adorno - o fetichismo na música e a regressão da audição

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  • 8/2/2019 adorno - o fetichismo na msica e a regresso da audio

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    THEODOR W. ADORNO

    TEXTOS ESCOLHIDOS

    Consultoria: Paulo Eduardo Arantes

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    o FETICHISMO NA MUSICA E AREGRESSAO DA AUDJ(:~~AOI

    i"As QUEIXASacerca da decadencia do gosto musical

    sao, na pratica, tao antigas quanta esta experiencia ambiva-lente que 0genera humane fez no limiar da epoca historica,a saber: a musica constitui, ao mesmo tempo, a manifestacaoimediata do instinto humane e a instancia propria para 0seu apaziguamento. Ela desperta a danca das deusas, ressoada flauta encantadora de Pa, brotando ao mesmo tempo dalira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas asdiversas formas do instinto humano. Toda vez que a pazmusical se apresenta perturbada por excitacoes bacanticas,pode-se falar da decadencia do gosto. Entretanto, se desdeo tempo da noetica gregaa fUI1

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    OS PENSADORES ADORNO

    orienta-se por criterios que se aproximam muito dos do co-nhecimento: 0 logico e 0 ilogico, 0 verdadeiro e 0 falso. Deresto, ja nab ha campo para escolha; nem sequer se colocamais 0problema, e ninguem exige que os canones da con-vencao sejam subjetivamente justificados; a existencia do pro-prio individuo, que poderia fundamentar tal.g~sto: t?rnou-setao problernatica quanto, no polo oposto, 0dlrelt~ a hberdadede uma escolha, que 0individuo simplesmente nao conseguemais viver empiricamente. Se perguntarmos a algu~m se "gost~"de uma rmisica de sucesso lancada no mercado, nao consegui-remos furtar-nos a suspeita de que 0 gostar e 0 nao gostar janao correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interro-gada se exprima em termos de gostar e nao gostar. Em vez.do valor da propria coisa, 0 criterio de julgamento e 0 fato dea cancao de sucesso ser conhecida de todos; gostar de urndisco de sucesso e quase exatamente 0mesmo que reconhece-lo.o comportamento valorativo tornou-se uma ficcao paraquem se ve cercado de mercadorias ~usicai~ padroniz~d.~s.Tal individuo ja nao consegue subtrair-se ao Jugo da oplrnaopublica, nem tampouco pode decidir com liberdade quantaao que the e apresentado, uma vez que tudo 0 ~ue ~e lheoferece e tao semelhante ou identico que a predilecao, narealidade, se prende apenas ao detalhe biogrcifico, ou mesmoa situacao concreta em que a rmisica e ouvida"As categoriasda arte autonoma, procurada e cultivada em virtude do seuproprio valor intrinseco, ja na.o tern valor para a apr,ecia~aomusical de hoje. Isto ocorre, em grande escala, tambem c~mas categorias da musica seria, que, para descartar com maiorfacilidade, se costuma designar com 0 qualificativo de "clas-sica". Se se objeta que a musica ligeira e toda a musica destinadaao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo.as mencionadas categorias, nao ha como negar a verdade destaobjecao. Contudo, esta especie de rruisica e afetada peia mu-danca, e isto precisamente em virtude da seguinte razao: pro-porciona, sim, entretenimento, atrativo e prazer, porem, apenaspara ao mesmo tempo recusar os valores que concede. Aldous

    Huxley levantou em urn de seus ensaios a seguinte pergunta:quem ainda se diverte realmente hoje num Iugar de diversao?Com 0 mesmo direito poder-se-ia perguntar: para quem arruisica de entretenimento serve ainda como entretenimento?Ao inves de entreter, parece que tal rruisica contribui aindamais para 0 emudecimento dos homens, para a morte da lin-guagem como expressao, para a incapacidade de comunicacao.A musica de entretenimento preenche os vazios do silentioque se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelocansaco e peia docilidade de escravos sem exigencies. Assumeela em toda parte, e sem que se perceba, 0 tragico papel quelhe competia ao tempo e na situacao especifica do cinema mudo,A musica de entretenimento serve ainda - e apenas - comofundo. Se ninguem maise capazde falar realmente, e obviotambem que ja ninguem e capaz de ouvir. Urn especialistaamericana em propaganda radiofonica - que utiliza com pre-dilecao especial a rruisica - manifestou ceticismo com respeitoao valor de tais ammcios, alegando que os ouvintes aprenderama nao dar atencao ao que ouvem, mesmo durante 0proprioato da audicao. Tal observacao e contestavel quanto ao valorpublicitario da musica. Mas e essencialmente verdadeira quan~do se trata da compreensao da propria rmisica.

    Nas queixas usuais acercadadecadencia do gosto, hacertos motivos que se repetem constantemente. Tais motivosestao presentes nas consideracoes rancosas e sentimentais de-dicadas a atual massificacao da rruisica, considerando-a uma"degeneracao". 0 mais pertinaz e 0 do encantamento dossentidos, que no entender de muitos amolece e torna a pessoainca paz de qualquer atitude heroica, Tal recriminacao en-contra-se ja no terceiro livro da Republica de Pia t ao, no qualse profbem tanto os modos musicais "queixosos" como os"moles", que no dizer do sabio grego "se recomendam embanquetes e orgias";l alias, ate hoje nao se sabe com clareza

    Staat, Uebertragung von Preisendanz (A Republica, traducao de Preisendanz), [ena,1920, p. 398.

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    os PENSAOORES ADORNOpor que razao 0fi16sofoatribui tais earacteristicas aos modosmixolidio, lfdio, hipolidio e jonieo. Na Republica de Plataoseria considerado tabu 0 modo maior da rruisica ocidentalposterior, 0qual corresponde ao jonico. Igualmente proibidosseriam a flauta e os instrumentos "de muitas cordas" tangidoscom os dedos. Dos diversos mod os, s6 se permitem aquelesque "de forma adequada imitam a voz e a expressao do ho-mem", que "na guerra ou em qualquer acao que exija a forcasingular, porta-se com bravura ainda que vez por outra possaincidir em erro, ser ferido ou ser atingido pelamorte ou poruma infelicidade".1

    A Republica de Platao nao constitui a utopia tal como e.descrita pela hist6ria da filosofia oficial. a Estado platonicodisciplina os seus cidadaos incitando-os tanto para a salva-guarda do Estado como de sua pr6pria existencia, inclusivena rmisica, onde a pr6pria classificacao segundo modos sua-yes e fortes, ja ao tempo de Platao, praticamente representavaapenas urn residue da rnais crassa supersticao, A ironia pla-tonica gosta de ridicularizar maldosamente 0 flautista Mar-sias, verberado pelo moderado Apolo. a programa etico-musical de PIatao possui a caracteristica de uma acao de. purificacao atica, de uma campanha de saneamento de estiloespartano. A mesrna classe pertencem outros tracos da pre-ga

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    proibicao, devido as afinidades que os uniam a ela. Os por-ta-bandeiras da oposicao ao esquema autoritario se transfor-maram em testemunhas da autoridade ditatorial do sucessocomercial. 0 prazer do momenta e da fachada de variedadetransforma-se em pretexto para desobrigar 0ouvinte de pen-sar no todo, cuja exigencia esta incluida na audicao adequadae justa; sem grande oposicao, 0ouvinte se converte em sim-ples comprador e consumidor passivo. Osmomentos parciaisja nao exercem funcao critica em relacao ao todo pre-fabri-cado, mas suspendem a critica que a autentica globalidadeestetica exerce em relacao aos males da sociedade. A unidadesintetica e sacrificada aos momentos parciais, que ja nao pro-.duzem nenhum outro momenta pr6prio a nao ser os codi-"ficados, ernostram-se condescendentes a estes ultimos. Osmomentos de encantamento demonstram-se irreconciliaveiscom a constituicao imanente da obra de arte, e esta ultimasucumbe aqueles toda vez que a obra artistica tenta elevar-separa transcendencia. Os referidos momentos isolados de en-cantamento nao sao reprovaveis em si mesmos, mas tao-so-mente na medida emque cegam a vista. Colocam-se a servicedo sucesso, renunciam ao impulso insubordinado e rebeldeque lhes era pr6prio,' conjuram-se para aprovar e sancionar-.tudo 0que urn momenta isolado e capaz de oferecer a urn.individuo isolado, que ha muito tempo ja' deixou completa-mente de existir. Os momentos de encanto e de prazer, aose isolarem, embotam 0 espirito. Quem a eles se entrega etao perfido quanta os antigos noeticos em seus ataques aoprazer sensual dos orientais. A forca de seducao do encantoe do prazer sobrevive somente onde as forcas de reruinciasao maiores, ou se]a: na dissonancia, que nega a fe a fraudeda harmonia existente. 0 pr6prio conceito de ascetica e dia-Ietico na musica. Se em outros tempos a ascese derrotou asexigencies esteticas reacionarias, nos dias que ocorrem elase transformou em caracteristica e bandeira da arte avancada.Obviamente tal nao acontece em virtude de sua deficienciaarcaizante de meios, na qual a miseria e a pobreza sao enal-

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    ADORNO

    tecidas, mas antes por rigorosa exclusao de tudo 0que eculinariamente gostoso e que deseja ser consumido de ime-diato, como se na arte os valores dos sentidos nao fossemportadores dos valores do espfrito, que somente se revela ese degusta no todo, e nao em momentos isolados da materiaartfstica. A arte considera negativa precisamente aquela pos-sibilidade de felicidade, a qual se contrap6e hoje a antecipa-~ao apenas parcial e positiva da felicidade. Toda arte ligeirae agradavel tornou-se mera aparencia e ilusao: 0que se nosantolha esteticamente em categorias de prazer ja nao podeser degustador: a promesse du bonheur - foi assim que umavez se definiu a arte - ja nao se encontra em lugar algum,a nao ser onde a pessoa tira a mascara da falsa felicidade.o prazer s6 tern lugar ainda onde ha presenca imediata, tan-:givel, corporal. Onde carece de aparencia estetica e ele mesmofictfcio e aparente segundo criterios esteticos e engana aomesmo tempo 0consumidor acerca da sua natureza. Somentese mantem fidelidade a possibilidade do prazer onde cessaa mera aparencia.

    A nova etapa da consciencia musical das massas se de-fine pela negacao e rejeicao do prazer no pr6prio prazer.Assemelha-se tal fenomeno aos comportamentos que as pes-soassoem manter em face do esporte ou da propaganda. Aexpressao "prazer artistico" ou "gosto artfstico'' assumiramurn significado curioso e comico. A rmisica de Schoenberg,tao diferente das cancoes de sucesso, apresenta em todo casouma analogia com elas: nao e degustada, nao pode ser des-frutada. Quem ainda se deliciasse com os belos trechos deurn quarteto de Schubert ou com urn provocantemente sadio"concerto grosso" de Haendel .seria catalogado como urn defensor suspeito da cultura, bern abaixo dos colecionadoresde borboletas. 0 que 0cataloga nesta categoria de amadoresnao e 0 "novo". 0 fasdnio .da cancao da moda, do que emelodioso, e de todas as variantes da banalidade, exerce asua influencia desde 0periodo inicial da burguesia. Em ou-tros tempos este fascfnio atacou 0privilegio cultural das ca-

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    madas sociais dominantes. Hoje, contudo, quando este poderda banalidade se estendeu a toda a sociedade, sua funcaose modificou. A modificacao de funcao atinge todos os tiposde rmisica. Nao somente a ligeira - reino em que 0 poderda banalidade se faria notar comodamente como simples-mente "gradual", com respeito aos meios mecanicos de di-fusao. A unidade e harmonia das esferas musicais separadasdeve ser repensada erecomposta. A sua separacao estatica,tal como a defendem e promovem ocasionalmente algunsconservadores da cultura antiquada, e ilus6ria - chegou-sea atribuir ao totalitarismo do radio a tarefa de, por urn lado,propiciar entretenimento e distracao aos ouvintes, e por ou-tro, a de incentivar e promover os chamados valores cultu-rais,' como se ainda pudesse haver born entretenimento ecomo se os bens da cultura nao se transformassem ern algode mau, precisamente em virtude do modo de cultiva-los.Assim como a rmisica seria, desde Mozart, tern a sua hist6riana fuga da banalidade e como aspecto negativo reflete ostraces da rmisica ligeira, da mesma forma presta ela hoje emdia testemunho, nos seus representantes rnais credenciados,de sombrias experiencias, que se prefiguram, carre gad as depressentimentos, na despreocupada simplicidade da musicaligeira';Jnversamente seria igualmente comodo ocultar a se-.paracao e a ruptura entre as duas esferas e supor uma con-tinuidade, que permitiria a formacao progressiva passar semperigo do jazz e das cancoes de sucesso aos genuinos valoresda cultura. A barbarie cinica de forma alguma e preferivela fraude cultural. 0 que alcanca, quanta a desilusao do su-perior, e por ela compensado atraves das ideologias de ori-ginalidade e vinculacao com 0 natural, mediante as quaistransfigura 0mundo musical inferior: urn submundo que janao ajuda, por exemplo, na contradicao dos excluidos dacultura, mas limita-se a se alimentar com 0que the e dadode cima. A ilus6ria conviccao da superioridade da musicaligeira em relacao a seria tern como fundamento precisamente.essa passividade das massas, que colocam 0 consumo da

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    rruisica ligeira em opo~i