agamben - o homem sem conteúdo - trecho

21
Na ce ecei ra so brc a Genea logia da moral, Nice2schc subm ete a defini(io kantiana do belo como prazcr dcsintcrcssado a uma cricica radical: K:mt - cle escreve - que estnoa honrando a arte qu3ndo. emte os pn:dicodos do bclo, concedeu tun> privi)cgiada aqudc$ dos quais o conhecimento se orgulh:'l: impessoalidade e a univers:'llid:.de. Este niio e 0 1U8'f'C' pnn) exami n. :w se isso n5o fui um e1 ·ro capjc.'\1; :lpe n.as lbzcc notar que K. ttm,como todos os fi.l6sofi)s, em v( -z de considcra r o pr oWcma csc C:tko zu cxpcrie ncia do arc is ta (do criador), medicou sobre 1 artc eo belo :tpetus como cst)(llad or e. irl$en .si velmeme. irllrodu:;iu o cspe<::tador no conceito de /Klan. Se. ao menos. <:SSe 01p«tndor rio;eso;e sido mente conhccido pclos fi16so(os do bclo! - se m.-.:sse sido pan clcs um tat:.O p<.."SSOal, unu e.'<pcri.Cncia. o de uma quanridade de orig in:Jis c sblidas, de desejos. de surpre53.s, de 1 10 len·i L6rio do hel ol M;l '\ fo i sempre - temo - Q contr5rio: de modo do ink io ao fi m, el es dc::firl ivoes cOn'IO na ct:lebre defu1l<;tlo do bdo d<.: Kane, ha tuua de uma $ l1Cil pc:ssoo1l .sc asscmclha mu ito ao grande V<:nnc do crro fund.'llllcnt>l. 0 bclo, diz Kant, c aquilo que II

Upload: liene-saddi

Post on 10-Nov-2015

66 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Trecho de "o homem sem conteúdo" (Agamben).

TRANSCRIPT

  • Na ceeceira d issert posi~ privi)cgiada aqudc$ dos quais o conhecimento se orgulh:'l: ~ impessoalidade e a univers:'llid:.de. Este niio e 0 1U8'f'C' pnn) examin.:w se isso n5o fui um e1ro capjc.'\1; q~ero :lpen.as lbzcc notar que K.ttm,como todos os fi.l6sofi)s, em v(-z de considcrar o proWcma cscC:tko fundando~sc zu cxpcriencia do arcista (do criador), medicou sobre 1 artc eo belo :tpetus como cst)(llador e. irl$en.sivelmeme. irllrodu:;iu o cspe
  • agrada sem que a isso se misture o interesse. Sem interesse! Comparem corn essa defmi
  • avec la realite et le danger"6, devia sentir par uma epoca que tinha uma ideia tao concreta e interessada do teatro para julgar necessaria - para a saude da alma e da cidade - a sua destruir;ao. E superfluo recordar que hoje seria inutil buscar ideias semelhantes ate mesmo entre os censores; mas nao sera talvez inoportuno fazer notar que a primeira vez que alga de semelhante a uma considerar;ao autonoma do fenomeno estetico faz a sua aparir;ao na sociedade europeia medieval e na forma de uma aversao e repugnancia em relar;ao a arte, nas instrur;oes daqueles bispos que, frente as inovar;oes musicais da ars nova

    7, vetavam a modular;ao do canto e afractio vocis durante

    os oficios religiosos, porque, com o seu fascinio, distra.iam os fieis. Entre os testemunhos a favor de uma arte interessada, Nietzsche pode, assim, citar uma passagem da Republica de Platao, que e repetida frequentemente quando se fala de arte scm que a atitude paradoxa! que nela encontra expressao te-nha, par isso, se tornado menos escandalosa para urn ouvido moderno. Platao, como se sabe, ve no poeta um elemento de perigo e de ruina para a cidade: "Se um tal homem", ele escreve, "aparecer na nossa cidade para se apresentar em pu-blico e recitar as suas poesias, n6s nos prosternarernos diante dele como diante de um ser sagrado, maravilhoso e encanta-dor; mas lhe diremos que, na nossa cidade, nao ha lugar para homens como ele e, depois de ter-lhe coberto a caber;a com perfumes e te-lo coroado com grinaldas, o mandaremos para

    6 Em frances, no original. Traduc;:ao: "por urn a ligac;:ao miigica, atroz, com a realidade e o perigo". (N. T.)

    7 Ars nova foi o nome dado a um novo mftodo de notac;:ao musical, ars nova notandi; o metodo propiciou o desenvolvimento de um novo estilo musical, que acabou por receber o mesmo nome, vigorando no scculo XIV, especialmente na Fran~a e na l tilia. Suas principais distin~oes forma is e esteticas em rela~iio a fase anterior apareceram nos campos do ritmo, da harmonia e da tematica, sendo privilegiados OS generos de musica profana; tambcm foram criadas ou se popularizaram varias cstru turas novas de composic;:ao, como o moteto e o madrigal. (N. T.)

    20 FILOAGAMBEN

    uma outra cidade"8, porque, "em termos de poesia", Platao acrescenta com uma expressao que faz estremecer a nossa sensibilidade estetica, "s6 se deve admitir na cidade os hines aos deuses eo elogio dos homens de bem"9 .

    Mas, rnesrno antes de Platao, uma condenar;ao ou ao menos urna suspeita em relar;ao a arte ja tinha sido expressa na palavra de urn poeta e ao fim do primeiro estasimo da Ant4ona de S6focles. Ap6s haver caracterizado o homem, enquanto possui a -reXVTl (isto e, no ample signifi.cado que os gregos davam a essa palavra, a capacidade de pro-duzir, de levar uma coisa do nao ser ao ser), como aquila que ha de mais inquietante, o cora prossegue dizendo que esse poder pode conduzir tanto a felicidade quanta a ruina e conclui com urn veto que faz lembrar o banimento platonico:

    8 PLATAO. Republica,398a. Piatao diz,mais precisamente: "Se urn homem capaz de assum.ir todas as formas e de imitar todas as coisas ... ". Na Republica, o alvo de Platao e, de fato, a poesia imitativa (isto e, aquela que, atraves da imita~ao das paixoes, busca suscitar as mesmas paixoes no espirito dos ouvintes) e nao a poesia simplesmente narrativa (Olll"(Tl

  • Que da minha lareira nao se torne intima Nem partilhe os meus pensamcntos Aquele que leva a cabo tais coisas10

    Edgar Wind observou que, se a afirma~ao de Platao nos surpreende tanto, e porque a arte nao exerce mais sabre nos a mesma infiuencia que tinha sabre ele11 . Somente porque a arte saiu da esfera do interesse para se tornar simplesmente interessante, ela encontrajunto a nos uma acolhida tao boa. Em urn esbo~o escrito por Musil em unu epoca na qual nao tinha ainda clara en"l mente o desenho definitive do seu romance, Ulrich (que aparece aqui ainda como nome Anders), entrando na sala em que Agathe esta tocando o piano, sente um obscure e incontrolavel impulso que o impele a disparar alguns tiros de pistola contra o instrumento que difunde na casa uma harmonia tao "desolado-ramente" bela; e e provavel que, se tentassemos interrogar ate 0 fundo a pacifica aten~ao que, ao contrario, costumamos reservar a obra de arte, acabariamos por concordar com Nietzsche, que pensava que 0 seu tempo nao tinha nenhum direito de dar uma resposta a pergunta de P1atao acerca da infiuencia moral da arte, porque "mesmo que tivessemos a arte- onde temos a infiuencia, uma infl.uencia qualquer que seja da arte?"12 .

    Platao, e o mundo grego classico em geral, tinham da arte uma experiencia muito diferente, que tem muito pouco aver com o desinteresse e com a fruiyao estetica. 0 poder da arte sabre o espirito lhe parecia tao grande que ele pensava que ela poderia, sozinha, destruir o proprio fundamento da sua cidade;

    10 SOFOCLES. Ant{gona, v. 372-375. Para a interpretar,:ao do primeiro coro da Arztigona, cf. HElD EGGER, Martin. Einjuhrut1g in die Metaphysik (1953), p. 112-23. [Ed. bras.: Introdu~ao J metaflsica.Tradur,;ao de Emmanuel Carneiro Leao. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1987. p. 170-186.]

    11 WIND, Edgar. Art and Anarchy [New York: Knop,] (1963), p. 9. (Consta tradur,:ao para o espanhol dcsta obra: Arte y Anarquia.Taurus, 1986.]

    12 NIETZSCHE, Friedrich. Humarro, demasiado ht-t~nano, aforismo 212. (Ed. bras.: Humano, demasiado humano. Tradur,:ao de Paulo Cesar de Souza. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2000.]

    22 FILOAGAMBEN

    e, todavia, se ele era constrangido a bani-la, o fazia, mas apenas a contragosto, "ro~ ~DVtCJ)..!EV ys TJ)..!lV a-lrro1~ Kl']AOD)..!EVOl~ 1m' auTI)s", "porque temos consciencia do fascinio que ela exerce sabre nos" 13.A expressao que ele usa quando quer defi-nir OS efeitos da imaginar;:ao inspirada e 8do~ cpoPos, "terror divino", uma expressao que nos parece indubitavelmente pouco adequada para definir a nossa reayao de espectador benevolente,

    ' mas que se encontra sempre com mais frequencia, a partir de urn certo momenta, nas notas nas quais os artistas modernos buscam ftxar a sua experiencia da arte.

    Parece, de fato, que, paralelamente ao processo atraves do qual o espectador se insinua no conceito de "arte" para conftna-la no t6rco~ oupavws da esteticidade, do ponto de vista do artista, assistimos a urn processo oposto. A arte - para aquele que a cria - torna-se uma experiencia cada vez mais inquietante, a respeito da qual falar de interesse e, para dizer 0 rninimo, um eufemismo, porque aquila que esta emjogo nao parece ser de modo algum a produyao de uma obra bela, mas a vida ou a morte do autor ou, ao menos, a sua saude espiritual. A crescente inocencia da experiencia do espectador frente ao objeto belo, corresponde a crescente periculosidade da experi-encia do artista, para 0 qual a promesse de bonheur da arte toma-se o veneno que contamina e destroi a sua existencia. Imp6e-se a ideia de que um risco extrema esteja implicito na atividade do artista, quase como se ela, como pensava Baudelaire, fosse uma especie de duelo ate a morte "ou l'artiste erie de frayeur avant d'etre vaincu" 14; e, para provar quao pouco essa ideia e simplesmente uma metafora entre outras que formam as properties do literary histrio15, bastam as palavras de Holderlin no

    13 PLATAO. Republica, 607c. H Em frances, no original. Tradu.;:ao: "on de o artista grita de horror antes

    de ser vencido". (N. T.) 15 R.eferencia ao "histriao literario" descrito por Edgar Alan Poe em "A

    filosofia da composir,:ao". (N. T.)

    GIORGIO AGAMBEN 0 HOM EM SEM CONTEUDO 23

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • lirniar da loucura: "Temo que acontec;a cornigo o que acon-teceu com o antigo Tantalo, ao qual os deuses concederam mais do que podia suportar ... " e "posso muito bem dizer que Apolo me atingiu"16; e aquelas que se leem no bilhete que foi encontrado no bolso de Van Gogh no dia da sua morte: "Eh bien, mon travail a moi, j 'y risque rna vie et rna raison y a fondre a moitie ... " 17 . E Rilk:e, em uma Carta a Clara Rilke: "As obras de arte sao sempre o produto de um risco que se correu, de uma experiencia levada ate o extrema, ate o ponto em que 0 homem nao pode mais continuar"18

    Outra ideia que encontramos, cada vez mais frequente entre as opinioes dos artistas, e que a arte e alga fundamen-talmente perigoso nao apenas para quem a produz, mas tam-bern para a sociedade. Horderlin, nas notas em que procura condensar o sentido da sua tragedia inacabada, discerne uma estreita associar;:ao e quase uma unidade de principia entre o desenfreamento anarquico dos agrigentinos e a poesia titanica de Empedocles; e, em urn projeto de hino, parece considerar a arte como a causa essencial da ruina da Grecia:

    Porque eles queriam fundar urn Imperio da arte. Mas, neste, eles perderam a terra natal, e, atrozmente,

    a Grecia, beleza suprema, arruinou-se 19 .

    1" Segundo Giorgia Albert, tradutora de 0 homern sem conteUdo para o ingles,

    trata-se das cartas de Friedrich Holderlin para Casmir Ulrich Bohlendorff (carta numero 236, de 4 de dezembro de 1801, e numero 240,de novem-bro de 1802 (?)). Ha uma tradu~ao americana das cartas: HOLDERLIN, Friedrich. Essays and letters on theory. Tradu~ao de Thomas Pfau. Albany: State University ofNewYork Press, 1988,p.151- 152. (N.T.)

    17 Em frances, no original. Tradu~ao: "Bern, meu trabalho, eu arrisco nele a minha vida e a minha razao se dissolveu nele pela metade ... " (N.T.)

    IH Cf. RILKE, Rainer Maria. Cartas sabre Cezanne.Tradu~ao e prefacio de Pedro Si.issekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. (N. T.)

    19 HOLDERLIN, Friedrich. Siimtliche IM?rke. Hg. von F. Beissner (Stuttgart, 1943), II, p. 228.

    24 FILOAGAMBEN

    E e provavel que, em toda a literatura moderna, nao dis-cordariam dele nem MonsieurTeste20 , nem WerfRonne21 , nem Adrian Leverki.ilm22,mas apenas um personagem que parece irre-mediavelmente de mau gosto como o Jean-Cristophe23 de Rolland.

    Tudo faz pensar, antes, que, se confiassemos hoje aos pr6prios artistas a tarefa de julgar se a arte deve ser admitida na cidade, eles,julgando segundo a sua experiencia, estariam de atordo com Platao quanto a necessidade de bani-la.

    Se isso e verdade, o ingresso da arte na dimensao es-tetica - e a sua aparente compreensao a partir da a1aEhj0lS do espectador - nao seria cntao um fenon"leno tao inocente e natural como ja estanws habituados a representa-lo. Talvez nada seja mais urgente - se quisermos colocar de verdade o problema da arte no nosso tempo - que uma destruij:Cio da estetica que, desobstruindo o campo da evidencia habitual, permita colocar em questao o sentido mesmo da estetica enquanto ciencia da obra de arte. 0 problema, porem, e se 0 tempo e maduro para uma semelhante destrUij:aO, e Se ela nao teria, ao contrario, como consequencia simplesmente a perda de todo horizonte possivel para a compreensao da obra de arte eo abrir-se, fiente a esta, de un"l abismo que somente um salto radical poderia permitir superar. Mas talvez seja exata-mente de uma tal perda e de urn tal abismo que n6s tenhamos necessidade, se quisermos que a obra de arte recupere a sua estatura original. E, se e verdade que e somente na casa em chamas que se torna visivel pela primeira vez o problema arquitetonico fundamental, n6s estamos talvez hoje em uma

    ~0 Personaem de La soiree avec monsieur Teste (1896), de Paul Valery (1871-o 1945). (N.T.)

    21 Persona gem de Gelzime (19 16), de Gottfried Benn (1886-1956). (N. T.) 22 Pcrsonagem de Doktor Fm1st11s (1947), de Thomas Mann (1875~ 1955). (N.T.) n Personagem de jean-Christophe, romance publicado por Romain Rolland

    (1866-1944) em dez volumes de 1904 a 1912. (N. T.)

    GIORGIO AGAMBEN 0 HOMEM SEM CONTEUDO 25

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • posi
  • De que modo a arte, a ocupa~ao ma1s inocente de todas, pode expor o homem ao Terror? Paulhan, nas Fleurs de Tarbes 1, partindo d e uma amhguidade funda1nental da linguagem - para a qual, por un1 lado, ha signos que caem sob os sentidos e, por outro, ideias associadas a esses signos de modo a serem imediatamente evocadas por eles - , distingue, entre os escritores, os Ret6ricos, que dissolvem todo o sig-nificado na forma e fazem desta a {mica lei da literatura, dos Terroristas, que se recusam a se do~rar a essa lei e perseguem o sonho oposto de uma linguagem que nao seja mais que sentido, de urn pensamento em cuja flama o signa se consu-ma inteiramente colocando o escritor diante do Absoluto. 0 Terrorista e mis6logo e, na gota d'agua que resta na ponta dos seus dedos, nao reconhece mais o mar no qual acreditava ter se imergido; o Ret6rico olha, ao contrario, para as palavras e parece desconfiar do pensamento.

    1 PAULH AN, Jean. Les jleurs de Tarbes 01-1 La lerreHr dam /es lettres. Paris: Gallimard, 1990. (Collection Follio [Poche]). (N. T.)

    29

    LieneHighlight

  • Que a obra de arte seja outra coisa, diferente do que nela e simples coisa, e, por fim, obvio demais, e e isso que OS gregos exprimi~m no conceito de alegoria: a obra de arte 0./J..JJ ayopcUEt, comunica outra coisa, e outra em rela
  • com o paradoxa do Terror. Para sair do mundo evanescente das formas, ele nao tern outre meio senao a propria forma; e quanta mais quer apaga-la, tanto mais deve se concentrar nela para torna-1a permeavel ao indizivel que quer exprimir. Mas, nessa tentativa, ele acaba por se encontrar nas maos apenas dos signos que, e verdade, passaram atraves do limbo do nao sentido, mas que nem por isso sao menos estranhos ao sentido que ele perseguia. Fugir da Retorica o conduziu ao Terror, mas o Terror o reconduz ao seu oposto, isto e, mais uma vez a Retorica. Assim, a misologia deve se transfer mar, invertendo-se, em filologia, e signo e sentido se perseguem em urn perpetuo circulo vicioso.

    0 complexo significante/significado faz, de fato, tao indissoluvelmente parte do patrimonio da nossa linguagem, pensado como

  • ela apresenta alternativamente duas faces, que nao e possivel recompor en"l uma unidade: a face voltada para o artista e a realidade vivente na qual ele le a sua promessa de felicidade; mas a outra face, aquela voltada para o espectador, e um con-junto de elementos scm vida que pode apenas se espelhar na imagem que dele devolve o juizo estetico.

    Essa duplicac;:ao entre a arte tal qual e vivida pelo espec-tador e a arte tal qual e vivida pelo artista e precisamente 0 Terror, e a oposir;ao entre o Terror e a Ret6rica nos reconduz, assim, a oposir;ao entre artistas e especcadores da qual partimos. A estetica nao seria, entao, simplesmente a determinar;:ao da obra de arte a partir da aicr811crt

  • Em torno da metade do seculo XVII, aparece na socieda-de europeia a figura do homem de gosto, isto e, do hom em que e dotado de uma particular faculdade, quase de urn sex to senti do-como se comec;:ou a dizer entao - que lhe permite colher o point de peifection que e caracteristico de toda obra de arte.

    Os caracteres, de La Bruyere, registram sua aparic;:ao como um fato doravante familiar; o que to rna ainda mais dificil, para um ouvido moderno, perceber o que haveria de ins6lito nos termos com OS qu ais e apresentado esse desconcertante pro-t6tipo do homem estetico ocidental. "Il y a dans 1' art" , escreve La Bruyere, "urn point de perfection, conune de bonte ou de maturite dans la nature: celui qui Ie sent et qui l'aime ale gout parfait; cclui qui ne le sent pas, et qui aime au dec;:a ou au del a, a le gout defectueux. I y a done un bon et un mauvais gout, et l'on dispute des goCm avec fondement" 1

    1 LA BRUYER.E,Jean.l..es Caracteres, au les moeurs du siec/e, cap. I. Des ouvrages de !'esprit. (Citado em fiances, no original.Traduyao:" H:i na arte um ponto de pe1feic;:ao, como de bondade ou de maturidade na natureza: aqueJe yue o sente e que o ama tem o gosto perfeito; aquele que nao o sente e que ama aquem ou alem (desse ponte] tern o gosto defeituoso. Ha, port:anto, urn borne ummau gosto, e disputamos sobre os gostos com fundamento" .]

    37

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • Para ter a dimensao de toda a novidade dessa figura, e necessaria dar-se conta de que, ainda no seculo XVI, nao existia uma clara linha de demarca
  • mais precisa;e, com ela, o particular genera de reas:ao ps.lquica que levari ao nascimento daquele misterio da sensibilidade moderna que e 0 juizo estetico, comec;:a-se, de fato, a olhar a obra de arte (ao menos ate que nao esteja tenninada) como urn assunto de competencia exclusiva do artista, cuja fantasia criativa nao tolera nem lirnites nem imposis;oes, ao passo que ao nao artista resta ap;;.nas spectare, isto e, transformar-se em urn partner sempre mrnos necessaria e sempre mais passive, ao qual a obra de arte1 se llmita a fornecer a ocasiao para urn exercicio de born gosto. A nossa moderna educas:ao estetica nos acostumou a considerar nom
  • Dicionario6 junto ao termo "artistas": "s' etonner de ce qu ' ils sont habilles conune toutle monde"7 . Quanta mais o gosto procura libertar a arte de toda cont~minac;:ao e de toda inge-rencia, tanto mais impura e noturna se torna a face que ela volta para aqueles que devem produzi-la; e nao e certamente um acaso se, como aparecimento, no curso do seculo XVII, do tipo do falso genio, do homcm obcecado pela arte n1.as mau artista, a figura do artista comes;a a lans;ar uma sombra da qual nao sera mais possivel separa-la nos seculos futuros8.

    ***

    Tambem o homem de gosto, como o artista, tem a sua sombra, e e talvez esta que convem agora interrogar se queremos ten tar de fato nos avizinhar do seu rnisterio. 0 tipo do homem

    6 A partir de 1850 Gustave Flaubert (1821-'1 880) come~a a dar forma a scu "Dictionnaire des idees re~ues", que ele chama tambem de "Catalogue des opinions chic" e que agrupa defini~6es e aforismos de sua lavra. Uma mancira de debochar clisso que se chamaria hoje 0 pensamento pret a por-ter, as opini6es prontas. Esse dicionario, inacabado, s6 apareceu ap6s a sua morte, em 1913.0 Dicti0111'1aire deveria scr integrado a Bouvard et Nwc!tet. H1 uma edi~ao franccsa do Diciomirio integrado a Bouvarrl et Nwclzet: FLAUBERT, Gustave.Bozward et Pecuchet:Avec des jiug111ents du secor1rl volume, doni le Dictiotmaire des idees rerues. Paris: Editions Flanunarion, 2011. Para a edi~ao brasileira de B01warrl et Pecucilet: Bozward e Pecuchet. Tradu~ao de Marina Appenzeller. Sao Paulo: Esta~ao Liberdade, 2007. (N. T )

    7 Em frances, no original. Traduc,:ao: "espantar-se com o fa to de que cles se vestem como to do mundo". (N. T)

    s Foi obscrvado jocosamente que, sem a no~ao de "grande artista" (isto e, sem as distin~oes de qualidade entre artistas operadas pelo bom gosto), teria havido tambem mcnos maus artistas: "I...Ll notion de grand poe/e a engendre ph!s de petits poetes qu'il en hait raisonnablemmt a attmdre des C0/11 -binaisons r/11 sort" ["A no~ao de grande poeta engendrou mats pequenos poetas do que era razoavel.mente de se esperar das combina~oes do azar") (Valery, Tel q1~el, I, 35).Ja no fim do seculo XVI os te6ricos da arte disputavam sobre quem era o artista maier entre R afael,.Michelangelo e Ticiano; Lomazzo, no seu Tempo ria pirtwra (1590), resolv1a eclet1camente o problema descrevendo a pintura ideal como pintada porTiciano, sobre desenho de Michelangelo, segundo propon;oes estabelecidas por Rafael.

    42 FILOAGAMBEN

    de mauiJais gout nao e uma figura de todo nova na sociedade europeia; mas no curso do seculo XVII, exatamente quando se vai formando o conceito de bom gosto, ela adquire um peso e um relevo tao particular que nao devemos nos maravilhar se nos acontecer descobrir que o juizo de Valery que citamos mais acima, segundo o qual" le gout est fait de mille degouts", e entendido de um modo, absolutamente inesperado, is to e, no sentido de que o bom gosto e feito essencialmente do rnau gosto.

    0 homem de mar-tva is gout, como esti implicito na de-finic;:ao de La Bruyere, nao e simplcsmente aquele que, por !he. fal tar totalmente 0 6rgao para recebe-la, e cego para a arte ou a despreza: tem mauvais gout, muito mais, quem ama "aquem ou alem" do ponto justa e nao sabe, distinguindo o verdadeiro do falso, colher o point de peifection da obra de arte. Moliere nos deixou dele um retrato famoso no Bourgeois gentilhontme9 : Monsieur Jourdain na.o despreza a arte nem se pode dizer que seja indiferente ao seu fascinio; ao contrario, o seu maior desejo e ser um homem de gosto e saber discernir 0 belo do feito, a arte da nao arte; ele nao e apenas, como dizia Voltaire, "un bourgeois qui veut etre homme de qualite" 10, mas e tambem um hom me de mauvais gout11 ' que quer se tornar um homme de gout12 Esse desejo e ja por si mesmo um fato bastante misterioso, porque nao seve bem como alguem que nao tem gosto pode considerar o bom gosto como um valor;

    ~ Ed. bras.: MOLIERE. 0 burgues rid(w/o .Tradu~ao deJoseAlm.ino.Adap-ta~ao de Guel Arraes e Joao Faldio. Rio de janeiro: Sette Letras, 1996. Ha uma tradu~ao mais antiga: 0 Tartlifo; Escola de mulheres; 0 bur~r;ues

    .fidalgo. Sao Paulo:Abril Cultural, 1980. (N. T.). 10 [Em frances, no original. Tradus:ao: "um burgucs que quer scr homem

    de qualidade"] . Solllmaires des pieces de Moliere (1765). [Voltaire, Vie de Moliere avec des petits som111aires de ses pieces. Ed. Hugues Praclier. Paris, Gallimard, 1992. p. 65.]

    11 Em frances, no original. Tradu~ao : "hom em de mau gosto". (N. T.) 12 Em frances, no original. Traduvao: "hom em de gosto". (N. T)

    GIORGIO AGAMBEN 0 HOMEM SEM CONTEliDO 43

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • mas aquila gue e mais surpreendente e que, na sua comedia, Moliere parece considerar Monsieur Jourdain com uma cer ta indulgencia, como se o seu ingenuo mau gosto lhe parecesse menos estranho a arte que a sensibilidade refinada, mas dnica e corrupta, dos mestres que deveriam educa-lo e dos hommes de qualite13 que tentam engana-lo. Rousseau, embora pensasse que Moliere, na sua co media, tomasse o partido dos hommes de qualite, tinha se dado conta de que, a seus olhos, o personagem positivo s6 podia ser Jourdain, e, na Lettre aM. d"Alembert sur les spectacles14 , escrevia:"J'entends dire qu'il (Moliere) attaque les vices; mais j e voudrais bien que l'on comparat ceux qu'il ataque avec ceux qu 'il favorise. Quel est le plus blamable, d'un bourgeois sans esprit ct vain qui fait sottement le gen-tilhomme, ou du gentilhonunme fi ipon qui le dupe?"15. Mas o paradoxa de Monsieur Jourdain e que ele nao e apenas mais honesto do que OS seus mestres, mas, de algum modo, e tambem mais sensivel e aberto frente a obra de arte do que aqueles que deveriam ensina-lo ajulga-la: esse homem tosco e atormentado pela beleza, esse iletrado que nao sabe 0 que e a prosa tern tanto amor pelas letras que a simples ideia de que isso que ele diz seja de alguma maneira prosa e capaz de transfigura-lo. 0 seu interesse, que nao esta em condiyao de julgar o seu objeto, e mais proximo da arte que aquele dos homens de gosto, que, frente as suas petites lumieres, pensam que o seu dinheiro corrige os j uizos do seu cerebra e que ha discernimento no seu bolso. Estamos aqui em presenya

    13 Em frances, no original. TradU!;:ao: "homens de qualidade". (N.T.) ,., ROUSSEAU,Jean-Jacques. Lettre aM. d'Alembert sur les spectacles. Paris:

    Flammarion, 1993. (N. T.) 15 Em frances, no original. TradU!;:ao: "Eu ouyo dizer que ele (Moliere)

    ataca os vicios; mas eu bem que gostaria que se comparasse aqueles que elc ataca com agueles que ele favorece. Q ual e o mais censuravcl, urn burgues sem espirico e vaidoso que banca o cavalheiro de modo tolo ou o cavalheiro malandro 'lue o engana?" (N. T.)

    44 FILOAGAMBEN

    de um fenomeno muito curiosa, que prccisamente nesse momenta comeya a assumir proporc;:oes macrosc6picas: isto e, parece que a arte prefere m.uito mais se dispor no molde informe e indiferenciado do mau gosto a se espelhar no pre-cioso cristal do bom gosto. Tudo se passa, em sum a, como se o bom gosto, permitindo, a quem tern o seu dam., perceber o point de peifection da obra de arte, terminasse, na realidade, por torna-lo indiferente a ela; ou como se a arte, entrando no perfeito mecanisme recep tive do bom gosto, perdesse aquela vitalidade que um mecanisme menos perfeito, mas mais interessado, consegue, no entanto, conservar.

    E tem mais: mesmo que apenas por urn instante o homem de gosto reflita sobre si mesmo, tera que se dar conta de que nao apenas ele se tornou indiferente a arte, mas que, quanta mais 0 seu gosto se purifica, tanto mais a sua alma e espontaneamente atraida por tudo o que o bom gosto s6 pode reprovar, como se o bom gosto trouxesse em si a tendencia a se perverter e a se degenerar no seu oposto. A primeira constatayao daquilo que viria a se tornar um dos trayos mais evidentemente contradit6-rios (mas nem por isso menos inobservados) da nossa cultura se encontra em duas surpreendentes cartas de Madame de Sevigne de 5 e 12 de julho de 1671; falando dos romances de intriga que comeyavam,justamente naquele momenta, a se difundir em um publico restrito, esta perfeita femme de gout16 se pergunta como se pode explicar a atrayao que ela experimenta por obras de tao rna qualidade:"Je songe quelque fois", ela escreve,"d'ou vient la folie que j'ai pour ces sottises-la:j'ai peine a le comprendre.Vous vous souvenez peut-etre assez de moi pour savoir a quel point je suis blessee des mechants styles;j'ai quelque lumieres pour les bons, et personne n' est plus touchee que moi des charmes de 1' eloquence. Le style de La Calprenede est maudit en mille endroits; de grands periodes de roman, de mechants mots; je

    16 Em frances, no originai.Traduyao:"nmlher de gosto". (N.T.)

    GIORGIO AGAMBEN 0 HOMEM SEM CONTEUDO 45

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • sens tout cela .. . Je trouve que celui (le style) de La Calprenede est detestable, et cependant je ne laisse pas de m'y prendre comme a de 1a glu: la beaute des sentiments, la violence des passions, la grandeur des evenements et le sucd~s miraculeux de leurs redoutables epees, tout cela m'entraine COlTJ.rne une petite fille; j'entre dans leur dessin; et sije n'avais pas M . ~e La Rochefoucauld et M. d'H acqueville pour me consoler,Je me

    . t:: "bl " 17 pendrais de trouver encore en mo1 cette 1a1 esse . Esse inexplicavel penchant do bom gosto pelo seu oposto

    se tornou tao familiar ao homem moderno, que ele nao fica mais nem mesmo surpreso com isso e nao se pergunta mais (coisa que, no entanto, seria natural) como e possiv~l que o seu gosto se divida entre objetos tao incompativets como as Elegias a Dui11o e os rornances de Jan Fleming, as tela~, de Cezanne e os bibelots em estilo floral. Quando Brunettere, dois seculos depois de Madame de Sevigne, volta a observar esse reprovavel impulso do bom gosto, este se tornou, ne~se meio-tcmpo, tao forte que o critico, mesmo man tendo a dis-tin

  • r I I

    mais uti1 se comepssem a se perguntar, antes de tudo, como foi possive1 que justamente uma elite refinada tivesse senti do a necessidade de criar, para sua propria sensibilidade, objetos vulgares. D e resto, por pouco que olhemos a nossa volta, nos damos conta de que a literatura de entretenimento esta hoje voltando a ser o que era na origem, isto e, um fen6meno que envolve OS estratos altos da cultura mais ainda do que OS me-dias e OS baixos; e certamente nao e para nos uma honra que, entre tantos intelectuais que se ocupam quase exclusivamente do Kitsch e de feuilletons, nao haja uma Madame de Sevigne disposta a se crucificar por essa sua fraqueza.

    Quanto aos artistas, estes nao demoraram muito a apren-der a liyao de La Calprenede e comepram a introduzir, pri -meiro insensivelmente, mas depois de maneira cada vez mais declarada, o mau gosto na obra de arte, fazendo da beaute des sentiments, da violence des passions e do succes miraculeux de leurs redoutables epees20, como de tudo que podia suscitar e manter desperto o interesse do leitor, um dos recursos essenciais da ficyao literiria. 0 seculo que viu Hutcheson e OS outros te6ricos do gosto elaborarem o ideal do uniform.e e do har-monica como fundamento da beleza, viu tambem Marino teorizar a sua poetica da admirac;ao e assistiu aos excessos e as extravagancias do barroco. No teatro, OS defensores da tragedia burguesa e da comedia larmoyant~1 acabaram por triunfar sobre seus adversirios classicistas e, quando Moliere, em Monsieur de Pourceaugnac, quis representar dois medicos que tentam fazer um enema no relutante protagonista, nao se limitou a trazer para a cena apenas uma canula, mas toda a sala foi invadida par canulas. Os genres tranches22, OS unicos admitidos pelos puristas do gosto, foram pouco a pouco

    20 Em frances, no originaL Tradw,:ao: "da beleza dos sentimentos, da violencia das paixoes e do sucesso milagroso de suas.formidaveis espadas". (N. T.)

    21 Em frances, no orginal. Tradw;:ao: "lacrimejante". (N. T.) 22 Em frances, no originaL Tradu~ao: "generos puros". (N. T.)

    48 FILOAGAMBEN

    substituidos por generos rnenos nobres, mistos, cujo prot6tipo era justamente o romance, o qual, nascido para satisfazer as exigencias do rnau gosto, acabou par ocupar o posto central na produc,:ao literiria. No final do seculo XVIII, apareceu, alias, urn genera, o gothic romance, que se fundava em uma pura e simples inversao dos criterios do bon gout, e OS rornanticos, na sua luta por uma arte interessada, se serviram. sem escru-puloS" desse procedimento para dar de novo a arte, atraves do horror e do terror, aquela zona do espirito que o bom gosto tinha acreditado que deveria ser excluida para sernpre da participayao estetica. Essa rebeliao do mau gosto levou a uma verdadeira e autentica contraposiyao entre poesie e gout (ou esprit), tanto que urn escritor como Flaubert, que, mesmo que tivesse tido por toda a vida a obsessao da solenidade e da pompa, podia escrever em uma carta a Louise Colet: "Para ter aquila que se costuma chamar de mau gosto, e preciso ter poesia no cerebra; 0 esprit, ao contririo, e incompativel com a verdadeira poesia". Is to e, parece que genio e born gosto nao podem conviver no mesmo cerebra, e que 0 artista, para ser tal, deve antes de tudo se diferenciar do homem de gosto. N esse rneio-tempo, a declarayao prograrnatica de mau gosto de Rim baud em Une saison en en fer ("]' aimais les peintures idiotes, dessus de portes, decors, toiles de saltimbanques, en-seignes, enluminures populaires; la litterature demodee, latin d' eglise, livres erotiques sans ortographe, romans de nos aieuls, contes de fees, petits livres de 1' enfance, operas vieux, refrains niais, rhythrnes naifs")Z3 se tornou de tal modo famosa que

    23 Em frances, no original.Tradu~ao: ("Eu amava as pinturas idiotas, enfeites de portas, cenarios, telas de saltimbancos, bandeiras, gravuras populares; a literatura fora de moda, o Ia tim de igreja, livros er6ticos sem ortografia, romances de nossas bisav6s, contos de fad as, pequenos livros da inrancia, velhas operas, refroes tolos, ritmos ingenuos". 1-la mais de uma tradu~ao brasileira para esta obra de Rimbaud. Citemos duas:RIMilAUD,Arthur. Uma temporada tlo in.femo.Tradu~ao de Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006. E: Uma temporada no in.femo.Traduc;:ao de Ledo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2004. (N. T.)

    GIORGIO AGAMBEN 0 HOM EM SEM CONTELJDO 49

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

    LieneHighlight

  • custamos a perceber que, neste catilogo, pode-se encontrar todo o outillage24 familiar da consciencia estetica contem-poranea; no plano do gosto, aquilo que era exd:ntrico no tempo de Rimbaud se tornou algo como o gosto medio do intelectual e penetrou tao profundai11ente no patrim6nio do bon ton a ponto de fazer dele um verdadeiro e autentico signo distintivo. 0 gosto contemporaneo reconstruiu o castelo de Hesdin: mas na i1ist6ria nao existem bilhetes de retorno, e, antes de entrar nas salas e admirar aquilo que nos e oferecido, faremos talvez bem em nos interrogarmos sobre o sentido dessa incomparavel zombaria feita a n6s pelo nosso bom gosto.

    ***

    0 bom gosto nao tem. apenas a tendencia a se perverter e se degenerar no seu oposto; is to e, de algum modo, 0 proprio prindpio de toda perversao e sua aparic,:ao na consciencia parece coincidir com o inicio de um processo de inversao de todos os valores e de todos os conteudos. No Bourgeois gentilhomme, a oposic,:ao entre mauvais go~lt e bon go {it era tambem aquela entre honestidade e imoralidade, entre paixao e indiferenc,:a; perto do flm do seculo XVIII, OS homens comec,:am a olhar 0 gosto estetico como uma especie de antidote do fruto da arvore do conhecim.ento, o qual, ap6s ter sido experimentado, torna im-possivel a distinc,:ao entre o bem e o mal. E,ja que as portas do jardim do Eden estao fechadas para sempre, a viagem. do esteta para alem do bem e do mal se conclui, fatalmente, sob o signo de uma tentac,:io diab6lica. Isto e, avanc,:a a ideia de que existe um secreta parentesco entre a experiencia da arte e o mal, e que, para entender a obra de arte, a ausencia de preconceito e o Witz sao instrumentos muito mais preciosos do que uma boa consciencia. "Quem nao despreza", diz um personagem da Lucinde de Schlegel, "nio pode nem mesmo apreciar. Uma

    2" Em frances, no original. Tradu\:ao: "conjunto de ferramentas". (N. T.)

    50 FILOAGAM8EN

    certa maldade estetica (astetische Bosheit) e uma parte essencial de uma formac,:ao harmoniosa"25 .

    As portas da Revoluc,:ao francesa, esta singular perver-sao do homem de gosto foi levada ao extrema por Diderot em uma breve satira que, traduzida em alemao por Goethe quando ainda estava manuscrita, exerceu uma grande influ-encia sobre o jovem Heg-el. 0 sobrinho de Rameau e, ao mesmo tempo, um homem de gosto extraordinario e um canalha ign6bil; nele se apagou toda diferenc,:a entre bern e mal, nobreza e baixeza, virtude e vicio: apenas o gosto, em meio a absoluta perversao de toda coisa no seu oposto, manteve a sua integridade e a sua lucidez. A Diderot, que lhe pergunta: "comment se fait-il qu'avec un tact aussi fin, une si grande sensibilite pour les beautes de l'art musical, vous soyez aussi aveugle sur les belles chases en morale, aussi insensible aux charmes de la vertu?"26 , ele responde que "c'est apparemment qu'il y a pour les unes un sens que je n'ai pas, une fibre qui ne m 'a point ete donnee, une fibre Iache qu'on a beau pincer et que ne vibre pas"27 Isto e, no sobrinho de Rameau, o gosto agiu como uma especie de

    25 SCHLEGEL, Friedrich. Lucindc, 6, Idylle iiber den Mussiggang. [ Luci11de. In: Kritische Friedrich-Schelegel-Ausgabe. Ed. Hans Eichner. Munich: Schoning, 1962. v. 5. p. 28 . Edi

  • gangrena moral, devorando qualquer outro conteudo equal-quer outra determinac;:ao espiritual, e se exerce, no fim, no puro vazio. 0 gosto e a sua unica certeza de si e a sua {mica auto~onsci~ncia: mas essa certeza e o puro nada, e a sua per-sonahdade e a absoluta impessoalidade. A simples existencia de urn homem como ele e urn paradoxa e urn esd.ndalo: incapaz de produzir uma obra de arte, e, todavia,justamente dela ~ue de~ende a sua existencia; condenado a depender daqmlo que e outro em rela
  • 54

    ... Essa consciencia de si, que renega a propria nega

  • fa to, bem de perto, :1 analise da pur;l Cultura. A dialetiCl da conscienci ;l honesta e da consciencia vil - as quais, em sua eSSC11Cia, SaO cada uma 0 COT1trario de si ll1CS\1la, de modo que a primeira e perenemenre destinada :1 sucumbir :1 fianqueza cia segunda- e, sob esse ponto de vista, tao signiflcativa quanto aquela entre escravo e senhor; mas o que nos interessa e que Hegel, ao tcr que personificar a absoluta potenciJ da perversao, tenha escolhido umJ f!gurJ colllo Rarneau, quase como sea extrema decantac;;!o do tipo do hom em de gosto, para o qual a arte e a {mica certeza de si e, ao mesmo tempo, a dilacerac;:Jo mais pungcnte, fosse acompanhacb necessari