a+democracia+em+raízes+do+brasil (1).pdf

Upload: walter-silva-lopes

Post on 10-Jan-2016

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • A democracia em Razes do Brasil

    Henrique Estrada Rodrigues1

    Resumo: Este texto analisa a obra Razes do Brasil, de Srgio Buarquede Holanda, tendo como ponto de partida as crticas do autor aos suces-sivos apelos autoritrios da vida poltica brasileira. Buscou-se compre-ender, particularmente, o juzo do historiador quanto s promessas deemancipao que, na histria brasileira, terminaram justificando novasformas de dominao. Srgio Buarque, porm, tambm percorrera essahistria a contrapelo, desvelando um tecido social que, marcado pelaespontaneidade e pelo conflito, poderia se contrapor ao continuum dadominao. Assim, a seqncia deste artigo procurou identificar os tra-os desse tecido, investigando sob quais circunstncias poderiam serqualificados como democrticos.Palavras-chave: democracia Srgio Buarque de Holanda Razes doBrasil.

    Razes do Brasil, em certo momento de sua narrativa, estabelece umjuzo pouco favorvel sobre a vida poltica brasileira: a democracia noBrasil foi sempre um lamentvel mal entendido (Holanda 10, p. 160).Sempre, ao menos, que a nao desejou refigurar seus princpios polti-cos, o que, para Srgio Buarque de Holanda, significava apontar, nocurso da histria, dois instantes fundadores da sua vida em comum:quando definira o sentido da sua autonomia, nos primrdios de 1822, ouquando o 15 de novembro realizou a idia republicana de governo.Porm, se a grande massa do povo recebera esses movimentos comdisplicncia, ou hostilidade (Holanda 10, p. 160), se nesses momentos

    1 Este texto retoma parte da tese de doutorado defendida junto ao Departamento deFilosofia da USP, tendo contado com o auxlio da Capes. E-mail: [email protected]

  • a colaborao do elemento civil foi quase nula (Holanda 10, p. 161), ademocracia fora um mal entendido porque objeto de uma instauraosempre fracassada? E o que teria sido determinante nesse fracasso, aponto de justificar o lamento do historiador?

    A questo da democracia no aparece sem problemas em Razes doBrasil, onde dificilmente se encontra uma definio formal ou normativadesse conceito. Nesse livro, h, sobretudo, a descrio do seu inverso,vale dizer, de comportamentos e formas de governos que encarnariam onegativo dos seus prprios princpios. De fato, o aparecimento dessetema, na obra de Srgio Buarque, coincide com a descoberta e a descri-o de comportamentos que, precisamente, parecem bloquear a possi-bilidade de uma poltica democrtica, no duplo sentido em que issoparecia acontecer: de um lado, na invaso do pblico pelo privado,cujas razes encontrara num modo de vida fortemente personalista, tra-duzido politicamente numa organizao patrimonial do mundo emcomum; de outro, na justificao de um certo iluminismo de Estado,assumindo uma forma tutelar nas reformas da sociedade e na sua reor-ganizao rumo ao progresso.

    O mal compreendido da democracia poderia significar, portanto,isto: a projeo, no espao pblico, tanto de um velho personalismoluso-colonial como de um discurso de ruptura com essa mesma tradi-o, deixando vazar um reformismo comprometido nem tanto com ointeresse comum, mas com a lgica do seu prprio poder. Por tudo isso,a princpio, o alvo daquele lamento de Srgio Buarque parece apontarem duas direes. Primeiramente, para uma elite poltica que agiria tosomente por meio de decretos, esquecendo-se de que as formas devida nem sempre so expresses do arbtrio pessoal (Holanda 10, p.161); em seguida, entretanto, o juzo seria dirigido para o prprio povo,muitas vezes surpreso ou atnito diante de transformaes tais como aproclamao da Repblica, mas tambm atravessado, em outrosmomentos, por um ideal de convvio humano fundado em prefernciase repugnncias, em contraste, freqentemente, com motivaes igualit-rias ou com o equilbrio dos egosmos.

    Seja como for, essas duas direes da crtica de Srgio Buarque pare-cem convergir para um s ponto, mesmo se este tenha se manifestado

    138 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    das maneiras as mais diversas. Trata-se de reconhecer, como subtextode todo aquele mal compreendido, uma crtica radical dominao,cujo empreendimento figuraria o poder poltico como o lugar da expres-so de mandamentos ou sentenas, sejam eles oriundos de um fundoemotivo extremamente rico e transbordante (Holanda 10, p. 147) oucalcados em um sistema complexo e acabado de preceitos (Holanda10, p. 160). Crtica dominao que ainda ganha em intensidade dram-tica quando o autor, enfim, investiga o outro lado da moeda, qual seja,as chances de uma vida em comum que pudessem ser descortinadas sobum ponto de vista diferente de uma relao inequvoca entre o mando ea obedincia. E isso ocorrera, sobretudo, ao iniciar o penltimo captuloda obra (Novos tempos), quando o autor identifica, a partir da dcadade 70 do sculo XIX, os indcios de uma possvel dissoluo da heranacolonial brasileira. Sobre esse territrio movente, uma nova linguagemdo poltico poderia aparecer.

    A reflexo sobre as condies de possibilidade de uma comunidadepoltica democrtica comeara a ganhar corpo, em Razes do Brasil, comuma referncia ao teatro antigo. Essa remisso, estampada j na aberturado seu quinto captulo (O homem cordial), o prembulo de umaanlise sobre os limites entre o pblico e o privado, como se o autorbuscasse ganhar flego antes de adentrar, propriamente, na anlise maisdetida sobre traos constitutivos dos novos tempos do pas. E esseflego ele fora buscar, precisamente, com a evocao da pea Antgona:

    O Estado no uma ampliao do crculo familiar e, aindamenos, uma integrao de certos agrupamentos, de certasvontades particularistas, de que a famlia o melhor exem-plo. No existe, entre o crculo familiar e o Estado, uma gra-dao, mas antes uma descontinuidade e at uma oposio(...).Ningum exprimiu com mais intensidade a oposio emesmo a incompatibilidade fundamental entre os dois prin-cpios do que Sfocles. Creonte incarna a noo abstrata,impessoal da cidade em luta contra essa realidade concretae tangvel que a famlia. Antgona, sepultando Polinicecontra as ordenaes do Estado, atrai sobre si a clera do

    A democracia em Razes do Brasil 139

  • irmo, que no age em nome de sua vontade pessoal, masda suposta vontade geral dos cidados, da ptria:

    E todo aquele que acima da PtriaColoca seu amigo, eu terei por nulo.

    O conflito entre Antgona e Creonte de todas as pocas epreserva-se sua veemncia ainda nos dias de hoje. (Holanda10, p. 141).

    Esse conflito funciona em Razes do Brasil como um ponto de luzpara retirar da opacidade as tenses entre o pblico e o privado, entre otradicional e o moderno na histria brasileira. Entre o Estado e a moraldefendida e encarnada pela famlia, o que se busca enfatizar as contra-dies de uma comunidade especfica que desejaria, enfim, superar ainvaso do pblico pela esfera privada para realizar plenamente os valo-res da modernidade o triunfo das leis da cidade, o igualitarismo pol-tico e a impessoalidade nas relaes pblicas. Pois em meio a essecontexto que o recurso ao teatro antigo, na narrativa de Razes do Brasil,assume, ento, um trao persuasivo. A entrada em cena de um persona-gem como Creonte parece indicar a possibilidade de se redescobrir qualdeveria ser, no pas, o lugar da poltica e das leis da cidade. Por isso,encontra-se citada no livro apenas a primeira interveno de Creonte napea, ou seja, uma fala que, isolada do restante da obra, poderia serreconhecida e adotada pela cidade democrtica da antigidade clssica,pois ela enuncia, ao menos nesse primeiro instante, a linguagem de umacidade livre, dissimulando qualquer trao de tirania (Bignotto 5). Assim,um personagem como Creonte compareceria, em Razes do Brasil, parasugerir a necessidade de regular a vida pblica pela mediao das leis eno pelo intermdio dos valores da vida privada. Mais importante ainda,a referncia deciso de Creonte aparece sincronizada, nesse instantedo livro de Srgio Buarque, com a descrio de um certo sentido da his-tria brasileira: sua possvel ruptura com as vozes personalistas e patri-moniais da sociedade, em boa medida identificadas com o legadoibrico do pas.

    140 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    Associada cultura da personalidade (um bastar-se a si prprio), auma tica da aventura (com sua concepo espaosa do mundo, semesforo planejado em meios e fins) e plasticidade do aventureiro (comsua capacidade de aclimatar-se em um ambiente desconhecido, sem lheimpor suas regras), a Ibria seria, a rigor, constitutiva do homem cor-dial e de seu padro de sociabilidade, cujos laos de afeto e de sanguemarcam suas oscilaes entre a hospitalidade e a hostilidade. Da mesmamaneira, os novos tempos do pas iriam se manifestar em termos cla-ros, uma vez que aparecem associados ao americanismo uma din-mica golpeadora das bases de sustentao da aristocracia rural e dohomem cordial e, ao mesmo tempo, um processo de desenlace da civi-lidade e da democracia. De resto, os dois ltimos captulos de Razes doBrasil Novos tempos e Nossa revoluo tm o cuidado de apon-tar os indcios seguros desse percurso: o fim da escravido e a passagemdo campo cidade como centro gerador de valores, marcas mais visveisde um longo percurso de superao dos fundamentos coloniais de soci-abilidade. Assim, separando o velho e o novo, a tradio e o moderno,caberia historiografia o dever de fundamentar, face s condies dosnovos tempos do pas, seu curso contnuo e progressivo rumo aomoderno.

    Entretanto, o recurso s personagens de Sfocles no parece confir-mar inteiramente o sentido inequvoco dessa histria, lanando umacerta sombra sobre os caminhos brasileiros de passagem ao moderno.Essa a sombra dos mecanismos de poder presentes em meio s novasleis da cidade. certo que Srgio Buarque tambm exerce, a partir deAntgona, uma crtica ao poder quando sustentado por valores familiarese afetivos, como se a personagem apontasse para traos incompatveiscom o horizonte moderno da igualdade. Todo afeto entre os homensfunda-se forosamente em preferncias. Amar algum am-lo mais doque os outros (Holanda 10, p. 185). Mas sempre bom recordar que, napea de Sfocles, Antgona cumpriria ainda um outro papel, que talvezno esteja ausente do horizonte de Razes do Brasil.

    Se a desobedincia s ordenaes de Creonte nega, num primeiromomento, os valores pblicos da cidade, em outros instantes desvela oque parecia ocultado na primeira fala desta personagem. Pois a reao

    A democracia em Razes do Brasil 141

  • de Creonte ao desafio lanado por Antgona pode ser interpretada nemtanto como uma sada em defesa das leis da cidade, mas como um ve-culo para a afirmao de um poder pessoal. A ao de Antgona tor-na-se, ento, poltica ao revelar o trao tirnico de Creonte, atravessadopor um discurso que, qual um decreto, s reconheceria a lgica dos seusprprios atos (Bignotto 5, p. 64-67). E se esse horizonte no se encontralonge de Razes do Brasil, porque o livro, em certo sentido, parece terassumido um ponto de vista para a apreciao da prpria cultura pol-tica brasileira semelhante ao dessa personagem feminina.

    Desse ponto de vista, Creonte entraria em cena para dramatizar asnovas preferncias da ordem poltica brasileira. Em outras palavras, eletambm apontaria, na ordem do texto de Srgio Buarque, para uma cr-tica ao poder, desta feita dirigida aos legisladores dos novos temposbrasileiros. Estes, tomados pelo horror ao fundo emotivo e familiar doslaos de sociabilidade vindos do fundo colonial, retiram-se da compa-nhia dos homens. Se um dia retornam ao mundo comum, no tantopara comprometer as vozes personalistas com os destinos da cidade.Seus gestos carregam toda a natureza de um poder pretensioso que, dis-simulando suas verdades parciais em uma suposta regra geral, transfor-mam-nas em requisito automtico de passagem ao moderno. No poracaso, na narrativa de Razes do Brasil, esse seria o caso, por exemplo,de Benjamin Constant Botelho de Magalhes. Honrado por muitos comoo heri fundador da Repblica, essa personagem representativa deuma postura que comea a conformar os srios estudos da matemtica(Holanda 10, p. 160) com o mundo poltico, ou melhor, o verdadeirocom as ordens do poder.

    Por isso, o historiador expressa todo seu incmodo com uma pos-tura de indiferena ao conjunto social, que, na ruptura com a tradio ouna tutela dos indivduos, cria um mundo fora do mundo, um derivativocmodo para o horror nossa realidade cotidiana (Holanda 10, p. 162).Pois uma tal postura, antes mesmo de reagir realidade de uma maneirafecunda, simplesmente a detesta ou a considera nula, criando artificial-mente uma iluso de maturidade. O problema que, nesse compasso,haveria sempre o risco de se inaugurar uma modernidade de desenrai-zados: um mundo abstrato e vazio de sujeitos, desenhado por homens

    142 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    que criaram asas para no ver o espetculo detestvel que o pas lhesoferecia (Holanda 10, p. 186). Criaram asas, talvez, como se pudessemassumir a condio de intermedirios ou mensageiros entre a vida ordi-nria, com suas disputas e opinies incertas, e as regras tticas para aorganizao do conjunto social.

    Em um pas como o Brasil, que ensaia insistentemente a organiza-o de nossa desordem segundo esquemas sbios e de virtude provada(Holanda 10, p. 188), essa condio parece trazer, para o mundo dosassuntos humanos, um trao de excluso que nem mesmo a fundaoda Repblica conseguira interromper. Dessa fundao, restariam aspalavras de Aristides Lobo, publicadas no calor da hora: por ora a cordo governo puramente militar e dever ser assim. (...). O povo assistiuquilo bestializado, atnito, surpreso, sem conhecer o que significava(apud Holanda 10, p. 161).2 E quando se sonhou refundar o regime em1930, o que se reafirma uma civilizao como obra a ser planejada econstruda pelo Estado. Por isso, o historiador que procura pelas razesdo Brasil e vislumbra apenas desterro o mesmo que, s vsperas dapublicao do seu livro, observa o cidado como o verdadeiro dester-rado de sua histria poltica.

    Em 1936, ao menos, no parecia difcil reconhecer esse cenrio emvias de exilar a cidadania:

    As foras polticas que defendiam uma proposta centraliza-dora e corporativa foram vitoriosas ao ampliar o poder inter-vencionista do Estado (...). Pouco a pouco, a Constituiode 34 foi sendo desrespeitada pelos prprios governantes, eos princpios autoritrios foram ganhando espao. (...): emabril, foi aprovada a Lei de Segurana Nacional, importantearma no processo de expurgo das oposies. O Brasil acom-panhava uma forte tendncia internacional de crtica aosprincpios liberais e de crescimento de regimes autoritrios,tanto de direita quanto de esquerda. Amparado na L.S.N., ogoverno deflagrou uma sistemtica estratgia repressiva.

    A democracia em Razes do Brasil 143

    2 Esse ponto foi retomado e desenvolvido por Jos Murilo de Carvalho em Os bestializados,publicado em 1991.

  • Jornais e rdios foram fechados em todo o territrio nacio-nal e, gradativamente, os militantes da ANL foram identifica-dos como os principais adversrios da estabilidade doregime. (...) O fracasso da tentativa de mobilizao [da ANL]nas ruas de Natal, Recife e Rio de Janeiro teve conseqn-cias muito graves. De imediato, Vargas conseguiu aprovarno Congresso a decretao do estado de stio, que concediapoderes excepcionais ao chefe do poder executivo. (...) Asubmisso do Congresso ficou clara j em dezembro de1935, quando foram aprovadas trs emendas constitucionaisque tornaram ainda mais explcita a hipertrofia do Execu-tivo. A primeira criava a figura jurdica do estado de guerrainterna, a ser declarado em caso de subverso das institui-es; a segunda permitia a cassao dos militares envolvi-dos em atos subversivos, e a terceira previa a demisso defuncionrios civis nas mesmas condies. (...) A priso dodirigente do Partido Comunista do Brasil (PCB), Lus CarlosPrestes, no Rio de Janeiro, foi mais um pretexto para adecretao do estado de guerra, em 21 de maro de 1936(Ferreira & Sarmento 9, p. 465-466)

    1936: esse o mesmo ano da publicao de Razes do Brasil, anoque parecia condenar o pas a reviver a tradio longa e viva da centra-lizao poltica e da vontade de disciplina. Quanto ao historiador dasrazes desse autoritarismo, talvez ainda restasse um certo caminho:explicar no apenas as contingncias histricas desse percurso, mas ten-tar compreender, nesse processo de construo de um novo regimecomo a expresso de um decreto, o sentido de uma racionalidade pol-tica que no deixa de expor sua feio tutelar tanto na organizao dasociedade como na hostilidade s contingncias da histria:

    Para o homem a que chamamos primitivo, a prpria segu-rana csmica parece depender da regularidade dos aconte-cimentos; uma perturbao dessa regularidade temqualquer coisa de ominoso. Mais tarde essa considerao da

    144 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    estabilidade inspiraria a fabricao de normas, com o auxlioprecioso de raciocnios abstratos, e ainda aqui foram conve-nincias importantes que prevaleceram, pois, muitas vezes, indispensvel abstrair da vida para viver e apenas o abso-lutismo da razo pode pretender que se destitua a vida detodo elemento puramente racional. Em verdade o raciona-lismo excedeu os seus limites somente quando, ao erigir emregra suprema os conceitos assim arquitetados, separou-osirremediavelmente da vida e criou um sistema lgico, homo-gneo e a-histrico.

    Nesse erro se aconselharam os polticos e demagogos quechamam a ateno freqentemente para as plataformas, osprogramas, as instituies, como nicas realidades dignasde respeito. Acreditam sinceramente que da sabedoria esobretudo da coerncia das leis depende diretamente a per-feio dos povos e dos governos. (Holanda 10, p. 179).

    Esses conselhos lembram, em muito, aqueles pronunciados por umcerto demnio presente nas ltimas linhas de Razes do Brasil, cujainfluncia obscurecia o ritmo espontneo do quadro social em prove-ito de um compasso mecnico e uma harmonia falsa (Holanda 10, p.180). Inspirados por ele, os homens se vem diversos do que so e criamnovas preferncias e repugnncias. raro que sejam boas (Holanda 10,p. 188). Mas, se esse o trao mais caracterstico da lgica demonaca, porque a sua identidade no seria to enigmtica. Em alguns instantes, ohistoriador a nomeia como bovarismo, um mal disfarado horror rea-lidade que faz os homens desejarem ser outro do que efetivamente so.3

    A democracia em Razes do Brasil 145

    3 Sob a luz de Razes do Brasil, essa identidade bovarista fora reconhecida emdaguerretipos brasileiros do sculo XIX, nos quais muitas famlias, afetando maneiraselegantes, encenavam uma pose que no correspondia sua existncia real. Numa sociedadeorganizada em torno de empenhos e favores, onde o prestgio e a riqueza dependem,cordialmente, das relaes sociais, a adulao e a afetao de maneiras elegantes, ou seja, ofingimento, funcionam como moeda corrente de sociabilidade. (...) Ou seja, atravs darepresentao idealizada de si que ela pode superar a contradio entre a persistncia dacordialidade e da ordem estamental e a adoo dos novos valores burgueses (Lavelle 14, p.65).

  • Em outros momentos, o historiador compara os conselhos demonacoscom um certo reformismo negador, uma fora reativa que, incorpo-rada pelas classes dirigentes do pas, tambm fez da negao da reali-dade o mvel de sua ao e o ponto de vista de apreciao dosacontecimentos. Seja como for, toda essa poltica de fingimento aden-traria o mundo em comum em nome de uma virtude especfica, identifi-cada, no sem ironia, como pedagogia da prosperidade. No tm emconta entre ns os pedagogos da prosperidade que, apegando-se a cer-tas solues onde, na melhor das hipteses, se abrigam verdades parci-ais, transformam-nas em requisito obrigatrio e nico de todoprogresso (Holanda 10, p. 165).

    Tome-se, como exemplo, o iderio positivista, que, buscando encer-rar, ao longo do XIX francs, o curso sempre imprevisvel das revolu-es, compreende a poltica como a arte de dirigir a sociedade e decontrolar as energias esparsas da coletividade rumo ao futuro. Pois esse mesmo iderio que, incorporando uma filosofia do progresso,chega ao Brasil em meados desse mesmo sculo, alcana os meios inte-lectuais e as escolas militares e se torna decisivo na histria brasileira:

    possvel compreender o bom sucesso do positivismoentre ns e entre outros povos parentes do nosso, como oChile e o Mxico, justamente por esse repouso que permi-tem ao esprito as definies irresistveis e imperativas dosistema de Comte. Para seus adeptos, a grandeza, a impor-tncia desse sistema prende-se exatamente sua capaci-dade de resistir fluidez e mobilidade da vida. realmente edificante a certeza que punham aqueles homensno triunfo final das novas idias. O mundo acabaria irrevo-gavelmente por aceit-las, s porque eram racionais, s por-que a perfeio no podia ser posta em dvida e seimpunha obrigatoriamente a todos os homens de boa von-tade e de bom senso. O mobilirio cientfico e intelectualque o Mestre legou Humanidade bastaria para que seatendesse em todos os tempos e em todas as terras a seme-lhantes necessidades. E nossa histria, nossa tradio eram

    146 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    recriadas de acordo com esses princpios inflexveis.(Holanda 10, p. 158).

    As definies imperativas de Comte trataram logo de desvincular ostermos progresso e revoluo, normalmente associados no sculoXVIII. Em outras palavras, era o caso de abandonar uma filosofia crticacomprometida com a revoluo em proveito de uma engenharia socialfortemente atada noo de ordem e a uma representao orgnica dodesenvolvimento da sociedade. Nessa representao, particularmente, oprogresso pensado como semelhante vida, ou seja, dotado de umprincpio imanente de auto-produo e evoluo, ndice de sua inevita-bilidade e tambm de seu carter natural, no-livre (Benot 4, p. 140).4

    Ao mesmo tempo, a organizao da sociedade torna-se objeto da cin-cia, como se um sistema de idias, semelhante a leis naturais, pudesseordenar a repartio dos poderes e das instituies administrativas. Tal-vez por isso, discpulos de Comte teriam sido conselheiros prediletosde alguns governantes (Holanda 10, p. 159). Pois o mobilirio cient-fico e intelectual que o Mestre legou Humanidade bastaria para que seatendesse em todos os tempos e em todas as terras a semelhantes neces-sidades (Holanda 10, p. 158). E quanto s terras brasileiras, continua ohistoriador, at mesmo sua histria ou sua tradio poderiam ser recria-das de acordo com esses princpios inflexveis (Holanda 10, p. 158).

    Quem sabe, ento, no seja possvel reconhecer, nos conselhosdaquele demnio pretensioso de Razes do Brasil, os ecos desse dis-curso positivo, formando a aristocracia do pensamento brasileiro(Holanda 10, p. 159) e sugerindo, como nico caminho para o pro-gresso, a obedincia cega s ordenaes do Estado:

    J temos visto que o Estado, criatura espiritual, ope-se ordem natural e a transcende. Mas tambm verdade que

    A democracia em Razes do Brasil 147

    4 Benot, em Sociologia comteana, ainda lembra que, no Curso de Filosofia Positiva, Comtepretendeu fundar a teoria positiva da submisso moderna em uma suposta desigualdadebiolgica. Sua sociologia buscaria constituir-se em instrumento terico da suspenso darevoluo ao pensar a relao entre progresso e ordem social a partir de categorias da cinciada vida. Esta corresponderia ao estudo das leis vitais, a partir das quais se busca tanto apreviso racional do modo de ao de dado organismo vivo como o estmulo das suasmelhores disposies (Benot 4, p. 310-311).

  • essa oposio deve resolver-se em um contraponto paraque o quadro social seja coerente consigo mesmo. H umanica economia possvel e superior aos nossos clculos paracompor um todo perfeito de partes to antagnicas. O esp-rito no fora normativa, salvo onde pode servir vida so-cial e onde lhe corresponde. As formas superiores dasociedade devem ser como um contorno congnito a ela edela inseparveis: emergem continuamente das suas neces-sidades especficas e jamais das escolhas caprichosas. H,porm, um demnio prfido e pretensioso que se ocupa emobscurecer aos nossos olhos estas verdades singelas(Holanda 10, p. 188).

    Esta, pois, a pretenso do demnio da sabedoria: instaurar aauto-suficincia dessa criatura espiritual que, embora produzidapelos homens para servi-los, assumiria uma lgica independente dainteno que o constituiu. Nesse sentido, essa passagem de SrgioBuarque poderia muito bem ser lida como a resposta do historiador, nodomnio do poltico, ao que Simmel j chamara de tragdia da cultura,na qual o especialista enclausurado em sua rea de atuao no reco-nheceria nenhuma outra escala de valor que a sua prpria. Trata-se,para Simmel, de uma sorte de inexorabilidade demonaca, dentro daqual o homem no deixa de se tornar o prprio portador dos seusconstrangimentos:

    O fato de o esprito criar algo objetivo autnomo, que setorna o caminho para o desenvolvimento do sujeito de simesmo para si mesmo, constitui o conceito de toda a cul-tura; mas justamente com isso, aquele elemento integrante econdicionante da cultura predeterminado a um desenvol-vimento prprio, que consome continuamente as foras dossujeitos, que abarca sujeitos em seu caminho sem, noentanto, conduzi-los sua prpria altura. O desenvolvi-mento do sujeito agora no pode mais tomar o caminho dodesenvolvimento do objeto; seguindo-o, todavia, ele se per-

    148 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    der em um beco sem sada ou em um esvaziamento da vidainterior peculiar (Simmel 18, p. 104).

    Em linguagem simmeliana, este seria o beco-sem-sada da moderni-dade poltica brasileira: construir o Estado como a forma moderna dodestino, a partir do qual a vida poltica se ataria a uma criatura determi-nada a um desenvolvimento prprio, no poucas vezes votada a contro-lar ou a destruir as manifestaes que no se acordassem suaperspectiva. E o que era verdadeiro para os primrdios da Repblicaparece ter perdurado ao longo das primeiras dcadas do novo regime,pois, nesse retrato da tragdia poltica onde o cidado desterrado e opedagogo aparece como o rgo da verdade no difcil reconheceras feies do prprio tempo que vira nascer Razes do Brasil: feiesbem caractersticas de nosso aparelhamento poltico, que se empenhaem desarmar todas as expresses menos harmnicas de nossa socieda-de, em negar toda a espontaneidade nacional (Holanda 10, p. 177).Empenha-se em desarmar ou tutelar, sobretudo, aquilo que poderia sero negativo desse aparelhamento, sejam as essncias ntimas da persis-tente aventura ibrica, seja o lento cataclismo dos novos tempos, ope-rando surdamente no cenrio brasileiro desde o ltimo quartel dosculo XIX.

    Contudo, enquanto Simmel pensara a tragdia no interior de umafilosofia da vida, Srgio Buarque a interpretou nos quadros de umateoria crtica da histria. Crtica, primeiramente, aventura patriarcal daIbria, mas tambm simples detestao da tradio que, pensando ocurso da histria sob os pares dualistas do progresso e da decadncia,do avano e do atraso, da ordem e da desordem, ajustaria o domnio dasdecises polticas ao ritmo da salvao ou a remoo dos obstculos prosperidade ou o caos. Crtica, enfim, tradio, mas tambm a umtipo de discurso de ruptura da tradio incansvel em justificar, peranteum Estado patrimonialista, uma espcie de Estado iluminista que, pro-metendo a modernidade, recairia, no poucas vezes, em triunfante des-ventura a desventura de uma pedagogia que, conjugando a polticacom o conhecimento tcnico, recoloca aquele velho adgio da obedin-cia perante, agora, os novos gestores da sociedade. Pois nesse ritmo, no

    A democracia em Razes do Brasil 149

  • qual uma pedagogia poltica amolda-se aos quadros de um poder com-preendido como mando e obedincia, sempre possvel desvendar umapretenso dominao que nem mesmo os novos tempos interrompe-ram.5

    Mais ainda, a crtica de Srgio Buarque a toda essa histria demo-naca parece ter um rumo certeiro. Pois, no mesmo mundo da desordeme da espontaneidade que os pedagogos no se cansam de querer edu-car, Srgio Buarque teria reconhecido a nica base possvel de fundaode uma vida democrtica, invertendo os termos habituais com que sepensava o poltico: no caberia transformar o povo, segundo os mol-des bem talhados nas mentes ilustradas. As cabeas bem pensantes que deveriam adequar-se desordem, em que se incluam todos, elites emassas, trabalhadores manuais ou intelectuais (Meira 16, p. 269). Sur-preendentemente, perante um cenrio pouco favorvel ao exerccio dacidadania, Srgio Buarque no ficou apenas no registro do lamento ouda desconfiana. Em outras palavras, sua obra tratou de investigar a pos-sibilidade de uma vida em comum ainda poder ser constituda no comoobra de esquemas sbios ou de valores privados, mas segundo as neces-sidades especficas do pas. Afinal, sem essa possibilidade, ao intrpreteda histria do Brasil pouco caberia, seno inventariar o que falta naono seu af de ser moderna.

    No ltimo pargrafo de Razes do Brasil, de fato, o historiador exa-mina um outro caminho para se pensar o pas. Nesse instante, ele aludeuma imaginao poltica capaz de fundar um contraponto entre as for-mas superiores da sociedade e a nossa realidade, entre o Estado e asexigncias da sociedade civil. Palavra de cunho musical, o contrapon-

    150 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    5 Nos novos tempos de um Brasil urbano e industrial, como se desenhava nos anos 30,ainda era o caso de incorporar seus novos personagens s ordenaes do poder, dentro dasquais o Estado precederia sociedade civil. Razo pela qual esses tempos tambm foramdecifrados por Srgio Buarque sob a luz de autores como Oliveira Viana, que, avaliando osprincpios antidemocrticos da tradio ibrica sob uma luz igualmente no-democrtica,justificavam um Estado forte e centralizador como condio de passagem ao moderno. Assim,Viana, que avalia a Ibria e define o rumo a ser seguido para a prosperidade do pas, acaba setornando um importante conselheiro do Estado em gestao nos anos 30. Nesse sentido,Razes do Brasil tambm possa ser lido como uma releitura crtica de uma obra comoPopulaes meridionais do Brasil. Sobre Oliveira Viana, ver os textos reunidos em Opensamento de Oliveira Viana (Bastos & Moraes 3). Sobre a relao entre Viana e SrgioBuarque, ver Ladrilhadores e semeadores (Piva 17).

    to implica uma disciplina que ensina a compor a polifonia, umamsica para duas ou mais vozes ou instrumentos, como se l no Novodicionrio Aurlio. Srgio Buarque, porm, parece escutar o sentidopoltico da metfora musical. Em outras palavras, ele no deixa de bus-car um caminho para os assuntos humanos que, suspendendo a tutelado Estado na organizao de nossa desordem (Holanda 10, p. 188),fosse capaz de rasurar as fronteiras ntidas entre as instituies sociais eum mundo de essncias mais ntimas (Holanda 10, p. 188). Quem sabeos indivduos no pudessem, nesse espao indeciso entre dois universosde valores, reivindicar direitos e pr prova os prprios modos de serda sociedade.

    Em alguns momentos, certo, a modernidade, para o historiador,seria vinculada a um prodgio de racionalizao cujo corolrio pol-tico, conforme a definio de Max Weber (Holanda 10, p. 146), corres-ponde ao exerccio da responsabilidade dirigente mediante um aparatoadministrativo burocrtico. Se tivesse se preservado nesse registro, ademocracia poderia ter sido pensada como fundamentalmente passiva:

    (...) se h um processo de democratizao em curso, sermais por um nivelamento poltico do que pela igualdade decondies sociais. E esse nivelamento nada tem a ver comqualquer robustez do princpio da soberania popular. Antes, indcio da presena dominante de uma burocracia que,esta sim, expande-se quase sem freios. (...) nele [Weber] noh controle de baixo, j que a soberania popular meraideologia, instrumentalizada pelos dirigentes. O que seexprime dessa forma no a presena poltica das grandesmassas, mas uma democratizao passiva, para usar otermo empregado por Weber ao tratar desse tema no cap-tulo sobre a burocracia de Economia e Sociedade. Como onome indica, a democratizao passiva no significa oaumento de participao popular no poder, mas a criaodas bases para o poder de outros grupos mais bem situados(Cohn 8, p. 35-36).

    A democracia em Razes do Brasil 151

  • Porm, se o autor saiu cata daquele contraponto aos modos deinstituio da vida em comum, porque as desordens da sociedade tam-bm apontariam para um outro prodgio da modernidade: a invasoimpiedosa do mundo das cidades (Holanda 10, p. 170) como a condi-o de uma contrapartida democrtica s ordenaes caprichosas dopoder. Pois a histria da democracia no Brasil deixaria de ser umlamentvel mal entendido (Holanda 10, p. 160) se, a contrapelo daspedagogias da prosperidade, deitasse as suas razes num tecido socialmarcado pelo movimento e pela espontaneidade de seus atores. Defato, para o historiador, a referncia a esse modo de instituio do tecidosocial particularmente importante, uma vez que ele se sustenta sobre aidentidade problemtica dessas personagens. Em alguns momentos, Sr-gio Buarque reconhece os traos da espontaneidade em sujeitos aindaatravessados pela tradio ibrica; em outros, busca desvend-los nomundo urbano da nossa revoluo, permevel aos valores de uma so-ciedade mercantil em pleno desenvolvimento nos anos 30. Mas nessaindefinio que se encontraria, justamente, as chances de uma cidadeno-autoritria, segundo a qual as coisas polticas caracterizam-se pelaindeterminao e os seus atores, pela pluralidade de interesses e devises de mundo.6

    Talvez, ento, a obra de Srgio Buarque seja capaz de trazer, para aperiferia da modernidade poltica, uma singular compreenso do pol-tico. Fazendo do desterro do cidado o seu ponto de vista de apreciaodos acontecimentos, e da desordem um freio s tendncias autoritriasdo pas, Razes do Brasil comparece ao encontro com a teoria polticatrazendo suas prprias marcas: uma rede de noes em constante mobi-lidade, retirando sua fora da capacidade de surpreender as certezas dospedagogos. Particularmente, Srgio Buarque no compartilha com atendncia de reduzir a questo democrtica a postulaes sobre umregime poltico ou sobre um conjunto de procedimentos jurdicos. E oautor que tanto criticara o positivismo tambm veria com desconfianaum iderio liberal que, defendendo a liberdade econmica, justificariaum quadro de retrao das liberdades pblicas.7

    Confrontando a autoridade dessas ltimas referncias, Srgio Buar-que examina uma sociabilidade poltica cujo fundamento incorporasse

    152 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    os usos e as opinies do conjunto social. Talvez seja esse um maucomeo perante uma tradio atravessada pela cordialidade e pela aven-tura patrimonial. Porm, sem clamar por disposies virtuosas de umpedagogo capaz de promover a justia social, bem provvel que nohouvesse um outro ponto de partida. De toda maneira, para o historia-dor, se a tradio ibrica, esta no lhe parece uma essncia a perdurar,de maneira homognea, no curso do tempo. No seria mesmo difcilacentuar suas zonas de confluncia com os ideais democrticos. Razesdo Brasil cita trs fatores que teriam particularmente militado em seufavor, a saber:

    1) a repulsa dos povos americanos, descendentes dos colonizadorese da populao indgena, por toda hierarquia racional, por qualquercomposio da sociedade que se tornasse obstculo grave autonomiado indivduo;

    2) a impossibilidade de uma resistncia eficaz a certas influnciasnovas (por exemplo, do primado da vida urbana, do cosmopolitismo),que, pelo menos at recentemente, foram aliadas naturais das idiasdemocrticas liberais;

    A democracia em Razes do Brasil 153

    6 Sobre o sentido poltico da identidade problemtica do povo, ver Abensour 1, p. 105,quando o autor, seguindo os passos dos historiadores-filsofos do sculo XIX Michelet eQuinet , conclui que a valorizao da identidade inequvoca do dmos, alm de ignorar oconflito e a pluralidade, violentaria as coisas polticas ao supor o povo sob a figura do Uno.

    7 Em So Paulo (Holanda 11), texto de 1964, publicado na coleo sobre a Histria dacivilizao brasileira (tomo II, vol. II), Srgio Buarque esboaria um outro ponto de vista,destacando uma fase herica do liberalismo brasileiro, cujos primeiros representantesencontraria, nos anos 30 e 40 do sculo XIX, na cidade de Itu: pioneira da lavoura comercial,tambm se apresenta desde cedo pioneira do liberalismo e da emancipao nacional. A rigor,essa seria uma regio atravessada por homens sensveis ao apelo da grande lavoura, apesar denascidos e crescidos geralmente fora do meio rural, s vezes fora de So Paulo e do Brasil, que,desatados de uma tradio esmagadora, animados de vigoroso esprito de independncia einiciativa, passam, agora, e por longo tempo, a empolgar o cenrio econmico, social epoltico da Provncia (Holanda 11, p. 456). Muitos desses homens teriam participado darebelio de 1842 contra a centralizao monrquica do Segundo Reinado, cuja derrota SrgioBuarque no deixa de acentuar, em tom melanclico, como ponto decisivo de uma derrotahistrica a do velho liberalismo. Desse ponto de vista, a tradio liberal tambm poderia serpensada como um possvel vetor para a diluio da onipotncia de um Estado tantopatrimonialista como iluminista Este ainda no parece ser inteiramente o ponto de vista deRazes do Brasil, em que o autor destaca, em primeiro plano, uma tradio liberal destituda debase democrtica, preservando o tom aristocrtico de nossa sociedade tradicional (Holanda10, p. 164) ou reduzindo os sujeitos condio de espectadores passivos das autoridadespblicas.

  • 3) a relativa inconsistncia dos preconceitos de raa e de cor.(Holanda 10, p. 184).

    bem provvel que esses fatores fossem apenas aparentementecompatveis com os traos de uma herana cordial, cega, em boamedida, aos valores de uma sociabilidade democrtica. Mas, se a cordia-lidade no criaria princpios, esses, por seu turno, correriam o risco depairar como frmulas vazias e abstratas, se no referidas ao mundo deessncias mais ntimas das razes do Brasil. Parece haver, pois, umacerta ambigidade no argumento de Srgio Buarque, que desenha, aoseu modo, uma fronteira fluida entre a tradio e o moderno.8 Em outraspalavras, numa zona indecisa entre a cordialidade e a civilidade, essa uma fronteira que, marcada pelo tempo e pelo acaso, convida oshomens ao movimento, levando-os a assimilar e a provocar novasmodalidades de convvio s vezes, dando vazo a paixes e interessesindividualistas, em outras, solidariedade e fora do amor ao maiornmero de homens, subordinando, assim, a qualidade quantidade(Holanda 10, p. 185). Entre um e outro apelo, restaria, ao menos, o dese-nho de uma histria que, aberta por todos os lados, ainda encontra-sepor se fazer.

    No h, aqui, otimismo acrtico, uma vez que a comunidade polticabrasileira, numa constante demonaca, transmutara, muitas vezes, assuas esperanas em novas formas de dominao. Mas tambm no seriao caso de encerrar a histria do pas e mesmo a narrativa de Razes doBrasil, lembrava Srgio Buarque de Holanda como o filsofo Plotinode Alexandria (Holanda 10, p. 163), que no se deixava representar porter apenas vergonha do prprio corpo.

    154 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.

    8 Tomando como centro de anlise a obra Caminhos e fronteiras, essa relao entre tradioe modernidade foi bem desenvolvida por Wegner (Wegner 20).

    The democracy in Razes do Brasil

    Abstract: This article intends to analyse the democracy question on Ra-zes do Brasil. In the pages of the work at issue, Srgio Buarque deHolanda is moved away from the abstract reasoning that would cha-racterize the speech of modernization to come of the concern with theconcrete aspects of the political reality. In these aspects, Srgio Buar-que would have recognized the values and virtues for an authentic wayof democratic life.Key-words: democracy Srgio Buarque de Holanda Razes doBrasil.

    Bibliografia

    1. ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado. Belo Horizonte:Ed. UFMG, 1998.

    2. ANDRADE, Oswald de. Um aspecto antropofgico da cultura brasilei-ra: o homem cordial. In: A utopia antropofgica. So Paulo: Glo-bo, 1995.

    3. BASTOS, Joo Quartim de; MORAES, Elide Rugai (Org.). O pensamen-to de Oliveira Viana. Campinas: Ed. Unicamp, 1993.

    4. BENOT, Lelita Oliveira de Rodriguez. Sociologia comteana. So Pau-lo: Discurso, 1999.

    5. BIGNOTTO, Newton. O tirano e a cidade. So Paulo: Discurso, 1998.6. CARDOSO, Srgio. Paixo da igualdade, paixo da amizade. In:

    NOVAES, ADAUTO (Org.). Os sentidos da paixo. So Paulo:Companhia das Letras, 1987.

    7. CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Re-pblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    8. COHN, Gabriel. Perfis em Teoria social: Tocqueville e Weber, duas vo-caes. In: AVRITZER, Leonardo; DOMINGUES, Jos Maurcio(Org.). Teoria social e modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG,2000, p. 27-37.

    9. FERREIRA, Marieta de Moraes; SARMENTO, Carlos Eduardo. A Rep-blica brasileira: pactos e rupturas. In: ALBERTI, Verena; GOMES,

    A democracia em Razes do Brasil 155

  • Angela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves (Org.). A repblicano Brasil. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 2002.

    10. HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Compa-nhia das Letras, 1998.

    11. ______. So Paulo. In: HOLANDA, Srgio Buarque de (Org.). Hist-ria Geral da Civilizao Brasileira. So Paulo: Difel, 1967. (v.II, t.II).

    12. ______. Mones. So Paulo: Brasiliense, 1990.13. ______. Do Imprio Repblica. So Paulo: Difel, 1972. (Col. Hist-

    ria Geral da Civilizao Brasileira, v. II, t. V).14. LAVELLE, Patrcia. O espelho distorcido. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

    2003.15. LEFORT, Claude. A imagem do corpo e o totalitarismo. In: A inven-

    o democrtica. So Paulo: Brasiliense, 1983.16. MEIRA, Pedro Monteiro. A queda do aventureiro. Campinas: Ed. Uni-

    camp, 1999.17. PIVA, Luiz Guilherme. Ladrilhadores e semeadores: a modernizao

    brasileira no pensamento poltico de Oliveira Vianna, Srgio Buar-que de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940).So Paulo: Ed. 34, 2000.

    18. SIMMEL, George. O conceito e a tragdia da cultura. In: SOUZA, Jes-s; ELZE, Berthold (Org.). Simmel e a modernidade. Braslia: Ed,UnB, 1998.

    19. WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. So Pau-lo: Livraria Pioneira, 1992.

    20. WEGNER, Robert. A conquista do Oeste: a fronteira na obra de SrgioBuarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

    156 Rodrigues, H. E. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 10, 1/2007, p. 137-156.