agamben o fim do poema [cacto 1]

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GIORGIO AGAMBEN

(ITLIA)

Traduo de Srgio Alcides

o FIM DO POEMAMeu propsito, que se encontra resumido no ttulo que o leitor tem diante dos olhos, definir um instituto potico que at agora permanece sem identidade: o fim do poema. Devo, para tanto, partir de uma tese que, sem ser trivial, parece-me todavia evidente, a saber, que a poesia no vive seno na tenso e no contraste (e, portanto, tambm na possvel interferncia) entre o som e o sentido, entre a srie semitica e a srie semntica. Isso quer dizer que tentarei precisar, em alguns aspectos tcnicos, a definio de Valry, que Jakobson glosa nos seus estudos de potica: "Le pome, hsitation prolongue entre le son et le sens". O que uma hesitao, se a tolhemos de qualquer dimenso psicolgica? A conscincia da importncia dessa oposio entre a segmentao mtrica e a semntica levou alguns estudiosos a enunciarem a tese (por mim compartilhada) de que a possibilidade do enjambement constitui o nico critrio que permite distinguir a poesia da prosa. Pois o que o enjambement seno a oposio entre um limite mtrico e um limite sinttico, uma pausa prosdica e uma pausa semntica? Portanto, ser chamado potico o discurso no qual essa oposio for, pelo menos virtualmente, possvel, e prosaico aquele no qual no puder haver lugar para ela. Os autores medievais parecem ter perfeita conscincia do eminente valor dessa oposio, ainda que tenha sido necessrio esperar at Nicol Tibino (sculo XIV) para uma definio precisa do enjambement: Multociens enim accidit quod, finita consonantia, adhuc sensus oratonis non est finitus. 1 Todos os institutos da poesia participam dessa no-coinci"ia fine deI poema". In:. Giorgo Agamben. Categorie ital.iane. Sludi di poexs. Venezia:Marsilio, 1996, p. 113-119; texto originalmente apresentado no colquio em homenagem a R. Dragonetti realizado na Universidade de Genebra, em 10 de novembro de 1995. O tradutor agradece a ajuda e os comentrios de Eduardo Sterzi e Maria Betnia Amoroso.

dncia, desse cisma entre som e sentido: e a rima no menos do que a cesura. Pois o que a rima seno o descolamento entre um evento semitico (a repetio de um som) e um evento semntico, que induz a mente a requerer uma analogia de sentido l onde nada pode encontrar alm de uma homofonia? O verso o ser que reside nesse cisma, ser feito de murs et paliz, como queria Brunetto Latini, ou tre de suspens, segundo as palavras de Mallarm. E o poema um organismo que se funda sobre a percepo de limites e terminaes, que definemsem jamais coincidir completamente e quase em oposta divergncia - unidades sonoras (ou grficas) e unidades semnticas. Dante mostrou-se perfeitamente consciente disso, pois, ao definir a cano atravs de seus elementos constitutivos, no De vulgari Eloquentia (U, ix), ope a cantio como unidade de sentido (sententia) s stantiae, como unidades puramente mtricas: Et circa hoc sciendum est quo hoc vocabulum [stantia] per solius artis respectum inventum est, videlicet ut in quo tota cantionis ars esset contenta, illud diceretur stantia, hoc est mansio capax sive receptaculum totius artis. Nam quemadmodum cantio est gremium totius sententiae, sic stantia totam artem ingremiat; nec licet aliquid artis sequentibus adrogare, sed solam artem antecedentis inuere.? Assim, ele concebe a estrutura da cano como fundada sobre a relao entre uma unidade global essencialmente semntica ("seio de todo o sentido") e unidades essencialmente mtricas ("recolhe no seu seio toda a arte"). Uma primeira conseqncia dessa situao do poema numa disjuno essencial entre som e sentido (marcada pela possibilidade do enjambement) a importncia decisiva do fim do verso. Podemos contar as slabas e os acentos, verificar as sinalefas e as cesuras, classificar anomalias e regularidades: mas o verso , em qualquer caso, uma unidade que encontra o seu principium individuationis somente no fim, que se define s no ponto em que finda. Em outro trabalho, propus dar o nome de versurc - do termo latino que indica o ponto no qual o arado faz a volta, ao final do sulco - a esse trao essencial do verso, que, talvez mesmo por ser to evidente, permaneceu inominado eritre os modernos. Os tratados medievais, contudo, no deixam de assinalar sua relevncia. O livro quarto do Laborintus registra, assim, afinalis terminatio entre os elementos essenciais do verso, junto a membrorum distinctio e sillabarumCACTO 1

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E o autor daArs de Mnaco no confunde o fim do verso (que chama de pausatio) com a rima, mas antes o define como sua fonte ou como a condio da sua possibilidade: estnumeratio. autem pausatio fons consonantiae.'

Somente nesta perspectiva possvel compreender o singular prestgio, na lrica provenal e stilnovstica, daquela instituio potica especialssima que a rima no-relacionada [irrelata], que as Leys denominam rim'estrampa e Dante clavis. 4 Se a rima assinalava um antagonismo entre som e sentido em virtude da no-correspondncia entre uma homofonia e uma significao, aqui a rima, faltando onde era esperada, deixa as duas sries por um timo interferirem numa aparncia de coincidncia. Digo aparncia, j que, se verdade que o seio da arte parece aqui romper o seu encerramento mtrico, acenando para o seio do sentido, a rima no-relacionada remete porm a um rhyme-fellow na estrofe seguinte, e portanto no faz mais que deslocar a estrutura mtrica para um nvel metaestrfico. Por isso, nas mos de Arnaut, ela se desenvolve quase que naturalmente como palavra-rima, a engendrar o admirvel mecanismo da sextina. Pois a palavra-rima sobretudo um ponto de indeterminabilidade entre um elemento por excelncia assemntico (a homofonia) e um elemento por excelncia semntico (a palavra). A sextina a forma potica que eleva a rima no-relacionada ao estatuto de supremo cnone composicional e procura, por assim dizer, incorporar o elemento do som no prprio seio do sentido. Mas devo agora enfrentar o tema anunciado e tentar definir essa prtica no coberta pelos estudos de mtrica e potica: o fim do poema, como ltima estrutura formal perceptvel de um texto potico. Existem pesquisas sobre os incipit da poesia (ainda que talvez em quantidade ainda insuficiente), mas as investigaes sobre os finais faltam quase de todo. Vimos como o poema tenazmente se demora e se sustm na tenso e no contraste entre o som e o sentido, entre a srie mtrica e a srie sinttica. Mas o que acontece no ponto em que o poema finda? Evidentemente, a oposio entre um limite mtrico e um limite semntico j no possvel, aqui, de maneira nenhuma: o que se d, sem discusso, pelo simples fato de que no ltimo verso de um poema o enjambement no pensvel. Simples, decerto, mas que, no obstante, implica uma conseqAGOSTO 2002

ncia no menos embaraosa do que necessria. Se o verso se define precisamente atravs da possibilidade do enjambement, segue-se da que o ltimo verso de um poema no um verso. Quer dizer isto que o ltimo verso se transfunde em prosa? Deixemos por enquanto esta pergunta sem resposta. No entanto, gostaria de pelo menos ressaltar o significado novssi~o que adquire, nesta perspectiva, o No sai que s'es de Raimbaut d'Aurenga. Aqui o fim de cada estrofe - e sobretudo o desse inclassificvel poema, como um todo - diferente da inesperada irrupo da prosa - marcando, in extremis, a epifa~ia no contingente de uma indeterminao entre prosa e poesia. De repente se esclarece a ntima necessidade de institutos poticos como a tornada ou o commiato, que p~ecen: destinados unicamente a notificar e at mesmo enunciar o fim do poema como se este necessitasse deles, como se o fim implicasse par; o poema uma catstrofe e uma perda de identidade to irreparvel a ponto de requerer a disposio de meios mtricos e semnticos bastante particulares. No aqui o lugar para fazer o inventrio desses meios nem para encaminhar uma fenomenologia do fim do poema (penso, por exemplo, na inteno particular com que Dante marca o fim de todos os cnticos da Commedia com a palavra stelle ["estrelas"], ou nas rimas que intervm nos versos brancos das canes de Leopardi, a fim de evidenciar o fim da e~trofe ou do canto). O essencial que os poetas parecem conscientes de que existe a, para o poema, algo como uma crise decisiva, uma verdadeira e estrita crise de vers, na qual est em jogo sua prpria consistncia. .' Da o aspecto freqentemente pobre, quase abjeto do fim do poema. Proust observou certa vez, a propsito dos ltimos versos das poesias das Fleurs du mal, que o poema parece bruscamente arruinar-se e perder o flego (il tourne court - escreve ele - tombe presque plat [... ] il semble malgr tout qu'il y ait l quelque chose d'court, un manque de souffle). Pensemos em Andromaque, uma composio to vigorosa e herica, que ter-

mina com o verso: Aux captifs, aux vaincus, bien d'autres encor. Sobre outro poema baudelairiano, Benjamin observou queCACTO

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ele "se interrompe bruscamente, d a impresso, duplamente surpreendente para um soneto, de algo fragmentrio". O desarranjo do ltimo verso um indcio da relevncia estrutural e no contingente que tem, na economia potica, o evento que denominei "fim do poema". Como se o poema, enquanto estrua:~a formal, ~o pudesse, no devesse findar, como se a possiblh?ade d? fim l~e fosse radicalmente subtrada, j que implicana esse impossvel potico que a coincidncia exata de som e sentido. No ponto em que o som est prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura uma sada suspendendo por assim dizer, o prprio fim, numa declarao de estado de emergncia potica. luz destas reflexes que eu gostaria de examinar, agora, uma passagem do De vulgari Eloquentia em que Dante parece colocar, pelo menos implicitamente, o problema do fim da poesia. A passagem se encontra no livro 11,no qual o poeta trata ~a. disp.osi~ das rimas na cano (11,xiii, 7-8). Depois de definir a nma nao-relacionada (que algum props denominar clavis), reza o texto: pulcerrime tamen se habent ultimorum carminum desitientiae, si cum rithmo in silentium cadunt ("belssimas so as terminaes dos ltimos versos se caem C?:n a.srimas, n~ silncio"). O que essa queda do ~oema n~ silncio? O que e uma beleza que cai? E o que resta do poema depois da sua runa? Se a poesia no vive seno na inexaurvel tenso entre a srie semitica e a srie semntica, o que acontece no momento do fim, quando a oposio das duas sries no mais possvel? Teramos a, finalmente, um ponto de coincidncia, no qual o poema, enquanto "seio de todo o sentido", ajusta as contas com seu elemento mtrico para transitar definitivamente para a prosa? As bodas msticas do som e do sentido poderiam, ento, ter lugar. Ou, pelo contrrio, o som e o sentido estariam agora para sempre separados, sem contato possvel, cada um perpetuamente em sua parte, como os dois sexos na poesia de Vigny? Neste caso, o poema no deixaria detrs de si um espao vazio no qual verdadeiramente, segundo as palavras de Mallarrn.rien n 'aura eu lieu que le lieu. '

ralelo, mas s uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semntica e pela corrente semitica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que a mechan potica se aplica to obstinadamente a manter. (O som e o sentido no so duas substncias, mas duas intensidades, dois tnoi da nica substncia lingstica). E o poema como o catchon da epstola de Paulo aos Tessalonicenses (lI, 2, 7-8): algo que freia e retarda o advento do Messias, portanto daquele que, cumprindo o tempo da poesia e unificando os dois ones, destruiria a mquina potica precipitando-a no silncio. Mas qual seria o fim dessa conspirao teolgica sobre a linguagem? Por que tanta obstinao em manter a qualquer custo um contraste capaz de garantir o espao do poema s ao preo de lhe negar qualquer possibilidade de um acordo durvel entre o som e o sentido? Releiamos agora o que escreve Dante sobre o modo mais belo de finalizar um poema, l onde os ltimos versos caem, rimados, no silncio. Sabe-se que se trata, para ele, quase de uma regra. Pensemos, por exemplo, na tornada da pedrosa Cosi nel mio parlar voglio esser aspro. O primeiro verso termina com uma rima totalmente no-relacionada, que coincide (certamente no por acaso) com a palavra que nomeia a inteno suprema do poeta: donna ["mulher"]. Essa rima no-relacionada, que parece antecipar um ponto de coincidncia entre som e sentido, seguida de quatro versos ligados dois a dois pela rima que a tradio mtrica italiana define como "baciata":" Canzon, vattene dritto a quella donna che rn'ha ferito il core e che m'invola quello ond'io ho pi gola, e dalle per 10 cor d'una saetta; ch bell'onor s'acquista in far vendetta." Tudo transcorre como se o verso que, ao fim do poema, irreparavelmente se arruinava no sentido se ligasse estreitamente ao seu rhyme-fellow, e assim optasse por se precipitar com ele no silncio. Isto significaria que o poema cai marcando mais uma vez a oposio entre o semitico e o semntico, assim como o som parece para sempre consignado ao som e o sentido entregue ao sentido. A dupla intensidade que anima a lngua no se aplaCACTO1 141

Tudo se complica com o fato de no haver no poema, a pretexto de exatido, duas sries ou duas linhas de fuga em paAGOSTO2002

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ca numa compreenso ltima, mas se abisma, por assim dizer, no silncio numa queda sem fim. Deste modo o poema desvela o escopo da sua orgulhosa estratgia: que a lngua consiga no fim comunicar ela prpria, sem restar no dita naquilo que diz. (Wittgenstein escreveu certa vez que "a filosofia deve-se apena~ propriamente poet-Ia" [Philosophie diirfte man eigentlicli nur dichten]. Talvez a prosa filosfica, ao fazer-se como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso se arrisque a decair na banalidade, se arrisque portanto a faltar com o pensamento. Quanto poesia, pode-se dizer, ao contrrio, que est ameaada por um excesso de tenso e de pensa~ento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein, que a "a poeSIa deve-se apenas propriamente filosof-Ia").

NOTAS1 "Com efeito, muitas vezes ocorre que, finda a consonncia, o sentido da orao ainda no chegou ao fim" [N. do T.).

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esse respeito, deve-se saber que tal vocbulo [stantia: estncia, estrofe) foi inventado to somente pela arte, de modo que aquilo que contivesse toda a arte da cano se denominasse estncia, ou seja, manso ou abrigo com capacidade para toda a arte. Assim como a cano o seio de todo o sentido, a estncia recolhe no seu seio toda a arte; aquelas que vm em seqncia no se podem arrogar nenhuma arte, devendo revestir-se com a mesma arte da antecedente" [N. do T.).3

"a pausa a fonte da consonncia" [N. do T.].

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Agamben chama de rima irrelata ("rima no-relacionada") a terminao de verso sem rima correspondente na mesma estrofe. uma denominao abrangente que engloba diferentes casos de rimas que, em portugus, so conhecidas como "isoladas", "dissolutas", "diferidas" ou "retardadas". V. Mello Nbrega. Rima e poesia. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1965, p. 355-356; e Augusto de Campos. Mais provenais. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 32 [N. do T).5

Literalmente, "beijada"; a rima que em portugus se diz "emparelhada"

[N. do T.].6

Na traduo de Haroldo de Campos: "Cano, parte certeira quela dama / que me feriu no peito e que me anula / onde eu ponho mais gula, / vara-lhe o corao feito uma lana: / alto prmio se colhe na vingana"; H. de Campos. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, Col. Lazuli, 1998, p. 61 [N. do T.)

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