adendo ao material norteador - ivan delmanto

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EPÍLOGO AO MATERIAL NORTEADOR – DIÁLOGO ENTRE SÓCRATES E O CEGO IGNORANTE DE TEBAS “Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio.(...) Ele não encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me. Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel. A cola se dissolve e todo o seu conteúdo de perdão, de carícia, de pluma, de algodão, jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Amanhã recomeço.” (O ELEFANTE, Carlos Drummond de Andrade) Segundo Jaques Rancière, no seu livro O mestre ignorante , o socratismo, em oposição à emancipação, é uma forma aperfeiçoada do embrutecimento. “Como todo mestre sábio, Sócrates interroga para instruir. Ora, quem quer emancipar um homem deve interrogá-lo à maneira dos homens e não à maneira dos sábios, para instruir-se a si próprio e não para instruir a um outro. E, isto, somente o fará bem aquele que, de fato, não sabe mais do que seu aluno, que jamais fez a viagem antes dele, o mestre ignorante”, diz o filósofo francês. Podemos acompanhar, nos poucos fragmentos que restaram conservados de um diálogo inédito de Sócrates, obtido com exclusividade, o encontro do sábio grego com um obscuro mestre da cidade de Tebas, cego e bastante idoso, a quem os filósofos e sofistas de Atenas condenaram ao ostracismo, por considerá-lo por demais ignorante. Sócrates: “É possível então considerar que a sabedoria é boa e a ignorância é ruim? Ignorante: “Não sei. Depende de que sabedoria você se refere”. Sócrates: “Se pensarmos na parábola do bode, em que o pastor precisa conduzir o bode para o curral, sem que o bode saiba o seu destino - caso contrário o animal não aceitaria sair de sua pastagem e morreria de gula -, é possível considerar o pastor como um bom condutor e o bode como aquele que precisa ser conduzido, até que aprenda por si mesmo o caminho e a hora de recolher-se à sua morada?” Ignorante: “Depende novamente.” Sócrates: “Depende do quê, imprevisível mestre cego? Podemos dizer que tudo depende da visão de cada um dos envolvidos na contenda, ou da falta de visão?” Ignorante: “Talvez tudo dependa da falta de visão. Por ser cego eu, nobre Sócrates, não consigo vislumbrar aonde preciso levar meus companheiros de aprendizado (eu os prefiro chamar assim e não de bodes). Talvez por isso eu sugira a extinção do que se convencionou chamar de aula, como espaço de transmissão de normas, de um jogo de hierarquização técnica e disciplinadora que acredita na formação do sujeito como um conjunto de verdades a serem ensinadas para que esse consiga sair do lugar”. Sócrates: “De todas as almas dos homens, a que melhor se esforça por acompanhar os deuses e com eles parecer-se eleva a cabeça do cocheiro para o outro lado do céu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porém, perturbada pelos cavalos, mal pode contemplar as essências. Para educar os movimentos do cocheiro, suas técnicas necessárias ao domínio das rédeas e dos cavalos, bem como os buracos situados pelo caminho, é necessário ministrar inúmeras aulas, realizadas por um cocheiro experiente, para que a alma aprendiz possa sozinha enfrentar nossas estradas. Não é verdadeira a sabedoria antiga? ”. Ignorante: Muito bem, sapientíssimo pródico! Mas como sou apenas um cego, deixe-me continuar defendendo a minha ignorância. Considero toda e qualquer aula uma espécie de dispositivo de subjetividade”.Eu chamo dispositivo tudo o que tem, de uma maneira ou de outra, a capacidade de capturar, de orientar, de determinar, de interceptar, de modelar, de controlar e de assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos. O que temos hoje, nesses tempos de controle generalizado, são dispositivos que não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação… processos de subjetivação e

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  • EPLOGO AO MATERIAL NORTEADOR DILOGO ENTRE SCRATES E O CEGO IGNORANTE DE TEBAS Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos mveis talvez lhe d apoio.(...) Ele no encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarar-me. Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel. A cola se dissolve e todo o seu contedo de perdo, de carcia, de pluma, de algodo, jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Amanh recomeo. (O ELEFANTE, Carlos Drummond de Andrade)

    Segundo Jaques Rancire, no seu livro O mestre ignorante, o socratismo, em oposio emancipao, uma forma aperfeioada do embrutecimento. Como todo mestre sbio, Scrates interroga para instruir. Ora, quem quer emancipar um homem deve interrog-lo maneira dos homens e no maneira dos sbios, para instruir-se a si prprio e no para instruir a um outro. E, isto, somente o far bem aquele que, de fato, no sabe mais do que seu aluno, que jamais fez a viagem antes dele, o mestre ignorante, diz o filsofo francs.

    Podemos acompanhar, nos poucos fragmentos que restaram conservados de um dilogo indito de Scrates, obtido com exclusividade, o encontro do sbio grego com um obscuro mestre da cidade de Tebas, cego e bastante idoso, a quem os filsofos e sofistas de Atenas condenaram ao ostracismo, por consider-lo por demais ignorante.

    Scrates: possvel ento considerar que a sabedoria boa e a ignorncia ruim?

    Ignorante: No sei. Depende de que sabedoria voc se refere.

    Scrates: Se pensarmos na parbola do bode, em que o pastor precisa conduzir o bode para o curral, sem que o bode saiba o seu destino - caso contrrio o animal no aceitaria sair de sua pastagem e morreria de gula -, possvel

    considerar o pastor como um bom condutor e o bode como aquele que precisa ser conduzido, at que aprenda por si mesmo o caminho e a hora de recolher-se sua morada?

    Ignorante: Depende novamente.

    Scrates: Depende do qu, imprevisvel mestre cego? Podemos dizer que tudo depende da viso de cada um dos envolvidos na contenda, ou da falta de viso?

    Ignorante: Talvez tudo dependa da falta de viso. Por ser cego eu, nobre Scrates, no consigo vislumbrar aonde preciso levar meus companheiros de aprendizado (eu os prefiro chamar assim e no de bodes). Talvez por isso eu sugira a extino do que se convencionou chamar de aula, como espao de transmisso de normas, de um jogo de hierarquizao tcnica e disciplinadora que acredita na formao do sujeito como um conjunto de verdades a serem ensinadas para que esse consiga sair do lugar.

    Scrates: De todas as almas dos homens, a que melhor se esfora por acompanhar os deuses e com eles parecer-se eleva a cabea do cocheiro para o outro lado do cu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porm, perturbada pelos cavalos, mal pode contemplar as essncias. Para educar os movimentos do cocheiro, suas tcnicas necessrias ao domnio das rdeas e dos cavalos, bem como os buracos situados pelo caminho, necessrio ministrar inmeras aulas, realizadas por um cocheiro experiente, para que a alma aprendiz possa sozinha enfrentar nossas estradas. No verdadeira a sabedoria antiga? .

    Ignorante: Muito bem, sapientssimo prdico! Mas como sou apenas um cego, deixe-me continuar defendendo a minha ignorncia. Considero toda e qualquer aula uma espcie de dispositivo de subjetividade.Eu chamo dispositivo tudo o que tem, de uma maneira ou de outra, a capacidade de capturar, de orientar, de determinar, de interceptar, de modelar, de controlar e de assegurar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres vivos. O que temos hoje, nesses tempos de controle generalizado, so dispositivos que no agem mais tanto pela produo de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivao processos de subjetivao e

  • processos de dessubjetivao parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e do lugar somente recomposio de um novo sujeito, um sujeito assujeitado, em forma, por assim dizer, espectral. Ou talvez esses fantasmas e farrapos de discurso sejam em mim produzidos pela cegueira, hbil Scrates.

    Scrates: Penso que concordaria comigo ento que a arte do ensino do que bom e do que mau a mais nobre possvel, visto que est disposto a se regenerar de teus espectros cegos?

    Ignorante: Estou disposto, admirvel Scrates, mas meu globo ocular ainda no obedece minha Razo. Enquanto isso, eu continuo a dizer disparates. Mais um: ns, os cegos e ignorantes por vocao, fomos despatriados em Tebas.

    Scrates: Tal injustia, ocorreu, segundo soube, por teimarem em ensinar as artes ao invs das matemticas, pelo menos no dizer de Ddalo dos discursos, o homem de Bizncio.

    Ignorante: Assim foi, melfluo Scrates, mas no assim exatamente.

    Scrates: Assim me pareces confuso.

    Ignorante: Estou sempre confuso. E foi dessa confuso que propusemos aos cidados que extinguissem suas aulas de teatro, msica, escultura, pintura, poesia e dana, em nome de um espao de transformao coletiva que no configurasse um dispositivo. A este espao chamamos de processo criativo emancipatrio.

    Scrates: Ento defendemos os mesmos valores? maneira de qualquer msico que encontrasse um homem convencido de conhecer harmonia, s pelo fato de saber como deixar uma corda com o som mais grave ou mais agudo, no lhe diramos de modo muito grosseiro: ests louco, idiota! No, exatamente por sermos pedagogos, falaramos com brandura: Carssimo, para quem quiser ser msico, forosamente ter tambm que saber isso, s possus as noes preliminares do estudo da harmonia; mas, a prpria harmonia, essa nem suspeitas o que seja. Assim, pensamos, deve haver um modo adequado de dar aula e no um modo tendencioso e autoritrio, correto?

    Ignorante: Como ignoramos esse modelo correto de aula, e s conhecemos a aula que se configura em um dispositivo de controle,

    preferimos, provavelmente de maneira ignara e incorreta, mas a nica que defendemos at hoje, abolir todas as aulas e por isso fomos despatriados de Tebas. Acreditamos que quem quiser ser msico no precisa previamente conhecer harmonia para tal.

    Scrates: Acreditam, ento, na inutilidade da sabedoria e da cultura humana?

    Ignorante: , sapientssimo de Atenas, percebo em suas palavras que me recriminas e que me corriges! Mas sou cego e permaneo incorrigvel. Todos os mestres j desistiram de mim! Mas eu sou um fervoroso defensor da sabedoria, o que prego, por ignorar a forma correta de se ensinar as artes, que sejam todos cegos, alunos e mestres, inaugurando o espao comum de um processo de criao. Imaginamos um processo de elaborao de perguntas e perguntas, e no de respostas, em que se crie em conjunto um material artstico, para que o conhecimento emerja com dificuldade e vagar das dobras desse material criado, do reflexo das faces dos artistas presentes ou ausentes no espelho que cada material produzido,e no da cabea entulhada do professor e do esprito esvaziado do aluno. Acreditamos, pelo contrrio, que no existem espritos vazios: acreditamos na igualdade de todas as inteligncias como princpio tico absoluto.

    Scrates: Sejamos sinceros, definitivamente: essa linha divisria to rgida, essa oposio entre professor e mestre ignorante, entre aula e anti-aula, no configuraria aquilo que os sofistas gostam tanto de chamar de falso problema? Afinal, defendemos todos os mesmos valores e o que so os nomes se no a capa velha das coisas?

    Ignorante: Acredito que, como sbio e filsofo muito mais instrudo do que eu, poders sempre, se assim o quiserdes, chamar a rosa de meteorito e o meteorito de astrolbio, j que no h relao fixa e eterna que ligue os nomes aos objetos: o que comumente chamamos de linguagem apenas uma srie de sinais arbitrrios, Scrates. No entanto, acredito que para comear a pensar, esse processo to longo e tortuoso que para mim refletir sobre o mundo, seja preciso chamar s coisas pelo seu verdadeiro nome. Quando procuramos diferenciar o

  • nosso trabalho dos professores tradicionais do mundo grego porque acreditamos que a peste de Tebas, a peste que chamamos de educao, est baseada na transmisso pura e simples de conhecimento, criando no territrio das aulas uma dependncia do aluno, o sem-luz, em relao a seu mestre, encarregado de gui-lo com um lampio pelos caminhos do mundo. Sob esse olhar, e ressalto sempre que tal apenas o olhar de um cego, muito diferente falar em processos criativos de um lado, que tm a preocupao de gerar aprendizado de forma coletiva, horizontal e emancipatria, e o ensino formal do imprio grego (a peste educativa) de outro, que tem por objetivo normatizar e transferir saberes.

    Scrates: Acreditais ento que todos sejam artistas, mesmo aquele que no quer aprender com o mestre as regras bsicas do jogo da arte e que quer jogar tudo a seu modo?

    Ignorante: Acho que sou to ignorante que responderia que acredito que cada grupo de artistas, guiados por um cego como eu cegos podem guiar? - , poderia criar materiais artsticos a partir de suas prprias regras de jogo, concebidas em funo do que desejam expressar ao mundo que os cerca e os domina.

    Scrates: Chamas ento de material a qualquer produto criado para alm das normas estabelecidas, mesmo que esse se constitua de forma mal acabada, desde que reproduza os desejos dos seus criadores, por mais administrados e embrutecidos que sejam?

    Ignorante: No consigo trabalhar com a noo de desejo em um mundo onde os sujeitos vagam de maneira assujeitada e que no poderiam nos dizer se os seus sonhos e desejos pertencem, de fato, a si mesmos ou se foram produzidos em srie.

    Scrates: O material ento algo produzido a partir do que o mestre identifica como o que os seus alunos deveriam desejar, falamos ento de formao de utopias e de desejos?

    Ignorante: Falamos de um trabalho prtico e concreto construdo sobre distopias. A utopia significa um no-lugar. A distopia significa um lugar j existente, assolado por falhas, contradies e deslocamentos. Uma praa pode ser uma distopia, um

    teatro abandonado em uma regio longnqua pode ser uma distopia, um grupo de saltimbancos perdidos em uma estrada enlameada, com sua carroa atolada, pode configurar uma distopia. Como cego, tento acreditar que o processo criativo capaz de emancipar mestre ignorante e artista-vocacionado seja aquele que parte de um lugar real e falho, formado pelo repertrio e pela histria de vida de cada um, e dessa distopia estabelece um caminho.

    Scrates: O material artstico a ser produzido, o resultado, o fim desse caminho?

    Ignorante: Sou cego, nobre Scrates, e por isso nunca vejo luz no final do caminho. No h fim do percurso que no seja o prprio processo, formado por uma criao e recriao contnuas de materiais artsticos, de resultados provisrios, espcies de anti-produtos mas que concretizam a todo momento o anseio dos seus criadores, para serem constantemente reelaborados. Scrates: Referes-te, quando diz material, a obras que serviro de inspirao para o processo pedaggico dos alunos, como um texto a ser montado ou uma bela natureza-morta a ser replicada?

    Ignorante: Refiro-me a duas espcies de materiais, a serem utilizadas de maneira interligada: primeiramente concretizao do processo criativo, que ocorre diariamente, em pequenas snteses materiais do que est sendo investigado e que chamo de anti-produto por ser algo sempre inacabado, apesar de se constituir como concretude, como esboo provisrio mas configurado, e no apenas como mero devir.

    Scrates: E qual seria a outra espcie de material a ser utilizada em um processo como esse?

    Ignorante: A uma espcie de materialvetor, ou material de origem. Origem no sentido daquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o seu prprio ser. O que prprio da origem nunca d a se ver no plano do cru e manifesto. O seu ritmo s se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restaurao e reconstituio, e por outro como algo de incompleto e inacabado. O material de origem um material a ser trabalhado pelos

  • artistas em seu processo de pesquisa e encarado como origem: como objeto a ser lanado na aventura do jogo, a ser manipulado, restaurado e colocado em questo e que, ao ser posto assim em movimento, estimula os criadores a encontrarem suas prprias solues para as provocaes contidas no material.Ao se deparar com um material de origem, cada grupo de artistas pode partir do princpio de que este material formado por um conjunto total de meios de expresso, disponvel para serem experimentados e utilizados, cabendo aos artistas a tarefa de reorganiz-los e, em maior medida ainda, a de recri-los, em funo das questes e angstias do seu prprio tempo. Scrates:Por qu ento no simplificarmos e facilitarmos o entendimento chamando a isso de referncia?

    Ignorante: Porque no h pontos fixos na instaurao de um processo criativo de pesquisa a partir de um material, no h referncias, no h faris que confiram unidade. O interesse dos artistas estaria agora em uma utilizao desenfreada de todas as possibilidades estimuladas por um nico material, mas no como referncias artsticas vivas e sim exatamente como arte morta. Pretendemos neste tipo de processo emancipatrio assumir a morte do material escolhido, criando precisamente por meio das runas e dos rgos falidos deste material, do que gostamos e do que no gostamos, sem procurar a todo custo reviv-lo. Para um cego como eu, a arte contempornea, ao contrrio dos modernistas, nada tem contra a arte do passado, nenhum sentimento de que o passado seja algo de que preciso se libertar e mesmo nenhuma percepo de que tudo seja completamente diferente, como em geral a arte dos antigos modernistas. Seria parte do que define a arte contempornea que a arte do passado esteja disponvel para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar: o que no lhes est disponvel o esprito em que a arte foi realizada. Isso porque a percepo bsica do esprito contemporneo teria sido formada no princpio de um museu em que toda a arte tem seu devido lugar, onde no h critrio a priori sobre que aparncia esta arte deve ter, e onde no h nenhuma narrativa qual o contedo do museu tenha de

    se ajustar completamente. Os artistas de hoje no veem os museus como repletos de arte morta, mas como opes artsticas vivas. Esse esprito em que o material de origem foi realizado, que no existe mais, deve ser substitudo pelos temas, sonhos, angstias, desejos, pontos de vista, olhares, pensamentos e espritos do coletivo de artistas que move um novo processo criativo.

    Scrates: Estamos de acordo, pelo menos quanto ao fato de que processo criativo inventar algo novo?

    Ignorante: Temo que nem quanto a isso estejamos de acordo. Entendemos que criar , basicamente, formar. poder dar uma forma a algo novo a partir de materiais j existentes. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse "novo" no do indito, mas da origem: de dar movimento e nova configurao ao que antes estava disperso ou escondido, criar novas coerncias que se estabelecem para a mente humana, fenmenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar o que antes estava disperso.

    Scrates: Em um mesmo processo de formao artstica todos partiriam de um mesmo material, independente de suas especificidades, de suas linguagens artsticas e individualidades? Estaramos com isso coibindo a liberdade e nos posicionando do lado da normatividade e da autocracia?

    Ignorante: No vejo mais, ao contrrio de alguns meses atrs, a necessidade de todos partirem de um nico material. Parece-me hoje que o importante que esse material seja compartilhado coletivamente, servindo de mediao entre os participantes do jogo criativo.Ao colocarmos o material de origem e o anti-produto no centro do processo criativo, estaramos ao lado da liberdade do jogo. Como em qualquer brincadeira, haveria regras comuns, para que houvesse dilogo e reconhecimento mtuo dos jogadores envolvidos. As regras aqui so dadas inicalmente pelo material de origem, mas como esse material est posto para ser recriado, desterritorializado e re-jogado durante o processo de criao, tais

  • regras constituem um devir perptuo, ou se formam se desfazendo, de acordo com cada grupo de artistas.

    Scrates: Temo no ter ainda compreendido o que significa esse material. Poderia fornecer-me um exemplo claro?

    Ignorante: A proposta que provocaria os artistas-jogadores despatriados de Tebas, nesse momento, poderia inspirar-se em um pequeno experimento pedaggico que fizemos no ano passado e que constituiu-se como uma longa discusso a partir da figura do ignorante Kaspar Hauser. Se quisssemos nos mover pela fora que emergiu desses dilogos, a proposta agora poderia ser, por exemplo, tomar como material de origem a obra potica de Carlos Drummond de Andrade. Coletivos de artistas ou de artistas vocacionados poderiam partir, no caso imaginado por ns, desse material de pesquisa, em suas mais diversas manifestaes, escolhendo um livro todo ou mesmo um nico poema a ser investigado, devorado e problematizado, sugerindo tal material aos seus grupos de artistas para que desse origem aos processos criativos e para que gerasse continuamente provocaes e estmulos.

    Scrates: E por que a escolha de um nico material? Por que justamente o material desse artista e no outro?

    Ignorante: A escolha de um nico material, ainda que se d por um prazo curto de tempo, como um nico encontro, por exemplo, permite o dilogo entre experincias diversas, potencializando a troca de dificuldades e descobertas entre artistas e coletivos bastante distintos, alm de revelar o grande nmero de utilizaes diferentes a que pode dar origem um nico ponto de partida. Salvo engano, acreditamos que artistas de diferentes linguagens, por exemplo, poderiam dialogar mais facilmente se encontrarem regras de jogo comuns para suas pesquisas, percebendo sua diversidade exatamente diante do reflexo possibilitado pelo espelho de um mesmo material de origem. Talvez seja possvel afirmar, de maneira instvel e precria, que esta aproximao imaginada entre linguagens artsticas diversas, entre lgicas formais e criativas distintas, poderia ampliar o

    mergulho e a descoberta de processos de criao singularizados, mas que para tal seria importante estabelecer territrios de convivncia artstica, originados pelo material. possvel dizer que o processo criativo no tm fronteiras ou catalogaes e acaba superando qualquer especializao. A obra potica de Carlos Drummond poderia ser escolhida como sugesto de origem por acreditarmos, em uma cegueira comum, que essa constituiria um mesmo material formado de materiais diversos entre si, de contedos e formas muito distintas, configuradas em cada livro e at em cada poema, em uma tentativa de dar expresso experincia social brasileira. Tal realidade brasileira surge em sua obra mltipla a partir de um eu lrico tambm muito distinto, formado por diversas vozes, o que aproxima-se das tendncias, to comuns s artes contemporneas, do testemunho e do depoimento, o que pode provocar novos artistas a combaterem um panorama social de emudecimento. O importante nesse poeta, se eu no estiver enganado, que tais testemunhos e inquietaes emergem sob formas variadas, em um trabalho que procura sempre questionar-se sobre possveis novas relaes entre contedo (assunto) e forma (estrutura). Os procedimentos artsticos utilizados pelo nosso poeta exemplar talvez possam ensinar - ao artista disposto a se debater contra o material -, a dar novas formas a seus prprios anseios, sejam eles quais forem. claro que tal material de origem uma provocao de um cego, o que deve gerar uma escolha e no uma obrigao e que poderiam se configurar como outros materiais igualmente estimulantes elementos to distintos quanto uma rua, uma msica, um vdeo ou um romance .

    Scrates: Parece-me que, apesar de crtico em relao aos sofistas, voc utiliza-se de um termo muito caro a esses colegas: a ideia de pesquisa. Canso-me de ouvir falar em todos as goras dessa palavra sem que ningum consiga encontrar o seu verdadeiro significado. O que , para um cego, pesquisa?

    Ignorante: Temo estar ainda tateando em busca dessa definio, ilustrssimo Scrates. Mas suspeito que a pesquisa esteja ligada formulao de perguntas. O mestre

  • ignorante que pesquisa, levanta perguntas para as quais, de fato, no tem realmente a resposta e torna-se especialista em levantar tais perguntas junto com seus artistas-vocacionados. Estimula e provoca perguntas a todo instante e no respostas.

    Scrates: Na prtica: gostaria de saber o que significa pesquisa na prtica, poderia me fornecer a traduo?

    Ignorante: Na prtica, buscar uma definio verdadeira talvez seja demais para mim. Dentro dos meus limites, talvez eu acredite que pesquisar exige um levantamento cotidiano e rigoroso de perguntas. Como mtodo, possvel sugerir que se produzam periodicamente relatos desses processos de criao de perguntas. Tais relatos, aqui ainda estou cheio de dvidas, podem constituir-se como memria desses processos, memria considerada aqui como um sexto sentido humano: aquele sentido capaz de promover escavaes nas cidades mortas do passado, capaz de refletir sobre a experincia anterior do sujeito por meio de conceitos e de imagens.

    Scrates: O que viria a ser isso?

    Ignorante: Talvez seja possvel dizer que a memria configurada, em um processo de pesquisa como esse, por meio da escrita. A escrita no de textos acadmicos ou burocricos, mas de textos memorialsticos, que podemos chamar, com algum grau de liberdade, de ensaios. A origem da palavra ensaio est ligada ao conceito de tatear, de tocar um nico objeto (no nosso caso um processo criativo) em seus mltiplos lados, iluminar todas as suas faces, superfcies, cavidades e fissuras, como um sol que inundasse um planeta em rotao. Se eu no estiver errado, cada um desses ensaios consistiria assim em um breve texto preocupado em refletir criticamente sobre o que se passou, sobre as perguntas j criadas, e imaginar e planejar o futuro, debruando-se sobre possveis caminhos que o processo de perguntas pode percorrer. Grandes pesquisadores e memorialistas so os escritores Marcel Proust e o brasileiro Pedro Nava, alm, claro do prprio Carlos Drummond de Andrade, nas suas sries de poemas Boitempo I e Boitempo II: (IN) MEMORIA:/De cacos, de buracos/de hiatos e de

    vcuos/de psius/faz-se,desfaz-se,faz-se/ uma incorprea face,/resumo de existido./ Apura-se o retrato/na mesma transparncia:/E chega quele ponto/ onde tudo modo.

    Scrates: Soa-me a algo ingnuo ou infantil, pensar em inmeros e inmeros artistas diferentes, nas periferias de grandes cidades, todos lendo poemas ou assistindo videoclips e criando obras para colocar de p tais materiais, maneira de velhos mestre-escolas que exigem de seus alunos o bom cumprimento das tarefas obrigatrias e dos deveres de casa. Seria isso o que pretendem? Ignorante: Tambm tenho medo de que minhas propostas tomem esse rumo, perspicaz Scrates. Por isso no tenho respostas ou garantias de acerto. Mas por outro lado, no sugiro que se crie a partir de tais materiais, mas que se crie a partir do olhar de cada artista sobre o mundo, olhar que pode ser provocado pela vasta obra do poeta Drummond, por exemplo, caso essa obra seja trabalhada, deformada e perfurada como um material de origem: como um jogo a ser experimentado pelos artistas, que podem, se olharem tal material como algo morto - ou seja, como algo que precisa do sopro de vida de cada artista para que o jogo se coloque em movimento -, talvez seja possvel estabelecer territrios comuns de criao e de reflexo sobre formas e contedos artsticos. Nada melhor do que partir de obras ou objetos concretos para tal investigao, eu penso, no sem duvidar da exatido de tal proposio. Chamo de concreto um material, nesse caso, utilizando me no de um vocabulrio filosfico ou metafrico mas de um vocabulrio advindo da construo civil: concreto aqui qualquer objeto de estudo que possa ser tateado, literalmente, nas pontas dos dedos, e depois derrubado, com uma marreta criativa, para ser reconstrudo, com o cimento do dilogo e com a queda, sem capacete ou equipamento de segurana, no vrtice do abismo. Realmente pode tudo dar errado, e esse sempre o risco da aventura da pesquisa, ainda mais se essa aventura compactuar com as deambulaes de um cego ignorante.

    Scrates: Avalio que o nosso dilogo foi confuso, hermtico e truncado: haveria a possibilidade de traduzir tais

  • ensinamentos em linguagem didtica ou, pelo menos, prtica?

    Ignorante: Existe essa possibilidade, mas eu a desconheo. Acredito, por hora e enquanto eu for ignorante, que temas em constante movimento solicitam uma linguagem tambm em devir. De qualquer forma, tudo o que foi colocado est esparramado espera da fora livre da tempestade.