
—Aidéiapreconcebidaenganaosprópriossentidos.
Carol bocejou— Vou para aminha gruta. Estoumorta de
cansada. Abbas Effêndi disse que nós temos que sair cedo
amanhã.Ele vainos levar ao local dos sacrifícios... ou lá o que
seja.
—É onde sacrificavammoças jovens e bonitas— disse Sir
Donald.
—Tenhadó,esperoquenãomepeguem!Bem,boanoitepara
todos.Ah,deixeicairmeubrinco!
OCoronelDuboscoapanhoueentregouaela.
—Sãoverdadeiros?—perguntouSirDonaldderepente.Ele
olhava de um jeito descortês para as duas enormes pérolas
solitáriasemsuasorelhas.
—Sãoverdadeiros,sim—disseCarol.
—Custaram-meoitentamildólares—disseopaidela com
prazer.—Eelaosaparafusatãopoucoqueelesvivemcaindoe
rolandopelasmesas.Quermearruinar,menina?
—Ora,papai,osenhornão ficariaarruinadose tivesseque
compraroutropar—disseCarolcommeiguice.
—Achoquenão—concordouopai.—Poderialhecomprar
trêsparesdebrincoseissonãofariadiferençanomeusaldono
banco—deuumaolhadaorgulhosaàsuavolta.
—Queótimoparaosenhor!—exclamouSirDonald.
—Bom, cavalheiros, acho que vou dormir também—disse
Blundell.—Boanoite.
OjovemHurstoseguiu.
Os outros quatro sorriram uns para os outros, como se
tivessemtidoomesmopensamento.
—Bem—faloudevagar,Sr.Donald—ébomsaberqueele
não sentiria falta desse dinheiro. Egoísta orgulhoso! —
acrescentoucomrancor.
—Estesamericanostêmdinheirodemais!—disseDubosc.
—Édifícil—disseParkerPynetranqüilo—queumhomem
ricosejaapreciadopelospobres.
Duboscriu—Invejaemalícia?—sugeriu.—Osenhortem
razão Monsieur. Todos nós queremos ser ricos, para comprar
brincos de pérolas quantas vezes quisermos. Exceto Monsieur,
talvez.
ElefezumareverênciaparaoDr.Carver,que,comosempre
acontecia, estava outra vez distraído. Estava revirando um
pequenoobjetonasmãos.
— Hein?— saiu de sua abstração. — Não, não ambiciono
pérolas grandes.Mas o dinheiro, o dinheiro é sempre útil— o
tomcomodisseistocolocavaodinheiroemseudevidolugar.—
Mas, olhem isso aqui— disse ele.— Aqui está uma coisa cem
vezesmaisinteressantedoqueaspérolas.
—Oqueéisso?
—Éumcarimbocilíndricodehematitanegra,comumacena
gravada: um deus apresentando um suplicante a um deus
entronizado e mais importante. O suplicante está carregando
umacriançacomooferendaeoaugustodeusqueestánotrono
temumlacaioqueabanaumafolhadepalmeiraparaespantaras
moscas.A inscriçãoestámuitonítida,edizqueohomeméum
servodeHammurabi, logo issodeve tersido feitoháquatromil
anos.
Apanhou um pedacinho de massa plástica no bolso,
amassou-asobreamesa,passouumpouquinhodevaselinapor
cima e apertou o carimbo sobre ela, rolando de um lado para
outro.Depois,comumcanivete,destacouumquadradodemassa
elevantou-adelicadamentedamesa.
—Estãovendo?
A cena que ele descrevera estava impressa para eles em
plasticina,nítidaebemdefinida.
Porummomento o encantamentodopassadodesceu sobre
todos eles.Então, lá de fora, a voz doSr.Blundell se fez ouvir
desafinada.
— Ei, camaradas! Vou levarminha bagagem dessamaldita
gruta para uma tenda! Os maruins estão mordendo pra valer,
Aindanãoconseguipregaroolho!
—Maruins?—perguntouSirDonald.
— Provavelmente são mosquinhas de areia — disse o Dr.
Carver.
Gostomaisdemaruins—disseParkerPyne.—Éumnome
bemmaissugestivo.
O grupo partiu bem cedo na manhã seguinte, depois de
váriasexclamaçõessobreacoreo formatodaspedras.Acidade
"cor-de-rosa" era na verdade uma extravagância inventada pela
natureza numde seus diasmais pródigos e coloridos.O grupo
andavadevagar,jáqueoDr.Carvercaminhavacomosolhospara
o chão, curvando-se ocasionalmente para apanhar pequenos
objetos.
— Você conhece logo um arqueólogo — disse o Coronel
Dubosc, sorrindo. — Ele nunca olha para o céu, para as
montanhas, nem para as belezas da natureza. Anda sempre de
cabeçabaixa,àprocura...
—Sim,masàprocuradequê?—disseCarol.—Oqueéque
osenhorestácatando,Dr.Carver?
Comumligeirosorriso,oarqueólogomostrou-lheumparde
fragmentosdecerâmicabarrenta.
—Issonãovalenada!—exclamouCarolcomdesdém.
—Cerâmica émais interessantedoqueouro—disseoDr.
Carver.Carololhou-oincrédula.
Chegaramaumacurvafechadaepassarampordoisoutrês
túmuloscavadosnasrochas.Asubidatornou-semaispenosa.Os
guardasbeduínos iamna frente,oscilando indiferentesentreas
encostasabruptas, semnemolharparabaixo,paraoprecipício
queficavadeumdosladosdocaminho.
Carol ficoumuitopálida.Umdos guardas inclinou-se e lhe
deu a mão. Hurst deu um pulo para a frente e estendeu seu
bastãocomosefosseumcorrimãodooutroladodoprecipício.Ela
agradeceucomumolhar, eumminutodepois já estavaa salvo
num passe mais largo das pedras. Os outros continuaram
lentamente. O sol agora estava alto, e já se começava a sentir
calor.
Finalmentechegaramaumplatôlargo,quasenotopo.Uma
subida fácil conduzia ao cimo, um grande bloco quadrado de
rocha. Blundell disse ao guia que o grupo subiria sozinho. Os
beduínos se colocaram confortavelmente contra as pedras e
começaram a fumar. Mais alguns minutos e todos estavam no
altodapedra.Eraumlocalcurioso,completamenteescalvado.A
vistaeramaravilhosa,abarcandoovaleportodosos lados.Eles
estavamdepésobreumassoalhoretangulardepedra,comuma
pequena depressão rochosa em volta e uma espécie de altar de
sacrifíciosnocentro.
— Um lugar divino para sacrifícios — disse Carol com
entusiasmo. — Mas, puxa! Eles deviam ter um trabalhão para
trazerasvítimascáparacima!
—Haviaoriginalmenteumaespéciedeestradadepedrasem
ziguezague — explicou o Dr. Carver. — Vocês poderão ver os
vestígiosdooutrolado,porondevamosdescer.
Passaram algum tempo comentando e conversando.
EscutaramentãoumligeirotinidoeoDr.Carverdisse:—Acho
quedeixoucairseubrincooutravez,Srta.Blundell.
Carollevouamãoàorelha—Ah,deixeimesmo!
DubosceHurstsepuseramaprocurar.
— Deve estar por aqui — disse o francês. — Não pode ter
roladopralonge,porquenãoháporonderolar.Olugarécomo
umacaixaquadrada.
— Não pode ter caído dentro de uma fenda?— perguntou
Carol.
— Não há fenda nenhuma — disse Parker Pyne. — Você
mesma pode ver. O local é absolutamente liso. Achou alguma
coisa,Coronel?
—Sóumpedregulho—disseDuboscsorrindoeatirando-o
longe.
Poucoapouco,umestadodeespíritodiferente—umestado
detensão—foitomandocontadaspessoas.Ninguémfalounada,
mas as palavras "oitenta mil dólares" estavam presentes na
consciênciadetodos.
— Você tem certeza de que estava com ele, Carol? —
perguntoucomrispidezseupai.—Istoé,vocênãoterádeixado
cairnasubida?
—Eu estava com ele até a hora emquenós pusemos o pé
aquinaplataforma—disseCarol.—Eusei,porqueoDr.Carver
reparou que ele estava frouxo e o apertou para mim. Não foi,
Doutor?
ODr.Carverconfirmou.FoiSirDonaldquemfezaproposta
queestavanacabeçadetodomundo.
—Éumassuntomuitodesagradável,Sr.Blundell
—disseele.—Osenhorestavanosfalandoanoitepassada
sobre o valordessesbrincos.Sóumdeles já valeumapequena
fortuna.Seessebrinconãoforencontrado
—eaoqueparece,nãoserá—cadaumdenósvaificarsob
suspeita.
—Edeminhaparte,insistoemserrevistado—adiantou-seo
Coronel Dubosc. — Não estou pedindo, exijo isso como um
direito.
— Podemme revistar também— disse Hurst. Sua voz era
áspera.
—Oqueachamvocês?—perguntouSirDonald,olhandoem
torno.
—Certamente—disseParkerPyne.
—Umaexcelenteidéia—disseoDr.Carver.
— Faço questão de ser revistado também — disse o Sr.
Blundell.—Tenhominhas razões, cavalheiros, sebemquenão
possadeclará-las.
—Comoqueira—disseSirDonald,cortesmente.
— Carol, minha querida, quer descer e esperar lá com os
guias?
Semdizer uma palavra amoça os deixou. Seu rosto estava
tensoesombrio.Haviaumardedesesperonoolharquechamou
aatençãodepelomenosumdosmembrosdácomitiva,quesepôs
aimaginaroquesignificariaaqueleolhar.
A busca prosseguiu. Foi drástica e completa — e
completamenteinútil.Umacoisaeracerta.Ninguémestavacomo
brinco.Foiumpequenogrupoabatidoqueempreendeuadescida
equeescutouindiferenteasdescriçõeseinformaçõesdoguia.
Parker Pyne acabara de se vestir para o almoço quando
apareceuumapessoaàportadesuatenda.
—Possoentrar,Sr.Pyne?
—Éclaro,minhacarajovem,éclaro.
Carolentrouesentou-seàbeiradacama:Seurostotinhao
mesmoarsombrioqueelejánotaranamanhãdaqueledia.
— O senhor diz que soluciona os problemas das pessoas
infelizes,nãoé?—perguntouela.
— Estou de férias, Srta. Blundell. Não estou aceitando
nenhumcaso.
— Bem, o senhor vai ter que aceitar este — disse a moça
calmamente.—Olheaqui,Sr.Pyne,eusoumais infelizdoque
qualqueroutrapessoanestemundo!
—Oqueéqueaperturba?—perguntouele.—Éocasodo
brinco?
— Exatamente. O senhor disse tudo. Jim Hurst não o
roubou,Sr.Pyne.Euseiquenãofoiele.
— Não estou entendendo bem, Srta. Blundell. Por que
alguémhaveriadepensarquefoiele?
—Porcausadoseupassado.JimHurstjároubouumavez.
Elefoiapanhadolánanossacasa.Eu...eufiqueicompenadele.
Pareciatãomoçoedesesperado...
Etãobonito,pensouParkerPyne.
— Convenci papai a lhe dar uma chance de se endireitar.
Meupaifaztudooquequero.Bem,eledeuumaoportunidadea
Jim e Jim correspondeu. Papai passou a confiar nele e a lhe
contartodosossegredosdeseusnegócios.Enofinal,elelevoua
melhor,outerialevado,seissonãotivesseacontecido.
—Porquevocêdiz"levouamelhor"...?
—QuisdizerqueeuqueromecasarcomJimeelequerse
casarcomigo.
—ESirDonald?
— Sir Donald é idéia domeu pai. Não éminha. O senhor
achaqueeu iaquerercasarcomumpeixeempalhadocomoSir
Donald?
Semexpressarseuspontosdevistaaestadescriçãodojovem
inglês,ParkerPyneperguntou:—EoqueéqueSirDonaldacha
dissotudo?
— Não nego que ele acharia bom para as suas terras
arruinadas—disseCarolcomdesprezo.
ParkerPyne consideroua situação.—Gostariade lhe fazer
duas perguntas — disse ele. — A noite passada fizeram uma
observação:"Umavezladrão,sempreladrão".
Amoçafezquesimcomacabeça.
—Agoraperceboarazãodoconstrangimentoqueaquilolhe
causou.
— É, foi muito desagradável para Jim... para mim e para
papai também. Fiquei com medo de que o rosto de Jim
demonstrassealgumacoisaeentãomudeideassuntoe faleina
primeiracoisaquemeveioàcabeça.
ParkerPyneconcordou.Perguntouentão—Porqueseupai
insistiuemserrevistadohojedemanhã?
—Nãoentendeu?Euvi logo.Papai tinhanacabeçaqueeu
poderiapensarquetudoaquiloeraumamaquinaçãocontraJim.
Comoosenhorpodeperceber,eleestádoidoparaqueeumecase
comoinglês.Bem,elequeriamemostrarquenãoestavafazendo
nenhumasujeiracomJim.
— Meu Deus! — disse Parker Pyne. — Isso é muito
esclarecedor,masnumsentidogeral,querodizer.Nãoajudaem
nadaonossoinquéritoparticular.
—Eunãovouentregarospontos!
—Não,não—eleficouemsilêncioporummomentoedepois
perguntou:—Oquequerexatamentequeeufaça,Srta.Carol?
—ProvarquenãofoiJimquempegouaquelapérola.
—Esuponhamos...meperdoeafranqueza...quetenhasido
elemesmo?
—Seosenhorachaquefoiele,estáenganado,redondamente
enganado.
—Sim,masa senhoritapensoumesmonocaso?Nãoacha
que a pérola possa ter tentado subitamente oSr.Hurst?A sua
vendaresultarianumagrandesomadedinheiro...umabasepara
futurasespeculações,digamos?...queotornariamindependente,
parapodercasar-se,mesmosemoconsentimentodeseupai.
—Jimnão faria isso—disseamoça ingenuamente.Dessa
vezParkerPyneaceitouoseujulgamento—
Bem,voufazeroqueforpossível.
Ela fez que sim com a cabeça, impetuosamente, e saiu da
tenda. Parker Pyne sentou-se por sua vez à beira da cama.
Entregou-se a seus pensamentos. De repente, riu por entre os
dentes.
—Estouficandocomoraciocíniomuitolento—disseemvoz
alta.
Duranteoalmoçoestavamuitoalegre.Atardecorreucalma.
Amaiorpartedaspessoasdormiu.
Quando Parker Pyne entrou na tenda grande, às quatro e
quinze da tarde, só o Dr. Carver estava lá, examinando alguns
fragmentosdecerâmica.
—Ah!—disseParkerPyne,puxandoumacadeiraparaperto
da fesa. — Era o senhor mesmo que eu queria ver. Pode me
mostrar aquele pedaço de plasticina que está sempre com o
senhor?
Oarqueólogoapalpouobolso,pegouobastãodeplasticinae
oentregouaPyne.
—Não—disseParkerPyne,afastando-ocomamão,—nãoé
estequeeuquero.Queroaquelepedacinhodeontemànoite.Para
serfranco,nãoéaplasticinaquequero,esimoqueestádentro
dela.
Houveumapausa,eoDr.Carverdissedevagar—Achoque
nãooestouentendendo.
—Achoqueestásim—disseParkerPyne.—Queroobrinco
depéroladaSrta.Blundell.
Houve um silênciomortal que durou umminuto. Então, o
Dr.Carverenfiouamãonobolsoetirouumpedaço informede
plasticina.
— Muito hábil de sua parte — disse. Seu rosto estava
inexpressivo.
—Gostariaquemecontassetudo—disseParkerPyne.Seus
dedosestavamocupados.Comumresmungo,extraiuumbrinco
de pérola um pouco besuntado.—Sei, é só por curiosidade—
disseelesedesculpando,—maseugostariadeouvircomofoi.
— Eu lhe conto— disse Carver, — se o senhor me disser
comofoiquedescobriuquetinhasidoeu.Osenhornãoviunada,
viu?
ParkerPynebalançouacabeça—Eusópensei—disse.
—Foirealmenteacidentaloinício—disseCarver.
— Eu estava atrás de todo mundo hoje de manhã, e o
encontrei caído no chão, na minha frente; deve ter caído da
orelha da moça um pouco antes. Ela não percebeu. Ninguém
tinhareparado.Apanheio-oepusnobolso,pensandodevolvê-lo
assimqueosalcançasse.Masesqueci...Foientãoque,nomeioda
subida, comecei a pensar. A jóia não queria dizer nada para
aquelamoçatola;seupaipodiacomprar-lheumoutrosemligar
paraopreço.Eparamimqueriadizermuito.Avendadapérola
equiparia uma expedição — seu rosto impassível se contraiu e
pareceuvoltaràvida.—Osenhorsabequaissãoasdificuldades
que há hoje em dia para conseguirmos contribuições para
escavações?Não,osenhornempodeimaginar!Avendadapérola
facilitariatudo.Háumlugarondeeuqueroescavar... lánoalto
do Beluquistão. Há um capítulo inteiro do passado esperando
paraserdescoberto...
—Oquesedisseontemànoitemeveioàcabeça...sobreuma
testemunha impressionável. Pensei que a moça era desse tipo.
Quandochegamosláemcima,eulhedissequeseubrincoestava
solto.Fizmençãodeapertá-lo.Oquefiznaverdadefoiencostar
uma ponta de lápis em sua orelha. Minutos depois deixei cair
umapedrinha.Elaestavaprontaajurarqueobrincoestavaem
sua orelha e que acabara de cair. Neste meio tempo, apertei a
péroladentrodeumpedaçodemassaplásticaemmeubolso.E
estáaíaminhahistória.Nãoémuitoedificante,nãoé?Agoraéa
suavez.
—Não hámesmo uma história— disse Parker Pyne.—O
senhor era oúnicohomemque apanhava coisas do chão— foi
isso o queme fez pensar. E o encontro daquele pedregulho foi
muitosignificativo.Medeuaidéiadeseuestratagema.Eentão...
—Continue—disseCarver.
—Bem,ontemosenhorfalousobrehonestidadecommuita
veemência. Protestou demais... lembra-se de Shakespeare? Me
pareceu que estava querendo se convencer asimesmo e depois
faloudedinheirocomumcertoconstrangimento.
O rosto do homem à sua frente estava muito marcado e
deprimido. — Então foi isso — disse ele. — Estou perdido. O
senhorvaientregarobalangandãdevoltaàmoça,nãoé?Coisa
estranha, este instinto bárbaro de ornamentação. Vem desde a
erapaleolítica.Umdosprimeirosinstintosdosexofeminino.
— Acho que o senhor está subestimando a Srta. Carol —
disse Parker Pyne. — Ela tem cabeça... e o que é mais, tem
coração.Achoquenãovaitocarnesseassuntocomninguém.
—Mascertamenteopaivaifalar—disseoarqueólogo.
—Tenhocertezaquenão.Vejaosenhorqueo"papai"temlá
assuasrazõesparaficarcalado.Nãoháotoquedosquarentamil
dólarespelobrinco.Umameranotadecincoéoqueelevale.
—Osenhorquerdizerque...?
— É. A moça não sabe. Ela pensa que eles são mesmo
verdadeiros.Comecei a suspeitar ontem à noite.OSr. Blundell
falou um pouquinho demais sobre todo o dinheiro que tinha.
Quandoascoisasvãomalealguémlhepega...bem,omelhoré
enfrentarcomcoragemasituaçãoeblefar...
DerepenteoDr.Carverfezumacareta.Pareciaumtrejeitode
criança, muito estranho, no rosto de um homem idoso — Nós
somos todos uns pobres-diabos!— Exatamente— disse Parker
Pyne,efezcitação:
"Maisvaleaamizadedoqueseisvinténs."
11
MortenoNilo
LADYGRAYLEestavanervosa.Desdeomomentoquepuseraos
pésabordodoS.S.Fayoumquesequeixavadetudo.Nãogostou
da sua cabina. Suportava bem o sol da manhã, mas não
suportava o sol da tarde. Pamela Grayle, sua sobrinha,
amavelmenteabriumãodesuacabinanooutrolado.LadyGrayle
aceitouooferecimentoresmungando.
Falou violentamente para a Srta. MacNaughton, "sua
enfermeira,porlheterdadoolençoerradoepornãoterdeixado
foradamalaoseupequenotravesseiro.Faloucomimpertinência
comseumarido,SirGeorge,porlhetercompradoocolarerrado.
Eraemlápis-lazúliqueelaqueria,enãoemcornalina.Georgeera
umidiota!
SirGeorge disse aflito:—Desculpe, querida, desculpe. Vou
trocar.Temostempo.
ElasónãoreclamavadeBasilWest,osecretárioparticularde
Sir George, porque nunca ninguém conseguia reclamar o que
querquefossedeBasil.Seusorrisodesarmavaaspessoasantes
quepudessemcomeçar.
Mas o pior de tudo recaiu sobre o intérprete — um
personagem imponente, ricamente vestido, incapaz de se
perturbar com o que quer que fosse. Quando Lady Grayle deu
com os olhos num estranho sentado numa cadeira de vime e
soubequeeleeratambémumcompanheirodeviagem,suacólera
transbordoucomoáguadatorneira!
—Elesmedisseramcomabsolutasegurançanoescritórioda
companhiaquenósseríamososúnicospassageiros!Éo fimda
estaçãoenãohaviamaisninguémviajando!
—Tácerto,Lady—disseMohammed.—Somenteasenhora,
seugrupoeumcavalheiro,maisninguém.
—Masmedisseramquesónósestaríamosabordo!
—Támuitocerto,Lady.
—Nãoestáabsolutamente certo!Foiumamentira!Oqueé
queestehomemestáfazendoaqui?
— Ele veio depois, Lady. Depois que a senhora comprou
passagens.Elesóresolveuirhojedemanhã.
—Fuienganada!
—Tátudocerto,Lady;eleéumcavalheiromuitosossegado,
muitosimpático,muitosossegado.
—Osenhoréumidiota!Nãosabedenada.OndeestáaSrta.
MacNaughton?Ah,estáaí?Jálherepetiumaporçãodevezesque
quero que fique sempre a meu lado. Posso ter uma tontura.
Ajude-mea irparaacabinaemedêumaaspirina,enãodeixe
Mohammed se aproximar demim. Ele vive repetindo "Tá certo,
Lady",eachoqueseouvirissomaisumavez,eugrito.
ASrta.MacNaughtonlhedeuobraçosemdizerumapalavra.
Era umamulher alta, de uns trinta e cinco anos, sossegada e
tranqüilaàsuamaneira.LevouLadyGrayleatéacabina,ajeitou-
acomalmofadas,deu-lheumaaspirinaeouviuassuasqueixas
inconsistentes.
Lady Grayle tinha quarenta e oito anos. Sofrerá desde os
dezesseis pelo fato de ter dinheiro demais. Casara-se com um
baronetearruinado,SirGeorgeGrayle,hádezanos.
Eraumamulhergraúda,jeitosadecorpo,masseurostoera
rabugentoecheioderugas,eamaquilagemsuperabundanteque
usava apenas acentuava as marcas do tempo e do seu
temperamento.Seucabelojáfora—porturno—louroplatinado
ecastanhoavermelhado,eemconseqüênciadisso,agoraparecia
cansado e sembrilho.Ela se enfeitavademais eusava jóias em
profusão.
— Diga a Sir George — terminou ela ante a silenciosa e
inexpressivaSrta.MacNaughton,—digaaSirGeorgequeeletem
demandarestehomememboradobarco!Precisode isolamento!
Depoisdetudoquepasseiultimamente...—elafechouosolhos.
—Sim,LadyGrayle-disseaSrta.MacNaughton,edeixoua
cabina.
Oofensivopassageirodeúltimahoraaindaestavasentadona
cadeiradoconvés.EstavadecostasparaLuxor eolhavaparao
RioNilo,deondeascolinasdistantessurgiamdouradasporcima
deumalinhaverde-escuro.ASrta.MacNaughtonlhelançouum
olharaopassar.
EncontrouSirGeorgenosalãodeestar.Eletinhanasmãos
um colar e o olhava duvidoso—Diga-me, Srta. MacNaughton,
seráqueesteaquivailheagradar?
ASrta.MacNaughtonolhourapidamenteparao lápis-lazúli
—Émuitolindomesmo—disseela.
—SeráqueLadyGraylevaificarsatisfeita,hein?
—Ah,não,nãoacredito,SirGeorge.Osenhorsabequenada
asatisfaz.Estaéqueéaverdade.Porfalarnisso,elalhemandou
umrecado:querqueosenhorselivredopassageiroextra.
OqueixodeSirGeorgecaiu—Comoéqueeuposso?Oqueé
queeuvoudizeraocamarada?
—Éclaroqueosenhornãopodefazernada—avozdeElsie
MacNaughton era viva e terna. — Diga apenas que não podia
fazernada—acrescentouparaencorajá-lo.—Tudovaidarcerto.
— Você acha que sim, hein? — O rosto dele estava
pateticamentecômico.
AvozdeElsieMacNaughtonfoiaindamaisternaquandoela
respondeu:—Osenhornãodevelevarestascoisasmuitoasério,
SirGeorge.Éasaúdedela,osenhorsabe.Nãoseaborreçaàtoa.
— Você acha que ela está mal mesmo, enfermeira? Uma
sombrapassoupelorostodaenfermeira.Haviaalgoestranhoem
suavozquandoelarespondeu:—Sim,eu...nãoestougostando
do estado de saúde dela. Mas, por favor, não se preocupe, Sir
George.Osenhornãodevetermaisaborrecimentos—elalhedeu
umsorrisoamigávelesaiu.
Pamela entrou, insípida e calma, vestida de branco.—Olá,
Nunks.
—Alô,Pam,querida.
—Oqueéqueosenhortemnamão?Oh,quelindo!
—Aindabemquevocêgostou.Achaquesuatiatambémvai
gostar?
—Elaéincapazdegostardoquequerqueseja.Nãoseipor
queosenhorsecasoucomessamulher,Nunks.
SirGeorge ficoucalado.Umpanoramaconfusodeazarnas
corridas, credores que o perseguiam e uma mulher bonita e
dominadoradesenrolou-seemseupensamento.
— Coitadinho — disse Pamela. — Acho que o senhor foi
obrigado.Maselanosinfernaavida,nãoé?
—Desdequeficoudoente...—começouSirGeorge.
Pamela o interrompeu — Ela não está doente! Não é uma
doença mesmo! Ela sempre faz o que quer. Sabe, quando o
senhor foi a Assuan ela estava alegre como um passarinho!
ApostoqueaSrta.MacNaughtonsabequeadoençaéfalsa.
—Nãoseioquenós faríamossemaSrta.MacNaughton—
disseSirGeorgecomumsuspiro.
—Éuma criatura eficiente—admitiuPamela.—Mas com
franqueza, não acho que ela seja assim tão formidável, como o
senhor,Nunks.Ah,o senhorachaqueela é formidável!Nãová
dizerquenão.Osenhorachaqueelaémaravilhosa.Edecerta
forma,émesmo.Maséumacriaturaestranha.Nuncaseioque
elaestápensando.Mesmoassim,elamanobramuitobemagata
velha.
—Olheaqui,Pam,vocênãodevefalarassimdesuatia.Que
diabo,elaémuitoboaparavocê!
—É,elapagaasnossascontas,nãopaga?Maséuminferno
devida,láissoé.
SirGeorgemudouparaumassuntomenosdoloroso—Oque
é que nós vamos fazer com este sujeito que vai viajar conosco?
Suatiaquerobarcosóparaela.
— Bom, dessa vez não vai ser possível — disse Pamela
indiferente.—Ohomemmeparecemuitoapresentável.Onome
dele é Parker Pyne. Acho que ele era um funcionário civil em
algum departamento de estatística... se é que isso existe. Coisa
estranha, parece que já ouvi esse nome antes em algum lugar.
Ah,Basil!—osecretárioacabaradeentrar.—Ondeseráquejávi
onomeParkerPyne?
— Na primeira página doTimes. Coluna dos Anúncios
Pessoais—replicouorapazprontamente.—"Vocêéfeliz?Senão
for,consulteoSr.ParkerPyne."
— Não! Que coisa engraçada! Vamos contar a ele todos os
nossosproblemasduranteanossaviagemparaoCairo?
— Eu não tenho nenhum — disse Basil West. — Vamos
deslizar pelo dourado Rio Nilo e ver os templos — ele olhou
rapidamenteparaoladodeSirGeorge,queapanharaumjornal
—juntos.
A última palavra fora apenas um sopro, mas Pamela a
entendeu.Seusolhosseencontraram.
—Temrazão,Basil—disseelacomalegria.—Ébomviver.
SirGeorge levantou-seedeixou-os.OrostodePamela ficou
sombrio.
—Oquefoiquehouve,meubem?
—Minhadetestadatiaporafinidade...
—Nãoseaflija—disseBasildepressa.—Oque importao
queelatemnacabeça?Nãoacontrarie.Sabe—eleriu,—éuma
boapolítica.
AfigurabondosadeParkerPyneentrounosalão.Atrásdele
apareceuafigurapitorescadeMohammed,prontopararecitaro
seupapel.
— Senhoras, senhores, vamos começar agora. Dentro de
algunsminutosvamospassarpelostemplosdeKarnakpelolado
direito. Vou contar a história de um menininho que queria
comprarumcarneiroassadoparaopai...
ParkerPyneenxugouatesta.Acabaradevoltardeumavisita
aoTemplodeDendera.Montarnumjumento,raciocinouele,não
eraumexercíciocondizentecomasuafigura.Iatrocardecamisa
quando um bilhete colocado sobre sua cômoda lhe chamou a
atenção.Eleoabriu.Diziaoseguinte:
Carosenhor,
FicareimuitoagradecidaaosenhorsenãoforvisitaroTemplo
deAbydos,epermanecernobarco,poisgostariadeconsultá-lo.
Sinceramente,
AriadneGrayle
Surgiu um sorriso no rosto largo e afável de Parker Pyne.
Apanhouumafolhadepapeletirouatampadacaneta.
CaraLadyGrayle(escreveuele),
Sintomuitodesapontá-la,masnomomentoestoude fériase
nãopossoassumirnenhumcompromissoprofissional.
Assinou seu nome e mandou a carta por um servente.
Quandoterminavadesevestir,chegououtranota.
CaroSr.ParkerPyne,
Seiqueosenhorestáde férias,masestoudispostaapagar
cemlibrasporumaconsulta.Sinceramente,
AriadneGrayle
Parker Pyne ergueu as sobrancelhas. Bateu pensativamente
nosdentescomacaneta.ElequeriamuitoverAbydos,mascem
libraseramcemlibras.EoEgitoforahorrivelmentedispendioso,
muitomaisdoqueelecalculara.
Cara Lady Grayle (escreveu ele),Não visitarei o Templo de
Abydos.Sinceramente,
J.ParkerPyne
ArecusadeParkerPyneemdeixarobarcofoiummotivode
grandetristezaparaMohammed.
—Templomuito bonito. Todos osmeus cavalheiros gostam
de ver aquele templo. Arranjo uma condução. Arranjo cadeira,
marinheiroscarregamosenhor.
ParkerPynerecusoutodasestasofertastentadoras.
Os outros partiram. Parker Pyne estava curioso e ficou à
espera no convés. Neste instante, a porta da cabina de Lady
Grayleseabriueelaprópriasaiuparaoconvés.
—Que tarde quente!— observou ela com delicadeza.—Vi
queosenhornãoquispassear,Sr.Pyne.Muitodiscretodesua
parte.Vamostomarchájuntosnosalão?
Parker Pyne levantou-se imediatamente e a seguiu.Ele não
podianegarqueestavacurioso.
Pareceu-lhe que Lady Grayle sentia alguma dificuldade em
abordaroassunto.Elamudavadeconversafreqüentemente.Mas
finalmentefaloucomavozalterada.
—Sr.Pyne,oquelhevoudizerédamaisestritaconfidencia!
Osenhorcompreende,nãoé?
—Naturalmente.
Elafezumapausa,respiroufundo.ParkerPyneesperou.
—Querosabersemeumaridoestáounãomeenvenenando.
Fosse o que fosse que estivesse esperando, não era
absolutamenteisso.Demonstrouclaramenteoseuespanto.—É
uma acusação muito séria que a senhora está fazendo, Lady
Grayle.
—Bem,nãosounenhumatolaenemnasciontem.Hámuito
tempo que tenho as minhas suspeitas. George viaja, eu fico
melhor.Minhacomidanãome fazmaismaleeumesintouma
mulherdiferente.Devehaverumarazãoparaisso.
—Oqueasenhoraestádizendoémuitosério,LadyGrayle.
Deveselembrardequenãosouumdetetive.Sou,semepermite,
umespecialistaemassuntosdocoração...
Ela o interrompeu — Além... e não acha que isso me
preocupa?Nãoéumpolicialqueeuquero...possotomarcontade
mim mesma, obrigada. É apenas a certeza que eu quero. Eu
precisosaber.Nãosouumamulherperversa,Sr.Pyne.Souleal
paraaquelesquesão leaiscomigo.Negócioénegócio.Cumpria
minhaparte.Pagueiasdívidasdemeumaridoenuncaopriveide
dinheiro. Parker Pyne sentiu um ligeiro sentimento de piedade
porSirGeorge.
— E quanto àmoça, ela temmuitas roupas, vai a festas e
tudoomaisquequer.Apenasagratidãonormaléoqueeupeço:
— Gratidão não é algo que se possa encomendar, Lady
Grayle.
—Tolice!—disseLadyGrayle.Elacontinuou:—Bem,éesta
ahistória!Descubraaverdadeparamim.Quandoeusouber...
Ele a olhou comcuriosidade:—Quandoa senhora souber,
LadyGrayle,oquevaifazer?
—Aíoproblemaémeu—elaapertouoslábios.ParkerPyne
hesitouummomentoedepoisdisse:
— A senhora vai me perdoar, Lady Grayle, mas tenho a
impressãodequenãoestásendoabsolutamentefrancacomigo.
— Que absurdo! Já lhe disse exatamente o que eu queria
descobrir.
—Sim,masnãoporquequerdescobrir.
Eleaolhounosolhos.Elabaixouosseusprimeiro.
—Achoquearazãoeraevidenteporsimesma—disseela.
—Não,porqueeutenhoumadúvidasobreumdeterminado
ponto.
—Qualé?
—Asenhoraquerqueassuassuspeitassejamconfirmadas
ounegadas?
—Francamente,Sr.Pyne!—asenhorasepôsdepé,trêmula
deindignação.
ParkerPynebalançouacabeçamansamente—Sim,sim—
disse.—Mascomistonãorespondeuàminhapergunta,nãoé?
—Oh!—Aspalavrasfaltaram.Elasaiudasalabruscamente.
Sozinho, Parker Pyne ficou muito pensativo. Estava tão
mergulhado em seus próprios pensamentos que teve um ligeiro
sobressalto quando alguém se sentou a seu lado. Era a Srta.
MacNaughton.
—Comovocêsvoltaramcedo—disseParkerPyne.
—Os outros ainda não voltaram. Eu disse que estava com
dordecabeçaevolteisozinha—elahesitou.—OndeestáLady
Grayle?
—Achoqueestádescansandonasuacabina.
—Ah,entãoestácerto.Nãoqueroqueelasaibaqueeuvoltei.
—Entãoasenhoritanãovoltouporcausadela?
A Srta. MacNaughton balançou a cabeça negativamente —
Não,volteiporquequeriavê-lo.
ParkerPyneficousurpreso.TeriaditosemhesitarqueaSrta.
MacNaughton era totalmente capaz de cuidar de seus próprios
problemassemprecisardeconselhosdeninguém.Viaagoraque
estavaerrado.
—Desde que embarcamos que estou observando o senhor.
Achoqueosenhoréumapessoademuitaexperiênciaecapazde
julgamentoscorretos.Eeuprecisourgentementedeumconselho.
—E,noentanto...perdoe,Srta.MacNaughton...masnãome
pareceserdotipoqueusualmentepedeconselhos.Eudiriaqueé
uma pessoa que se satisfaz plenamente com o seu próprio
julgamento.
— Normalmente, sim. Mas estou numa situação muito
delicada — hesitou um instante. — Geralmente não falo a
respeitodosmeuspacientes.Mascreioqueépreciso,nestecaso
específico.Sr.Pyne,quandodeixeiaInglaterracomLadyGrayle,
elaeraumcasosimples.Empoucaspalavras,nãohavianadade
malcomela.Talvezissonãofosseaexataexpressãodaverdade.
Nãotinhanadaquefazeretinhadinheirodemais,oqueproduz
uma bem definida condição patológica. Se tivesse alguns
assoalhos para esfregar todo dia e umas cinco ou seis crianças
para tomar conta, LadyGrayle seria umamulher perfeitamente
sadiaemuitomaisfelizdoqueé.
ParkerPyneconcordou.
—Comoenfermeiradehospital,jáviumaporçãodecasosde
nervosos.LadyGraylegostadasuasaúdeprecária.Meupapelé
nãominimizarseussofrimentos,tertodootatoquepuder...eme
divertiromaispossívelnaviagem.
—Muitoplausível—disseParkerPyne.
— Mas, Sr. Pyne, as coisas já não são como antes. Os
sofrimentos de que se queixa Lady Grayle agora não são mais
imaginários,masreais.
—Oquequerdizercomisso?
— Comecei a suspeitar de que Lady Grayle está sendo
envenenada.
—Desdequandovocêsuspeitadisso?
—Nasúltimastrêssemanas.
—Vocêdesconfiade...alguémemparticular?
Seus olhos baixaram. Pela primeira vez, sua voz denotava
faltadesinceridade—Não.
— Acho, Srta. MacNaughton, que suspeita de uma
determinadapessoa,equeestapessoaéSirGeorge.
— Não, não, não acho que ele seja capaz disso! Ele é tão
delicado, às vezes parece uma criança. Não poderia ser um
assassinoasangue-frio—avozdelatinhaumtoquedeangústia.
—E,noentanto, jápercebeuquesemprequeSirGeorgese
ausenta sua esposa melhora e que seus períodos de recaída
correspondemàsuavolta.
Elanãorespondeu.
—Dequevenenodesconfia?Arsênico?
—Umacoisadessas.Arsênicoouantimônio.
—Equeprovidênciastomou?
— Tenho feito o que posso para supervisionar tudo o que
LadyGraylecomeoubebe.
Parker Pyne concordou com a cabeça — Acha que Lady
Grayledesconfiadealgumacoisa?—perguntou.
—Não,não!Tenhocertezaquenão.
—Aí é que a senhorita se engana—disse Parker Pyne.—
LadyGrayledesconfia.
ASrta.MacNaughtondemonstrouoseuespanto.
—LadyGrayle émuitomais capaz de guardar segredos do
queimagina—disseParkerPyne.—Elaéumamulherquesabe
oquequerequefazoquequer.
— Issome surpreendemuito—disse aSrta.MacNaughton
lentamente.
— Gostaria de lhe fazer mais uma pergunta, Srta.
MacNaughton.AchaqueLadyGraylelhequerbem?
—Nuncapenseinisso.
Foraminterrompidos.Mohammedentrou,orostobrilhando,
asroupagensflutuandonoar.
—ALady,elaouviuasenhoravoltar;estálhechamando.Ela
disse,porquenãofoilogovê-la?
Elsie MacNaughton se levantou às pressas. Parker Pyne
tambémselevantou.
—Umencontroamanhãdemanhã cedo seria conveniente?
—perguntouele.
— Sim, seria amelhor hora. Lady Grayle dorme até tarde.
Nestemeiotempo,voutomaromaiorcuidado.
—AchoqueLadyGrayletambémvaitomarcuidado.ASrta.
MacNaughtondesapareceu.
ParkerPynenãoviuLadyGrayleatépoucoantesdo jantar.
Ela estava sentada fumando um cigarro e queimava uma coisa
quepareciaumacarta.Nemolhouparaele,oqueofezimaginar
queaindaestavaofendida.
Depoisdojantar,ele jogoubridgecomSirGeorge,Pamelae
Basil. Todos pareciam um pouco distraídos e o jogo terminou
cedo.
Algumas horas depois, Parker Pyne foi acordado por
Mohammed.
— Senhora idosa, ela muito doente. Enfermeira, ela muito
assustada.Eutenteiarranjarmédico.
ParkerPynevestiu-secorrendo.Chegouàportadacabinade
LadyGrayleaomesmotempoqueBasilWest,SirGeorgeePamela
jáestavamládentro.ElsieMacNaughtondesvelava-sefebrilmente
emcuidadoscomsuapaciente.NomomentoemqueParkerPyne
chegou,apobresenhorafoiacometidaporumaconvulsãofinal.
Seu corpo arqueou-se, contorceu-se e depois enrijeceu. Caiu
sobreostravesseiros.
ParkerPynepuxouPamelagentilmenteparaoladodefora.
—Quecoisahorrível!—amoçaestavasoluçando.
—Quecoisahorrível!Seráqueelaestá...elaestá...?
—Morta?Sim,achoquesim.
Ele a deixou aos cuidados de Basil. Sir George saiu da
cabina,comumaratordoado.
— Nunca pensei que ela estivesse doente de verdade —
murmurouele.—Nemmepassoupelacabeça.
Parker Pyne passoupor ele e entrouna cabina.O rosto de
ElsieMacNaughton estava branco e abatido.—Eles chamaram
ummédico?—perguntouela.
—Sim—disseele,edepoisperguntou:—Estriquinina?
— É. Estas convulsões são inconfundíveis. Não, não posso
acreditar!—elasedeixoucairnumacadeira,chorando.Elebateu
levementeemseuombroparaconfortá-la.
De repente, uma idéia passou por sua cabeça. Deixou a
cabina apressadamente e foi para o salão.Haviaumpequenino
pedaçodepapelquenãoforaqueimadonocinzeiro.Distinguiam-
seapenasalgumaspalavras:
...psuladesonhos
Queimeisso!
—Muitobem,issoémuitointeressante!—disseParkerPyne.
ParkerPyneestavasentadonoescritóriodeumaltooficialdo
Cairo.—Eeisocaso—disseelepensativo.
—Sim,completo.Ohomemdeveserumcompletoidiota.
—EunãochamariaSirGeorgedeintelectual.
—Masmesmoassim!—Ooutrorecapitulou:—LadyGrayle
pedeumaxícaradecaldodecarne.Aenfermeiraprepara.Então,
ela pede que coloquem um pouco desherry. Sir George traz o
sherry. Duas horas depois, Lady Grayle morre com sintomas
inconfundíveisdeenvenenamentoporestriquinina.Umpacotede
estriquinina é encontrado na cabina de Sir George e um outro
dentrodopaletóqueusouparaojantar.
—Completo—disseParkerPyne.—Porfalarnisso,deonde
veiotodaaestriquinina?
—Háuma ligeiradúvidaa respeito.Aenfermeira tinhaum
pouco,paraocasodeocoraçãodeLadyGraylefalhar;maselase
contradisse uma ou duas vezes. Primeiro disse que o seu
suprimentoestavaintatoeagoradizquenãoestá.
—Nãoédeseufeitioestaremdúvidas—foiocomentáriode
ParkerPyne.
—Ameuver,osdoisestãojuntosnahistória.Achoquetêm
umfracoumpelooutro.
— Possivelmente, mas se a Srta. MacNaughton estivesse
planejando o assassinato, ela o teria praticado de modo bem
melhor.Elaéumamoçamuitoeficiente.
—Bem, o quehá é isto.Naminha opinião, SirGeorge é o
culpado.Elenãotemamínimachance.
—Bem,bem—disseParkerPyne,—precisoveroqueposso
fazer.
Saiu à procura da linda sobrinha. Pamela estava pálida de
indignação. — Nunks nunca teria feito uma coisa dessas —
nunca—nunca—nunca!
—Entãoquemfez?—perguntoucalmamenteParkerPyne.
Pamela se aproximou—Sabe o que penso?Foi elamesma.
Ela andava muito esquisita ultimamente. Vivia imaginando
coisas.
—Quetipodecoisas?
— Coisas estranhas. Basil, por exemplo. Ela vivia dando
indiretas de que Basil estava apaixonado por ela. E Basil e eu
estamos...nósestamos...
—Jáimaginavaisso—disseParkerPynesorrindo.
—Tudo isso a respeito deBasil era pura imaginação.Acho
queelaestavacomódiodopobretioNunkseforjouessahistória
que eu lhe disse; depois pôs estriquinina na cabina e no bolso
deleeseenvenenou.Hápessoasquefazemcoisasdessetipo,não
é?
—Fazem— admitiu Parker Pyne.—Mas não acredito que
Lady Grayle tenha feito isso. Se me permite dizer, elanão era
dessetipo.
—EsuasilusõessobreBasil?
—Sim,gostariadeperguntaralgumacoisaaoSr.Westsobre
isso.
Eleencontrouorapazemseuquarto.Basilrespondeuatudo
comrapidez.
— Não quero parecer um tolo, mas ela tinha mesmo uma
quedapormim.Eraporissoqueeunãoqueriaqueelasoubesse
nadaarespeitodePamela.ElateriafeitoSirGeorgemedespedir.
— Então o senhor acha que a teoria da Srta. Grayle é
plausível?
— Bom, acho que pode ser possível — o rapaz estava em
dúvida.
— Mas, não o satisfaz plenamente — disse Parker Pyne
devagar.—Não,nósprecisamosacharumateoriamelhor—ele
seperdeuemsuasmeditaçõesporumoudoisminutos.—Acho
que uma confissão seria o melhor — disse com vivacidade.
Apresentoua sua caneta euma folhadepapel.—Quer fazer o
favordeescrevê-la?
BasilWest olhou espantadopara ele—Eu?O que é que o
senhorestáinsinuando?
—Meucarorapaz...—ParkerPynesetornouquasepaternal.
— Eu sei de tudo. Como foi que conquistou a pobre senhora.
Como ela tinha escrúpulos. Como foi que se apaixonou pela
sobrinha, linda e sem vintém. Como foi que arranjou a trama.
Envenenamento lento. Poderia passar por morte natural por
gastrenterite;senãopassasse,seriaimputadoaSirGeorge,pois
vocêteveocuidadodecoincidirosataquescomapresençadele.
Então houve a sua descoberta de que a senhora suspeitava de
tudo e que falara comigo a esse respeito. Uma ação rápida!
Apanhou um pouco de estriquinina da reserva da Srta.
MacNaughton.PôsumpouconacabinaenobolsodeSirGeorge,
eosuficientenumacápsula,quemandouparaasenhorajuntoa
umbilhete,dizendoqueerauma"cápsuladesonhos".Umaidéia
romântica. Ela a tomaria assim que a enfermeira a deixasse e
ninguém saberia nada a respeito. Mas você cometeu um erro,
meu caro rapaz.É inútil pedir aumamulher que queime suas
cartas. Elas nunca o fazem. Tenho toda a sua encantadora
correspondência,inclusiveaquefalasobreacápsula.
BasilWest estava verde de raiva. Todo o seu ar de bonitão
tinha desaparecido. Ele parecia mais um rato dentro de uma
ratoeira.
—Maldito!— rosnou ele.—Então o senhor sabe de tudo!
Seuintrometidoabelhudo!
Parker Pyne foi salvo da violência física pela chegada de
testemunhasqueelecuidadosamentecolocaraàescutaatrásda
portasemicerrada.
Parker Pyne estava discutindo o caso outra vez com seu
amigo,ooficialimportante.
—Eeunãotinhaamenorsombradeevidência!Apenasum
fragmentoquase indecifrável, com "queime isso!" escrito.Deduzi
todaahistóriae tentei impingi-la.Funcionou.Acerteiemcheio.
As cartas fizeram o resto. Lady Grayle tinha queimado mesmo
cadabilhetequeelelheescrevera,masdissoelenãosabia.
Elaeramesmoumamulhermuitoestranha.Fiqueiintrigado
quandome procurou.O que queria era que eu lhe assegurasse
queseumaridoaestavaenvenenando.Nessecaso,pretendiafugir
com o jovem West. Mas ela queria agir com lealdade. Era um
carátercurioso.
—Aquelapobremoçavaisofrermuito—disseooutro.
—Elavaiserefazerlogo—disseParkerPyne,insensível.—
Ela é jovem. Estou ansioso para que Sir George consiga um
pouco de felicidade antes que seja tarde demais.Ele foi tratado
comoumvermenestesdezanos.Agora,ElsieMacNaughtonvai
serboaparaele.
Seu rosto estava risonho. Então deu um suspiro — Estou
pensandoemirincógnitoparaaGrécia.Estouprecisandomesmo
deumasférias!
12
OOráculodeDelfos
A VERDADE, A SRA. Willard J. Peters não gostava muito da
Grécia.Eno fundo,elanão tinhamesmoeraopiniãonenhuma
sobreDelfos.
Os lares espirituais da Sra. Peters eram Paris, Londres e a
Riviera.Eraumamulherquegostavadavidadehotel,masasua
idéiadequartodehoteleraumtapetemacio,umacamaluxuosa,
uma profusão de arranjos de luz elétrica — incluindo uma
lâmpada de cabeceira sombreada — enormes quantidades de
água quente e fria e um telefone ao lado da cama, de onde ela
pudessemandarbuscarchá,refeições,águasminerais,coquetéis,
efalarcomosamigos.
No hotel de Delfos não havia nada disso. Tinha uma vista
maravilhosapelasjanelas;acamaeralimpaeoquartotambém,
caiado de branco. Havia uma cadeira, uma pia e uma cômoda
comgavetas.Osbanhoserammarcadoscomantecedênciaeeram
decepcionantesnoquediziarespeitoàáguaquente.
DeviaserbemdizerqueseesteveemDelfos,eaSra.Peters
tinhatentadomesmoseinteressarpelaGréciaAntiga,masachou
que era muito difícil. Suas estátuas pareciam inacabadas,
faltando cabeças, braços e pernas. Secretamente, ela preferia o
lindoanjodemármore,inteirinhocomsuasasas,quetinhasido
erigidosobreotúmulodofalecidoSr.WillardPeters.
Mas todas essas opiniões secretas, ela as guardava
cuidadosamenteparasimesma,commedoqueseufilhoWillarda
desprezasse.Erapor amor aWillard que ela estava ali, naquele
quartofrioedesconfortável,comumaempregadarabugentaeum
motoristadesagradável.
PoisWillard (até bem pouco tempo chamado Júnior— um
apelido que ele detestava) era o filho de dezoito anos da Sra.
Peters e ela o adorava. Era Willard quem tinha esta estranha
paixão pela arte antiga. ForaWillard,magro, pálido, de óculos,
dispéptico,quearrastarasuaadoradamãenestaviagematravés
da Grécia. Eles tinham estado em Olímpia, que a Sra. Peters
achara de uma desordem triste. Ela gostara do Partenon, mas
considerava Atenas uma cidade sem esperanças. E a visita a
CorintoeMicenasforaumaagoniaparaelaeomotorista.
Delfos,pensaracomtristezaaSra.Peters,foraaúltimagota.
Não havia absolutamente nada a fazer a não ser andar pela
estrada e olhar para as ruínas. Willard passava horas inteiras
ajoelhado,decifrandoinscriçõesgregasedizendo:—Mãe,escute
sóisso!Nãoéformidável?—eliaalgumacoisaquepareciaparaa
Sra.Petersaquintessênciadamonotonia.
Esta manhã, Willard saíra muito cedo para ver alguns
mosaicosbizantinos.ASra.Peters,sentindoinstintivamenteque
os mosaicos bizantinos a deixariam fria (tanto literal como
espiritualmente),desculpou-sepornãoir.
— Compreendo,mãe— disseraWillard.— A senhora quer
ficarsozinhaparasesentarnoanfiteatroounoestádio,olharese
sentirmergulhadanaantigüidade.
—Éissomesmo,queridinho—disseraaSra.Peters.
— Eu sabia que este lugar a encantaria — disse Willard
exultante,efoiembora.
Agora, com um suspiro, a Sra. Peters se preparava para
levantaretomaroseucafé.
Apenas quatro outras pessoas estavam no refeitório. Uma
senhora e sua filha, vestidas com um estilo muito peculiar na
opinião da Sra. Peters e que discursavam sobre a arte de
expressãonadança;umcavalheirodemeia-idade,gordinho,que
aajudaraatiraramalaquandodesceradotremecujonomeera
Thompson,eumrecém-chegado,umcavalheirotambémdemeia-
idade,comacabeçacalva,equechegaranatardeanterior.
EsteúltimopersonagemficounasaladocaféeaSra.Peters
logo puxou conversa com ele. Ela era uma mulher cordial e
gostavadeteralguémparaconversar.OSr.Thompsontinhasido
distintamentedesanimadoremsuasmaneiras(reservabritânica,
diziaaSra.Peters)easenhoraesuafilhaerammuitoemproadas
e intelectuais, se bem que a moça se desse muito bem com
Willard.
A Sra. Peters achou o recém-chegado uma pessoa muito
amável. Era informativo sem ser intelectual. Falou-lhe sobre
detalhes interessantes e agradáveis da Grécia, que a fizeram
sentir que os gregos eram afinal de contas pessoas reais e não
apenasahistóriacansativaemaçantedoslivros.
ASra.PeterscontouaseunovoamigotudosobreWillard:o
rapaz inteligente que ele era e de como ele podia se chamar
Cultura.Haviaalgoemsua figuraafávelebondosaque tornava
muitofácilaconversacomele.
Oque ele fazia, ou qual era o seunome, a Sra. Peters não
tinha descoberto. Além do fato de estar viajando e de um
completo afastamento de seus negócios (que negócios?) ele não
eramuitocomunicativoaseurespeito.
Talvez por isso, o dia passou com mais rapidez do que o
costume. A senhora, sua filha e o Sr. Thompson continuavam
insociáveis.ASra.Peterseseunovoamigoencontraram-secomo
Sr. Thompson quando este último saía do museu, e ele
imediatamentevirou-senadireçãooposta.
Onovoamigooviuafastar-secomumaruganatesta—Não
imaginoquempossaserestecamarada.
A Sra. Peters lhe deu o nome do outro, mas não pôde
acrescentarmaisnada.
—Thompson...Thompson...Não,achoquenãooconheço;e,
no entanto, o seu rosto me parece familiar. Mas não consigo
descobrirdeonde.
ASra.Peters aproveitoua tardepara tirarumcochilonum
lugar protegido pela sombra. O livro que levara não era o
excelente tratado sobre a arte grega recomendadopor seu filho,
mas,pelocontrário,umoutrointituladoOMistériodaLanchado
Rio. Tinha quatro assassinatos, três raptos e uma enorme e
variadaquadrilhadeperigososmalfeitores.ASra.Peterssesentiu
maisanimadaecontentecomaleitura.
Eram quatro horas da tarde quando voltou ao hotel. Ela
estavaseguradequeWillard jádeviaestarchegando.Tão longe
estavademauspressentimentosquequaseseesqueceudeabriro
bilhetequeodonodohotellhedera,dizendotersido'deixadopor
umhomemdesconhecidoduranteatarde.
Era um envelope muito sujo. Indolentemente, ela rasgou o
envelope.Aolerasprimeiraslinhas,seurostoempalideceueela
se segurou com uma das mãos para se amparar. A letra era
estranha,masalínguaempregadaeraoinglês.
Senhora(começavaassim):
Isto é para avisar à senhora que seu filho está em nossas
mãosemlocaldegrandesegurança.Nadademalaconteceráao
distinto rapaz se a senhora obedecer nossas ordens ao pé da
letra. Pedimos por ele um resgate de dezmil libras inglesas. Se
falarsobreissoaoproprietáriodohotelouàpolíciaouaqualquer
outra pessoa seu filho será morto. Este aviso é para que a
senhorapensebem.Amanhãasenhorareceberáinstruçõessobre
aformacomoodinheirodeveráserentregue.Senãoobedecer,as
orelhasdodistintorapazserãocortadaselheserãoenviadas.Se
no dia seguinte insistir em não obedecer, ele será morto. Mais
umavez —isto não é uma ameaça vã. Pense bem Kyria, —e
acimadetudo—nãofalenada.
Demetrius,ohomemdassobrancelhasnegras.
Seria inútildescreveroestadodeespíritodapobresenhora.
Pormaisabsurdae infantilque fosseaproposta,ela lhe trouxe
umaatmosferacrueldeperigo.
Willard, seu garoto, seu queridinho, o sério e delicado
Willard!
Iria imediatamente a, polícia; poria toda a vizinhança em
polvorosa.Mastalvezsefizesseisto...estremeceu.
Então, recompondo-se, saiu à procura do proprietário do
hotel,aúnicapessoacomaqualelapodiafalaringlês.
—Jáestáficandotarde—disseela.—Meufilhoaindanão
voltou.
O simpático homenzinho sorriu para ela — Verdade.
Monsieurdespachouasmulasdevolta.Quisvoltarapé.Jádevia
terchegadoaqui,massemdúvidadeixou-seficarpelocaminho—
sorriucontente.
— Diga-me — disse a Sra. Peters bruscamente, — existem
pessoasdemaucaráterpelasredondezas?
Mau caráter não era um termo que estivesse dentro dos
conhecimentos de inglês do homenzinho. A Sra. Peters se
explicoumelhor.Recebeuemrespostaacertezadequetodosque
viviamemtornodeDelfoserampessoasboas,muitosossegadas
—todossempresimpáticosaosestrangeiros.
As palavras tremeram em seus lábios, mas ela se forçou a
engoli-las. A ameaça sinistra refreou sua língua. Podia ser um
simples blefe.Mas, e senão fosse?Umaamiga suanaAmérica
tiveraumacriançaraptadae,porteravisadoapolícia,acriança
foimorta.Estascoisasacontecem.
Elaestavaquasealucinada.Oquepodiafazer?Dezmillibras
oqueeraissoemcomparaçãocomasegurançadeWillard?Mas
comopoderiaelaobter talsoma?Existiamdificuldadessem fim
em relação à operações de câmbio e à retirada de dinheiro em
espécie.Umaordemdecréditodealgumascentenasdelibrasera
tudooquetinhaemseupoder.
Será que os bandidos compreenderiam isto? Seriam
razoáveis?Esperariam?
Quando a empregada se aproximou, ela a mandou embora
violentamente.Quandotocouacampainhaparaojantar,apobre
senhora se viu obrigada a ir para o refeitório. Comeu
mecanicamente. Não viu ninguém. Por ela, a sala podia estar
vazia,quenãoteriareparado.
Com as frutas, uma nota foi colocada à sua frente. Ela
piscou,masaletraeracompletamentediferentedaquetemiaver
— era muito inglesa, clara, profissional. Abriu-a sem muito
interesse,masachouseuconteúdoestranho:
EmDelfos já não se pode consultar oOráculo,mas pode-se
consultaroSr.ParkerPyne.
Anexo havia um recorte de anúncio pregado ao papel e em
cima da folha uma fotografia de tamanho passaporte. Era o
retratodeseuamigocarecadestamanhã.
ASra.Petersleuoanúncioduasvezes:
Vocêéfeliz?Senãofor,consulteoSr.ParkerPyne.
Feliz? Feliz? Será que alguém já tinha sido tãoinfeliz? Era
comosefosseumarespostaàssuaspreces.
Rapidamenteelaescreveuunsrabiscosnumafolhadepapel
limpaqueencontrouporacasoemsuabolsa:
Porfavor,meajude.Podeseencontrarcomigodoladodefora
dohoteldentrodedezminutos?
Elaafechouemumenvelopeemandouogarçomentregá-la
ao cavalheiro que estavanamesa perto da janela.Dezminutos
depois, enrolada numabrigo de pele, pois a noite estavamuito
fria,aSra.Peterssaiudohotel esepôsaandar lentamenteao
longo da estrada entre as ruínas. Parker Pyne estava à sua
espera.
—Foiaprovidênciadivinaqueotrouxeaqui—disseaSra.
Petersquasesemfôlego.—Mascomofoiqueadivinhouoterrível
problemaquemepreocupa?Éistoqueeuquerosaber.
—Ocomportamentohumano,minhacarasenhora—disse
Parker Pyne gentilmente.—Vi logo que haviaalgo errado,mas
estavaàesperaquemecontasse.
Elacontoutudodeumavez.Mostrou-lheacarta,queeleleu
comaajudadeumapequenalanternadebolso.
— Hum... — disse. — Um documento singular. Um
documentobastantesingular.Hácertospontos...
MasaSra.Petersnãoestavaemestadoparadiscutirquaisos
melhores pontos da carta. O que ela devia fazer a respeito de
Willard?SeufrágilequeridoWillard!
ParkerPynetentouacalmá-la.Pintouumatrativoretratoda
vidados fora-da-leinaGrécia.Teriamumcuidado especial com
seuprisioneiro,umavezqueelerepresentavaumaminadeouro
empotencial.Aospoucosconseguiuacalmá-la.
—Masoquedevofazer?—lamentou-seaSra.Peters.
—Espereatéamanhã—disseParkerPyne.—Istoé,amenos
queprefirairimediatamenteàpolícia.
A Sra. Peters interrompeu-o com um grito de terror. Seu
adoradoWillardseriaassassinadoimediatamente!
—Osenhorachaqueconseguirei terWillarddevoltasãoe
salvo?
— Não há a menor dúvida — disse Parker Pyne para
tranqüilizá-la.—Aúnicadúvidaéseasenhoraconseguiráreavê-
losemterdepagarasdezmillibras.
—Tudooqueeuqueroéomeumenino.
—Sim, sim—disse Parker Pyne acalmando-a.—Por falar
nisso,quemfoiquetrouxeacarta?
— Um homem que o dono do hotel não conhece. Um
estranho.
— Ah! Aí está uma possibilidade! O homem que trouxer a
carta amanhã pode ser seguido. O que está dizendo para o
pessoaldohotel,sobreaausênciadeseufilho?
—Nãotinhapensadonisso...
— Sei— Parker Pyne refletiu.— Acho que a senhora deve
demonstrar com naturalidade que está alarmada e preocupada
comsuaausência.Umgrupodebuscasdevesairparaprocurá-lo.
—Nãoachaqueestesdemônios...—elaengasgou-se.
—Não,não.Enquantonãohouvernenhumapalavrasobreo
rapto ou o resgate, eles não se tornarão perigosos. Apesar de
tudo,nãosepodeesperarqueasenhoraaceiteodesaparecimento
deseufilhosemnenhumespalhafato.
—Possodeixarporsuaconta?
—Éesteomeunegócio—disseParkerPyne.Caminharam
de volta para o hotel, mas quase esbarraram numa figura
troncuda.
—Quemera?—perguntourapidamenteParkerPyne.
—AchoqueeraoSr.Thompson.
— Ah! — disse Parker Pyne. — Seria o Thompson?
Thompson...hum...
ASra.Peterspensouaodeitar-sequeaidéiadeParkerPyne
sobrea carta eramuitoboa.Fossequem fossequea trouxesse,
tinha de estar em contato com os bandidos. Ela se sentiu
consoladaeadormeceumaisdepressadoqueteriaimaginado.
Quando se vestia na manhã seguinte, reparou de repente
numacoisa caídano chãopertoda janela.Apanhou-a e—seu
coração quase parou de bater. O mesmo envelope sujo e
ordinário,amesmaletraodiada.Elaabriu.
Bomdia,senhora.Jápensoubem?Seufilhoestábemeileso
—atéagora.Masnósqueremosodinheiro.Talveznãoseja fácil
paraasenhoraconseguirestaquantia,masnóssabemosquea
senhora tem um colar de brilhantes. Pedras muito boas.
Ficaremos satisfeitos comele emvezdodinheiro.A senhora, ou
alguémdesuaconfiança,deverá trazerocolaraoestádio.De lá
atéondeháumaárvorepertodeumapedragrande.Olhosficarão
observando se vem apenas uma pessoa. Então o seu filhoserá
trocadopelocolar.Ahoraseráamanhãàsseishorasdamanhã,
logodepoisdaaurora.Sepuserapolíciaemnossoencalçodepois
disso, nós atiraremos em seu filho quando seu carro for para a
estação.
Esta é a nossa última palavra, senhora. Se não tivermos o
colar amanhã, lhe mandaremos as orelhas de seu filho. No dia
seguinteelemorrerá.
Minhassaudações,senhora.Demetrius
ASra.PeterscorreuparaseencontrarcomParkerPyne.Ele
leuacartacommuitaatenção.
—Éverdade—perguntouele,—oquedizsobreocolarde
brilhantes?
—A pura verdade.Meumarido pagou cemmil dólares por
ele.
—Nossos ladrõessãobem informados—murmurouParker
Pyne.
—Oquefoiqueosenhordisse?
—Estavaapenasconsiderandoalgunsaspectosdestecaso.
—Palavra,Sr.Pyne,nósnãotemostempoparaosaspectos.
Eutenhodereavermeumenino.
—Masasenhoraéumamulherdebrio,Sra.Peters.Gostaria
deserintimidadaeroubadaemdezmillibras?Agrada-lheaidéia
deentregarseusdiamantessemnenhumareaçãoparaumbando
derufiões?
—Bem,éclaroquenão,seosenhorcolocaascoisasdessa
forma! — os brios da Sra. Peters estavam em luta com o seu
sentimento maternal. — Como eu queria pegar esses sujeitos!
Estes brutos covardes! Assim que conseguirmeu filho de volta,
Sr. Pyne, vou pôr toda a polícia para dar uma batida pelas
vizinhanças.Sefornecessárioalugoumcarroblindadoparalevar
Willardeamimparaaestação!—aSra.Petersestavacoradae
queriavingança.
— S-sim — disse Parker Pyne. — Minha cara senhora, é
possívelqueelesestejampreparadosparaessegestodesuaparte.
SabemqueumavezqueWillardestejadevolta,nadalheimpedirá
decolocartodaaredondezaemestadodealerta.
—Bem,oqueéqueosenhorquerfazer?ParkerPynesorriu
—Querotentarumplanoqueimaginei—olhouemtornodasala
de jantar. Estava vazia e ambas as cortinas dos lados estavam
fechadas. — Sra. Peters, conheço um homem em Atenas... um
joalheiro.Eleéespecialistaemótimosdiamantesartificiais...um
trabalhodeprimeiraclasse...—suavozeraquaseumsussurro,
agora: — Vou chamá-lo pelo telefone. Ele pode vir aqui hoje à
tarde,trazendoumaboacoleçãodepedras.
—Querdizerque...
—Elevaiextrairosdiamantesverdadeirosecolocaráemseu
lugarduplicatasfalsas.
—Mas,éacoisamaisformidávelquejáouvi!—aSra.Peters
olhou-ocomadmiração.
—Shhh!Nãofaleassimtãoalto.Quermefazerumfavor?
—Claro,
—Nãodeixeninguémseaproximardotelefoneenquantoeu
falo.
ASra.Petersconcordoucomacabeça.
Otelefoneeranoescritóriodogerente.Eleodesocupoucom
gentileza, depois de ter ajudado Parker Pyne a conseguir sua
chamada.Quandosaiudelá,encontrouaSra.Petersdoladode
fora.
—EstouapenasesperandooSr.ParkerPyne—disseela.—
Vamosdarumpasseio.
—Ah,sim,Madame.
O Sr. Thompson também estava no saguão. Aproximou-se
deles e começou a conversar com o gerente. Havia vilas para
alugaremDelfos?Não?Masdeviahaveralgumapertodohotel?
— Esta pertence a um senhor grego, Monsieur. Ele não a
aluga.
—Enãoháoutrasvilas?
— Há uma outra que pertence a uma senhora americana.
Ficadooutroladodacidade.Estáfechadaagora.
Eaindaháumaoutraquepertenceaumsenhoringlês,um
artista...ficanabeiradaencostaquedáparaItea.
ASra.Peters entrouna conversa.Anatureza lhederauma
vozalta,epropositadamenteelafaloubemalto—Ah!—disseela,
euadoraria terumavilaaqui!É tãosingelo, tãonatural.Estou
simplesmenteencantadacomolugar,nãoacha,Sr.Thompson?
Mas é claro que o senhor também deve estar gostando, para
querer alugar uma vila. É a primeira visita que faz aqui? Não
diga!
Continuoucomdeterminação,atéqueParkerPynesaíssedo
escritório.Elelhedirigiuumlevesorrisodeaprovação.
OSr. Thompsondesceu lentamente os degraus e se dirigiu
paraaestrada,ondesejuntoucomamãeintelectualesuafilha,
quepareciamestarsentindofrionosbraçosnus.
Tudo correu bem. O joalheiro chegou um pouco antes do
jantaremumônibuscheiodeoutrosturistas.ASra.Peterslevou
ocolaratéoquartodele.Eledeuumgrunhidodeaprovação.
—Madamepode ficar tranqüila.Vou fazero trabalho—ele
tiroualgumas ferramentasdeumapequenasacolae começoua
trabalhar.
Àsonzehoras,ParkerPynebateuàportadoquartodaSra.
Peters—Aquiestá!
Ele lhe entregou uma bolsinha de camurça. Ela deu uma
olhada:—Meusdiamantes!
—Silêncio!Aquiestáocolarcomaspedras falsasno lugar
dosdiamantes.Muitobom,nãoficou?
—Simplesmentemaravilhoso.
—Aristopouloséumsujeitoesperto.
—Nãoachaqueelesvãosuspeitar?
— Como? Eles sabem que a senhora está com o colar. A
senhoravaientregá-lo.Comopodemdesconfiardesseardil?
— Bem, acho que é maravilhoso — disse outra vez a Sra.
Peters,entregando-lheocolardevolta.—Seráqueosenhorpode
levá-loparaeles?Ouseráqueépedir-lhemuito?
—Éclaroquepossolevá-lo.Dê-meapenasacarta,paraque
eupossateradireçãosemenganos.Obrigado.Agora,boanoitee
boncourage.Seufilhoestaráaquiamanhãparatomarcafé.
—Tomaraquesim!
—Vamos,nãosepreocupe.Deixetudoporminhaconta.
A Sra. Peters não passou uma boa noite. Quando dormiu,
tevesonhoshorríveis.Sonhosondebandidosarmadosemcarros
blindados abriam uma fuzilaria contra Willard, que descia
correndodeumamontanhaemseuspijamas.Ficousatisfeitapor
acordar.Finalmentesurgiuoprimeirolampejodaaurora.ASra.
Petersselevantouesevestiu.Ficousentada—àespera.
Assetehorasbateramàsuaporta.Suagargantaestava tão
secaqueelaquasenãopôderesponder.
—Entre—disseela.
AportaabriueentrouoSr.Thompson.Elaolhouparaele.
Faltaram-lhe as palavras. Teve um pressentimento sinistro de
desgraça. E, entretanto, quando ele falou, sua voz era
absolutamentetranqüila.Eraumavozsuave,agradável.
—Bomdia,Sra.Peters—disseele.
—Comoseatreve,senhor!Comoseatreve...
—Asenhoradeve-medesculparestavisitatãoextemporânea
eaumahoratãomatinal—disseoSr.Thompson.—Mascomo
vê,tenhoumpequenonegócioaresolver.
ASra.Petersavançouparaafrentecomolhosacusadores.—
Entãofoiosenhorquemraptoumeumenino!Nãoerambandidos
afinal!
—Élógicoquenãoerambandidos.Acheiaquelaparte,aliás,
muitopoucoconvincente.Nomínimo,muitosemgosto,eudiria.
ASra.Peterseraumamulherdeumasóidéia—Ondeestáo
meufilho?—perguntouelacomolhosdeumaonçaraivosa.
—Para falar a verdade—disse oSr. Thompson—ele está
atrásdaporta.
—Willard!
A porta escancarou-se. Willard, pálido, de óculos e com a
barbaporfazer,foiesmagadocontraocoraçãodesuamãe.OSr.
Thompsonficoualidepé,bondosamenteobservandoacena.
—Dequalquerjeito—disseaSra.Peters,recompondo-sede
repente e voltando-se para ele, vou pôr a polícia em cima do
senhor.Ah,sim,éoqueeuvoufazer.
— A senhora não está entendendo nada, mãe — disse
Willard.—Foiestesenhorquemmesalvou.
—Ondeéquevocêestava?
—Numacasasobreaencosta.Aumquilômetroemeiodaqui.
—Epermita-me,Sra.Peters—disseoSr.Thompson,—de
lhedevolveroquelhepertence.
Entregou-lheumpequenopacotemalamarradoempapelde
embrulho.Opapelcaiu,revelandoocolardebrilhantes...
— Não precisa guardar o outro saquinho de pedras, Sra.
Peters—disseoSr.Thompsonsorrindo.—Aspedrasverdadeiras
ainda estão no colar. O saquinho de camurça contém algumas
ótimaspedrasdeimitação.Comodisseoseuamigo,Aristopoulos
équaseumgênio.
—Não estou entendendo nemumapalavra—Disse o Sra.
Petersdèbilmente.
—Deveobservarestecasodomeupontodevista—disseo
Sr. Thompson. — O que me chamou a atenção foi um
determinadonome.Tomeialiberdadedeseguirasenhoraeseu
amigogorduchopordetrásdasportaseouvitudo...admitocom
franqueza... tudo sobre a sua conversa altamente interessante.
Achei-a tão extraordinariamente sugestiva que fiz minhas
confidencias ao gerente. Ele tomou nota do número que o seu
possívelamigochamoupelotelefone,e feztambémcomqueum
garçomescutasseasuaconversaontemdemanhãnorefeitório.
O plano funcionou às mil maravilhas. A senhora ia sendo
vítimadeumadupladevivíssimosladrõesdejóias.Elessabiam
sobreoseucolardebrilhantes;seguiram-naatéaqui; raptaram
seufilhoeescreveramaquelaquasecômicacartados"bandidos";
econseguiramqueasenhoraconfiassenochefee inspiradordo
conluio.
Depois, foi tudo muito simples. O gentil cavalheiro lhe
entrega a bolsinha com os brilhantes falsos... foge com seu
companheiro.Hojedemanhã,quandoseufilhonãoaparecesse,a
senhora ficaria desesperada. A ausência de seu amigo levaria a
crer que ele também fora raptado. Imagino que eles tenham
arranjado alguém para ir até á vila amanhã. Esta pessoa
descobriria seu filho, e aí então, os dois raciocinando juntos,
talvezdescobrissemumavaga insinuaçãodoplano.Masaestas
horasosbandidosjáteriamumaboadianteira.
—Eagora?
— Ah, agora eles estão bem seguros atrás das grades. Já
arranjeitudo.
—Aquelebandido—disseaSra.Peters,relembrandofuriosa
as suas próprias confidencias. Aquele patife falador e sem-
vergonha!
—Umcamaradamuitoàtoa—concordouoSr.Thompson.
— Não posso imaginar como foi que descobriu — disse
Willardcomadmiração.—Foigenialdesuaparte.
O outro balançou a cabeça modestamente — Não, não —
disse. — Quando se está viajando incógnito e se escuta o seu
próprionomeserproclamadoporaí...
ASra.Petersolhou-o—Queméosenhor?—perguntouela
inopinadamente.
—EusouoSr.ParkerPyne—explicouocavalheiro.
SobreaAutora
AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo
livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro
romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um
mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao
mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação
psicológica.
NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,
Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai
americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na
infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo
descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,
seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o
criadordeSherlockHolmes.
Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm
papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos
quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz
Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando
especialmenteosrefugiadosbelgas.
Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da
vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha
de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando
pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,
durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e
detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por
envenenamento”,costumavadeclarar.
“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro
mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão
traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões
deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela
quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão
apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.
Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a
mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.