adolescÊncia e interpretaÇÃo - controversias · para o analista, embora desde lugares diferentes...

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Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 ADOLESCÊNCIA E INTERPRETAÇÃO Encruzilhadas dos modos discursivos, as ocorrências inconscientes e a transitividade simbólica Javier García 1 A Carlos Kachinovsky Eu esperava somente seus comentários deste texto e ele nos deixou nada menos que com sua lembrança Introdução Devo reconhecer que não me sinto afim à separação etária dentro da psicanálise, ou a algum tipo de diferença claramente definida como especialidade da psicanálise”, que demarque uma técnicapsicanalítica em si, com pautas definíveis por idades ou por psicopatologias. Isto não se deve, claro está, a que não concorde em que é possível e, às vezes, necessário, fazer certos ordenamentos que nos orientem em nossa prática. Minha opinião responde ao fato de que priorizo a Psicanálise como experiência inconsciente singular e artesanal. Experiência inconsciente tanto para o psicanalisando como para o analista, embora desde lugares diferentes e com metas também diferentes. O recurso teórico do analista é, por isso, tão necessário como insuficiente e excêntrico à experiência. Ela constitui, em minha opinião, um núcleo infantil reprimido 2 , inefável em si, mas causa de todos os relatos possíveis, incluídos os de teoria psicanalítica. Singular tanto para cada analista em um momento dado e com um paciente, como para cada analisando, pelo que as generalizações que possamos fazer têm um inevitável núcleo de instabilidade. Artesanal 3 , pelo menos até agora, pois penso que a Psicanálise tem sua difícil especificidade na experiência inconsciente que cada analista tem de sua própria análise, como crisol de sua história e desejos, a transmissão de seus docentes, colegas, leituras e da prática com seus analisandos. Quer dizer, alguma coisa incapturável pela racionalidade e que se faz somente traço nos discursos. Reconheço, claro, que essas preferências são bastante contrárias às tendências culturais atuais, onde a Psicanálise não fica excluída. 1 Psicanalista, Asociación Psicoanalítica del Uruguay, Montevideo. E. Mail: [email protected] 2 Agamben, Giorgio; “Infancia e historia. Destrucción de la experiência y origen de la historia”, Adriana Hidalgo editora, BsAs, 2001, pág. 66. 3 Baranger, Willy; “La situación analítica como producto artesanal”, en: “Artesanías psicoanalíticas” Ed. Kargieman, BsAs, 1994, pp.445-462.

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Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes

Ano 1, Nº 1

ADOLESCÊNCIA E INTERPRETAÇÃO

Encruzilhadas dos modos discursivos, as ocorrências inconscientes e a

transitividade simbólica

Javier García1

A Carlos Kachinovsky Eu esperava somente seus comentários deste texto

e ele nos deixou nada menos que com sua lembrança

Introdução

Devo reconhecer que não me sinto afim à separação etária dentro da psicanálise, ou a algum tipo de diferença claramente definida como

“especialidade da psicanálise”, que demarque uma “técnica” psicanalítica em si, com pautas definíveis por idades ou por

psicopatologias. Isto não se deve, claro está, a que não concorde em que é possível e, às vezes, necessário, fazer certos ordenamentos que

nos orientem em nossa prática. Minha opinião responde ao fato de que priorizo a Psicanálise como experiência inconsciente singular e

artesanal. Experiência inconsciente tanto para o psicanalisando como para o analista, embora desde lugares diferentes e com metas também

diferentes. O recurso teórico do analista é, por isso, tão necessário como insuficiente e excêntrico à experiência. Ela constitui, em minha

opinião, um núcleo infantil reprimido2, inefável em si, mas causa de todos os relatos possíveis, incluídos os de teoria psicanalítica. Singular

tanto para cada analista em um momento dado e com um paciente,

como para cada analisando, pelo que as generalizações que possamos fazer têm um inevitável núcleo de instabilidade. Artesanal3, pelo menos

até agora, pois penso que a Psicanálise tem sua difícil especificidade na experiência inconsciente que cada analista tem de sua própria análise,

como crisol de sua história e desejos, a transmissão de seus docentes, colegas, leituras e da prática com seus analisandos. Quer dizer, alguma

coisa incapturável pela racionalidade e que se faz somente traço nos discursos. Reconheço, claro, que essas preferências são bastante

contrárias às tendências culturais atuais, onde a Psicanálise não fica excluída.

1 Psicanalista, Asociación Psicoanalítica del Uruguay, Montevideo. E. Mail: [email protected]

2 Agamben, Giorgio; “Infancia e historia. Destrucción de la experiência y origen de la historia”, Adriana Hidalgo editora,

BsAs, 2001, pág. 66. 3 Baranger, Willy; “La situación analítica como producto artesanal”, en: “Artesanías psicoanalíticas” Ed. Kargieman,

BsAs, 1994, pp.445-462.

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Ano 1, Nº 1

Se esse núcleo forte da psicanálise tem uma essência enigmática e singular, não por isso nos inibe de fazer relatos a partir de nossas

experiências, senão pelo contrário, empurra-nos a eles. Que esses relatos tenham que se disciplinar em formatos –“papers”- que provêm

de outros campos do conhecimento, tem um lado inevitável e outro confrontável, conflito que prefiro não eludir.

Menciono, assim, brevemente, pontos de partida para passar a me situar frente a dois conceitos: interpretação e adolescência. Não penso

aí um ponto de interseção entre duas linhas claramente definidas – o que é adolescência, que é interpretação e como entender esse

cruzamento?- senão como um campo aberto a multíplices peculiaridades sobre as que somente escolherei alguns aspectos. Esses

se referirão a uma zona da experiência analítica onde os atos

discursivos verbais, gestuais e corporais se fazem presentes tanto no analisando como no analista, às vezes, nos limites da análise, mas com

a intenção de introduzi-los nela. Em ocasiões como encenações, outras como atuações (“acting out”) que nos convocam e golpeiam, outras se

assomando como passagens ao ato. Pontualizarei, brevemente, algumas tendências. Entendo a

adolescência mais do que uma categoria etária, como uma “estrutura aberta”4 pela maior flexibilidade entre instâncias psíquicas, entre a

identificação e a des-identificação em suas diferentes formas, entre o eu e o outro. Essa abertura e plasticidade, que inclui os modos de fazer

relato –lúdico, verbal, gestual, corporal, atos-, desafia-nos em nossa possibilidade de nos oferecer também nessas disponibilidades

discursivas, onde as palavras e pensamentos podem não ser mais que balbúcies - o qual nos põe em maior contato com os riscos habituais de

nossas intervenções, dos quais aqui destacarei dois. A interpretação

como tradução à linguagem das teorias psicanalíticas, das palavras, jogos e atos do paciente5 e a atuação transferencial (contra-

transferencial), que poderia incluir, em uma de suas tantas modalidades, ao risco anterior. Ambos cenários sorteiam o dedicar-se a

trabalhar a experiência inconsciente em jogo e nos levam à perda de efetividade analítica em um deslizamento a psicoterapias com espírito

pedagógico. Se esses riscos estão presentes em qualquer análise, é certo também que os adolescentes, em geral, provocam-nos mais e os

perdoam menos. Embora não possamos prescindir de nossas referências teóricas e elas

estarão aqui implícitas, ou explicitamente presentes, preferirei me manter em um nível próximo ao relato de experiências, pelo menos

como ponto de partida.

Cenários do lúdico: encenações e acontecimentos

4 Kristeva, Julia; La novela adolescente. Adolescence; 1986,4,1

5 Mannoni, Octave; El diván de Procusto. Ed. N. Visión, p.20.

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A entrada na adolescência é tão singular como contextual. Com tudo sabemos que em nosso trabalho encontramos aí muito da análise com

crianças. É muito interessante quando vimos trabalhando com uma criança que entra na adolescência precoce, como será o seguinte

exemplo. T., um menino de 12 anos, chega à sessão com certa excitação, pois

na escola tiveram uma aula de educação sexual, sobre a anatomia genital do homem e da mulher. Conta-me, com muito entusiasmo, o

que tinha aprendido dos órgãos genitais da mulher mas, ao descrever o interior dos genitais, atrapalha-se e, finalmente, diz: “tem como duas

bolas adentro”. Em uma sessão posterior, intenta desenhar um corpo de mulher e não

pode fazê-lo da cintura para baixo. Desenha e apaga: “não consigo”.

Diz: “ Tu leste todos os livros que tens no outro consultório?”. Tens um monte de livros!”. Eu lhe faço um gesto como de interrogação… (É

difícil explicar um gesto, pois condensa e abre ao mesmo tempo). Segue: “Eu vou ser psicanalista como tu, porque se te perguntam

alguma coisa, não tens que responder, abres os olhos assim (me imita). Para que leste tantos livros se não sabes?” Eu repito o gesto e

desenho –escrevo- na folha onde está seu desenho, ao lado, um ponto-de-interrogação. Surpreende-me que fica em paralelo a sua figura

feminina inconclusa. A curva do sinal fica à altura do peito da mulher e o ponto, em sua parte inferior, onde se deteve seu desenho. “Olha “–

diz- e desenha a cabeça sobre o sinal, que agora começava a ser um corpo. “Tu fazes assim o ponto?”, diz. Descubro que eu o tinha feito

como um pequenino círculo. E continua desenhando o perfil do corpo de mulher, as cadeiras e as pernas.

A-“ Consegui!”

P-“Sim. Meu pai esteve me contando sobre meu avô (“T” não o conheceu), emocionou-se, e me disse que sofreu muito quando

morreu.” Eu o percebia atingido (pelo fato). Segue desenhando “Tu queres-me

dizer que sou eu o que tem que ir percebendo?… mas eu prefiro que tu me ensines porque me custa”.

Eu lhe digo que sei que custa, como lhe custou a seu papai lhe contar o que sente por seu pai e levou tempo fazê-lo, mas o fez.

- “Sim, é a primeira vez que me conta alguma coisa assim”. …

Na sessão seguinte, recebo-o e me detenho um instante, ele segue ao consultório mas, quando entro, não encontro e ouço que desde meu

consultório de adultos me diz: “Entre”. Ele estava de pé ao lado da porta, como eu o recebia às vezes. Entro, surpreso, com certo

desconcerto e me diz: “Ah, te assustaste, mas agora vamos ao outro

consultório! ”. Podem-se perceber os grandes temas que experimentávamos em

transferência, mas meu interesse aqui está nas formas expressivas que (nos) tomavam. Em um contexto de análise com crianças, podemos

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advertir uma interação do lúdico com o verbal, o desenho, o gestual-corporal e a encenação. Estas últimas parecem ser formas expressivas

que se destacam mais na adolescência. Ficamos solicitados, intensamente, por discursos ao mesmo tempo verbais, gestuais,

corporais, gráficos, desde o paciente e em nós mesmos, onde o inconsciente se manifesta como inesperado, como acontecimento. A

“interpretação” também está muito perto do acontecimento do analista nessas formas discursivas tão combinadas como móveis. O ponto-de-

interrogação que eu escrevo ou desenho foi inesperado também para mim. Foi T. quem me perguntou se eu sempre faço os pontos como um

círculo, o que não sempre é assim, mas o fora dessa vez. Os acontecimentos no analista, alguma coisa que nos pega de surpresa e

que algumas vezes oferecemos e outras mais são parte de nosso

trabalho interior, aparecem muitas vezes como pequenos atos, de palavra ou entonação, de gesto, de escrita. Permitir-nos essas

surpresas no contexto singular de cada experiência de análise, pois assim surgem, é permitir-nos a dimensão inconsciente que se move em

nós mesmos, ou que nos move. Dispostos ao erro, mas com a confiança de que é a experiência inconsciente o que faz possível uma análise. A

intervenção efetiva do analista parece estar mais perto dessas pequenas coisas que surgem do que das interpretações elaboradas.

Interpretar é pôr em palavras, mas essa afirmação obviamente não é suficiente, pois isso é tudo dizer. Pôr em palavras as imagens que o

paciente traz em discursos verbais, gestuais, corporais, lúdicos, o qual especifica um pouco mais ao citar a passagem da imagem à palavra.

Mas, é também o que começa a fazer um analisando ao relatar um sonho ou uma fantasia. Sem a intenção de dar uma resposta geral ao

conceito de interpretação, interessa-me sim me deter nessa situação

referida, comum na análise com crianças e com adolescentes e de estrutura bastante elementar. O acontecimento no consciente desse

sinal gráfico de interrogação que foi, ao mesmo tempo, esboço de um desenho de mulher.

O sinal gráfico foi precedido de um gesto corporal interrogativo quando o paciente se refere ao “monte de livros” que tenho. Devo reconhecer

que há em mim uma interrogação muito básica, entre corpo e palavra, que surge situado entre minha biblioteca e a sexualidade da mulher.

Talvez também um gesto de suspensão da resposta que ele me demanda. Esse “monte de livros” aos que ele se refere, excede minha

biblioteca. Monte alude a excesso, também a alguma coisa indiscriminada, juntado, depositado, com características de objeto anal.

Apela juntamente a um poder fálico e anal, ao mesmo tempo em que o questiona ( _ terei lido todos esses livros?). O conhecimento

anatômico-fisiológico que ele tinha recebido sobre os genitais femininos

ficou impregnado e interferido por fantasias inconscientes referidas a uma imago de mulher fálica, pois lhe desenha duas bolas dentro do

genital feminino. Com meu gesto transmito interrogação e certo suspense de espera. O suspense tem uma função psíquica importante

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na medida em que possa ser tolerado e introjetado. Com o sinal interrogativo gráfico ou o esboço de mulher firmado num círculo,

transmito algo mais sem ser consciente disso. O suspense interrogativo se faz traço de mulher e o ponto-círculo-orifício que a ele interroga,

parece o levar a lhe pôr a cabeça primeiro, as cadeiras e as pernas depois. O inconsciente transmitido nessa experiência armada entre

ambos lhe permite fazer de um traço o desenho de um corpo de mulher.

Tenho interesse em me apoiar, nesta situação bem elementar e pouco excepcional, na análise com crianças e com adolescentes, pela

freqüência em que nestas análises se dá a coexistência de significantes gestuais, gráficos, corporais, coreográficos, etc., junto aos verbais para

destacar a importância da transmissão de traços inconscientes que,

desde a castração simbólica do analista, experimentada em transferência, possam ser apropriados pelo paciente.

Nesse pequeno exemplo, o acontecimento também esteve do lado do paciente nessa inesperada “representação” de mim, troca de papeis,

encenação em ato das palavras que me tinha falado antes: “eu quero ser psicanalista como tu”. O “monte de livros” era alguma coisa muito

importante, de sabedoria, saber sobre o sexo, mas ao mesmo tempo: não sei. A situação gestual especular, aparentemente imitativa, movia

muitas coisas. Ser um homem grande, ser como papá-analista e poder não saber e interrogar-se coisas. Poderíamos dizer que se insinuava

uma grandiosidade relativizada que lhe permitia brincar de estar num lugar e outro, imitando- me.6 Na outra sessão “representa” essa

situação lúdica de ser o analista, entrar no consultório de adultos e me receber. Ele me atribui o susto e me convida a regressar ao nosso

consultório de crianças. Ecoa: “prefiro que me ensines tu, porque me

custa”. As cenas que relato são especialmente condensadas, pois nelas se pode

ver o trabalho com respeito à sexualidade da mulher, a diferença de sexos, a rivalidade com o pai, a morte do pai-avô e a dor do pai-filho,

o qual lhe permite percorrer esses diferentes lugares nele através de cenários de “representação em ato” comigo. As diferentes cenas

implicam situações transparentes intensas, entre nós, mas que também realizam uma troca de lugares de experiência que dão a mobilidade

entre cenas. A mobilidade deste jogo de representação cênica, que implica o imitativo gestual, o verbal, o gráfico, abre a movimentos de

desejo inconsciente que parecem indicar que não se trata somente de

6 Octave Mannoni tem destacado, acertadamente, a função do jogo na análise de adolescentes. Levando em conta as

teorias do jogo de Winnicott, propõe abrir um espaço de jogo na consulta. Em jogo se colocarão as identificações para

trabalhar sobre as mesmas, embora sem intervir sobre as eleições no campo das identificações. O analista que mantém

o lugar “daquele que sabe” não terá bons resultados trabalhando com adolescentes, deve-se brincar de pôr em

julgamento esse saber. Procura-se brincar com as identificações para trabalhá-las indiretamente. Mannoni, Octave.

(1989) Un intenso y permanente asombro Cap. ¿Es “analizable” la adolescencia?, Ed. Gedisa, Buenos Aires

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identificações imaginárias transitórias, mas de um trabalho com aspectos mais simbólicos (o lugar do homem e da mulher, o lugar do

pai e do filho na genealogia, castração simbólica do pai-analista). O jogo cênico onde se move entre diferentes personagens parece ser

também uma forma de começar a tramitar des-identificações. Acho importante situar esse trabalho mais simbólico, pois o fulgor imaginário

de todas essas encenações poderia fazer-nos ficar somente nelas. Para que isso seja possível, pareceria ser preciso não carregar de sentidos

interpretativos, mas que, pelo contrário, a transmissão de traços ocorrentes teria, de alguma forma, que acontecer.

A intervenção em ato

O ato entendido como o fazer com palavras, gestos e condutas é

algo que o analista, em princípio, suspende para dar lugar à interpretação transferencial. Possivelmente tudo o que possa implicar

certo exercício da força em transferência tem merecido um forte reparo em ser exercitada, suspensão que compartilhamos, pois o trabalho

analítico a requer. Mas quiçá também, como já tinha dito faz várias décadas Serge Viderman7, uma necessidade de des-emparentar-nos de

nossos antecedentes hipnóticos e hipnótico-catárticos pode exercer nisto uma forte influência. Reconheço que frases como: aceitar a força

que se nos adjudica sob condição de não exercê-la, ou de exercê-la em sua mínima expressão na interpretação em transferência com palavras

são referências que tenho incorporadas como analista. Por esse motivo, quando me sinto impelido a fazer com palavras, gestos ou

condutas, algo como um dispositivo de pôr em suspenso e ativar um trabalho interno a respeito de que me leva a isso, parece desencadear-

se só. Em termos gerais, penso que esta suspensão do ato tem seus

fundamentos de existir. É por esse motivo que, se bem em qualquer análise, mas muito especialmente quando se jogam modos discursivos

que ademais das palavras implicam a brincadeira, a encenação, o desenho, etc. nos reconhecemos em ações que acontecem muitas vezes

antes de ser pensadas e que, a posteriori, podemos apreciar seu valor analítico. Essas parecem nos falar de um fazer inconsciente, às vezes,

através de pequenos “acontecimentos” e que podem ter, ao menos às vezes, uma função de transmissão inconsciente da qual o paciente pode

se apropriar. M. tinha chegado, como outras vezes, de bicicleta. Mas desta vez

a subiu pelo elevador e entrou no apartamento onde tinha meu consultório, o que tinha implicado uma grande revoada de manobras e

barulho. Em outras oportunidades a deixava no térreo, aos cuidados do zelador, mas desta vez não o encontrara. Fazia-se presente de forma

mais direta, não intermediada pelo zelador, que se tratava de cuidar de

alguma coisa muito pessoal e importante. Por outro lado, vínhamos trabalhando atos autodestrutivos de pequenos danos corporais,

7 Viderman, Serge, La construcción del espacio analítico, Ed. Denoël, Paris.

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acidentais e provocados, que me preocupavam (mais a mim do que a ele). O corpo, especialmente o que significava traços de identidade

genealógica, como o cabelo, por sua cor preta e cachos e a pele escura e “grossa”, diferente dos traços lisos e brancos do cabelo e da pele de

seus pais de adoção, tinha-se transformado em um cenário doloroso e cruel. Arrancava-se cabelos, machucava-se acidentalmente a pele e

depois se arrancava as casquinhas impedindo a cicatrização e, em momentos de angústia, realizava nele pequenos cortes superficiais.

Esses últimos tinham aparecido em situações onde não se sentia merecedor de carinho.

Nessa sessão tínhamos trabalhado em transferência esses temas filiatórios que nele se desdobravam em diferentes imagos maternas:

mãe (biológica) que o botou fora, mãe (adotiva) que o roubou, mãe

roubada, mãe prostituta, mãe desaparecida e assassinada (fantasia que provinha dos pais) e, finalmente, mãe que não tinha podido ver e

reconhecer traços corporais muito diferentes aos próprios.8 Nessa sessão, M. me conta que quando estava vindo de bicicleta ao

consultório, por uma avenida transitada e em descida, não podia frear nas esquinas, pois estava quase sem freios e utilizava seus pés para

frear. Vimos o perigo ao que se submetia e o desenfreio que vivia, pondo seu corpo e sua vida em jogo. A sessão teve várias derivações,

tanto a respeito da sua vivência da mãe, que não o pegou e o deu, deixou-o ir ou o “botou fora”, como ele sentia que tinha sido, como aos

pais que não o pegaram com tudo o que ele trazia também de outros. Ao acabar a sessão, M. pega sua bicicleta e me diz que vai andar

devagar para poder frear com seus pés. Eu lhe digo que isso não é suficiente, que não é possível voltar de bicicleta nessas condições.

Lembro que foi um momento intenso e tranqüilo ao mesmo tempo, por

parte de ambos, olhando-nos, num clima que poderia descrever como habitado pela tensão dolorosa entre o desejo de cuidar e de destruir, ao

mesmo tempo em que se reinstalava em ato o segurá-lo. Ele me diz: “Está bem, vou caminhando com minha „cabrita‟ ao lado. É subida, mas

não é tão longe”. Que vamos fazer com este desenfreio, com esta necessidade de te

machucares, se consideramos ao mesmo tempo em que sofres, porque há alguma coisa viva e importante que cuidar? Mas esta “mistura”,

este freio a algo que se solta e tira está colocado em ato aí “comigo” –em transferência- e me solicita um ato. Não se trata de um ato

pragmático de cuidado, somente, pois minhas palavras poderiam ter sido ditas por qualquer pessoa com sentido comum. Trata-se aí de

reconhecer uma experiência inconsciente que nos atravessa a ambos 8 Sempre ache este último ponto muito destacável nas identificações precoces, incluída a identificação primária das

crianças adotadas quando nascidos e que depende de ambos os pais adotivos. Quero dizer, muito brevemente, que a apropriação necessária –por identificação- que fazem os pais em relação a um filho recém-nascido (parecidos) leva, nesses casos de adoção, a uma desmentida de traços estranhos, cuja falta de reconhecimento incide na constituição do eu especular e na identificação primária da criança. Esses traços não reconhecidos (não investidos) continuarão insistindo como estranheza e impropriedade em ato. Claro está que não é alguma coisa que possamos ver somente nas adoções de recém-nascidos.”De rasgos y adopciones”; J. García; 2001.

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nessa cena. Eu poderia dizer que introduzo, com palavras em ato, a proibição, tal como podemos entender uma dimensão mais simbólica

da castração, a que ele vivência como dano e morte. Mas, na experiência transferencial intensa que aí vivemos, minhas palavras

falavam mais da castração em mim, na insuficiência da interpretação e o trabalho analítico na sessão, no limite de meu poder a respeito dessa

força desenfreada e o conseqüente reconhecimento doloroso em mim, dessa insuficiência e esse risco. Essa transmissão –não sei de que outra

forma dizê-lo, pois excede o que habitualmente entendemos por “interpretação”- é o que penso que aconteceu em ato. A efetividade de

intervir em transferência para que algo mais simbólico da castração “faça carne”, penso que passa fundamentalmente pela experiência

deste „limite‟ ou „insuficiência‟ dolorosa no analista. E isto não creio que

se restrinja à análise, mas que é parte da vida. Vejo útil pensá-lo como uma forma de transitividade mais complexa que facilite quem o

experimente (o paciente nesse caso) uma forma de identificação-apropriação mais simbólica.9

É minha preocupação enfatizar esse ato – do analista- como resultado de uma experiência inconsciente em transferência, que dá conta, em

alguma coisa ao menos, da “castração” no analista, pois sei do fácil deslizamento às intervenções ideológicas por exercício de poder, de

conduta, de tipo psicoterapêutico e pedagógicas. Trata-se de um borde de muito cuidado, pois também há uma tentação ao ato –agora me

refiro ao “acting out“– do analista, que o penso no sentido exatamente inverso ao que exponho aqui (em relação à “castração” e a “Eros”).

A análise de (com) M. me permitiu observar e experimentar o retorno em ato de sentir-se não agarrado, não reconhecido, sob

diferentes maneiras. No começo de sua análise, nos seus 11-12 anos,

quando trabalhávamos na sala de brinquedos, houve um período em que construíamos aviões de papel. No início, tratava-se de que eu o

ajudara a fazê-los e, o desafio –de ambos-, que conseguissem planear ou, ao menos, não cair a pique. Depois começou a identificar os aviões,

escrevendo neles siglas de clubes desportivos e de nomes de países. M. se confundia e adjudicava siglas –nomes- de clubes e países aos que

não correspondiam. Quer dizer, os aviões tinham nomes, distintivos ou marcas, mas não coincidiam com o país ou clube com o que dizia que

eram, ou não sabia a quem correspondiam. Trabalhando essas letras ou traços sem pretexto, a brincadeira com os aviões mudou. Ele os atirava,

os fazia planear e eu tinha que pegá-los antes que caíssem no chão e vice-versa. O desafio do quem os atirava era que voassem, planeassem

e, o do outro, “pegá-los em vôo”. Mas em uma sessão a brincadeira mudou. M. viu que a janela do consultório (em um 9º andar) tinha

uma abertura e começou a intentar atirar os aviões para que saíssem

por essa abertura. No início eu pensei que era outra forma de querer “me fazer gols”, ganhar-me, “colocar o avião pelo buraco”, etc., mas

9 Jean Bergès, Gabriel Balbo – “Sobre el transitivismo”. Ed. Nueva Visión, Buenos Aires, 1999.

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percebi que na realidade, nesta modalidade, eu estava “fora de jogo” e o jogo mesmo tinha terminado. Não sabia o que estava acontecendo.

Do clima lúdico comigo, com diferentes matizes afetivos, M. tinha passado a não me ver, ensimesmado em tratar de passar seus aviões

pela abertura e com certa sanha. Eu tentei reintegrar a brincadeira, tratando de apanhar esses aviões como na brincadeira anterior. O fazia

e o interpretava, mas não conseguia estar aí para ele. Senti medo, como em uma proximidade extrema entre M. e os aviões, precipitando-

se pela janela, alguma coisa que a gente sente quando um pequeno se aproxima a uma abertura. E assim, “agi”. Fiquei de pé frente à

abertura, fechei a janela e lhe disse que todos os aviões, os de todas as letras e todas as marcas eram daqui, que todos os tínhamos feito todos

aqui e para brincar aqui. Após essa sessão, M. começou a vir muito

cansado, deitava na banqueta que tínhamos com almofadas e dormia. Eu ficava sentado ao seu lado e um momento antes de terminar a

sessão, começava a lhe falar, acordando-o. O clima do começo era claramente depressivo. Todas as marcas e as letras parecem ter estado

aí cansando ele, mas também, balbuciantes, no acordar… Com quase mais três anos, agora um adolescente precoce, a

reaparição desses traços dava-se em outros cenários. Uma das mudanças entre a criança e o adolescente é a de seus cenários. Em

uma criança, os cenários são muito mais próximos a nós. Já não era o aviãozinho de papel que tínhamos construído em sessão e com o qual

inventamos brincadeiras que foram interrompidas por um ato diferente, onde eu ficava excluído e ele demasiado aderido ao objeto que

ameaçava com a defenestração. Agora se tratava de sua bicicleta, tão importante para um adolescente, próxima a seu corpo, a suas

possibilidades de locomover-se fora da casa (e do consultório). O risco,

sem dívida, estava aí. Mas desta vez ele a tinha subido ao consultório e tinha relatado esse risco. Eu podia sentir, outra vez, a proximidade

entre ele e seu objeto no desenfreio, a queda livre, embora precariamente freada com seus pés. Ele me tinha colocado aí para me

fazer sentir outra vez esse medo a que alguma coisa lhe acontecera, para ver-me sentir meu medo a que ele se machucasse ou caísse –

morresse-, como se tivesse que se reconhecer no efeito criado em mim.

Embora conceitualmente possamos estabelecer uma diferença entre o “ato” (agieren), o “acting out” e a “passagem ao ato”, referida à

existência ou não de simbolização e a que a ação esteja ou não dirigida ao Outro10, a prática nos situa nesses limites onde tal distinção se

movimenta em cada cena. Na brincadeira, estamos claramente no nível do “ato”. O episódio da bicicleta sem freios que sucede e que me

relata, situa-se em nível do “acting out”. Entretanto, a interrupção da

brincadeira do avião quando fico excluído e a ameaça de risco que surge do episódio da bicicleta sem freios parecem assomar à

10

Lacan, Jacques, El Seminario, Libro 10, La angustia; IX, pp 127 y sig.; 1962-63; Ed. Paidós.

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“passagem ao ato”. Não constituem uma passagem ainda, pois o ato se dá em referência a meu lugar, em transferência. Mas assoma no risco

e apela a um ato analítico que, antes que simbolizador, pois o poderá ser “après coup”, terá que se estabelecer como experiência inconsciente

de desejo de vida. Isto último não se deverá entender como uma expressão nem filosófica nem mundana. É a angústia de sua morte em

mim, como experiência inconsciente de castração, a que me move em desejo. A transitividade da experiência inconsciente pode permitir

restituir a subjetivação de seu desejo e, com isso, a estrutura simbólica ameaçada pela passagem ao ato.

Se bem os fenômenos de transitividade que podem ir permitindo a conformação de identificações mais simbólicas podemos encontrá-los

em todas as idades, é certo que nos momentos onde as identificações

(todas) estão especialmente convocadas e em xeque, como sucede na adolescência, estes tomam maior relevância . Além disso, na

adolescência, sua preeminência é ainda maior pela intensa participação do corpo em gesto e ato com os outros, cenário onde as palavras estão

ou podem estar e requerem estar muito perto, consumindo-se nesses atos.

Essa variante dos cenários transferenciais e dos modos em que a experiência inconsciente se atualiza, convocando-nos na mesma cena,

deveria nos fazer rever nossa tendência a pensar os atos –nesses casos- como transgressões ao enquadre, tanto por parte do paciente

como do analista. É o enquadre mesmo o que se põe em jogo em cenários diferentes, com modos de expressão diferentes, onde também

o analista é requerido nesses modos para sua função. Longe de pensar em uma perda de importância do “enquadre”, o que se põe em jogo é

uma abertura desse conceito aos diferentes contornos do ato, o que nos

interpela em nossa capacidade de resposta ou intervenção aos efeitos de sustentar o desejo. Penso que isso é possível, não em um nível

racional que implique especialmente o ego, mas na medida em que possamos transitar uma experiência inconsciente de castração.

Acredito que essas experiências podem ser pensadas de diversos modos e com diferentes recursos de teoria que, a meu modo de ver, não são

tão decisivos com respeito a que possamos transmitir delas. Em todo caso são preferências pessoais, às vezes circunstanciais, que podem ter

o mérito de abrir-nos pequenas janelas para percorridos analíticos e de pensamento, às vezes, fecundos.

Jogos de espelhamentos.

A intensidade da entrada em cena através de distintos armados de relatos passa, diria, necessariamente, por momentos intensos de

experiências especulares (transparentes). Essas podem dar-se no jogo

cenográfico, em situações que aparecem como imitações, mas também, em adolescentes de maior idade (adolescência média, por exemplo), no

pensamento e no discurso. Jogos de palavras e com pensamentos, às vezes, são muito difíceis de distinguir de funcionamentos. Além de que

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certas conformações psicopatológicas possam abundar nesses fenômenos, o que é muito certo, eles estão de alguma maneira sempre

presentes e nos desafiam a transitá-los de dentro da mesma experiência. Relatarei várias experiências diferentes com analisantes na

etapa média da adolescência. Faz já alguns anos, um colega me consultava em relação a um paciente

que em uma sessão o tinha feito sentir confuso. O jovem começou dizendo que não tinha vontade de ir a essa sessão porque se sentia

bem. Dizia: “É mais fácil quando a gente está no fundo e dando o grito”. Parece que sem essa raiz dolorosa que lhe permitia saber de

onde falava, resultava-lhe difícil estar com seu analista. Continuou dizendo: “Em um momento que fui ao quarto encontro a “C” se olhando

no espelho, fazendo gestos. Eu tinha estado no mesmo, praticando no

espelho antes que chegassem. (Pausa) Comecei a transpirar (em sessão)... Uma coisa que estou achando interessante é poder

compartilhar com os outros essas obscuridades. A “C” lhe coloquei falar de ti.” O analista: – Falar de mim? “Não! De mim. Da minha história.

Como me desprendendo de mim... Lendo Santo Agostinho pensei nisso. É como se desligar do da gente… Falar de mim como se fosse outra

pessoa. Como se falara em terceira pessoa, de ti.... Como uma forma de poder te compartilhar a ti... é um pouco perder o Eu. É mais fácil

contar alguma coisa em terceira pessoa que em primeira pessoa. Quantos poemas e livros contados em terceira pessoa são

autobiográficos? Aqui pode servir. No sei se a ti te serve?” – A ti te serve... Terá que ver com apropriar-te de Santo Agostinho? “É como

uma confissão e Santo Agostinho diz que para se confessar tem que se desprender de sua consciência. Ele fala de depositar seu ser em Deus e

poder ver ele de cima. Isso me chamou a atenção. Ver-se de cima. –

Falas de como incorporar essas coisas … Ler, ouvir, como no espelho…. Incorporar alguma coisa assim. “É bastante certo isso que falaste.

Houve alguma coisa que resultou amargo para mim e é procurar um modelo para incorporar coisas. .. Agora estou transpirando...” –Algo

que sentes hoje aqui...incorporar, te faz transpirar e te faz sentir que é bom..

Trata-se de um adolescente de mais ou menos 17 anos, incursionando, aparentemente, em temas do “ser”, o “outro”, a auto-observação, as

possibilidades de autoconhecimento e historização e os modelos ou ideal. Em maior o menor medida, essas são questões que preocupam

na etapa média da adolescência, isso que Anna Freud descreveu como intensas e muitas vezes inconduzentes preocupações filosóficas11, que

fazem difícil a analisabilidade. O analista me disse que sentiu que, na sessão, a confusão parecia senti-la mais ele do que o paciente.

Podemos imaginar também o que transpirou o analista para tentar se

aproximar dessa forma tão humana e intensa de incorporação, como de duvidosa racionalidade, quando a gente parte de uma idéia de

11

Freud, Anna, Psicoanálisis del desarrollo del niño y del adolescente, Ed. Paidós, BsAs, Cap XI.

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separação radical “eu”-“outro”, “dentro”-“fora”. Seu pensamento abstrato –o qual fazia que o analista desconfiasse da sua veracidade-

com tudo ia acompanhado de uma reação corporal de suor. Ele tem realmente fome, avidez de procura de conhecimentos, experiências e

traços para incorporar. Era um tema que se vinha trabalhando de diferentes formas. Aqui incorpora e transpira, talvez como os bebês

quando mamam e olham como são olhados, neste caso, também , como pode ser pensado e historiado desde um terceiro lugar. Recria

funcionamentos especulares e espreita um mirar-se desde outro lugar, nessa referência a Santo Agostinho, desprendido do eu que olha e se

vê no outro. Refere a esse outro lugar como de cima, lugar de Deus. Se nos abstemos da especulação filosófica sobre o “ser” e nos situamos

em nosso campo, podemos apreciar os recursos deste jovem –por que

não lúdicos?- que dispõe de uma estrutura simbólica –edípica- esmagada, colapsada em sua terceridade, por manter esse lugar do pai

que, em sua história vivencial, tem estado muito precariamente constituído.

Na leitura do material, instância desprendida da experiência transferencial inconsciente de ambos, podíamos ter esperado e

compreendido, talvez, a que se referia o paciente. Com tudo, o analista fica impelido a perguntar se era dele de quem o paciente queria falar. É

um momento intenso onde o ego do paciente fica no analista. “Não sei se a ti te serve?”, aparece como um oferecimento máximo ao

analista. Nas situações o jogos de duplos ou espelhamentos, como no exemplo de Narciso, parece necessária uma entrega total a uma

imagem de sim que cria a outro a quem se ama e se requer para ser amado. Narciso é por esse outro líquido por quem se afoga em entrega

de amor. A perda da ancoragem subjetiva é máxima nesse instante.

“A ti te serve,.. apropriar-te” –diz o analista-, retorna a ele, a um lugar muito precário que ele não reconhece quando não está “no fundo e

pegando o grito”. O “eu” de quem fala não fica claro onde o situar. O “tu” é “eu”, mas para que assim seja requer uma incorporação através

do analista, quer dizer, desde algo que retorne desde o analista como reconhecimento e como algo bom. Isso poderíamos pensá-lo desde

diferentes aportes de autores. Pois a transpiração também nos situa no medo do que pode incorporar, o que em outro momento da sessão aqui

no referido ele menciona. Situa-nos na posição esquizo-paranóide kleiniana, na função reverìe de Bion, no estado do espelho de Lacan e

na violência primária de Piera Aulagnier, por dar alguns exemplos. Abordagens viáveis para estabelecer um nível de compreensão dessas

experiências. Não obstante o analista está longe de se posicionar em um nível teórico. A experiência exige um nível onde as palavras e

idéias surgem titubeantes e de um modo bastante artesanal, embora

estejam presentes, claro está, diferentes referências teóricas. O paciente parece sentir essa proximidade das palavras do analista,

reconhece que é certo o que lhe diz. Reconhece a amargura de incorporar, um sabor certamente que não faz referência a algo bom em

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sua lembrança, mas que talvez esteja podendo dar aí, ao menos como possibilidade de incorporação desde um terceiro lugar mais próximo e

humano que o Deus que precisou apelar. Se isso é assim, a intensidade da experiência especular de ambos estaria permitindo um movimento

para a abertura ao outro (Outro) e à apropriação de palavras, traços, alimentos toleráveis, em uma experiência intensamente corporal.

Podemos advertir em que medida é possível atualizar e re-criar, em análise, experiências básicas para a matriz simbólica do psiquismo. É

todo um desafio para nós se essas ocorrem somente como repetição de algo que sempre falha em sua constituição ou se essa repetição vai

permitindo uma re-criação de estrutura simbólica. A situação que refiro é pontual e não nos permite mais que uma espreita de uma

possibilidade de mudança estrutural, para expor o problema. O

esperável é que esta re-atualização apareça de diversas formas e em distintos níveis em transferência para continuar se tecendo como

estrutura de funcionamento simbólico desde a experiência inconsciente. As referências analíticas a estes intensos momentos especulares podem

ser muitas e estar em pequenos detalhes. Perguntava-me uma paciente: “Isso o disse eu ou o disseste tu?” Entende-se que o analista

sabe ou pode saber quem o disse, mas isto não sempre é totalmente assim. Palavras ou idéias estão na sessão, em imaginários, cuja autoria

não é claramente separável na dupla, pois vem de lugares de enunciação de discursos que claramente nos excedem e se constituem

como vivências fortemente duais. É habitual, por exemplo, que um analisando descubra algo que já lhe

tínhamos falado. “Me estou dando conta –diz um paciente jovem- nunca o tinha sentido assim, mas meu vazio deve ter alguma coisa a ver com

esta necessidade de dizer tudo tudo e não quedar com nada e com esta

velocidade com a que tenho que falar tudo. Depois fico vazio e sinto que o que disse não é algo meu nem verdadeiro”. Retornava dele

alguma coisa dita por mim várias sessões atrás, embora de outro modo. Suas palavras podemos ouvi-las como a descrição de um esvaziamento

de conteúdos internos, uma incontinência a respeito de sentimentos e idéias, mas, também como um reconhecimento de um discurso sem

sujeito. O sujeito fica desaparecido neste “dizer tudo” com palavras desamarradas de suas representações inconscientes, em uma espécie

de tagarelice. “Tomar a palavra”, em seu verdadeiro sentido que implica ser tomado por palavras que têm sua ancoragem em traços

inconscientes, por alguma razão importante em meu paciente não estava podendo acontecer.

Nos exemplos relatados, após a identificação especular, aparece este pequeno movimento de interiorização, secundário à aparição de um

terceiro lugar de referência, olhar, que deixa falar sem se perder no

outro. A idéia de “interiorização” se corresponde com uma vivência subjetiva, mas nos fala de que alguma coisa que antes aparecia como

identificação no outro se constituiu como experiência inconsciente. Que eu desapareça como autor das palavras que agora são dele, nos evoca

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a transitividade, contudo não em uma situação de confusão imaginária, mas uma “transitividade simbólica” (como o descrevem Bergés e Balbo,

ob. citada) que resulta auspicioso para a constituição do sujeito. De outro modo, poderíamos dizer que não se trata de uma confusão a

secas, mas do começo de uma interiorização –introjeção-inconsciente. Aos encerros de subjetividades ressoantes, a análise oferece um quebra

desde o lugar do analista que, povoado de imagens pelo analisando e por suas próprias vivências, põe em entredito com seu ofício tanto uma

certeza de propriedade como uma confusão de sujeitos, para que alguma coisa aí tropece, permitindo um interrogante e a chance de

assumi-lo como próprio. O jovem do sentimento de vazio interior ao que me referi tinha

intentado se matar com seu auto atirando-se desde um barranco e

somente o destino impediu sua morte. Um impulso incoercível e cego o levou até aí e a precipitar-se. Por um momento lhe apareceu a pergunta

“Por quê?”, mas rapidamente a descartou, acelerou e se atirou. Antes de vê-lo por primeira vez, eu tinha sido informado disso. Mas a seu

encontro, com tudo, quando apareceu com seus gessos e ortopedias, não pude evitar a surpresa e lhe dizer: “Ah! Que te aconteceu?!”.

Parece necessário que esclareça que isso não me acontece com freqüência. Respondi como se estivesse com alguém conhecido, mas

sabendo do acontecido nesse instante, surpreso pelo que via, quando na realidade era alguém a quem não tinha visto antes, e sim tinha sido

informado do acontecido. Ele não tinha nem tem nenhuma explicação nem fantasia do que o

levou essa passagem ao ato. Não sentia dores em seu corpo e muito menos dor psíquica. Estava contente de ter sobrevivido à “grande

morte”. Era como começar uma viagem em meio a uma espessa

neblina que não permitia ver nem onde pisávamos. Não tinha aí uma subjetividade consistente. Sentia “Nada”. O desafio foi começar a

construí-la, ainda contra as forças que a tinham desbastado e talvez, muito especialmente, desde a transitividade que me surgiu ao vê-lo

assim. Ele não tinha uma vivência de interioridade. A idéia de construção de uma subjetividade, que não é mais a partir do resgate

de traços desaparecidos, apoiando-me nos fenômenos especulares e na transitividade, era um ponto de partida que achei útil, embora de muito

longo alento. A construção da transferência leva nestes casos muito tempo numa análise. Trabalhamos construindo e des-construindo

transferência imaginária quando subjetivamos. Nos limites da interpretação ou a interpretação nos limites.

Interpretar é sempre, em qualquer disciplina que o pensemos, um modo de ler signos. Cada disciplina e cada intérprete terá seus

interpretantes. Em Psicanálise também existe diversidade de

interpretantes. Desde a atualização transferencial, uma condição preliminar de todo dizer e fazer em análise, ressaltarão signos que nos

remetem a pulsões parciais, zonas erógenas, estruturas de organização da sexualidade humana como a cena primária e, com a participação

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do “Outro” -em prioridade ou em coalescência com as pulsões parciais- abre-se outra dinâmica transferencial e das leituras da experiência

analítica. Poderíamos seguir citando muitos outros elementos de leitura, mas, em todos os casos, a interpretação em psicanálise terá

que se recortar em suas intermináveis possibilidades, de uma galeria de espelhos onde a linguagem fala da linguagem segundo os reflexos

em diferentes esquemas referenciais –olhares- . Resgatar-se creio que ajuda a assumir uma precariedade, um balbúcie a partir da experiência

inconsciente que inevitavelmente se nos arma em intensos imaginários transferenciais.

Não obstante, interpretar, ainda nesta assomada às palavras que nascem titubeantes, é uma atividade na cultura. É uma atividade de

decifração dentro de um determinado mundo de valores e juízos, ainda

quando acreditemos cumprir com nossas regras de abstinência e neutralidade. Se os analisantes analisáveis nos colocam em um lugar

de saber idealizado que faz menos ríspidas essas marcas ideológicas de nossos dizeres, nos adolescentes é muito freqüente que sua extrema

sensibilidade a esses traços faça especialmente difícil a tarefa interpretativa habitual. Que analista é consciente de seus modos

persuasivos, de sua estética do dizer e da atuação de sua fala? Toda análise nos deveria enfrentar essas cegueiras, como pontos originais,

re-inaugurados em cada experiência singular. Mas é com adolescentes onde isso se nos censura com freqüência. São caminhos que, embora à

disposição, os adolescentes não necessariamente os têm seguido. Desafiam-nos a experimentar o que eles mesmos estão transitando, e

a que as palavras surjam da própria experiência, embora farfalhando, mas sem sedução. Talvez para rir desses titubeios em nós mesmos e ir

incorporando lentamente a fortaleza dessa precariedade.

Montevidéu, agosto de 2007

BIBLIOGRAFIA

Agamben, Giorgio; “Infancia e historia. Destrucción de la experiência

e origen de la historia”, Adriana Hidalgo editora, BsAs, 2001, pág. 66. Baranger, Willy; “La situación analítica como producto artesanal”, en:

“Artesanías psicanalíticas” Ed. Kargieman, BsAs, 1994, pp.445-462. Kristeva, Julia; La novela adolescente. Adolescence; 1986,4,1

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Mannoni, Octave; El diván de Procusto. Ed. N. Visión, p.20. Mannoni, Octave. (1989) Un intenso e permanente asombro Cap. ¿Es

“analizable” la adolescencia?, Ed. Gedisa, Buenos Aires Viderman, Serge, La construcción del espacio analítico, Ed. Denoël,

Paris. García, Javier.”De rasgos e adopciones”; 2001.

Bergès, Jean; Balbo, Gabriel – “Sobre el transitivismo”. Ed. Nueva Visión, Buenos Aires, 1999.

Lacan, Jacques, El Seminario, Libro 10, La angustia; IX, pp 127 e sig.; 1962-63; Ed. Paidós.

RESUMO

A partir de breves relatos de análise, o autor quis bosquejar alguns traços parciais do trabalho com adolescentes. A intensidade da entrada

em cena e em ato, a multiplicidade dos modos discursivos na sessão, a força dos momentos especulares e como o analista fica convocado

nesses modos lúdicos com palavras, gestos, encenações e escrita a transitar da especularidade a formas transitivas (simbólicas) que

permitam o adolescente apropriar-se de experiências e, através dele, de traços singulares e desejos que não dispõem como parte de sua

subjetividade.