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Afinal, que educação queremos?

Adaptado do caderno “Concepção de Educação Popular do CEPIS” – Centro de Educação Popular do

Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo, Março de 2007. Caderno de Textos Preparatórios para o II Estágio

Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária do Estado de Sergipe.

A educação sozinha não transforma a sociedade. Mas, sem ela, tampouco a sociedade muda

ou se mantém. A educação tem um papel fundamental na organização da sociedade, podendo

tanto ordená-la, quanto reformá-la ou, até, revolucioná-la. Então, não há só uma forma,

tampouco um único modelo de educação. A escola é um dos lugares onde ela acontece e,

talvez, não seja o melhor deles. O ensino escolar não é sua única prática nem o professor

profissional seu único praticante. Em mundos diversos a educação existe de diferentes formas:

existe em cada povo e em povos que se encontram; entre os povos que submetem outros

povos e usam a educação como um recurso a mais de sua dominação; em um povo que

busca sua libertação, tendo a educação como instrumento para livrar-se de qualquer tipo

de dominação. A educação é uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum o

saber, a idéia, a crença e aquilo que é comum como bem, como trabalho ou como vida.

Pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre

o saber, como armas que reforçam a desigualdade entre as pessoas, na divisão dos bens,

trabalho, dos direitos e dos símbolos. Mas pode igualmente ser uma construção coletiva, com

o envolvimento co-responsável de quem entra no processo.

Pode-se dizer, então, que educação é uma fração do modo de vida dos grupos sociais, que

criam ou recriam uma cultura, que dá sentido às relações humanas. Eles produzem e praticam

formas de educação, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o

saber das palavras, os códigos sociais, as regras de trabalho, os segredos da arte, a religião e a

tecnologia, que qualquer povo precisa, para re-inventar a vida do grupo e dos sujeitos.

Através de trocas sem fim, a educação ajuda a explicar a necessidade da existência de uma

ordem. Às vezes, a ocultá-la, ou até mesmo, a inculcá-la.

Pensando que age por si próprio, livre e em nome de um coletivo, um educador imagina que

serve ao Saber e ao educando. Mas pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim

de usá-lo para usos escusos, ocultos também, na educação. Quem domina, por exemplo,

divulga que o melhor é quem copia, e a cultura oficial exalta as virtudes do papagaio e a

fidelidade do cachorro, embora o papagaio não pense e o cachorro seja amigo apenas do seu

dono. Toda educação tem uma intencionalidade explícita ou implícita, mas sempre presente,

pois todo o conhecimento tem um objetivo, uma direção e uma finalidade. O conhecimento

tem sempre um objeto, uma direção e uma finalidade. O conhecimento é sempre

conhecimento de alguma coisa ou de alguém, a partir de uma perspectiva. Pode-se ter uma ou

várias intenções diante de um conhecimento, comportamento ou ação. Podem ser intenções

claras ou intenções ocultas, ou até “segundas intenções”. A intencionalidade política da

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educação popular significa que as pessoas que a fazem direcionam sua educação a partir de

uma analogia ou de valores, a partir da finalidade que pretende dar ás forças sociais políticas

presentes no meio dos pobres.

A educação é sempre uma ferramenta de uma estratégia determinada de onde não se forma

uma pessoa e depois se vê o que ele vai fazer, ao contrário, primeiro se tem a militância, até

porque o conteúdo do processo de formação, seu método e ritmo dependem de uma

concepção de mundo, de uma visão de sociedade, de uma opção por certos princípios e

valores, de um programa. A educação está sempre a serviço de uma ideologia, de uma

proposta, como instrumento para realizar sua estratégia. Certamente o próprio processo

educativo contribui para a explicitação, formulação e aperfeiçoamento de uma estratégia.

Todo tipo de educação está a serviço de uma organização, o que une as pessoas e os grupos,

para além das explicações românticas é a busca da realização de um anseio comum, a defesa

de um interesse ameaçado ou a consciência da militância. Na luta popular as pessoas não

formam grupo de amigos, embora possam tornar-se amigas, elas se juntam por uma Causa.

Para dar coesão a sua proposta, um grupo ou uma classe constrói processos de convencimento

para fortalecer esse grupo que, por sua vez, vai lutar para tornar possível uma conquista até a

implantação de um sistema que garanta seus interesses de forma permanente. Adotar e

discutir princípios e posturas pedagógicas é fazer política. A educação é um ato político, assim

como um ato político é educativo. Não existe educação politicamente neutra. Numa sociedade

de classes, não pode haver educação que seja a favor de todos – será sempre a favor de

alguém e contra outrem.

A educação serve para que uma pessoa se acomode ao mundo ou se envolva em sua

transformação. A politicidade da educação questiona a quem educa sobre a educação que se

pratica na sociedade. Ao ser transformadora, só pode ficar contra quem se beneficia com a

atual situação e se coloca a favor de quem é prejudicado por ela; ao ser conservadora,

estará a favor dos grupos beneficiados com sua manutenção. Nascendo de visões

antagônicas, a educação libertadora e a conservadora têm cada qual a sua metodologia.

Na educação conservadora domesticadora, “tornar comum” pode significar a naturalização

da prática metodológica de enfiar, goela abaixo, diferentes pacotes para perpetuar a ordem

dominante. E as pessoas oprimidas aprendem a assimilar conteúdos modelos, reduzindo-os e

fortalecendo e a estrutura social desumanizante, favorável à minoria. Já na educação

libertadora, “tornar comum” significa uma construção coletiva, que envolve as pessoas no

processo de resolver as perguntas do cotidiano, bem como na luta por sua emancipação. Essa

metodologia, onde as pessoas entram como parte, estimula a classe oprimida a romper com

as estruturas injustas e a construir uma ordem onde haja lugar para elas, como sujeitos e

protagonistas. A educação libertadora, ao estimular a libertação de forças “naturalmente”

adormecidas e socialmente reprimidas, inclui, ao mesmo tempo, a consciência e o mundo,

a palavra e o poder, o conhecimento e a política, a teoria e a prática.

O capitalismo tenta convencer-nos que não há alternativa de vida fora desse sistema. Com a

ajuda de processos educativos, hoje, sobretudo através da mídia e da escola, mantém-se

ideologicamente hegemônico. Hegemonia, então, é também relação política e pedagógica.

Educação é uma disputa de hegemonia, uma classe ou setor busca ter hegemonia sobre outras

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classes ou setores, no sentido de exercer sobre elas um processo de direção política, seja no

plano político, cultural ou ideológico. Essa hegemonia da classe no poder se constrói e se recria

na vida cotidiana, e através dela que se interioriza valores e se constrói sujeitos

domesticados ou críticos.

Para superar o endoutrinamento ou o dogmatismo, qualquer processo de educação/formação

deve contribuir para que as pessoas tenham capacidade crítica, porque, ao evitar toda a forma

de basismo (elogio oportunista de um falso saber), não se pode cair nas várias formas de

dirigismo, manipulação ou imposição, que treina obedientes seguidores. Sem visão crítica não

pode existir conhecimento verdadeiro e permanente da realidade. Soldadinhos de chumbo

não são protagonistas, nem a repetição de fórmulas acabadas e receitas transplantadas

servem para a transformação da realidade. Criticar é um dever – mas educando não seria

digno de um educador se não se atrevesse a combater m ponto de vista que percebe

equivocado. Uma organização da sociedade não se constrói com robôs.

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singela. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceites o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo

de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente de humanidade

desumanizada, nada deve parece natural nada deve parece impossível de mudar.”

Bertold Brecht