adorno e horkheimer, dialética do esclarecimento ... · a prostituta e a esposa são elementos...
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Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, "Excurso I”, 2/2
Referência do texto‐base: ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento:
Fragmentos Filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
Tese: O percurso de retorno (nostos) de Ulisses à Ítaca, sua pátria, designa o processo de apreensão
e dominação racional da subjetividade esclarecida em desenvolvimento sobre a natureza mítica,
assim como um reflexo da relação hierárquica entre gêneros.
I.
Em um dos primeiros estágios do percurso de retorno (nostos) a razão esclarecedora emergente de
Ulisses parece estabelecer uma dominação com relação àquele “outro” primitivo, que evoca a
imagem de uma proto‐história anterior ao desenvolvimento das técnicas de produção da
sociabilidade em progresso. Um dos desvios do caminho de volta à pátria – imagem nostálgica final
que justifica o percurso de Ulisses – é a narrativa dos lotófagos que, pela ingestão da planta de lótus,
aparentemente vivem sem memória e levam parte dos companheiros de Ulisses ao mesmo fim, estes
“optando por permanecer entre o Lotófagos, comendo lótus, esquecidos do retorno”1 – remete ao
espectro do esquecimento da cultura, da pátria e à perda daquela vontade utilitária da razão
autoconservadora.
O esclarecimento emergente de Ulisses, neste estágio, parece atuar ainda com um modo de
realização através da ação, ao arrastar os companheiros à força e amarrá‐los às naus, e não através
dos estratagemas da astúcia. Porém, já evoca o domínio sobre os corpos dos que lhe são inferiores,
seus companheiros e os lotófagos – a dominação relativa aos primeiros se insere no âmbito da
divisão do trabalho, onde o chefe decide sobre as ações e o destino daqueles; “O servo permanece
subjugado no corpo e na alma.” (p.40); aos últimos parece constituir a negação de sua cultura em
prol da autoconservação, que possui como um dos pilaresa distância em relação à natureza, para
dominá‐la e não sucumbir a ela.
No episódio de Polifemo, imagem que representa temporalmente um estágio histórico posterior em
relação aos lotófagos, Ulisses evoca a justiça de Zeus em contraposição aos “celerados sem leis”(
p.60). A recusa da submissão de Polifemo aos deuses e sua brutalidade é evidência do que Adorno e
Horkheimer irão identificar como o pensamento ainda não ordenado, sistematizado, que constitui a
recusa da lei.A astúcia emergente faculta que Ulisses logre o ciclope através do ardil com o qual o
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próprio indivíduo inacabado, ao se afirmar “Oudeis” (ninguém) diante da pergunta pela identidade,
se submeta ao natural,2 sucumbindo à imitação mimética daquilo que não constitui um eu. Ao
escapar daquele mundo antigo que subtraiu a individualidade do sujeito, Ulisses revela a si próprio
em uma tentativa de reestabelecer a força da dominação e artimanha do logos em relação à
natureza.
II.
A ameaça de esquecimento da pátria e da perda do poderio do sujeito reaparece na imagem de
Circe. A deusa remete ao instinto, tanto no teor erótico, como na capacidade da fixação do eu do
indivíduo em um ser primitivo. A marca do feminino atada à ideia de natureza expressa a relação de
dominação entre gêneros, que fixa na mulher a marca da submissão. Ao transformar os
companheiros de Ulisses em porcos, aludidos em sociedades posteriores aos prazeres desviantes,
Circe submeteria aqueles à imposição que ela mesma, enquanto imagem da mulher, sofre na
sociedade patriarcal.
A resistência de Ulisses em relação à deusa estabelece seu lugar soberanosobrea mulher, a astúcia e
força com as quais logra a divindade garantem a autoconservação do dominador que, sob o jugo
palavra, impele a deusa a agir segundo seu intento. A ideia do contrato, substrato da configuração de
uma instituição historicamente posterior, ser estabelecido com a hetaira em um “casamento
primitivo que dura apenas um ano” (p.67) e, em contrapartida, a Penélope “desconfiada como uma
prostituta” (p. 67), reflete a posição da mulher naquele lugar singular da ausência do eu.
A prostituta e a esposa são elementos complementares da autoalienação da mulher no mundo patriarcal: a esposa deixa transparecer prazer com a ordem fixa da vida e da propriedade, enquanto a prostituta toma o que os direitos de posse da esposa deixam livre e, como sua secreta aliada, de novo o submete às relações de posse, vendendo o prazer. (p.67)
No Hades, as figuras femininas da mãe e das heroínas assumem a imagem do mito impotente e
mudo, enquanto Tirésias consegue ainda prever e auxiliar Ulisses na reconciliação com Posêidon. A
predição do adivinho contém o “elemento do pensamento antimitológico” (p.69) que aconselhará a
oferta ao deus daquele “sacrifício reconciliador” (p.69). A ambiguidade do vaticínio de Tirésias
constitui o que Adorno e Horkheimer identificam enquanto elemento cômico, assim como o riso que
dele segue – a este último elemento é referidoàtomada de consciência da natureza e o anúnciodo
retorno e a saudade da pátria.
2 “O sujeito Ulisses renega a própria identidade que o transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mimética do amorfo.” (p.63)
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Há uma contradição explicitada pelos autores na oposição entre os conceitos de mito e pátria
presente na epopeia. A partir da ideia do fascismo, que busca fundamento para a questão da pátria
através da nostalgia associada ao elemento mitológico do “estado originário perdido” que evoca a
ideia de um princípio, Adorno e Horkheimer sustentam o argumento do entrelaçamento entre os
componentes míticos e a lógica do esclarecimento.
Bibliografia
DUARTE, Rodrigo. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: UFMG, 1997,
pp. 45 ‐ 63.
BORGES, F., Thiago. Corpo e subjetividade: Notas sobre o Excurso I da Dialética do Esclarecimento.
Marília: Kínesis, Vol. II, n° 03, Abril‐2010, pp. 119‐134.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2013.