administração hospitalar consultas mÉdicas · 2011-10-04 · consultas médicas: oferta,...

10
78 Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS: OFERTA, DEMANDA, MUDANÇA CULTURAL E O FIM DAS FILAS Dulce Selma Bacheschi de C. Mori Chefe do Serviço de Arquivo Médico e Estatística do Centro Técnico Aeroespacial. E-mail: [email protected] RESUMO A abordagem convencional do problema da formação de filas para agendar consultas médicas assume, como pressuposto, que a causa primeira está em uma demanda impossível de ser atendida com os recursos disponíveis. Este artigo aponta outras causas, até então des- conhecidas, que fundamentaram o desenvolvimento de uma sistemá- tica que fez as filas desaparecerem sem que houvesse aumento no número de médicos ou de consultas/médicos. Essa sistemática é apre- sentada e analisada em seus aspectos significativos de desenvolvi- mento e implantação. ABSTRACT The conventional approach to the problem of queuing to arrange medical appointments assumes that the main reason for it is the impossibility to meet all the demand with the resources available. This article, however, shows other causes, not known before, which have based the development of a new system that has extinguished the queues without increasing the number of doctors or the number of appointments/doctors. This new system is presented and analysed in the light of its significant aspects of development and implementation. PALAVRAS-CHAVE Marcação de consultas médicas, SAME, filas, hospitais públicos, inovação. KEY WORDS Medical appointments, SAME (Medical and Statistics Filing Service), queues, public hospitals, innovation. RAE - Revista de Administração de Empresas Abr./Jun. 1999 São Paulo, v. 39 n. 2 p. 78-87 INTRODUÇÃO A gestão do Serviço de Arquivo Médico e Estatísti- ca (SAME) do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), uma organização do Ministério da Aeronáutica, foi reorientada para os usuários. A oportunidade dessa decisão surgiu quatro anos atrás quando, aproveitando novas idéias sobre estratégias de implantação da qua- lidade, posteriormente defendidas em dissertação de mestrado (Arroyo, 1995), foi feito um planejamento para as mudanças necessárias. O projeto, denominado Sistema de Agendamento Médico e Estatística (SISAME), contemplava a reen- genharia de todos os processos das seguintes funções 1 do SAME-CTA: a) armazenamento e recuperação física das informa- ções ambulatoriais para fins de prevenção, prognós- tico, diagnóstico, tratamento e acompanhamento; b) fornecimento de dados e informações quantitati- vas de natureza estatística sobre o atendimento ambulatorial (produtividade, absenteísmo, censo etc.); c) fornecimento de informações epidemiológicas (nosologias, incidência de doenças, etc.); d) fornecimento de dados para análise estatística em apoio à pesquisa clínica; e) marcação de consultas médicas. Submetido à apreciação do Diretor do CTA, o pro- jeto foi aprovado e, dispondo de assessoria para gerir a implantação, os trabalhos foram iniciados em julho de 1993. De todas as melhorias para os usuários, decor- rentes da reorientação da gestão, a extinção das fi-

Upload: others

Post on 08-Aug-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

78 RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

Administração Hospitalar

CONSULTAS MÉDICAS:OFERTA, DEMANDA, MUDANÇACULTURAL E O FIM DAS FILASDulce Selma Bacheschi de C. MoriChefe do Serviço de Arquivo Médico e Estatística do Centro Técnico Aeroespacial.E-mail: [email protected]

RESUMOA abordagem convencional do problema da formação de filas paraagendar consultas médicas assume, como pressuposto, que a causaprimeira está em uma demanda impossível de ser atendida com osrecursos disponíveis. Este artigo aponta outras causas, até então des-conhecidas, que fundamentaram o desenvolvimento de uma sistemá-tica que fez as filas desaparecerem sem que houvesse aumento nonúmero de médicos ou de consultas/médicos. Essa sistemática é apre-sentada e analisada em seus aspectos significativos de desenvolvi-mento e implantação.

ABSTRACTThe conventional approach to the problem of queuing to arrangemedical appointments assumes that the main reason for it is theimpossibility to meet all the demand with the resources available.This article, however, shows other causes, not known before, whichhave based the development of a new system that has extinguishedthe queues without increasing the number of doctors or the numberof appointments/doctors. This new system is presented andanalysed in the light of its significant aspects of development andimplementation.

PALAVRAS-CHAVEMarcação de consultas médicas, SAME, filas, hospitais públicos,inovação.

KEY WORDSMedical appointments, SAME (Medical and Statistics FilingService), queues, public hospitals, innovation.

RAE - Revista de Administração de Empresas • Abr./Jun. 1999 São Paulo, v. 39 • n. 2 • p. 78-87

INTRODUÇÃO

A gestão do Serviço de Arquivo Médico e Estatísti-ca (SAME) do Centro Técnico Aeroespacial (CTA),uma organização do Ministério da Aeronáutica, foireorientada para os usuários. A oportunidade dessadecisão surgiu quatro anos atrás quando, aproveitandonovas idéias sobre estratégias de implantação da qua-lidade, posteriormente defendidas em dissertação demestrado (Arroyo, 1995), foi feito um planejamentopara as mudanças necessárias.

O projeto, denominado Sistema de AgendamentoMédico e Estatística (SISAME), contemplava a reen-genharia de todos os processos das seguintes funções1

do SAME-CTA:a) armazenamento e recuperação física das informa-

ções ambulatoriais para fins de prevenção, prognós-tico, diagnóstico, tratamento e acompanhamento;

b) fornecimento de dados e informações quantitati-vas de natureza estatística sobre o atendimentoambulatorial (produtividade, absenteísmo, censoetc.);

c) fornecimento de informações epidemiológicas(nosologias, incidência de doenças, etc.);

d) fornecimento de dados para análise estatística emapoio à pesquisa clínica;

e) marcação de consultas médicas.Submetido à apreciação do Diretor do CTA, o pro-

jeto foi aprovado e, dispondo de assessoria para gerira implantação, os trabalhos foram iniciados em julhode 1993.

De todas as melhorias para os usuários, decor-rentes da reorientação da gestão, a extinção das fi-

Page 2: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas

RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999 79©1999, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil.

EVOLUÇÃO DAS PRÁTICAS DE MARCAÇÃO

Conforme os índices registrados em março de1996, antes, portanto, da implantação da nova siste-mática, os primeiros usuários a chegarem na portado hospital do CTA com a intenção de agendar umaconsulta médica faziam-no por volta das 5h50. Apartir desse horário, as chegadas iam sucedendo-see a freqüência acumulada apresentava, de forma ge-ral, o padrão que pode ser visto na Figura 2. Comose pode observar, às 7 horas, quando os guichês demarcação eram abertos, havia, em média, cerca de35 pessoas esperando.

O problema era antigo e acreditava-se que tenderiaa agravar-se com o aumento da demanda. Na tentativade eliminá-lo, algumas práticas clássicas de marcaçãode consultas foram adotadas pelo SAME-CTA.

A mais conhecida delas é a chamada MarcaçãoAntecipada. Seu funcionamento é simples: quando aagenda do dia estiver totalmente preenchida, abre-seuma agenda para o dia seguinte e marca-se a consulta.Quando essa agenda também for completada, abre-seuma outra agenda para o dia subseqüente e assim pordiante. É muito semelhante ao sistema de reservas deassento nos vôos comerciais, embora não seja admiti-da a ocorrência de overbooking2.

O objetivo da Marcação Antecipada é fazer com queo usuário não perca sua ida ao hospital para agendaruma consulta. Indo ao hospital ou telefonando, no casodas clínicas particulares, o usuário sempre tem condi-ções de agendar uma consulta. A abertura progressivae ilimitada de novas agendas leva, passado algum tem-po, à situação de só ser possível agendar uma consulta

las para agendar consultas médicas foi a que causoumaior impacto, visto não ter sido alterada a relaçãooferta/demanda.

Neste trabalho são apresentados, para discussão, asistemática de marcação de consultas desenvolvida, osresultados e a fundamentação teórica das principaisdecisões originárias da nova percepção de uma reali-dade tão antiga: filas nas portas de hospitais.

A ESCOLHA DAS FILAS

São conhecidas várias iniciativas, tomadas poradministradores públicos, que foram eficientes e efi-cazes, mas que não sobreviveram às sucessivas mu-danças ocorridas no topo da estrutura organizacionaldo órgão público.

A consolidação das mudanças nos órgãos públicos,ao contrário do que ocorre na iniciativa privada, não éobtida apenas pela decisão do mais alto escalão. Paraque sobrevivam, é necessário que as modernizaçõesinternas sejam respaldadas em objetivos dos usuários,e não apenas em mudanças que venham trazer, comoconseqüência, benefícios para os usuários.

Essa necessidade advém do fato de que o turnovernos órgãos públicos ocorre nos níveis organizacionaismais elevados (Arroyo, 1995), e as mudanças apoia-das apenas na autoridade interna acabam perdendo sus-tentação com a troca do chefe.

Nessa visão estratégica, o objetivo dos usuários es-colhido para respaldar as mudanças internas do SAME-CTA, embora não verbalizado pelos próprios (obser-ve, na Figura 1, a ausência de queixas quanto à própriaexistência da fila), foi a extinção das filas.

Outras

Número insuficiente de consultas

Número insuficiente de médicos

Uso indevido da senha

Falta funcionário para organizar a fila

Falta sinalização para a fila

Não é feita a marcação por telefone

Má acomodação na fila

Não é feita a marcação antecipada

0 5 10 15 20 25

Figura 1 - Queixas dos usuários enquanto aguardavam na fila (em %)

Page 3: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

80 RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

Administração Hospitalar

para 15, 30 ou até 60 dias da data da solicitação. Ousuário passa, então, a sentir-se ludibriado por ter deesperar tanto tempo.

Nessa prática de marcação, o foco do problema -realizar uma consulta com um médico - é desviadopara o ato de simplesmente agendar a consulta. Estapassa, assim, a ser uma possibilidade do hospital, nãoexistindo espaço para a premência de cada usuário.

Como se vê, a Marcação Antecipada elimina ape-nas o problema da visibilidade das filas. Assim comonas reservas dos vôos comerciais, esse tipo de marca-ção estimula o usuário a aceitar, por cautela, umagendamento com um prazo para atendimento que nãotem qualquer relação com sua necessidade e, em razãodisso, gera um absenteísmo elevado.

Um aperfeiçoamento da Marcação Antecipada é aMarcação Antecipada com Reserva de Vagas para oDia. Nessa prática, os horários são disponibilizadostambém com antecedência, entretanto alguns horáriossão reservados para serem ofertados no dia do atendi-

mento. Essa prática também não elimina o problemadas filas, pois elas voltam a se formar para o usuáriodisputar esses poucos horários do dia.

FILAS: UM PROBLEMA DE QUEM?

Os SAMEs, por serem os concentradores de todasas informações pessoais e médicas sobre os pacientesde uma organização de saúde, têm importância fun-damental em praticamente todas as suas atividades clí-nicas e em muitas das atividades administrativas(Rodrigues, 1987). Das suas múltiplas funções, des-tacam-se, para o público externo, a oferta de consul-tas médicas e a marcação delas (Proahsa, 1987).

Agendamento de consultas médicas e filas são, deforma natural, mentalmente associados. Não é comumimaginar a realização de uma consulta médica que nãoseja precedida de uma espera em fila, seja aguardandoem casa ou na porta dos hospitais.

Fundamentada no aparente determinismo da rela-ção oferta/demanda, essa forma de ver o problema dasfilas acabou por consagrar, para filas de hospitais, ouso de técnicas e conceitos das ciências exatas aplicá-veis a outros tipos de filas, desconsiderando outrasvariáveis intervenientes.

Esses estudos concentraram-se em desenvolverformas de regular o fluxo, administrar o tempo queos clientes estão propensos a esperar (Denton,1990) etc. Sempre assumindo, como pressuposto in-questionável, sua inevitabilidade perante a relaçãooferta/demanda.

Para que o trabalho de análise do problema dasfilas fosse despojado de preconceitos, a atenção foiconcentrada nas relações recíprocas entre as pesso-as e os serviços de saúde. Ao se aprofundar o estudo

É necessário que asmodernizações internas sejamrespaldadas em objetivos dosusuários, e não apenas emmudanças que venham trazer,como conseqüência, benefíciospara os usuários.

50

45

403530

25

201510

5

05h50 5h55 6h00 6h05 6h10 6h15 6h20 6h25 6h30 6h35 6h40 6h45 6h50 6h55 7h00

HORA DE CHEGADA

U

S

U

Á

R

I

O

S

Dia 25

Dia 26

Figura 2 - Freqüência acumulada de usuários antes da abertura do guichê (em março de 1996)

Page 4: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas

RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999 81

dessas relações, identificaram-se níveis de transa-ções distintos, ou seja, quando o cidadão se dirige auma instituição médica para agendar uma consultapara si, ele passa à situação de usuário dessa insti-tuição. Nessa situação permanece até que, postadodiante do médico, começa a sua consulta. Ao iniciá-la, sua situação passa a ser a de paciente. Essas si-tuações definem diferentes tipos de transações entrea pessoa e os serviços de saúde, conforme podemosobservar na Figura 3. Note, na figura, que a relaçãopaciente–médico é precedida pela relação usuário–instituição.

Assim, embora a essencialidade do atendimentomédico esteja no nível da transação médico–paciente,a transação usuário–instituição ocorre nos SAMEs, poiso contato com um serviço médico institucional é, emprincípio, para matricular-se ou agendar uma consulta(Proahsa, 1987).

Ao ter de entrar em uma fila para realizar esse con-tato, o usuário enxerga nela um problema cuja soluçãocompete à instituição para a qual ele contribui. A seuver, não são alocados os recursos suficientes paraatendê-lo adequadamente.

Para as instituições, a fila formada antes da abertu-ra do guichê, isto é, antes do início do expediente dainstituição, é um problema de demanda que, por pre-ceder o seu contato com os usuários, está fora da suaesfera de atuação, em que pesem providências paliati-vas, chegando-se até a incluir, como item de qualidadeda instituição, boas acomodações para a fila.

No quadro descrito acima, a fila é um problema da“sociedade”, do “governo”, do “paciente” ou da “ca-rência de médicos”, dependendo da posição do obser-vador. Assim, criou-se um paradigma: se há agenda-mento de consultas médicas, há fila.

O que um observador menos atento não percebe éque a existência de filas na porta dos hospitais públi-cos ou diluída nas residências, para os convênios par-

ticulares, não é nociva apenas aos usuários. Ela tam-bém é prejudicial para as instituições: a degradação daimagem tem, para as instituições públicas, um custopolítico elevado e, para as particulares, milhares de dó-lares desperdiçados na consolidação de suas marcas.

A solução do problema parecia não caber a nenhumdos envolvidos.

O SAME-CTA assumiu esse problema e incorpo-rou-o à esfera de atuação da instituição.

A SISTEMÁTICA DESENVOLVIDA

Pela Teoria das Filas (Broson, 1985), um sistemade fila para o agendamento de consultas, como o atéentão existente no CTA, tinha como características adisciplina do tipo FIFO (primeiro a entrar, primeiro asair) e a capacidade infinita (é “permitido” esperar dolado de fora do sistema).

Essa permissão só é usada se e quando os usuáriosdesejarem. Portanto, as filas formadas do lado de fora,antes ou depois de abertos os guichês, são iniciativa eproduto dos usuários. Por mais óbvio que isso possaparecer, depois de constatado, ainda é algo intrigante.

Ocorre que, pela Teoria das Filas, considera-seque a presença de pelo menos um atendente é carac-

terística essencial para a existên-cia de um sistema de fila, ouseja, a “fila” formada antes daabertura dos guichês não é con-templada por essa teoria. Poresse motivo, o grupo de pessoasque, enfileiradas, aguardam aabertura do guichê foi conside-rado um fenômeno social, aindade iniciativa e propriedade dosusuários.

Constatado que as filas, comoobjeto da Teoria das Filas oucomo fenômeno social, eram pro-duto e iniciativa dos usuários, bas-

Figura 3 - Níveis de transação pessoa x serviços de saúde

Cidadão

Usuário

Paciente

Serv. de Saúde

Instituição

Médico

Para as instituições, a filaformada antes da abertura doguichê é um problema dedemanda que, por preceder oseu contato com os usuários, estáfora da sua esfera de atuação.

Page 5: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

82 RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

Administração Hospitalar

tavam apenas duas providências:a) descobrir os motivos que levavam os usuários a ge-

rar a fila;b) desenvolver um processo de marcação de consultas

que anulasse esses motivos.A primeira providência foi relativamente simples.

Durante duas semanas, os usuários que chegavampara entrar na fila foram ouvidos. Após anotada ahora de chegada, tinha início uma breve entrevistana qual se procurava descobrir a motivação de cadaum para estar tão cedo na porta do hospital a fim deagendar uma consulta. Essas entrevistas se estendi-am das 5h30 até as 7 horas, quando os guichês demarcação eram abertos.

A análise do conteúdo das entrevistas indicou queas razões principais eram:a) premência de uma consulta: que, caso não atendi-

da, poderia tornar-se uma urgência;b) dificuldade de acesso à marcação: o usuário preci-

sava ir ao hospital duas vezes, uma para agendar eoutra para consultar.A combinação dessas duas razões levava o usuário

a chegar cada vez mais cedo. Como se vê, dois pressu-postos elaborados pelo próprio usuário. O primeiro erao de que seu autodiagnóstico indicava uma situaçãocrítica de saúde e o segundo, o de supor que só seriaatendido horas depois.

Analisando os dados estatísticos da demanda, operfil sociogeográfico dos usuários, os tipos de clí-nicas oferecidos e a disponibilidade de médicos porclínicas, foi traçada, empiricamente, uma curva deoferta para a população atendida pelo SAME-CTA.Essa curva atende, também, aos critérios legaisespecíficos impostos para a prestação do serviço.Sua aplicabilidade, portanto, é exclusiva para essapopulação.

A essa curva foi dado o nome de Curva da Premência(Figura 4), pois procura distribuir, em um intervalo detempo, os diferentes graus de percepção da urgênciada consulta pretendida.

A equação gerada a partir dessa curva foi:

para -16 ≤ x ≤ -1 e yi ∈ N+

y1 = a

5x5 + a

4x4 + a

3x3 + a

2x2 + a

1x + a

0

sendo:a

0 = 6,09398

a1 = 2,8775

a2 = 0,677143

a3 = 0,07737704

a4 = 0,00417982

a5 = 8,57683 . 10-5

e para o segmento -1 ≤ x ≤ 0 e yi ∈ N+

y2 = b

4x4 + b

3x3 + b

2x2 + b

1x + b

0

sendo:b

0 = 3,3

b1 = -1,78

b2 = -5,88001

b3 = -10,56

b4 = -5,76001

Embora essa equação seja aplicável a uma popu-lação específica, a oferta dos horários de uma agen-da, em termos gerais, obedece a uma curva de traça-do exponencial com ponto de inflexão situando-secerca de dois dias antes da data do atendimento.

A liberação dos horários das agendas considera, ain-da, as seguintes condicionantes para cada solicitação:• hora em que o usuário está solicitando a consulta;• clínica pretendida;

• idade do usuário (caso o usuá-rio tenha mais de 65 anos, todosos horários são disponibilizados);• número de atendimentos previs-tos na agenda do médico.

Para exemplificar, vamos suporque um médico tenha três agendasfuturas e que todas estão totalmen-te vagas: uma para quarta-feira,uma para quinta-feira e outra parasexta-feira (Figura 5).

Digamos que o usuário desejemarcar uma consulta com essemédico e que hoje seja segunda-feira. O computador informará queexistem três horários para a quarta-feira, dois horários para a quinta-

H

O

R

Á

R

I

O

S

O

F

E

R

T

A

D

O

S

DIAS DE ANTECEDÊNCIA

123456789101112

Figura 4 - Curva da Premência: quanto mais distante o dia do atendimento, menor a

oferta de horários

Page 6: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas

RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999 83

feira e apenas um para a sexta-feira, totalizando seisconsultas ofertadas naquele dia e hora, embora as agen-das não estejam com os demais horários preenchidos.

Na terça-feira, novos horários dessas agendas se-rão liberados impedindo, assim, a saturação das agen-das e, ao mesmo tempo, mantendo um fluxo contínuode oferta.

Dessa forma, a liberação progressiva dos horáriosatende à necessidade dos que julgam precisar de umaconsulta médica o mais breve possível e, também, dosque entendem poder esperar um pouco mais. Os casosde urgência médica são encaminhados, sem qualquertipo de condicionante, ao setor competente, isto é, aopronto-socorro.

MUDANDO A CULTURA

Em que pese o caráter inovador da equação da ofer-ta de consultas, melhorias da qualidade não se fazemapenas com a adoção de técnicas. É necessário, princi-palmente, compreender controles sociais, valores ecrenças que dão sustentação ao estado de coisas que sedeseja mudar (Juran, 1991).

A complexidade do trabalho desenvolvido noSAME-CTA consistiu, principalmente, em compreen-der esses valores e, pela vontade e técnica, mudá-los.

Para a pesquisa, o desenvolvimento e a implanta-ção da nova sistemática, foi adotada uma visãorelativista do problema que considerou as peculiarida-des do SAME-CTA, as características do público aten-dido e suas relações mútuas (Mattos, 1985).

Fazer com que o processo de marcação de consultadeixasse de orbitar na figura do médico e passasse aorbitar na figura do usuário exigiu uma mudança radi-

cal de hábitos e costumes. Foi preciso uma mudançade valores de todos os envolvidos no processo - médi-cos, usuários e funcionários -, que passaram a ter comoreferencial único uma sistemática impessoal que tor-nava transparentes as relações mútuas.

Toda a sistemática de agendamento foi planejadapara proporcionar um fluxo regular da oferta e omonitoramento desse fluxo, tudo constatável pelosusuários, de forma a desenvolver confiança no servi-ço prestado.

Para estimular essa confiança, foi realizada umaampla campanha de divulgação, centrada na opção douso do telefone para agendar consultas, assegurandoigualdade de condições com aqueles que optassempor fazê-lo pessoalmente. Essa campanha foi acom-panhada de uma responsividade total da instituição:o usuário, tendo marcado sua consulta para uma de-terminada data e hora, teria um médico a aguardá-lonessa data e hora.

H

O

R

Á

R

I

O

S

COMPOSIÇÃO DA OFERTA DE HORÁRIOS

1

2

3

SEG

Figura 5 - Liberação progressiva de horários

TER QUA QUI SEX SEG TER QUA QUI SEX

TOTAL = 6

O que um observador menosatento não percebe é que aexistência de filas na porta doshospitais públicos ou diluída nasresidências, para os convêniosparticulares, não é nocivaapenas aos usuários.

Page 7: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

84 RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

Administração Hospitalar

Com isso, o agendamento de uma consulta deixoude ser um compromisso médico–paciente e passou aser um compromisso instituição–usuário. Foi um pe-ríodo crítico e tenso, pois a percepção do usuário deque a autoridade do médico transcendia aessencialidade da consulta (as relações médico–paci-ente) e estendia-se por aspec-tos administrativo-institucio-nais teve de ser mudada.

A participação do SAMEno processo passou a ser ade registrar o compromissoinstituição–usuário e, pormeio de controles estatísti-cos, gerar informações quepermitissem verificar o seufiel cumprimento pelas par-tes envolvidas: médico epaciente.

A cultura de que o ato deagendar uma consulta médi-ca deveria ser realizado aoamanhecer produziu, inicial-mente, um congestionamen-to das linhas telefônicas naprimeira hora de atendimen-to. Além disso, a preferên-cia dos usuários ainda foicont inuar comparecendopessoalmente, e cedo.

Com dois meses de funci-onamento, os agendamentosvia telefone já atingiam 50%do total e ficaram mais distri-buídos ao longo de toda a ma-nhã. Atualmente, 80% dasconsultas são agendadas portelefone e distribuídas ao lon-go de todo o dia, caracterizan-do a extinção das filas por di-luição, e não por substituiçãoda porta do hospital pelo tele-fone. Os 20% restantes são pa-cientes em tratamento que, aocomparecer a uma consulta,aproveitam para agendar apróxima.

O principal instrumentoadotado para alavancar essamudança foi mostrar ao usu-ário, no momento em queeste solicita o agendamentoda consulta, a disponibili-

dade de agendas para uma determinada clínica(Figura 6) e a situação da agenda do médico preten-dido (Figura 7).

Todos esses procedimentos são realizados semqualquer interferência do operador nos parâmetrosda oferta, que é constatada por ambos, usuário e ope-

Figura 6 - Escolha de data, clínica e médico

Figura 7 - Escolha de horário

Page 8: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas

RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999 85

rador, na tela do computador no momento doagendamento.

Essa postura de dar transparência ao processo fezcom que o usuário, com o passar do tempo, adquirisseconfiança para agendar sua consulta por telefone, semo risco de se sentir preterido por não estar presente nohospital. Esse procedimento permanece para aquelesque ainda optam por marcar a consulta pessoalmente.

A facilidade para agendar por telefone provocouum aumento da demanda e os usuários, ainda não acos-tumados a enxergar no agendamento de uma consultamédica um compromisso, deram origem a umabsenteísmo elevado.

Esse comportamento, já previsto, foi coibido pelasimples negação da facilidade introduzida: o softwareimpede o usuário de agendaruma nova consulta caso nãotenha comparecido na data ehora marcadas (por ele) nemrealizado o cancelamento. Arestrição é mantida até que ousuário compareça ao SAMEe seja orientado, num proces-so educacional, sobre sua res-ponsabilidade perante a co-munidade ao não comparecera uma consulta reservada paraele e, em razão disso, ter im-pedido o aproveitamento poroutro usuário.

Considerando que o fatode comparecer pessoalmentepara obter um agendamentosignifica, apenas, um retorno

à situação anterior à implantação da nova sistemáti-ca, a redução no índice de absenteísmo (Figura 8) éuma demonstração clara do valor atribuído pelos usu-ários à sistemática implantada.

Pelo lado dos médicos, a sistemática implantada eli-minou a possibilidade de alterar o horário marcado peloSAME com o usuário e, em conseqüência, alterar o tem-po reservado para o atendimento de cada paciente. Essamudança provocou, em alguns profissionais, um senti-mento de desconforto por se julgarem “amarrados” àprópria agenda. Para os demais profissionais, a siste-mática praticamente não alterou suas rotinas.

Na Figura 9, observa-se uma tendência crescentena oferta mensal de consultas, indicando uma reduçãoprogressiva na prática de cancelamento de agendas

Figura 8 - Redução do absenteísmo decorrente da campanha educacional

7,73%

2

1

0

MAIO

P

E

R

C

E

N

T

U

A

L

3

4

5

6

7

8

9

10

JUN JUL AGO SET

6,73%

5,70%

4,20%4,67%

Figura 9 - Evolução da oferta mensal de consultas

2.268

JAN

2.000

2.500

3.000

3.500

4.000

4.500

MAIO JUL AGOJUN

3.0673.445

4.208

2.588

0

500

1.000

1.500

FEV MAR ABR SET

3.438

4.231

3.418

3.850

Page 9: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

86 RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

Administração Hospitalar

e/ou supressão de horários, visto que o número de mé-dicos ou de atendimentos planejados não sofreu qual-quer alteração.

Nos meses de abril e julho, observa-se uma inver-são clara dessa tendência (24,87% e 19,21%, respec-tivamente). Essa inversão foi decorrente de proble-mas externos ao SAME e que fogem do escopo dopresente trabalho.

A construção do gráfico da Figura 10 foi baseadanos índices registrados em julho de 1997, portanto,já com a nova sistemática e em plena redução da ofer-ta. O que se deseja destacar nesse gráfico é que aredução da oferta acabou por submeter a sistemáticaa uma dura prova: a fila poderia voltar a se formarjá que a demanda não tinha sido alterada.

Entretanto, na pesquisa realizada no guichê demarcação nos dias 14 e 15 de julho, em plena situa-

ção de oferta reduzida, foram registrados os índicesconstantes da Figura 10. A fila, como é possívelobservar, não voltou a ocorrer. Os fatos demonstra-ram que não existe uma relação direta de causa eefeito entre a oferta de vagas e a formação de filas.

Com o advento da qualidade, a competitividadetranscendeu o campo da eficiência e da eficácia. Épreciso mais: os serviços devem ser efetivos. Essaefetividade se mede pelo grau de satisfação do usu-ário. Em razão disso, uma pesquisa que indicasse onível de satisfação com a sistemática implantada tor-nou-se imprescindível.

Essa pesquisa foi delineada e realizada com 12%dos usuários atendidos nos dias 18, 19 e 20 de agos-to de 1997. No quesito “Sugestões para melhorar amarcação de consultas”, as respostas, não estimula-das, foram as mostradas no gráfico da Figura 11.

Figura 10 - Freqüência acumulada de usuários antes da abertura do guichê (em julho de 1997)

DIA 14

45

0

40

35

30

25

20

15

10

5

5h50 5h55 6h00 6h05 6h10 6h15 6h20 6h25 6h30 6h35 6h40 6h45 6h50 6h55 7h00

HORA DE CHEGADA

DIA 15

U

S

U

Á

R

I

O

S

ÓTIMO/BOM/SEM SUGESTÕES

77%

OUTRAS

7%

MAIS ATENDENTES

8%

MAIS TELEFONES

8%

Figura 11 - Sugestões para melhorar a marcação de consultas

Page 10: Administração Hospitalar CONSULTAS MÉDICAS · 2011-10-04 · Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas RAE©1999, RAE - Revista de Administração

Consultas médicas: oferta, demanda, mudança cultural e o fim das filas

RAE • v. 39 • n. 2 • Abr./Jun. 1999 87

O elevado percentual de aprovação constatadopermite inferir que os usuários adquiriram um nívelde consciência sobre a qualidade do processo deagendamento. Dessa forma, passaram a dispor de mo-tivos suficientes para reagir contra qualquer mudan-ça que não seja para melhorar a situação atual, aten-dendo, assim, ao requisito fundamental para que essamudança, realizada em um órgão público, se conso-lide e sobreviva ao turnover.

CONCLUSÃO

O rápido desenvolvimento da tecnologia médica ea acentuada diversificação das especialidades tornaramo hospital uma instituição de administração bastantecomplexa (Machline, 1983).

Os processos desencadeados após o primeiro con-tato do usuário com um hospital são diversificados e,caso não sistematizados, levam seguramente à perdade controle. Ocorre que os sistemas desenvolvidos paraatender a essa necessidade consideram como input apessoa já na situação de paciente, um insumo que pro-cessam, normalmente, com bastante eficiência.

Não havia uma preocupação pelo modo como o ci-dadão acessou esse sistema, pois, ao contrário de ou-tros setores prestadores de serviço, o setor de atendi-mento à saúde não é voltado para o consumidor empotencial, isto é, a procura pela recuperação da saúdenão necessita de incentivos.

A mudança administrativa operada no SAME-CTA,ao reorientar sua gestão para os usuários, incluiu osproblemas de acesso ao sistema como sendo do pró-prio sistema. Com isso, o input do sistema passou a sero cidadão como usuário, e não mais o cidadão direta-mente como paciente.

O uso da nova sistemática de marcação de consul-tas induziu o usuário, pelo compromisso formal da ins-

O aspecto cultural e odescontrole da oferta são maisdeterminantes na formaçãodas filas para marcar consultasmédicas do que a insuficiênciada oferta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARROYO, J. R. Simões. Qualidade Total: proposta de ummétodo para escolha da estratégia de implantação. Campinas,1995. Dissertação (Mestrado) - Imecc/Unicamp.

BROSON, Richard. Pesquisa operacional. São Paulo:McGraw-Hill, 1985.

DENTON, D. Keith. Qualidade em serviços. São Paulo:McGraw-Hill, 1990.

JURAN, Joseph M. Controle de qualidade: componentesbásicos da função qualidade. São Paulo: McGraw-Hill/Makron, 1991.

MACHLINE, Claude et al. O hospital e a visão administrativacontemporânea. São Paulo: Pioneira, 1983.

2. Trata-se de uma prática usual na aviação civil e consistena reserva de assentos em número superior à capacidadedo avião.

NOTAS

1. Essas funções do SAME-CTA não incluem todas asatribuições previstas para um SAME. Para uma descriçãocompleta, ver o texto de SABBATINI, Renato M. In:

MATTOS, Ruy de Alencar. Desenvolvimento de RecursosHumanos e mudança organizacional. Rio de Janeiro:LTC, 1985.

PROAHSA. Manual de procedimentos hospitalares. SãoPaulo: FGV/EAESP/HC/FMUSP, 1987.

RODRIGUES, Roberto Jaime et al. Informática e oadministrador de saúde. São Paulo: Pioneira, 1987.

tituição com ele e por sua transparência de critérios, auma mudança comportamental na motivação de pro-curar pelo atendimento.

Os usuários perceberam que não era mais neces-sário entrar em um estágio crítico para “enfrentar” a

busca por auxílio médico. Os benefícios decorrentesde diagnósticos emitidos com maior antecedência, emrazão de a procura pelo atendimento não acontecer emum estágio avançado da doença, ainda não podem serquantificados, mas, com certeza, já existem.

O sucesso na extinção das filas, sem aumentodos recursos humanos e sem provocar sobrecargade trabalho nos médicos, demonstrou que o aspec-to cultural e o descontrole da oferta são mais de-terminantes na formação das filas para marcar con-sultas médicas do que, como se acreditava, a insu-ficiência da oferta.

As características da população atendida que servi-ram de base para o desenvolvimento da sistemática –premência de uma consulta e dificuldade de acesso àmarcação – são inerentes a quaisquer outros grupos deusuários. Isso faz dessa sistemática um conjunto orga-nizado de conhecimentos aplicáveis, de forma geral, aqualquer sistema de saúde. �

RODRIGUES, Roberto Jaime et al. Informática e oadminist rador de saúde . São Pau lo : P ione i ra ,1987.