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[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 1 Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, “Excurso I”, 1/2 Referência do texto‐base: ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Hipótese de leitura: a partir do reconhecimento do entrelaçamento entre mito e esclarecimentona Odisseia, em especial o esforço por submissão do mito aos ditames do esclarecimento, Adorno e Horkheimer acompanham o percurso de Ulisses visando explicitar na formação prototípica da subjetividade esclarecida, pautada por uma racionalidade autoconservadora, as contradições em sua constituição identitária e suas possíveis conexões com a sociabilidade emergente. O reconhecimento da Odisseia como testemunho da dialética do esclarecimento, leva Adorno e Horkheimer a argumentarem em favor da interpenetração entre mito e epopeia no interior da narrativa homérica. Com efeito, reconhecem na escrita homérica uma peculiar “apropriação” do mito, sua inserção no interior de um cosmos já sob o signo da racionalização – a razão ordenadora lhe assimila e conforma, dissolvendo‐o de modo que sua elegia seja apenas uma estilização nostálgica.Esse testemunho cristaliza‐se na forma como socialmente se desenvolve uma forma de individuação correspondente aos princípios do esclarecimento, cujo representante é identificado no herói das aventuras homéricas. Desvelado como “um protótipo do indivíduo burguês”, o modo pelo qual,em seus caminhos e descaminhos, Ulisses constitui sua identidade, afirmando‐se em oposição ao mundo natural e suas potências míticas, mas também em relação a si mesmo, será objeto de análise de nossos autores. Antes, contudo, se dedicam a precisar o teor do entrelaçamento entre mito e esclarecimento. Nesse sentido, é assinalada a identificação nietzschiana da contraditoriedade própria à relação entre esclarecimento e dominação, traço significativo da dialética do esclarecimento. Este teria sido exercitado historicamente como meio de domínio, mecanismo de governabilidade em nome de uma concepção de progresso. Entretanto, nos seguidores pré‐fascistas de Nietzsche, ou ainda no intelectualismo fascista, a dimensão dialética do esclarecimento é dissolvida, subsistindo unicamente a repulsa ao esclarecimento, em uma articulação na qual as mediações são suprimidas mediante o apelo à dominação bruta, imperando os princípios de sangue e sacrifício, os quais são tomados como atributos autenticamente mitológicos. Não obstante, Adorno e Horkheimer reconhecem em meio a toda inverdade característica a essa perspectiva, a apreensão, limitada e parcial, de uma intuição válida, a saber, civilidade, liberalidade e racionalidade burguesa se encontramde modo prototípico nos primórdios da constituição do mundo ocidental. Essa interpretação, entretanto, estabelece um

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Page 1: Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, “Excurso ... · Adorno e Horkheimer, Dialética do ... do perder‐se, entregar‐se ao mundo como forma de conservação,1 isto

 

[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 

Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, “Excurso I”, 1/2 

Referência do  texto‐base: ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: 

Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 

 

Hipótese de leitura: a partir do reconhecimento do entrelaçamento entre mito e esclarecimentona 

Odisseia,  em  especial  o  esforço  por  submissão  do mito  aos  ditames  do  esclarecimento,  Adorno  e 

Horkheimer  acompanham  o  percurso  de  Ulisses  visando  explicitar  na  formação  prototípica  da 

subjetividade esclarecida, pautada por uma racionalidade autoconservadora, as contradições em sua 

constituição identitária e suas possíveis conexões com a sociabilidade emergente. 

 

O  reconhecimento  da  Odisseia  como  testemunho  da  dialética  do  esclarecimento,  leva  Adorno  e 

Horkheimer  a  argumentarem  em  favor  da  interpenetração  entre  mito  e  epopeia  no  interior  da 

narrativa  homérica.  Com  efeito,  reconhecem  na  escrita  homérica  uma  peculiar  “apropriação”  do 

mito, sua inserção no interior de um cosmos já sob o signo da racionalização – a razão ordenadora 

lhe  assimila  e  conforma,  dissolvendo‐o  de  modo  que  sua  elegia  seja  apenas  uma  estilização 

nostálgica.Esse  testemunho  cristaliza‐se  na  forma  como  socialmente  se  desenvolve  uma  forma de 

individuação correspondente aos princípios do esclarecimento, cujo representante é identificado no 

herói das aventuras homéricas. Desvelado como “um protótipo do indivíduo burguês”, o modo pelo 

qual,em seus caminhos e descaminhos, Ulisses constitui sua  identidade, afirmando‐se em oposição 

ao mundo  natural  e  suas  potências míticas, mas  também  em  relação  a  si mesmo,  será  objeto  de 

análise  de nossos  autores.  Antes,  contudo,  se  dedicam a precisar  o  teor  do  entrelaçamento  entre 

mito e esclarecimento.  

Nesse sentido, é assinalada a identificação nietzschiana da contraditoriedade própria à relação entre 

esclarecimento  e  dominação,  traço  significativo  da  dialética  do  esclarecimento.  Este  teria  sido 

exercitado historicamente como meio de domínio, mecanismo de governabilidade em nome de uma 

concepção  de  progresso.  Entretanto,  nos  seguidores  pré‐fascistas  de  Nietzsche,  ou  ainda  no 

intelectualismo fascista, a dimensão dialética do esclarecimento é dissolvida, subsistindo unicamente 

a repulsa ao esclarecimento, em uma articulação na qual as mediações são suprimidas mediante o 

apelo à dominação bruta, imperando os princípios de sangue e sacrifício, os quais são tomados como 

atributos autenticamente mitológicos. Não obstante, Adorno e Horkheimer reconhecem em meio a 

toda  inverdade  característica  a  essa  perspectiva,  a  apreensão,  limitada  e  parcial,  de  uma  intuição 

válida, a  saber,  civilidade,  liberalidade e  racionalidade burguesa  se encontramde modo prototípico 

nos primórdios da constituição do mundo ocidental. Essa  interpretação, entretanto, estabelece um 

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[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 

corte entre mito e epopeia, vistos como avessos um ao outro, no qual se perde o seu processo de 

transição,  o  que  é  efetivamente  compartilhado  por  ambos,  a  dominação  e  a  exploração.  Os 

componentes míticos celebrados pela ideologia fascista já se encontram envoltos pela lógica própria 

ao esclarecimento. 

Ao  observarem  o  modo  pelo  qual  o  esclarecimento  avança  e  reconfigura  os  elementos  míticos 

através  de  seu  enfrentamento,  Adorno  e  Horkheimer  asseveram  como  a  própria  proximidade  da 

narrativa homérica com o romance já evidencia esse procedimento: “a oposição do ego sobrevivente 

às múltiplas  peripécias  do  destino  exprime  a  oposição  do  esclarecimento  ao mito”  (DE,  p.  49).  O 

processo  de  individuação  do  sujeito  ulissiano  é  o  da  identidade  constituída  no  contraponto  à 

magnitude  das  forças  naturais  e  suas  respectivas  potências  míticas,  objeto  de  suas  ações  e  cujo 

objetivo  é  sua  dominação  –  esse  anseio  por  dominação  reverberará  no  caráter  astucioso  do 

reconhecimento da própria impotência perante o poderio natural, mas que, não obstante, pode ser 

lograda. Assim,  fundada no princípio  da  autoconservação,  a  racionalidade pela qual  o  eu  rege  sua 

conduta e apreensão do mundo, converte a potência mítica, em suas inverdades e seduções, em algo 

a ser repelido como desviante. O confronto com a exterioridade mítica opera sob a lógica astuciosa 

do perder‐se, entregar‐se ao mundo como forma de conservação,1  isto é, o sujeito retira a força, a 

substancialidade  pela  qual  constitui  sua  identidade,  através  da  experiência  de  seu  saber  ante  a 

multiplicidade  que  lhe  é  distinta  e  potencialmente  desviante.  Conforme  salientado  por  nossos 

autores,  a  transição  do mito  à  epopeia  se  expressa  também  na  formação  do  eu,  o  qual,  em  sua 

rigidez esclarecida, não é algo que anteceda à própria aventura, mas se constitui pela apropriação de 

sua experiência, ainda que uma apropriação tributária do não idêntico.  

Amparada em seu caráter astucioso, essa  formação da  individualidade esclarecida pode  sermelhor 

vistano relacionamento com as potências míticas através dos ritos sacrificiais. Na verdade, o próprio 

sacrifício mítico contém traços próprios à  troca, se desenrolando sob o princípio do equivalente, o 

qual,  na  medida  em  que  é  conscientemente  apreendido  pelo  herói,  lhe  permitirá,  no  interior  da 

própria veneração, lograr as divindades. Esse modo esclarecido de se relacionar com as divindades, 

as quais são submetidas aos fins humanos através do cálculo contido no sacrifício, não se desvincula 

da  inverdade própria ao sacrifício. Este é  índice da catástrofe  infligida pelo homem a si mesmo e à 

natureza,  sua  “racionalidade  crua”  desdobra‐se  no  seio  de  relações  de dominação  e  poder. Nesse 

sentido, nossos autores  identificam a origem da astúcia no culto, notadamente na medida em que 

1 Todavia sob o signo de sua alienação. 

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[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 

“nada mais é que o desdobramento subjetivo dessa  inverdade objetiva do sacrifício que ela vem a 

substituir” (DE, p. 52).2 

O estatuto do sacrifício, no entanto, é mais complexo. Se a sua irracionalidade torna‐se índice de sua 

caducidade  no  processo  de  desmitologização  –  a  restauração  com  a  naturalidade,  através  do 

sacrifício do eu, é estranha a esse eu que se constitui sob a égide da racionalidade autoconservadora 

–,  sua  racionalidade persiste,  embora  reconfigurada pela astúcia esclarecida,  a qual  identifica essa 

disjunção  interna ao sacrifício. Essa acolhida do mito na civilização, nos  termos de nossos autores, 

objetiva‐se, por exemplo, na  forma como a negação do sacrifício  resulta em eu convertido em ser 

sacrificial. O primado da autoconservação torna‐se o princípio norteador pelo qual a constituição do 

ego  transcorre  incessantemente  como  sacrifício  de  si,  de  sua  natureza,  de  seu  presente.  A 

argumentação  desenvolvida  por  Adorno  e  Horkheimer  assevera  que  já  nesta  “proto‐história  da 

subjetividade”,  a  negação daquilo  que deveria  ser  preservado  termina por  constituir  o  “núcleo de 

toda  racionalidade  civilizatória”,  em  um  movimento  no  qual  os  fins  formalmente  postos  pelo 

esclarecimento são dissolvidos em seus meios: “a história da civilização é a história da introversão do 

sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua vida do que 

lhe é  restituído”  (DE, p.  54). De  forma prototípica, Ulisses dá  testemunho dessa  contraditoriedade 

elevada à sua máxima potência na sociedade capitalista contemporânea, sua hostilidade e luta pela 

abolição do sacrifício mítico, em nome da autoconservação,é, inversamente, a medida da introjeção 

do sacrifício como modo de ser.  

Regida  pela  astúcia,  a  subjetividade  em  sua  tensão  característica  entre  renúncia  e  anseio  por 

dominação,  beneficia‐se  da  forma  como  a  própria  individualidade  passa  a  ser  disposta,  segundo 

Adorno  e  Horkheimer.  A  divisão  social  do  trabalho  repercute  na  dissociação  entre  espírito 

(autoconservação) e força física, de modo que a segunda se torna mais um elemento a corroborar o 

poderio da primeira na organização da hierarquia social. Contudo, em face das portentosas potências 

míticas  a  autoconservação  será mais  do que  nunca necessária.  A  assimetria  das  forças  físicas  leva 

Ulisses a  reconhecer os  rituais  sacrificiais, embora apenas  formalmente na medida em que, a  seus 

olhos,  se  encontram  sob  o  registro  da  irracionalidade;  operam,  na  verdade,  como  premissas  para 

suas ações racionais, as quais retiram do sóbrio e esclarecido diagnóstico de sua impotência a força 

de  seu  logro.3  No  desencantamento  contido  em  tal  diagnóstico,  o  homem  subtrai  sua  própria 

naturalidade,  reificando a si e à própria natureza –  seu esforço por dominação da natureza ocorre 

2 “A transformação do sacrifício em subjetividade tem lugar sob o signo daquela astúcia que sempre teve uma parte no sacrifício” (DE, p. 54).  3 O reconhecimento da impotência é visto como mecanismo de dominação, a adaptação consciente, levada a cabo pela razão autoconservadora, como forma de inversão do poderio “da natureza física e de seus herdeiros sociais, a maioria” (DE, p. 55).  

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[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 

por  meio  do  cálculo  racional  que  mimetiza  uma  natureza  objetificada.  A  força  de  seu  logro 

pressupõe,  portanto,  a  interiorização da  renúncia,  o  que,  por  seu  turno,  talvez  venha  a  repercutir 

mesmo em suas considerações éticas, ou mesmo exprima um ethos burguês, pois em sua renúncia a 

ter o  todo,  sua  “dignidade de herói  só é  conquistada humilhando a  ânsia  de uma  felicidade  total, 

universal e indivisa” (DE, p. 56). 

O herói em processo de esclarecimento consegue identificar que a condição para o seu logro reside 

no reconhecimento do direito próprio às potências míticas, as quais são definidas por nossos autores 

como  figuras  da  compulsão.  Esse  eu  representante  da  universalidade  racional  reconhece  que  a 

relação  natural  entre  força  e  impotência  já  exprime  algo  da  relação  jurídica,  o  que  lhe  permitirá 

explorar suas brechas. A inevitabilidade do destino expressa no ciclo mítico será desafiada de forma 

racional,  astuciosamente:  seu  saber  tecnicamente  esclarecido  somente  pode  desempenhar  papel 

decisivo no interior do que é reconhecido como estatuto jurídico; necessita cumprir “o contrato de 

sua  servidão”  a  este  direito  arcaico,  como  forma  de  subversão  do  poderio  mítico  ao  qual  está 

submetido – o que leva essa identidade a se pôr como legatária dos poderes enfrentados. De acordo 

com  Adorno  e  Horkheimer,  essa  forma  esclarecida  de  assimilação  da  relação  jurídica  implica  em 

alterações  profundas  em  outras  dimensões  da  relação  humana  consigo  e  com  o  mundo:  “com  a 

dissolução do contrato através de sua observância literal, altera‐se a posição histórica da linguagem: 

ela começa a transformar‐se em designação” (DE, p. 57). Na representação mítica, destino e palavra 

falada se encontram imediatamente unidos, a convergência entre expressão e intenção é indicativa 

de  seu  poder.  Entretanto,  a  astúcia  esclarecida  exploraa  possibilidade  sua  diferenciação,  isto  é, 

palavra  e  objeto  se  distanciam,  sentido  e  referência  são  autonomizados  um  ao  outro.  Essa 

emergência  da  “consciência  da  intenção”  traz  consigo,  talvez  possamos  afirmar,  a  possibilidade 

demanipulabilidade da palavra como forma de manipulação da realidade humana, a possibilidade do 

afloramento da autoconservação no eu – “a astúcia da autoconservação vive do processo que rege a 

relação entre a palavra e a coisa” (DE, p. 58). Na medida em que a mesma palavra pode significar e 

remeter a coisas distintas, desencantando‐se o nome, Ulisses anuncia o formalismo que se tornará 

hegemônico na sociedade burguesa. 

Cabe ainda assinalar um aspecto mais, a correspondência apontada por Adorno e Horkheimer entre 

os  desdobramentos  da  astúcia,  personificada  em  Ulisses,  e  a  forma  de  organização  econômica 

assentada  em“trocas  ocasionais”;  ou melhor,  a  transgressão  da  tradicional  ordem  econômicae  na 

qual  é possível  vislumbrar a  racionalidade que  se avizinha.Nesse  sentido, Ulisses  já  se move  sob a 

lógica da  racionalidade do homo oeconomicus, assim como a Odisseia  já pode ser vista como uma 

robinsonada.  Nossos  autores  ressaltam  como  ambos,  Ulisses  e  Robinson,  de  modo 

prototípicoconvertem sua fraqueza, seu descolamento da coletividade social, na força motriz de sua 

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[CIRCULAÇÃO RESTRITA] 

atuação  social,  a qual  se guia por  seus  interesses atomísticos. De  forma convergente, a  correlação 

entre  impotência  e  enfrentamento  das  forças  naturais  atua  como  sustentáculo  ideológico  de  sua 

dominação:  “a possibilidade da  ruína é  a  justificação moral  do  lucro”  (DE,  p.  59).  Seu percurso de 

socialização se dá sob o prisma da autoconservação, cujo custo é a contínua alienação do outro e de 

si mesmo.