adélia prado - filandras

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As Filandras da poeta Adélia Prado.

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Este livro foi digitalizado para uso exclusivo de pessoas cegas, sem

Este livro foi digitalizado para uso exclusivo de pessoas cegas, semfins lucrativos em novembro de 2007.

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FILANDRAS

Adlia Prado

Orelhas:

Se primeira vista Filandras parece um volume de contos, esta uma armadilha - ou melhor, uma teia de aranha- que Adlia Prado arma para o leitor neste livro, seu primeiro indito desde1999. As 43 histrias podem, certamente, ser lidas separadamente. Mas elas ganham outra dimenso quando se comea a unir os fios, os pequenos detalhes que reveladosem cada uma delas permitem construir a vida de seus personagens. Em uma espcie de quebracabea literrio, Adlia desfia o dia-adia previsvel e trivial, e por issomesmo assustadoramente real, de mulheres e homens de uma cidade do interior. E que mulheres! A avoada Olinda, a racional Clia, a sedutora Calixtinha, a inseguraEster. Mulheres que demonstram sua fora e solidariedade em situaes aparentemente corriqueiras, mas fundamentais para a prpria existncia de seu mundinho. Mulheresque se tornam a interseo, os elos, os pontos de equilbrio para o funcionamento de toda uma comunidade.Numa narrativa extremamente pessoal, Adlia volta a temas recorrentes em sua literatura: a vida provinciana, a religiosidade, as cores do campo, num espelho de suaprpria experincia. Morando na pequena Divinpolis, cidade de Minas Gerais com aproximadamente 200 mil habitantes, ela revela a inspirao: "Eu s tenho o cotidianoe meu sentimento dele. No sei de algum que tenha mais. O cotidiano em Divinpolis igual ao de Hong Kong, s que vivido em portugus."

Adlia Prado nasceu em Divinpolis, Minas Gerais, em 1935, onde reside at hoje. Sua formao Magistrio e Filosofia. Em 1976, por indicao de Carlos Drummondde Andrade, publicou seu primeiro livro: Bagagem. O ano de1978 marca o lanamento de O corao disparado, que agraciado com o Prmio Jabuti. Estria em prosa no ano seguinte, com Solte os cachorros, e logo depois publicaCacos para um vitral. Em 1981 lana Terra de Santa Cruz. Os componentes da banda publicado em1984, e a seguir, O pelicano e A faca no peito. Em 1991 publicada sua Poesia reunida. Em 1994, aps anos de silncio potico, ressurge com o livro O homem damo seca. Em 1999 so lanados Manuscritos de Felipa, Orculos de maio e sua Prosa reunida. Em agosto de 2000, pelo selo Karmim, grava o CD Otom de Adlia Prado, onde l poemas do livro Orculos de maio.

***Ilustraes: Martha Barros (capa) e Jorge Erail (quarta capa)

(3Obras da autoraPOESIABagagem, Imago, 1976O corao disparado, Nova Fronteira, 1978Terra de Santa Cruz, Nova Fronteira, 1981O pelicano, Guanabara, 1987Afaa no peito, Rocco, 1988Poesia reunida, Siciliano, 1991Orculos de maio, Siciliano, 1999PROSASolte os cachorros, Nova Fronteira, 1979 Cacos para um vitral, Nova Fronteira, 1980 Os componentes da banda, Nova Fronteira, 1984 O homem da mo seca, Siciliano,1994 Manuscritos de Felipa, Siciliano, 1999 Prosa reunida, Siciliano, 1999ANTOLOGIASMulheres - mulheres, Nova Fronteira, 1978 Palavra de mulher, Fontana, 1979 Contos mineiros, tica, 1984Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim,1994TRADUESThe Alphabet in the Park. Seleo de poemas com traduo de Ellen Watson. Publicado por Wesleyan University Press

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Adlia Prado

EDITORA RECORDRIO DE JANEIRO SO PAULO2001Cip-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.P915f Prado, Adlia, 1935-Filandras / Adlia Prado. - Rio de Janeiro:Record, 2001.ISBN 85-01-06272-31. Conto brasileiro, l. Ttulo.01-1320CDD 869.93 CDU 869.0(81)-3Copyright 2001 by Adlia PradoProjeto grfico: Regina FerrazTodos os direitos reservados.Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes destelivro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.Direitos exclusivos desta edio reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, R) - 20921-380 -Tel.: 2585-2000Impresso no BrasilISBN 85-01-06272-3PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052Rio de Janeiro, RI - 20922-970

EDITORA AFILIADA***

Qualquer amor j um pouquinho de sade, remdio contra a loucura.- lido em Joo Guimares Rosa

UMA DOR

Seria filho de uma irm de meu pai que s ento conheci, tia Lita, morava em Gois, parece,com uns outros parentes, histria nunca devidamente deslindada. Tinhauns doze anos quando apareceram em nossa casa, apareceram e ficaram, ela por um ms e ele para a vida toda. No gostei do menino, branco raqutico, nariz e cheirodiferentes dos nossos, ocupando minha me que lhe trocava as fraldas sem o carinhocom que trocava as de Celina, pequenazinha ainda. Me fazia mal o constrangimentoda me - ao menos ela tratasse bem o menino para me descansar de ser m. Difcil aceit-lo como primo - ou irmo, como queria o pai -, menino de ps chatos e certamentede futuras sobrancelhas espessas como tia Lita. A Corina, louca por criana, quis ficarcom ele, antes tivesse ficado. Tremia na minha cama com anervosia de meu pai xingando ele de noite, entendesse o menino que precisava levantar cedo no outro dia para pegar no batente. Me assustava o lado selvagem do meupai, sempre to paciente com o choro da Celininha. A me, agentando tudo por amor de Deus, cumpria os mandamentos, Celininha encantadacom o nenm, um bonequinho vivo, Ariela s querendo saber de rua, sobrava para mim, mocinha, a tarefa de, tal qual minha me, ser boa por amor de Deus. No beijavanem cheirava o Henriquinho, s Celininha o fazia, talvez minha me, escondido, quando sentia pena demais. Ri pra ele uma vez, fui espreit-lo na rede, ele estavaacordado e riu pra mim, faz cinqenta anos. O pai e a me j morreram, Ariela casou-se, Celina foi pr convento, fiquei sozinha, no tenho ningum pra me mentir:voc no muda, hein, Afonsa?Aparea, Henriquinho, d notcias, vem morar comigo.

FEMINA

A Ivete ligou dizendo-se preocupada com a Ester deprimida demais. Grande novidade, deprimido na minha famlia, j sabia. Est amolada, diz ela, porque os filhosno deixam mais os meninos pra ela vigiar, achando que est velha, no agenta mais o batente. Imagina, ela disse, criei os filhos e no agento dois netos? claroque no est deprimida por causa disto, est sofrendo daquela doena ingrata, a de mil sintomas de total gravidade e gravidade nenhuma, porque nem doena, menopausa, um 'meno male', afinal. No tem cura, democrtica, nos pe os olhos levemente aflitos, buscando na ex-colega de escola nossa imagem perdida, a doentesem doena, como me chamou o doutor. Tambm arrumei agora uma cabea zonza, a idia exata de ter um parafuso frouxo, ou, no meu caso, apertado demais, me doem asarticulaes dos maxilares, como se eu tivesse um cabresto. Vrias vezes por dia fico de boca aberta para ter um descanso. No acho graa em quase nada, em dez minutosesgoto qualquer passeio e quero voltar para o meu quarto. O homeopata - ser que escarnecendo de mim? - falou: olha, dona Afonsa, nadade hormnios, envelhecer isto mesmo, a gente vai se mineralizando, chegou a dizer o que - no pensamento dele - de uma lgica brutal, que a osteoporose sinalde progressiva espiritualizao. Pior que concordo: "Tu s p e em p tetornars", somos cinza, caminhamos no inverso sentido de uma fnix. Deveras, d muita pazno relutar contra o destino, fatalidades repousam. Em minha casa diziam: Velha saliente: est na hora de pegar um rosrio e ainda caando indaca de namoro'. Estavamgrosseiramente certos, mais certos em todo caso que os marqueteiros da terceira idade. A velhinha dizia na televiso, a velhinha da romaria, temos que sofrer nestemundo, a cara quase infantil, cara de criana, de velha feliz, com mais estradas que um mapa, velha para um pintor, com s uma coisa nova, o seu entrepernas, velhinhaque namora e casa outra vez, sabe como? Sabina vai pensar que a estou criticando por tingir o cabelo, no nada disso, juro que no. S tento dizer que a alma noenvelhece, mas quase impossvel que me entenda. Levar um pensamento at o fim como colocar n'gua um basto, sua imagem entorta na hora, ainda que ele continuedireito na sua concreteza. Afinal, afinal nada, porque nada tem fim, muito menos o sofrimento do mundo.

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Final feliz

E o locutor da festinha continuou empolgado, fazendo bonito pra sua mulher, que deixara, naquela noite, comparecer ao seu trabalho, tendo-lhe adquirido, ele prprio,o convite.'... porque, alm de militar reformado da PPMG, ainda o proprietrio do animado Bar Central, o av da nossa Lesliene, a feliz aniversariante desta noite.'Quando disse 'nossa Lesliene', acreditou desapontado que a mulher no salvava sua inventividade narrativa. Arrependeu-se de t-la trazido e insistiu com o moodo vdeo para que filmasse mais esquerda do palco, a mesa da dona da festa. De verdade, queria mesmo que a me de seus filhos no aparecesse no filme; uma mulher que no passava uma sexta-feira sem encher latas e latas de biscoitos e s sabia ir em festa daquele mesmo jeito: saia preta, blusa de seda, por fora, pra disfararas ancas e arquinho na cabea - putisgrila -, desse tinha vrios de diversas cores, devia se achar nua sem o arco nos cabelos, logo ele, um homem conhecido, comaquele talento incrvel para animar festas.'... agora, senhoras e senhores, o momento to esperado em que a nossa - olhou de novo pra mulher olhando

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pra ele embevecida, se esquecendo de ficar em p -, a nossa festejada Lesliene, a menina-moa da noite, vai apagar as merecidas velinhas. Ai, ser que estava certodizer 'merecidas velinhas'? Achou timo ser o locutor e estar dispensado de danar com a mulher, que no conseguia terminar o pratinho, bebendo guaran em pequenosgoles. Pensou ter sido um erro t-la trazido festa. Se sentia desconfortvel, inseguro dos adjetivos, querendo tirar a gravata e mostrar pras pessoas o que o roqueirodoido mostrou durante um show e acabou preso. Gente do cu, o que est acontecendo comigo? Olhou para o av da Lesliene. Um filho da me, esse 'militar reformado',espancador de presos. Nem que a maric estica eu falo mais o nome dele aqui. E essa Lesliene est me saindo uma perua e tanto. Ento isto salto para uma meninade quinze anos?"... e agora, senhores- esqueceu das senhoras -, o Toniquinho do Arlindo vai tocar a valsa que a aniversariante danar com o pai dela.' No disse 'o talentoso msico Antnio Miranda,filho do nosso popular Zico Miranda, tocar a valsa que Lesliene danar com o seu progenitor'. Meio escondida por uma coluna do salo, sua mulher ainda no terminaraos salgadinhos. Finssima. Lembrou que ela lhe aconselhara trocar de camisa, Voc fica melhor com a de linho creme'. Teve vontade de chorar e ao mesmo tempo sentiuraiva daquele amor paciente e silencioso, capaz de morrer por ele.

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Foram pra casa calados. Quando se virou pr canto, um homem roubado, ela disse: voc fala to bonito, Raimundo! - Pois voc fique sabendo que de hoje em diante nopego mais bico de locuo noturna. J tou cheio disso. vou reabrir minha oficina que melhor negcio. - Acho pena, voc fala to bem! - Cremilda, se eu te pedir,voc nunca mais pe arquinho no cabelo? D pra sua irm aquele conjunto de saia e blusa? Voc me perdoa? No entendia bem o discurso do marido, estranho naquelanoite, mas era uma verdadeira mulher, fez como Nossa Senhora, disse sim ao senhor. E Raimundo fez com ela o que faz um homem competente para deixar feliz sua mulher.

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A irm na cozinha

... era cachorrinho feioso, o meu, preto, com duas manchas amarelas na testa, fiquei incomodada mesmo da irm Salstia entrar com esse da no jardim. Soltou damo dela e desembestou nos canteiros, a corrente arrastando arrebentou com uma beleza de broto de roseira, uma pena, no sou de reclamar mas reclamei: irm, assimtambm no, uai. O Zuleigo era diferente, cachorro educado, podia saber, se ele choramingasse relando as patas na saia da minha me era porque os porcos tinham arrebentadocom a cerca e estavam j correndo na direo da mina pra fuar. Minha me dizia assim: vai l, Zuleigo, e toma conta. Ele baixava as orelhas, saa tinindo e entortavaos porcos de volta pr chiqueiro. Quando caam no buraco que eles mesmos tinham cavoucado, o Zuleigo empacava na vigia at o pai ou a me tomarem o expediente detirar os porcos de l. Era at engraado o Zuleigo de soldado sentinela. Nesse tempo a gente morava na Vendinha. Tem mais Vendinha hoje no, s o nome. O Zuleigomorreu porque um vizinho nosso tinha cachorrada de caa que mordeu nele at matar. De banana no tem hoje no, s tenho feito

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doce de mamo com cidra, a superiora me elogiou, irm Casta, que doce mais gostoso! Sabia que eu quase morri? Irm Salstia reclamou que at hoje meus gritos retinemna cabea dela. Retinem? E na minha? sem parar os grilos, durmo muito pouco, tambm j fiz dezoito anos, ai, qualquer dia fao o de banana tambm. Eu falei coma irm Salstia que d trabalho capinar de mo, botar estreo nos canteiros... O Zuleigo, quando minha me no estava em casa, chamava meu pai, ia no servio deleavisar que os porcos furaram a cerca, esperava a ordem e saa tinindo pra tocar eles de volta. Tem dez anos j que moro neste convento, a superiora agora outra,t fazendo curso no Canad francs, eu at gosto de retiro, mas s vezes entro seca e saio torrada, igual no retiro da Suma Teolgica que frei Leto pregou pra ns.No fim, todo mundo perguntando pra todo mundo, querendo saber, gostou, irm? Foi bom pra voc? Foi aonde eu disse pra irm Corao de Maria que entrei seca e satorrada e ainda brinquei com a irm Felcia que naquele tempo cuidava do jardim: irm, foi suma ou cime? Porque ela morria de cime das rosas. Hoje estou igual irm Felcia, mas naquele tempo tinha s dezoito anos. Vocs duas j esto querendo ir embora? Vo no, fica mais, tendo banana, fao e mando avisar e pode deixarque entrego o bilhete pra nossa madre. Cuidado com esse da, tem que ficar na corrente, igual o Zuleigo eu nunca vi mais no.

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luz em resistncia

Estou sentada em minha cama, em semi-obscuridade e me percebo com a cabea entre as mos, tenho a compulso de me ajoelhar e prostrar-me, dramtico o que fao.Me sento de novo e de novo ponho a cabea entre as mos. Ser possvel que estou representando e representando pra Deus? Quero ficar natural, estou sozinha, nod pra enganar ningum, mas tenho um corpo e de algum modo ele se coloca no espao, impossvel no perceber a importncia essencial do corpo, preciso da lngua prafalar. Mas no porque estou sozinha que vou dizer olha eu aqui, Deus, baratear o texto. Falo assim: meu Deus, eis-me aqui, d um jeito do Franz aparecer em nossacasa, enquanto o Miguel estiver viajando. Percebo - ai que nojo, percebo demais - que disse 'eis-me' e depois 'd' no lugar de dai, mas no desrespeito, fluxode sentimento que no tolera preocupao com a gramtica e - percebo de novo - fao isto desde o primrio, se corrigir tiro a seiva da coisa. Gosto de prola barrocae cermica torta, s no gosto de ter tomado conscincia de meus lapsos gramaticais. "A lngua fala dos tesouros do corao?" Ento este

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o meu tesouro desejo, vou falar com fora e pausadamente: Deus faz eu ficar com o Franz sozinha, por uma hora inteira - uma hora s, no, passa muito depressa-, duas horas, s conversando, s isso que eu quero, me d esta graa, meu Pai. Acho que hoje escandalizei a Ester, no acontecer mais. No sei o que fazer coma Sabina que nos interroga como se fssemos culpadas das estranhezas da Bblia. Ningum sabe que o Franz est em Riachinho e desta vez no pra fazer ponte nenhuma,veio s pra me ver, eu sei, veio por minha causa, o bacana. Quando as duas chegarem na segunda-feira, informo assim bem casual: amigo nosso passou por aqui, etc.e etc., no sabero do que se trata. Ao fim do rosrio fao o agradecimento pela enormssima graa recebida que esta - sei que falo como se o Senhor fosse se esquecer,mas sou humana - a graa, dada pelo Senhor, de ter tido duas horas inteiras para ficar com o Franz. Me de Deus, pede por mim. Perhaps Love, gravar uma fita scom esta msica comeando e acabando e comeando de novo e acabando e comeando. Julinha me surpreendeu decorando e falou: tadinha. E eu sei que no foi por causado meu ingls deficitrio, ficou com pena da minha menopausa em flor. Em qual dos dois espelhos acredito, no que me pe melhor ou no que me d vontade de nuncamais sair de casa? Me de Deus, minha saudade do

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Franz no corpo mas ilocalizvel. Ah, estou com saudade dele na alma, Franz Bota, at o apelido dele precioso, quero o precioso, meu deus, me ajuda a veraquele homem. Se isto fosse teatro, acabava com Perhaps Love.

19Grupo de orao

Sabina avisou que talvez no chegue a tempo da reza, foi pra Roseiras. A Arete achou uma trouxinha de maconha nos guardados do menino e desconfia que o Arno temamante. Desconfia s? Pediu para rezarmos na inteno dela. No posso me esquecer de incluir o pedido de bom resultado para os exames do Jernimo e pacincia paraagentar a Soninha que j envm para as festas de Nossa Senhora Aparecida e queria - queria, no, quero - agradecer - j estou agradecendo - uma graa, bem sem-graa,para dizer a verdade, pedi a Deus uma coisa e Ele me deu outra. Ele sabe o que faz. Ester t querendo assinar TV a cabo, vai pedir discernimento pra saber se prseu bem, quer saber ainda se continua com o curso de cermica, est lhe dando muita preguia de ir s aulas. Acha que s vai para brigar com o pai, mesmo depoisde morto. A velha histria, continua se esforando em provar para ele que capaz de alguma coisa na vida. Acho at que est avanando, j diz coisas como 'brigarcom meu pai', para ela que s sabia adorar seo Camilo, progresso dos bons. Tem pnico de desrespeitar a memria do velho. Voc acredita, ela

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me disse: com esta mo pesada, fico na oficina fazendo as pecinhas igual criana de escola preparando o caderninho para o dia das mes, que vergonha, esterzinhafazendo o trabalhinho para mostrar em casa ao papaizinho, uma mulher da minha idade! E no agento mais sujeira de argila. Ester, seu pai era... Meu pai? '...gente,a Ester no piano e uma lata na goteira so uma coisa s.' E isso pouco perto do que disse quando pus culos escuros... A Maurcia, a Cllia, a Cinara caam nagargalhada, eu perdia meu corpo, qualquer movimento ameaando tornarse um desastre completo, virava esttua. As graolas dele a meu respeito, seu modo de falar meunome sempre em minsculas me paralisavam. Nem rindo nem chorando, minha cara estupefacta gerava mais dio nele e mais gargalhadas das minhas irms. Ao final, talvezcom pena, punha fim no teatro: desista, Ester, desista, voc no aprende, voc burra. Era como uma ordem para eu de novo me mexer e andar. Nunca me olhou nosolhos, no sei quem era ele, que homem ele foi eu no sei. Apesar de bruto com todo mundo, s era assim comigo. com dois meses larguei as aulas de piano. tosurpreendente o figurino psquico da Ester que no me admiro nada se ela, bom, vou parar, aqui minha imaginao j est inventando o Hamlet. Acho que precisa deum psiclogo dos bons, com sof de couro e mecanismo de

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encerrar a sesso sem olhar no relgio, Santa Maria! Em todo caso, como sua melhor amiga, posso lhe adiantar que talvez o pai agisse assim porque, eh, eh, descarrileide novo, NO SOU PSICLOGO. Que mania eu tenho de analisar.

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O guerreio tribal

Minha alegria foi tanta que escondi um pouco, pra no quebrar harmonias. Como se faz com a fora das guas numa usina, ordenei-a, enquanto olhava o lbum. L estavaele fantasiado, saiote de viva cor, tiara, colar de dentes e lana. Sorria como s o vira sorrir antes que a vida lhe vincasse a testa. Pois , ele me disse, noacredito, at hoje no acredito que esse da sou eu. Estaria to distante de si mesmo que lhe custava assim reconhecer-se? Ria o mesmo precioso e indescritvel risoantigo: eu atravessava a multido, com os braos levantados, carregando coisas do grupo que me esperava, dizia ele, sem medo, sem uma gota de medo e naquela cidade!Sentia tudo to normal, flua, quase carregado pela massa de povo, que nem liguei quando um sujeito enorme - ele, sim, um africano de linhagem - estacionou na minhafrente e passou a mo no meu peito: 'huuuuum, que delcia!' Agentei sem medo - de novo no acredito -, quieto como um poste, esperando que ele desse o fora praeu continuar abrindo caminho. O gigante me encarou: 'me d uma pena dessas a?' No posso, colega, a fantasia da escola, falei de pronto. No sei de onde tirei

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isso, meu deus, no sei mesmo. T, ele disse se afastando. Tombou pr lado dela aqui, , que tremia de medo, logo atrs de mim: 'que homem gostoso!' Pude abaixaros braos por um minuto, Virgem! 'Me d uma pena dessas a.' Que pena? Tinha pena nenhuma na minha fantasia! Que aquilo de eu falar que a fantasia era da escola?Estava tudo invertido, invertido e verossmil como nos sonhos. Ele pedia uma pena que eu no tinha, eu falava que a pena - que eu no tinha - era da escola e ningumestranhava, era um cdigo funcionando! E a guerreira africana que te acompanhava? Ele riu mais: ah, tremia apavorada e quando o homo tombou pr lado dela antesde ir embora e falou: 'ai, que homem gostoso' ela s disse: 'hum, sei.' Parecia um teatro de repentistas malucos. Eu o escutava ali, com a alegria que s uma mulherconhece. A alegria dos nascimentos, de quem redescobre por entre liquens, pedras, gravetos, ossos acumulados de pequenos animais, o fio precioso e claro de uma nascenteantiga, a que o fazia to especial entre os seus. Uma luz reacendia-se nele, a pacfica luz das coisas instintivas, o dono achava seu co. Depois eu fui sambar,ele disse, at de manh, fiquei rouco de cantar samba-enredo. H ruas inteiras de quaresmeiras floridas. tempo de penitncia, diz o calendrio litrgico. E mesmoe se deve faz-la para expiao dos pecados, para morrer com Cristo o ego recalci-

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trante. E esta a minha oferenda: quero a letra do samba-enredo, a fotografia do moo fantasiado e um tamborzinho pra eu acompanhar a VIA SACRA. Esta histria beirao improvvel, quase to absurda quanto o amor divino, este sim, excntrico, inacreditvel, corriqueiro como um bater de plpebras, servindo-se de fantasias baratas,poeira, cantigas pobres e versos toscos para reconduzir um homem trilha da sua vida, sua vocao de alegria.

27Janelas

Foi antes da revoluo dos Beatles, antes da minissaia, quando escndalos polticos no vazavam nos noticiosos da TV. Era um moo pacato e, para o gosto das 'meninasestudadas', que nem eu, as meninas da Escola Normal, at mesmo um pouco sonso. Sem garbo, sem aprumo, ficava l com o pai, na loja de coisa pra fazendeiro, umapessoa sonolenta. Nunca vi o Otavianinho marchar com os moos do Tiro de Guerra, jogar futebol, nadar, jogar malha no campinho, pertencer Congregao Mariana,nada, nada mesmo. Parecia clone do pai que ficava na registradora, ele s atendendo a freguesia, embrulhando rao, pesando semente, mal levantando a cabea praencarar. Pois, imagine - e preciso imaginao -, o pai do Otavianinho, o Otaviano velho, morreu e ele herdou a loja. Antes do luto acabar, comprou um rabo-de-peixe,botou um caxeiro mais sonso que ele no balco e saiu pra vida. Dizem que ele disse experimentando o volante do carro: 'agora vou pegar isso e as menina.' Me lembrode que torci o nariz, quando tio Lute contou a novidade, arremedando a fala caipira dele. Pois sim, um ms de passeio no Cadillac foi

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o suficiente pra estourar com a nossa slida apreciao sobre a sonsura do Otavianinho. Foi de novo tio Lute quem contou a respeito: j sabem? O Otavianinho quasemorreu, ainda agorinha. - Hein? - .- De qu? - Por acaso, eu vi tudo, desculpou-se. Sabe o que o Otavianinho andava aprontando? disse controlando mal a excitao. - Pois o mocorongo envinha de hmuito pulando a janela da casa do seo Canuto, direto pr quarto da Calixtinha! Oooo queeee? meu pai falou. - Pois foi. O Canuto descobriu e queria matar o homem.Foi l na loja, armado e aos gritos. , o Otavianinho deu foi muita sorte, porque agarraram o Canuto e ele teve tempo de escapulir. Escapulir, arre, o nico senoesttico do relato. bom, tio Lute e meu pai no se deram conta da minha presena. Assim que comearam a conversa aproveitei pra ficar invisvel e escutar tudo,to excitada quanto tio Lute. De noite percebi que meu pai contava a histria pra minha me, ele tambm com um gozo desconhecido na voz. Escutei eles rirem, o queme dava sempre enorme felicidade. Na minha cama, depois que Neneca dormiu, foi a minha vez de saborear tudo, economizando ponto por ponto daquela histria que mexiacom a minha fantasia mais secreta: depois que todos dormissem, o Adalberto da Txtil viria arranhar feito um gato a janela do meu quarto e eu iria abrir s um pouquinhoe ele falaria coisas comigo e proporia outras, com uma voz irreproduzvel, de tanto desejo, e eu iria negar-me como Santa Maria Goretti. Ele me tocaria de leve, demoradamente,ou forte e rpido, numa mistura de perverso e respeito. Sairia noite afora, suspirando por mim, e eu passaria a noite em claro, suspirando por ele. Ganhei simpatiapelo Otavianinho e uma admirao pela Calixtinha, que fez aquilo tudo e continuava com a mesma cara inocente. Que mistrio, meu deus! O Canuto morria de dengo peloneto feito sua revelia, fez as pazes com o genro, que ficou podre de rico. O que eu fico imaginando porque o Otavianinho pulava a janela de Calixtinha e nonamorava como todo mundo, na praa, ou na porta da igreja. s vezes eu acho que porque ele era um falso sonso e fui errada de olhar para ele com desdm, ou quea 'inocente' da Calixtinha que armou tudo muito bem armado e o bobo caiu direitinho. Esta segunda hiptese sendo a mais provvel, com certeza, a verdadeira. Romeunenhum pula janela se uma Julieta diligente no afrouxa o trinco. Contudo, tanto tempo passado, considero que, a no ser que as famlias se odeiem e tornem o encontroimpossvel, melhor no abrir janela nenhuma, porque a vida breve e a arte, longa. Mais vale uma janela sempre perigando abrir, que outra para sempre aberta.Em se tratando de romance, claro. Amo o que d trabalho. Mas

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no foi exatamente assim que a Calixtinha raciocinou? No foram as mesmas minhas razes que a fizeram optar pelo difcil, namorando escondido? Tio Lute falava queo Canuto queria s fazer barulho com o trinta-e-oito. Ah, sei mais nada no, estou ficando confusa. E longe de mim fazer assertivas sobre amor e janelas. O meninoda Calixtinha saiu diferente dos dois. vida misteriosa!

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Santinha mais eu

A casa, vista de longe, pareceu Santinha o arqutipo da casa pobre. Uma metade da meia-gua, de tijolo comum, a outra, desses tijolos cinzentos e quadrados, maiorese mais baratos. Sem reboco, uma fatia de casa que no a deixou prosseguir. Parou o carro e ficou olhando fascinada. A janela est fechada, disse Santinha, e mesmofechada, ainda parece caolha, falei com o pensamento no pasto que de fato buscvamos cata de silncio. Mas a casa que nascera s metade atraa muito Santinha.Vamos l, falou. L? Mas no vai ficar tarde para chegarmos no campinho? Conhecia Santinha e queria desvi-la do que parecia de novo um ataque de generosidade, ameu ver, de razes mais psicolgicas que ascticas. - Tenho cinqenta reais na bolsa, exatamente pra dar, quero ficar livre deles. Eh, eh, pensei, vai ser difcile lembrei-a da preciso de praticar uma 'caridade discernida', conforme aprendemos as duas no ltimo curso CAMINHO DA PERFEIO. Sim, Santinha disse, mas um discernimentoeste meu, aquela casa pobre demais, meu dinheiro est sobrando, vamos l, eu falo com o homem que pra ele comprar telhas. Mas o barraco

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est entelhado, Santinha. Sei l, telha, taco, paviflex...- Paviflex! Deus do cu! Aquela casa no gasta taco no, ele vai cimentar o piso. Ento pra ele comprar cimento. E se ele se ofender, criatura, e nos escorraar,j pensou? Uai, mas a j problema dele, o meu ficar livre deste dinheiro. No tinha mesmo jeito, pensei, j contagiada por sua determinao. Ento vamos. Contornamoscom grande volta os percalos daquela ladeira impossvel e chegamos frente da inacreditvel residncia, fincada num lotinho escorrido e pedregoso. Porta e janelade metalo novo e porcamente assentadas deixavam boa fresta na janela.900 era o nmero na placa, bem visvel. Como fazem nas rodovias pra deter a eroso, o dono fez tambm no barranco da frente, uma grama bem plantada. Ningum l.Escrito a carvo uma coisa como PARA TODOS, ou DE TODOS, no sei bem. Uns coelhos cinzentos dentro de um cercado estavam bem-trata-dos com cana fresca. Um buraco com uma tampa de bambu tranado, com certeza uma armadilha para predadores de coelho. Foi fcil abrir o porto, fechado s pradar respeito. E dava, porque entramos receosas. Vamos falar o qu? E se chegar algum de repente? Ah, a gente veio pedir gua, comprar ovos, disse Santinha, plenamenteintegrada na aventura. com mais medo que ela, vigiava o vizinho da frente que gritava com os cachorros. Vamos parar com isso,

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Santinha, a casa tem duas antenas de TV. - Duas porcarias velhas, ela falou, em preto e branco, tenho certeza, e no pegam direito, s de enfeite. - Anda logo,Santinha, tou com medo de chegar algum. E, olha, ele vai queimar seu dinheiro pensando que feitio, d o dinheiro pra mim. A gente pe um bilhete, ela falou,e explica: para o senhor comprar cimento. Voc quer administrar seu bolo, Santinha? Se vai dar, deixa o homem fazer o que quiser. Mas assim purinho, no, vou enrolarnum papel. Enrolado perigoso, eu disse, ele no v o dinheiro e vai varrer como cisco. Ih! mesmo. Bem, ento - o homem dos cachorros t olhando? No, sumiu.Bem, ento assim: Santinha destacou uma folha do seu livrinho de endereos e escreveu soletrando: O ANJO DA GUARDA MANDOU PARA O SENHOR, depois trocou para VOCa palavra SENHOR. Afinal, podia ser uma moradora, uma pobre viva, a premiada. Deixou uma ponta do dinheiro aparecendo e escreveu grande por fora do papel: BILHETE.Enfiou bem fundo debaixo da porta, a salvo de enxurrada e gatuno e disse: pronto, agora vamos. Olha o terreiro, falou ainda, tem mamoeiro, bananeira, essa famlia esforada. Lhe dei razo, havia l uma pobreza agradecida e paciente. Uma pobreza de crente ou de catlico? Santinha perguntava, mas no dava pra saber. De certo,uma pobreza de santo, desses que sabem que o mundo

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provisrio e a verdadeira casa est plantada em outro love. De repente, senti-me tambm muito, muito pobre, e era bom. Pegamos as duas o caminho de volta. Quandohesitvamos no meio da pera, ela dissera: se tiver ficado alguma coisa errada, Deus conserta.

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Lembranas

Meu pai contava o que era uma de suas auto-reconhecidas finuras, outra era comer de faca: antes de eu conhecer sua me, assim que vim pra Areias, chegava do sero,preto de graxa, e comadre Figeninha tinha arrumado minha cama com lenol cheirando de limpo. Nunca tive coragem de deitar nele. Me arrumava no cho e no adiantavaela insistir. Morei um ano com ela e s em dia de sbado e domingo consentia em luxo de cama. Tia Efigeninha, irm e comadre do meu pai, padrinho do Benedito, primoda minha idade. Moravam no Liso, perto do rio, lugar onde, por muito tempo, eu mesma queria morar. A cozinha tinha uma diferena de nvel com o resto da casa eum quebra-galho que, aos meus olhos de menina, todos os ferrovirios providenciavam para as suas mulheres, um aparador de vasilhas, feito com tela de arame, rente janela que, eu tambm entendia, todo mundo devia ter sobre a pia da cozinha. No gostava de casa sem aquele adendo, pensando logo que o dono era um insensvel.Talvez daquele aparador de arame me nasceu a idia de s casar com moo da rede ferroviria, minha garantia de solidez e conforto. No impor-

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tava meu prprio pai no fazer a pea em nossa casa, j que sabia ser aquela uma necessidade e exigncia das mulheres. Minha me era culpada de nossa casa no serto boa quanto a de tia Efigeninha, ainda que por nada eu quisesse trocar de me; complicada, difcil e suspirosa, mas to bonita! O mundo era assim mesmo, maravilhosoe imperfeito. Imagina se algum pode ter tudo: morar no Liso, ter escorredor de tela e brincar com primo homem sem ningum criticar? Benedito falava: vamos passaranel? No compreendia que ningum se importasse, j que era to bom! Pique tambm podia. Quando Benedito me encontrava, me puxava quase com raiva, a respiraoesquisita: peguei, sai da. Nossos pais conversavam na sala e porque ramos parentes, no sentia vergonha da msica da manivela moendo o caf atrs da porta. A falamonocrdica de tio Melquias garantia a segurana do domingo. Tudo sairia como o esperado, uma vida boa e seus maravilhosos contratempos: tem bicho comendo as galinhas,j perdi duas, inda ontem o galinheiro amanheceu forrado de penas. Se no capinarem logo esta beira de linha, t arriscado uma cascavel ofender algum. Os padresto dando bilhete de matin prs meninos em vez de dar livro instrutivo, no sei aonde o mundo vai parar. O qu? Ah, pra mim chega de quitanda, comadre, aceito maiscaf. Atravessava a sala fingindo buscar qualquer coisa,

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atentssima nas conversas, ningum me via. Pareciam lordes, pareciam o rei e a rainha de um reino vizinho nos visitando, todos com belas cerimnias. Deixaramospassar alguns dias e o pai anunciava: precisamos visitar comadre Figeninha. Tudo se repetiria ritualmente, como mantras benditos, as saudaes, a tosse, o Deus teabenoe, o at mais, o at logo, at que cresci e me casei com moo formado e Benedito cresceu e se casou com moa operria. Tivemos filhos, dores, sustos, sonhoscom um poste de luz rodeado de besouros e retalhos de reprimenda soando nos ouvidos como o mais doce carinho: passa j pra dentro, sua absoluta, j hora de secomportar como uma moa. Minha me severa e triste, meu pai to alegre: deixa a menina, ela crescida mas inda muito boba. Hoje estou melanclica e suspirosacomo minha me, choveu muito, a gua invadiu este poro de lembranas, biam na enxurrada a caminho do rio. Deixo que naveguem, pois no as perderei. O rio dentrode mim.

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Menino

Conversava miudezas com ele: ah, ento voc muito forte! Matou o monstro s com esta espadinha? Eta menino valente! Abre a boca e come mais este pedao, vaificar mais forte ainda e mais grando. - vou, no vou? E mato ele assim, : p! A criana acabara de chegar de seu segundo dia de escola, escolinha, como se dizpara suavizar. Comia ajoelhado na cadeira, o futuro homem, o pequeno filho de Deus. Quer comer no meu colo? Ele assentiu com a cabea, sem interromper a descriodo massacre que fizera no monstro. Eu no ouvia mais, magnetizada pelo formidvel milagre. Aquela miniatura de dois anos e meio falava, deduzia, propunha, categricacomo s o so os inocentes, e: pensava. E sofria, porque a interrompeu-se: quero minha me. Ela j vem, falei querendo o menino para mim. Quero fazer coc, eleemendou. O que fazia, tanto quanto o que falava, apresentava-se inteiro, sem rachaduras, ou subterfgios, movia-se, autogerido, nu ou vestido, como as crianas ques vejo nos sonhos. Eu estava sonhando? Anda, vov, ele disse. O mais frgil nos homens, seu Pescoo, era um canio, caule tenro sustentando a

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flor de uma cabea onde as galxias todas acomodavam-se com uma pulso menor que um piscar de seus olhos enrgicos sobre mim: anda, vov. Eu tinha muito pesarde deixar ir o menino. Quis olhar suas mos, decorar-lhe os ps, perscrutar-lhe com urgncia as pupilas diretas, dar banho nele outra vez, mais comida. Leite comchocolate? - O monstro no gosta, vov. - Voc monstro? Ele riu, ele riu e aumentou meu fascnio: esta criana ri. A morte passava ali como uma brisa boa carregandouma ptala e quanto mais frgil tudo, veias, vasos, fios de voz, mais a vida era eterna. O menino era um orculo!? Minha alma entendia a lngua da alma dele e assimnos comunicvamos. A porta de um carro bateu e ele disse: quero fazer coc mais no, cad minha mochila? Catou no cho as sandlias, a merendeira que ele se esforavapra botar a tiracolo, comeando a chorar porque no conseguia. 'Me ajuda, vov.' E saiu correndo ao encontro da me. Que cara esta, algum me perguntou. Cara demonstro, respondi com mansido verdadeira. Quero muito entender o que aconteceu, registrar o que experimentei sem que nada de extraordinrio acontecesse. Por enquantoa certeza de que uma torrente de compaixo, nascida no corao do que vive, jorra de suas fontes eternas sobre o mundo.

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Perfeies

Cheguei muito depois do acontecido e viviam todos, ela principalmente, da legenda de uma doena misteriosa e repentina que a levou a pedir ao marido: espera ao menosuns seis meses antes de casar outra vez. Falava como se um fogo, uma cadeira falassem, como se coisa tivesse voz, como se o corpo falasse, distinto de sua alma.Escutei o Teba meu irmo perguntar pra minha cunhada onde tava o sabo em p. De novo?, ela disse, pra qu? Ontem voc j no lavou o tmulo da sua me? Ele temo costume velho de a cada quinze dias lavar a sepultura da nossa me, acha que tou morrendo, coitado, ia dar outro lustro. Quando viu que eu escutei, quase morreude aperto, tadinho. O doutor chegou a falar com a Ceia, minha irm: T chorando? Pode chorar dobrado. J rezou? Reza dobrado. Agora s Deus, minha filha, fiztudo que eu sabia. Eu envinha emagrecendo e todo mundo elogiando: eh, Maria Dalva, esbelta, hein? Conta o segredo, parabns! E eu: parabns? Esse povo pensa queeu tou brincando, tou doente, muito ruim que eu tou. Era sem parar, sonrisal, bicarbonato e o mdico que me olhou primeiro no me pediu um exame! Eu

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comia, a coisa parava aqui na altura do estmago, vivia entalada, cansada de escutar caminha dona Dalva, caminha bastante, a senhora tem de caminhar. Foi me dandouma 'jeriza, uma nervosia. Um dia antes da internao, bem desanimada mesmo, pensei: ah, mas no vou entregando assim assim, no. Que moleza tambm, vou missaassim mesmo. Mas, olha, da minha casa na igreja, que voc sabe que perto, no tive vergonha, sentei na porta das casas, umas trs vezes. A Vicentina me viu delonge, disse que achou esquisito: gente, a Maria Dalva t parecendo a Arminda-Saquinho-de-Pano. Diz ela que at a trouxinha da Arminda ela viu comigo. Era a sombrinha,minha filha, que eu tinha posto num saco de plstico. Pois , sa da igreja em antes da comunho, de to ruim que eu fiquei. O Almerindo me ps na caminhonete eme trouxe pra casa, recomendando, olha, dona Dalva, acho bom a senhora ir no Posto, tou achando a senhora meio plida demais. Olhei no espelho era um aafro. Obranco do meu olho, uma gema cozida, daquele amarelo embaado, credo, dois caroos de pequi no lugar dos olhos. Chamei o Afonso: me leva depressa pra qualquer doutor,falei, isso doena ruim, tou cancerosa e faz favor de ter muita pacincia com os meninos, porque eu quero morrer sossegada. Engraado foi que a tia Trindade veiome ver, encostou em mim e eu era uma pedra de gelo.

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Deu nela uma pressa de ir embora, eu ri demais da conta, achou que encostava em defunto. Fica mais, tia, eu falava. No, no, minha filha, depois eu volto. No ficoudez minutos, ela que to papeadeira. Foi desse jeito que eu fui descobrindo que estava muito mais pior que imaginava. O doutor ligou meu pncreas direto no sangue,fez isso, conforme explicou, porque eu j tendo sido operada antes, no tinha mais vescula. Disse que fez um desvio e que ele, o pncreas, nunca mais vai voltarao normal. Pra medicina, n, doutor?, eu disse pra ele. claro, ele respondeu, pra medicina, dona Dalva, porque foi milagre dos grandes. Maria Dalva conversavasentada no sof da sala de sua irm Ceia, que cuida dela com a devoo e o empenho dos primeiros cristos nas suas obras de misericrdia. Maria Dalva, que nuncadescansou, ralando no seu humlimo emprego de salrio mnimo, ganhando telha de demolio pra tirar goteira do barraco, est diferente agora. Seu rosto mudou. Perdeuos tiques de um constrangimento atvico, caracterstico da sua famlia, no pede mais licena pra existir, tem uma histria. ela prpria uma histria. Que bomque ela j tenha adoecido, quase morrido e est agora renovada, louca pra comer ma verde. Todo mundo importou-se com o seu drama, percebe a indispensvel necessidadede sua existncia entre os bilhes de criaturas no mun-

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do. Maria Dalva, no af de todos em lhe protestar amor, ganhou at cesta bsica. Agradeceu com humildade verdadeira e remeteu a outro mais pobre que ela. Graasa Deus, disse, eu tenho tudo, no preciso de nada. Preocupou-se quando comecei a chorar na sua frente: que isso, que isso? Mandou me servir um caf. Mas j estavaservida.

Dona Doida

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Mal respondendo ao meu 'a bno, tia', ela destampou emendando: t sabendo que eu fiquei doida? Doida? . Mas doido no sabe que doido, no. Mas eu sei. O Joschegou aqui j bem depois do almoo e foi, como costume dele, destampar as panelas. Tem a moda de comer um tiquitinho aqui e depois almoar direito na casa dele.Pois , viu o fogo apagado, as panelas vazias e foi me caar no quarto. Me, me, cad a senhora? Me achou arriada nos travesseiros e, diz ele, com o olho abertoe parado. No respondi quando me tomou a bno, parecia uma imagem, ele falou. Pegou meu pulso, nem morta nem fria. Teve o tino de pegar um papel e escrever: porque a senhora no quer falar? Fiz sinal de que queria o papel e escrevi de volta: porque eu fiquei muda. Ento ele escreveu de novo: e quando que a senhora vaifalar? A eu escrevi: s Deus sabe. Lembro at a, diz ele que fui largando o lpis e desmaiei. Acordei no hospital, o mdico me segurou l por sete dias. Disseque era istrs que eu tive e precisava era de muito passeio, muita distrao, largar de mo a bebedeira do Afonso, que tem idade de sobra, tratar de cuidar

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de mim, seno vou ficar doida mesmo. Achei muita graa que o doutor falou doida de pedra, dona Carlina, doida de pedra. Tia Lina saboreava com muito gosto o eptetoque lhe conferia e sua nervosia dois nomes que ela vai explorar com felicidade, stress e doida de pedra. Vai lhe ajudar a viver, tenho certeza. Estou estressada,isto , no agento mais ver o Afonso chegar cambaleando, passar direto pelo fogo e ir dormir feito um porco. mole cinqenta anos desta vida? Domingo atrasado,eu fiz o almoo e tou esperando, tou esperando, nada. Quinze pra meio-dia, envm ele fingindo de bom das pernas, tropeando nos pintos, descascando o bico da botina, tristeza, e foi direto pra cama. Dei um copo de bicarbonato pra ele e fui comer sozinha mais a Carlininha. Foi nada no, nem de comer a gente tem sossego. Coisade uns cinco minutos e ele destampou a gemer e clamar que tava morrendo, que eu tinha dado veneno de rato pra ele, eu morro, porque eu morro. Pois vai com Deus,eu falei, que eu tambm vou ficar com ele. Nessa mexida, chegou o Celino trazendo a comunho pra mim. Tive escrpulo de tomar a hstia, porque tinha comido - deraiva - e sentindo tambm muita raiva do Afonso. Mas o Celino no padre, no podia confessar com ele e no sabia mandar ele de volta com o Santssimo, essa desfeitacom Jesus eu no fao. Rezei o "Eu pecador" com muita f e co-

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munguei assim mesmo. O Celino perguntou pelo Afonso e eu disse bem alto: t l, deitado, vai ver ele. Entrou no quarto e eu fiquei espiando no buraco da fechadura.Pois o Afonso sentou espertinho na cama e despistou bonito: Oi Celino, nada no, j tou bom. Bateu papo, contou caso e ainda me gritou pra eu levar caf pra eles.Mas dia que eu enraivei. Fingir tontura! Fingir que t morrendo! Ah, deixa estar, que ele no me faz de boba nunca mais. A senhora gosta do tio Afonso, hein, tia?Ficou vermelha, gaguejando e mudou de assunto para o nico que a interessava no momento e lhe dava alegria, fora e valor: o doutor falou que istrs coisa perigosa,e que se eu no cuidar viro doida de pedra. Pois sim.

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O desbunde

Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e at pudica, uma, ou melhor, um ferrre esplndido. No preciso ser homem pra essas avaliaes.Firme em definidos e perfeitos contornos, rebelde ao disfarce das saias e anguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona, que, movendo os olhos como asancas, subia a rua em falsa pudiccia, apregoando-se: tenho. Os homens ficavam loucos. Eu era mocinha boba e escutei no armazm do Calixto ele dizer pr Teodoro,meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente no vai dar conta daquela ali, no. preciso muita sade. Calixto falavacom o Teodoro do que eu suspeitava serem os tesouros da Oldalisa e ela nem a, toda toda, sobe e desce rua. Exatamente o que era me escapava, s podia ser coisade homem e mulher. Felicitei-me por estar viva e participar de segredos to excitantes. O Vicente era muito magrinho, no jogava bola, no nadava, no 'salientavaem nada', o Vicente Cisquim. Pois foi dele que a Raimunda - como o Calixto chamou ela naquele dia - gostou. Casaram e tiveram pencas de

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filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonito e dono de armazm no contou ponto pra ele. Pois , falou o Teodoro, hoje, assim que botou o p em casa: Oque a tecnologia, hein? Tecnologia? , o avano da medicina. Teodoro falava era do avano do tempo. Tou aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa escolheu oVicente, no tem base. To vendo aquela dona pegando as compras no caixa e... Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? . O Vicente estava junto? No.Estava com duas alianas e um menino, neto dela com certeza. Ser que o Vicente morreu da praga do Calixto? Acho que no, porque eu procurei o traseiro da Oldalisae nada da olda, s mesmo a lisa, magra e murcha. Ter encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador deixou Teodoro bem filosofante sobre as agruras do corpo. Teria ele tambm sido um apaixonado da Oldalisa e eu corrido srios riscos? Porque amor no olha idade, no mesmo? Agora, daquela do escritrio eu tive,medo no, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A uma cintura de vespa seguia-se, instruda e fatal, o que a Oldalisa trazia com inocncia. Batia mquina,agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro quem ps. Se chamava Rosiva, a perigosa. Imaginao risco que eu corri.

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De afrodisacos

Tenho um pouco de pudor de contar, mas s um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. porque l em casa a gente no podia falar nem diabo, que levava sabo,quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, voc sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher.O seu no fala? Pois , e de novo tem um tempo que aconteceu. Lembra aquela histria dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele assim, sem pressa. Tem uma histria deles l, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condio?Mas o Teodoro - foi quando a gente mudou pra casa nova - teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlinado Afonso, e encontrou l o Gomide. Tou encompridando, acho que s por medo do fim, mas agora j comecei, ento. Ento, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolsodo palet uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, es-

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colheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra l, pra c, e ficou um tempo lhe passando firme a lmina, do meiopras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho.Ia picando e pondo na concha da mo. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mo com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foipondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais prxima do fumo e comos polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. com o canivete dobrou uma daspontas para o fumo no escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operao ele no despregavao olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, s punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa to esquisita - esquisita, no-, to encantada que ele ficou de pau duro. isso. Falou tambm que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide.Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito

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emocionante. Tenho muita saudade de quando no existia essa amolao de cigarro dar cncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa,no mesmo? Ser que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, esto falando que j tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha,s pra fazer tipo.

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A dama confusa

Quando percebeu era tarde. A prestao de suas compras, que no ocupava metade de uma sacola, eqivalia ao salrio de um soldado do nordeste. J havia feito oscheques e estava a dois quarteires de sua casa. Resolveu prosseguir. Tinha ainda a vergonha de desfazer o negcio, no fundo, uma humilhao, ranhuras na sua imagem.Fora muito prolixa com a vendedora, elogiando as peas, deixando vazar que entendia de corte, mostrando bom gosto. Entrou em casa com a sacola amassada debaixodo brao, para evitar o olho curioso da empregada, trancou-se no quarto e foi reolhar o que comprara, na verdade roubara, pois era quase este o sentimento, de usurpao.O tecido maravilhoso, a cor, o talhe, discrio que se anuncia discrio, a modstia das verdadeiras linhagens, enfim comprara um braso. Riu de si mesma, desconfiadade que tanta nobreza a entregaria como proletria deslumbrada e sentou-se na cama meio arrependida, enjoada de seus impulsos. Ainda bem que... mas no continuou.Sentiu raiva de no parar de pensar. Ainda bem, nada, qualquer coisa passo a roupa para a Joana, vendo pra Clotilde. Dona Clia,

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a senhora vai almoar agora? Atendeu afobada por causa da vergonha e esqueceu a porta aberta. Onde que a senhora comprouaquelas sainha, dona Clia? Mas muito bonitinhas, tem doutras cor? J era sofrimento demais a Almerinda tambm querer uma roupa cara daquelas. Perguntou s pra ter o que dizer: voc gostou? Gosteipra senhora, dona Clia, meu tipo doutros modelo. Graas a Deus, pensou Clia, ainda bem. J posso pr no cabide pra senhora? Falava com naturalidade e zelo,as carnes apertadas na sua cala de laicra. Clia ficou to feliz que arriscou: ainda quero ver voc dentro de uma roupa dessas. S quando a galinha nascer dente,porque, pra falar a verdade pra senhora, eu acho a roupa bem feinha, desenfeitada demais e eu penso que a senhora muito sem vaidade. Para a idade da senhoraaindad demais pra senhora pr uma roupa de cor, sei no. Se eu no conhecesse bem a senhora, ia pensar que era uma desiludida. Clia almoou com muito gosto, biblicamentereconfortada... "pobres sempre tereis convosco..." Reconfortada, em termos, na verdade, ainda com um leve medo de aprofundar o assunto e descobrir que interpretavaem causa prpria. Dona Clia, ser que a senhora podia hoje me adiantar uns cincoentinha? Eu queria sair com o Josefino e, como a senhora est ciente, ele estdesempregado... Foi o dinheiro que emprestou com maior gosto e pressa.

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A caixa-preta

Tio Lute procurou um jeito de acompanhar o enterro no carro do Teodoro, porque queria conversar, 'esvaziar a tiboma', como diz sempre, minimizando-se. Comeou cheiode cerimnia, sei que no da minha conta, mas - o engasgo de uma pequena tossedava-lhe tempo para decidir-se. Fala, Rosa, disse Teodoro ajudando, deixa de dedos,compadre. O que ? Todo mundo tem na cabea uma caixa-preta igual s de avio, no tem? Hein? Caixa-preta? . Lembra aquela vez no stio do Augusto, eu cortava umascanas e voc passava uma nata de cimento no piso em frente porta da cozinha? Sei, e a? Lembro at que se referiu a um buraco na parte baixa da porta e falou batendoa colher no balde de massa: preciso fazer um tapume nessa porta, se passar uma cobrinha, a mulher no dorme mais aqui. Teodoro admirava-se dos detalhes frescos deum dia que j ia longe demais, sem imaginar onde tio Lute queria chegar com a minuciosa exumao. Pois , continuou, na horinha mesma em que voc ia falar, o Toedo Juc apareceu, o assunto foi pr brejo e eu fiquei por saber... Fala, Rosa, disse Teodoro de novo, j muito interessado. Me lembro do

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dia, sim, mas do assunto, no. que voc tinha comeado a me contar - a, falou abruptamente, antes que se arrependesse -, alguma mulher j te cantou? Teodorono riu, percebendo que a angustiada sofreguido de tio Lute escondia dificuldades. E a?, eu perguntei. A? , voc, Teodorinho, respondeu o qu pra ele? Respondide homem pra homem: j, uai, s no lembro qual mulher mais no. Pois no foi exatamente quando voc bateu a colher no balde de massa e ia falar o nome que o Toedo Juc chegou? Que mulher essa, Teodoro, insisti como boa sobrinha do tio Lute. aquela que te pediu 'uma carona, por favor, pra levar os meninos na escolinha,porque hoje me atrasei?' Disse ele que no se lembrava e no tem caixa-preta na cabea. No percebeu, mas a histria me deixou triste, por causa de tio Lute, LuizMaria Rosa Antnio, o Rosa, certamente o primeiro artista de uma famlia de crticos contumazes, mordazes, vorazes rimadores compulsivos. Conversa emendando rosriosde metforas, que ele chama de comparaes. Tem natureza rf e s no lhe caem os cabelos, porque seu medo lhes sustenta a raiz, medo como o dos meninos, o quelhe impede de envelhecer. Se abriga em velrios, catstrofes, e quer ser velado fora de casa, 'porque nessas ocasies muito abeIhudo, muito entro que aproveitaa festa pra fuar nos armrios, bolinar as mulheres...' Meu deus, que idia! Que motivo engraado e pouco funreo. Per-

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guntou ao Teodoro se achava graa em cremao. Teodoro acha, mas no cuida disto, acha que tio Lute lhe parece sempre carregar um berne latejando, inchado, doendo,o bicho aponta a cabea mas no sai. Teodoro tem razo, tio Lute rnuito ansioso. Podia, se quisesse, arrasar com seu baixo-profundo, fabricar flautas, afinarpianos, escrever poticas, ser showman. Caixa-preta na cabea! S ele mesmo, o atormentado da memria, buscando, como quem busca ar, o que ele chama, letradamente,dilogo. Pode ser muito amor pela palavra o floreio de dizer 'exatamente quando voc bateu a colher de massa', 'passava nata de cimento no piso da cozinha', 'quandoo Toe do Juc chegou'. Conversando com Teodoro tio Lute usa sempre Voc'. Pode ser uma esttica o detalhismo compulsivo, pode ser pobreza, carncia, busca de amore reconhecimento s inflorescncias de sua alma sensvel, recurso pra espichar a conversa, gozar de ateno, pedido de socorro e pior, talvez, arrependimento pelosdons que no usou. Sei que um poeta, o tio Lute, temente a Deus e a velrio em sua prpria casa. Lembrei de contar a Teodoro que toda a vez que ia a So Paulovisitar a filha, ia diariamente ao aeroporto pra ver descer e subir avio. vou pedir a Teodoro que o procure mais, que o ajude a esvaziar a caixa-preta. Tio Lute daqueles a quem as palavras matam. Pra ele no ligo se o Teodoro contar o nome da mulher.

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Anlises

Comia com a mo quando a conheci, a mulher por quem Joo Jeremias foi a vida inteira apaixonado. Vi depois seu nico retrato de juventude, o mesmo penteado de av.Acredito mesmo que nunca foi jovem, uma desiludida crnica, resumindo seu desconforto de existir entre os homens com o bordo que recitava nas dificuldades: 'noservia pra ter nascido'. No gostava do seu nome Diolinda e, nas infreqentes vezes em que se permitia relaxar, ria dele, confessando que ficaria muito satisfeitase se chamasse Nair, principalmente Maria Nair. Seu marido Joo Jeremias, tambm nas poucas vezes em que ensaiou em pblico trat-la com carinho de marido chamando-apor Nairinha, no deu certo. Ficou muito enfurecida, pondo em ridculo a paixo dele, que se recolheu e nunca mais ousou, com o que as psicologias no concordam.Devia ter batido nela, ou a porta, gritado, sei l. A Diola, na minha soberba opinio, precisava de um marido mais avultado, a bem da verdade, um toureador que amansassea leoa. Mulher, mansa ou brava, quer marido firme. Marido tem que proibir alguma coisa, nem que seja do tipo: 'quero minha

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correia dependurada neste prego e ningum me tire ela daqui.' Porque seno as mulheres ficam muito infelizes e comeam a ter maus pensamentos de querer ficar vivas,de sumir no mundo, de dar os filhos pra av criar, essas coisas. Natureza de mulher de obedecer, de admirar, de servir, natureza de formiga, de abelha operriae gata no borralho, seno, meu deus, no sobra espao pra ela virar cinderela. At a princesa da Inglaterra, que Deus a tenha, arranjou o que fazer nas creches domundo, no agentava mais. Servio nunca faltou pra Diola, alis o que mais teve foi servio, servio e nervosia. Tinha a moda de falar sozinha, teria dado excelentemadre superiora, tima Joana d'Arc, Maria Bonita com grande vocao blasfema, uma santa e tanto, ou uma pecadora pblica. No entanto, consumiu-se tolhida, ih...Disse no comeo que as mulheres precisam de limite e agora vejo que ele atrapalhou a Diola e a mim? Bem, j me achei, Diola foi tolhida pela ausncia de autoridadedo Jeremias, pois ele no a contrariava em nada, o que mesmo insuportvel. E eu? Teodoro j me fez desaparecer de medo dele uma vez, uma no, duas. A bem da verdade,trs. E chega, no quero saber de outra. Foi surra no, a comparao que me vem como se um leo estivesse comendo e eu botasse a mono cocho dele, s o rosnado me deixou sem fala! Sorte minha. Outro dia falei com o Teodoro: como ser

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que o seu pai deu conta de sua me? Mole pra ele, Teodoro falou, a me nunca deu conta de exasperar o pai. Quando ela chegava no limite, ele pegava no brao delacom aquela mo enorme, levava at porta da rua e falava: escuta Nairinha, obrigada voc no fica comigo no. Voc livre. Impressionante, na hora da maior raivadele, ele chamava ela de Nairinha, sem desprezo, com todo respeito e pacincia. Funcionava igual bomba atmica. Eu no sabia que Joo Jeremias, meu sogro, tambmtinha um prego onde pendurava a correia. A Diola me enganou bonito. Acreditei que a nervosia dela era culpa do Jeremias, um craque.

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Alegrezas

Eu o vi a ltima vez misturando massa em cima de uma laje. Parou descansando a mo no cabo da p e me pediu a bno, o primeiro afilhado que ganhei na vida. Chama-seGeraldo Magela, o Maja, por conta da piedade de sua me que o ps no mundo no dia do santo. Toda vida senti por ele um amor meio sem paz. Voc no gostaria, Geraldo,de fazer datilografia, cursar o ginsio noite? Tenho vontade no, t bom assim. Ganhar um salrio melhor? No, o meu d e sobra, t muito bom, graas a Deus!Ento, Deus te abenoe. At que comeou a beber, a beber, a beber. Quando de colo, sua me contava: sa com ele na rua e foi uma voz s a falar da boniteza! Era,me lembro bem, uma criana plcida, das que no do trabalho, s choram de fome, ou dor de barriga. A me esmerou-se, primeira comunho, crisma, medalha milagrosa,vacinas, deveres de casa, as ms companhias: prendo ele em casa mesmo, mas com o Carlitinho da Vicncia ele no brinca, no, de jeito nenhum, menino mais desesperado,dia e noite na rua, rodeando o boteco do Antenor, mas de jeito nenhum que eu no deixo. No entanto, percebia, ou foi de novo outra

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de minhas formidveis projees?, a me amargurava-se com a platitude do filho, com a sua, para mim ao menos, irritante inrcia. Tirei recuperao em geografia,fui despedido, arranjei outro emprego, tou pensando em casar, o pai t doente, tudo comunicado sem mudana no rosto, sem alterao na voz, sempre velada. Bebeu pormuitos e seguidos anos, depois parou. H muito no bebe mais. No aparece, no reclama, no pede nada, s agradece com real gratido. Real e permanente como o mostramsua cara e o modo de se despedir. Deixa voc com a sensao de ter-lhe dado sempre valioso presente. Seria, se fosse aos humanos possvel, a pomba sem fel, masno . Retido em seu fgado, d sinal de existncia. Mas, Geraldo, voc, em tratamento, pegando lata de massa nesse peso? Problema no, madrinha. No tem problema?O doutor falou que, ah, se a senhora quiser ver eu trago o exame. 'Se a senhora quiser ver', um laivo de existncia? Ousadia na voz e no oferecimento, um sinal devida nos olhos? Perguntou de novo, incomumente: a senhora quer ver? A doena como vida, j vi outras vezes, a importncia possvel, a existncia, enfim. O que deuerrado com o Geraldo? Nada. Fui visit-lo e vi que esta histria de 'a doena como existncia' foi literatura da minha parte, no que respeita a ele, claro, porqueisto existe e posso provar. Me recebeu como sempre, isto , feliz, e foi

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dizendo como se continussemos uma conversa: a senhora ainda tem a cachorrinha preta? Eu queria tocar no assunto doloroso, mas ele no dava seguimento. 'Quero ahorta aqui e os canarinhos ali.' Me parecia estar naqueles sonhos em que a voz no sai. GERAAAALDO! ACORDA, GERALDO MAGELA! A senhora chamou, madrinha? No, no,estou pensando alto, tenho mania. s vezes eu penso tambm. ? Voc pensa alto? Voc tambm? , eu fico achando que no mundo, por mais ruim que sejam as coisas,o bem vence no fim. Empolgou-se: olha a minha vida, s me aconteceu coisa boa, nunca que o bem ficou por baixo, graas a Deus! Falou com orgulho e admirao doCarlitinho da Vicncia, aquele que sua me achava ser muito m companhia. Virou advogado, ele disse, j tem stio e dois carros, meu colega de infncia, o que a vida! Como algum sofre de olho azul, o Maja sofre de alegria. dom, que se pode fazer? Se fosse compositor ia fazer um samba: "eu sofri tanto mas no doeu",verso ruim, nem de longe comparvel ao "eu era feliz e no sabia". Mas no msico, s um filho de Deus que no descobriu o pecado. Quando descobrir vai chorarde alegria pela graa alcanada.

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Dona Geres! Olinda me gritou do porto. Desisto de esperar que fale meu nome certo. Veio mancando me avisar que sentia demais mesmo no poder aproveitar o ingressopr festival, 'por conta que uma faca caiu bem no peito do meu p e fez um furo e o doutor encomendou: todo cuidado pouco devido a 'feco. J tinha at passadoesmalte pra poder ir, dona Geres, mas olha aqui. Levei s um ponto, por causa que a ponta da faca era fininha demais'. Olinda tinha enfaixado o p em no sei quantosmetros de bandagem. Pisava com extremos cuidados e falava, falava e falava recontando o caso, a sorte do cunhado ter passado justo na hora, levando ela pr ProntoSocorro e o mdico atencioso que parecia uma moa, bem novinho e bonito: dona Olinda, a senhora no me deixe 'feccionar este p, ouviu? T bem assim? Mas, Olinda,eu j lhe disse, voc vai comigo, vamos de carro, no vai forar o p nem um pouco. 'No, dona Geres, lhe agradeo muito a bondade da senhora querer me levar decarro, mas no vai dar mesmo. O doutor, meu deus, esqueci o nome dele, encomendou muito pra eu no fazer extravagncia.

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Melhor eu ficar quieta.' Sentou-se e cruzou as pernas pegando, com cuidados de cirurgio, a perna com o p doente e colocando-a sobre a outra. Seus olhos brilhavamde satisfao, de reconhecimento vida que lhe permitia tamanho osis. Furara o p com uma faca de ponta fina, no deu pra acabar o almoo, teve que ir ao ProntoSocorro e enfaixou o p assim e assim e o doutor falou assim e assado e o cunhado na volta passou na farmcia e pagou a pomada pra ela, que satisfao, meu deus, vida boa! Nem -toa, nem grave, um bom machucado, suficiente pra lhe dar bom repouso. Tininha ia cuidar de tudo. Ela, quando muito - se fosse sentada -, ia picarverdura e ensaboar roupa. S aceitou o caf, com delcia, principalmente porque busquei uma almofada: Olinda, descanse o p aqui, enquanto voc lancha. Aceitoucomo as rainhas aceitam o escabelo dos servos. Eu queria muito, muito mesmo, que ela fosse ao recital, porque gosto dela demais e porque inacreditvel como umacartola de mgico, um permanente espanto para mim. com certeza vai esconder do Incio que foi ao Pronto Socorro. No vai correr o risco de ele estragar sua performance.Ainda bem que o Incio hoje t na empreiteira, falou. Eu estava certa. Era bom demais, folga da cozinha, folga do Incio, tinha mesmo que aproveitar, pensei, concordandocom ela. Saiu com mais cuidados ainda. Vi quando

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parou na porta de dona Fuinha, contando sua boa desventurana. De l, com certeza, ia gritar pra Tininha lhe ajudar a atravessar a rua. Deu trs passos e gritoufoi a mim: Dona Geres, olha que coisa, toma aqui o bilhete, j ia carregando ele de volta, tem base? Obrigadinho por tudo. Mancando e feliz, Olinda, a que machucouo p! Era excelente ter um aposto, tal qual Clia, a cantora!

O almoo

Fui convidada e achei muito bom. Ia comer lula. Ia, porque no comi. A mesa posta, braos cruzando-se sobre as saladas preliminares, algum disse, faminta e inocentemente,servindo-se de um jardim de alfaces: vou comer isto agora, porque depois s quero saber de lula com arroz. Eu tambm, no via a hora. Porm, outro nefito em frutosdo mar, caiu na infelicidade de perguntar sobre lulas, onde se pesca, se compra, como se prepara e etcteras. Uma inquietao insinuou-se em meu nimo, at alito feliz. Achava que estragava um pouco o repasto, ficar falando da vida pregressa da iguaria, ao menos naqueletom que comeava a ficar sfrego demais. Enfim,Catarina chegou com a travessa de lula, guarnecida de espesso, maravilhoso creme de leite. Vamos comer, eu pensei e j ia minha parte, com a coragem restaurada,quando o anfitrio perguntou moa: voc cortou os tentculos, Catarina? Achei tentculos uma palavra excessiva para o momento e reacomodei-me no fundo da cadeira,cedendo a vez. Uai, respondeu a moa, no cortei no, seo Artur, fiz com os tentacos. Tentculos, garras, filamentos, teria unhas? Lembrei

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anriqussimas aulas de cincia, seres filiformes em movimento. Ai, gemi para dentro, inventando um modo de no comer a lula, sem ningum perceber. No tem importncia,falou seo Artur sem ver que passava a lngua nos lbios. Por que ningum se controlava ali? Me ajuda, Senhor, rezei, ainda no curada de pavores ancestrais de tudoque frio e mole. At dois dias a caf com po, sempre que o Juvenal aparecia procurando por meu pai: ser que o senhor me deixa arrancar umas iscas no quintal?A palavra isca para sempre associada quelas de quem no dizia o nome. Iscas de fgado no restaurante? Tem que ter este no me? No se tem mesmo sossego. Ser queuma regresso me curava disto, uma anlise, uma terapia, uma benzeo? Juvenal me cumprimentava pegando na mo, a mesma com que arrancava as iscas. E precisavafalar arrancar? Terra tem dois erres, arrancar, tambm, aquelas tais moram na terra. Queria naquela hora estar no deserto, terra rida onde nem uma bacteriazinhatem sucesso, sol quente, areia quente e poeira. Aquilo sim, parecia filme. Filme...? Pois no acharam de botar num deles o ttulo de A Isca. Vi na locadora e spor causa do nome no levei. Que pena, o dia tinha comeado to bem. Ten-t-cu-los, repetiu um comensal animado, em direo travessa, corrigindo Catarina, enquantosua mo direita sobre o fundo do prato movia os longos dedos para trs, imi-

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tando um caranguejo nadando. Foi a conta. Pedi licena e fui me resolver no banheiro. A famlia prosseguiu, encantada, providenciando 'outra coisa pra ela comer,coitadinha, grvida assim mesmo'. No no, pensei, mas fiquei quieta. Era mais prudente no entrar em detalhes.

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Ascese e antipirina

Parece que o papa est pensando em canonizar um casal. Adoro o papa, mas toro pra ele no fazer bobagem do tipo:'... porque mesmo em tal estado (o do matrimnio,onde homem e mulher dormem juntos) no faltam frutos de santidade...' Ai, quero ar. Tia Zina a esta hora comea a ficar insuportvel, vai me aporrinhar pra valer.Mudei em alguma coisa, sim. Tempos atrs pedia, tira meu medo, Deus. Hoje digo, estou com medo, meu Pai, me abraa. Contudo, continuo pedindo que Ele aumente minhaf. Ontem minha cabea doa tanto, at tomei umas gotas de navalgina, como diz a Maria Dalva. Achei to ruim ter tomado as gotas, depois considerei: uma mulher comf no uma mulher enfezada e acreditar que novalgina cura dor de cabea tambm milagre. Fiquei livre do escrpulo de ter procurado alvio, fiquei mais mansa.A Soninha chega a qualquer hora, resolvi ter pacincia com ela, que venha e encha quantas latas quiser de po de queijo, cada um faz o que sabe, no mesmo? Continuareia mulher que sempre fui, mas de um jeito, como direi, salvfico, oferecendo ao homem a margem suportvel de perigo, mistrio e so-

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frimento. So pensamentos que, se eu escrever ou falar, parecero copiados. No fosse tia Zina precisar tanto de mim, ia me dedicar mais a entender eu mesma o queacabei de descobrir. Entre as mulheres a guerra atmica, nos vrios sentidos desta palavra bomba. Tirei isto de onde? Estou rindo de qu? Sabina deixou um recortede jornal debaixo da minha porta: APARIO DE NOSSA SENHORA EM MINAS GERAIS! gozao dela comigo, porque a vidente tem o mesmo nome meu e ela pensa que vou saircorrendo para ver a apario. Boba, Nossa Senhora est na minha casa e me esperando, pra me ajudar a dar banho em tia Zina, sem fazer careta. Sabina emprega muitomal a palavra mstica. Tivesse ela que dar banho em tia Zina, descobriria com quanta gua e sabo se faz um santo. Falo sem soberba, no quero menos.

Queijos

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Faz tempo que ele apareceu com aquela histria de que a me tinha recebido alta do hospital e no tinha meios de levar a velha pra casa, cobravam l uma taxa emais isso e mais aquilo, aperturas de todo lado e a me, com certeza, coitadinha, no corredor da enfermaria, com aquela blusinha rala, as canelas cinzentas defrio, j esfarinhando de to velha, tristeza... Teodoro embarcou na conversa do sujeito, acrescentando, por conta de sua prpria piedade, todos os detalhes climticosda histria. Enfim, morreu com os vinte e cinco mil cruzeiros - naqueles tempos de moeda podre - para o Carioca ao menos carregar a me pra casa. Amanh de tardepasso aqui, o folgado ainda falou, a conta de chegar com a velha na casa do meu irmo que at acho que o senhor conhece muito, aquele que trabalhava na construoem frente da sua residncia e o senhor serviu ele muito de gua gelada, conforme ele muito agradecido at hoje, nunca esqueceu. Pois , seu Teodoro, a SantssimaTrindade h de pagar o senhor com o dobro. vou indo que a pobre da velha t de alta e sem poder sair. Brigadinho, at amanh ento. Foi um ms, dois, trs,

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um ano, o Carioca desaparecido at que a Prefeitura criou a Feira das Quintas, bem perto da nossa casa. E quem apareceu na inaugurao? Ele mesmo, com sua cargapreciosa debaixo da lona. S queijo, do Serro, canastra, palmira, da roa, at importado, daquele bem amarelo, pintado com tinta prpura, defumado, uma barracabem rica, de comerciante em ascenso, prestes a comprar uma caminhonete de muitas cilindradas. Teodoro olhou tudo sem pressa, elogiando, conferindo na cabea osvalores e decidiu-se: me d desse, daquele, daquele outro l e v l, mais um pedao deste amarelo aqui, desse duro, bom pra macarronada. O prspero tinha at maquininhade somar, um pioneiro em barracas de rua. com os queijos debaixo do brao, o Teo falou: pois , seo... como mesmo a sua graa? Como vai passando vossa me? Minhame? , que esteve internada, muito ruim no hospital. Ah! Devera, t bem melhorzinha agora, graas Santssima Trindade, disse inquieto e receoso, encarando Teodoropela primeira vez. Bem melhorzinha, seo... seo... Teodoro, aquele que te emprestou os vinte e cinco mil para o senhor tirar a me da enfermaria, t lembrado? Mastou sim, seo Teodoro, at, olha a coincidncia, combinei com a minha esposa inda hoje, cedinho, que fechando a barraca passava na sua residncia pra saldar meucompromisso, claro, imagina o senhor, estive fora, viajando por motivode servio, o senhor h de... No esquenta no, Carioca. Quanto somaram os queijos? Os queijos? Ah, os queijos deu tudo muito pouco, tudo junto trinta mil, mas...No, no, no, fao questo, sua dvida comigo de vinte e cinco mil, a minha com o senhor, agora de trinta. Toma aqui os cinco. Deu a nota pr Carioca que seps em brios: de jeito nenhum, seo Teodoro, o senhor no me deve nada. Teodoro saiu com o embrulho. s pra ele aprender, disse quando chegou em casa com o cargueirode queijos. Depois disso o Carioca quebrou e se refez um monte de vezes. Nos cumprimenta com cerimnia. Est de novo na feira. Quanto a Teodoro e eu, comemos menosqueijo que antes. S a Santssima Trindade no sofreu mudana.

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Antnios

Era um frio maior pois doa nos ossos e vrias razes o explicam, a memria que apaga ou aviva contornos, os agasalhos muito ralos e baratos, ou a camada de oznioainda intacta sobre nossa cidade. Todos tiritavam: 'nunca vi tanto frio como em junho deste ano!' Celebrvamos Santo Antnio e s os muito doentes mesmo, ou os declaradosateus, no iam ao Santurio que ficava lotado. De primeiro a treze de junho rezvamos a trezena e os santoantoninhos contrapartida das coroadeiras de maio - entravamao final da missa, vestidos de frade, para levar os lrios at a imagem, que era a de um moo bonito que bulia comigo. A cada ano o mesmo encantamento, sua curtavida relatada dia por dia, seu nascimento fidalgo, seu nome civil, sua vocao, sua f ardente, seus eptetos magnficos: Martelo dos Hereges, Terror dos Demnios!Ai, meu deus, se aquela linda mo enorme pousasse um pouco o livro sagrado e alisasse minha cabea, com certeza eu ia tambm ser uma santa de dar gosto. Tia Monae tia Virgnia ficavam sempre juntas e adoravam a hora dos pedidos, porque se julgavam umas catlicas muito finas e troca-

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vam cotoveladas e olhares quando a pobre da Concessa pedia uma 'graa particular', querendo ser fina como as duas zombadeiras. Particular, sei, t pedindo pracasar, diziam as duas. Tambm loucas pra casar, pediam de modo 'fino' assim: uma graa para obter a conformidade com a vontade de Deus. s vezes o povo ria, quandosaa um papelzinho assim: moradora do Crrego do Barro pede a graa de entelhar o barraco. Minha me pedia para eu escrever sempre: a graa de nos livrar da morterepentina. At a Maria Corra, a portuguesa de m vida, que provocava em minha me atrao e terror, levou em nossa casa um bilhete para se juntar aos nossos: paraque o Tonico, filho dela, ficasse livre da asma. Logo ela, portuguesa que nem nosso amadssimo santo, tinha tanta vergonha de aparecer na igreja. A me ficou meiosem saber se era ortodoxo pr bilhete de rameira no meio de nossos imaculados papis, mas foi vencida pela misericrdia, olhou para o Toninho nosso, meu irmo, edisse: coitada, ela tambm me, e qual a me que no quer ver o filho so? Deus pai, leva o bilhete da Maria Corra tambm. Grande graa do santo que, enquantoentelhava barracos, curava asma e conseguia cursos de datilografia para rapazes plidos, tocava nosso corao brbaro com as finuras do amor cristo. Como eu quisser menino para levar lrios e cantar: ", glria de Portugal, querido An-

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tnio!" Nenhum relato posterior alcanou o encanto daquelas pregaes sobre sua vida, o milagre dos peixes, pintado abaixo do coro de nossa igreja, o milagre damula que dobrou os joelhos diante do Santssimo Sacramento, para converter o herege, seu dono blasfemador."Meu grande Santo Antnio, ostenta teu poder, as graas do Altssimo, me queira conceder..." assim que se canta no cu, eu pensava. Penso at hoje que sou grande e no duvido um segundo de que a Maria Corra e eu somos xifpagas, entendi por merc de SantoAntnio.

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Corpo

Cortei as unhas outro dia mesmo e vejo que j pedem tesoura. A unha tem que crescer. De alguma oculta maneira entendemos esta lei, unha e cabelos crescem. No entanto admirvel que cresam e se deixem cortar sem dor. Ter unhas j de si fascinante. Existindo, protegem as pontas dos dedos. Se no as tivssemos, os dedos noprecisariam proteo, mas se as temos e elas os protegem, no h para mim meios de imaginar que dedos com unhas no sejam uma necessidade rigorosa da vontade divina.So assim, porque s assim poderiam ser. Cai por terra o acaso, esse deusinho de barro, e tal qual as unhas, todo meu corpo ganha necessidade e beleza, o corpo jovem,o corpo que fica velho. Corpo, este hspede estranho da alma. Tenho fome, ele diz ao esprito, necessito descanso, grita margem do desespero, no quero morrer,no me deixa morrer, me leva contigo, alma piedosa. To parecidos tua boca e teu nus, usinas ruidosas, entendo Deus, no a ti. A quem serves? Se tanto te estranho,quem s? Que queres comunicar-me em meio de tanta dor? O que humano horroriza porque a alma primeira, vem antes de ti, corpo, a necessidade em

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Deus. "Este meu corpo, comei-o, este meu sangue, tomai-o." como ter unhas, no se pode mudar o que assim : Deus tem um corpo e, como quem pede ao amante,pe tua mo sobre a minha para que o meu medo acabe, nasce e morre entre ns pedindo compaixo e gua. "Tenho sede." Minha pele, meu limite onde crescem plos emanchas e ainda assim desejo mstica e silncio para sinfonia e poemas. Debilita-se o corpo em tempo e guerras? Mas a alma o perdoa, quer lev-lo junto para ondenascem as palavras. s magnfico, diz ela agradecida, a quem lhe empresta lngua e ouvidos. Irmo asno, servo fiel e bom, minha incompreensvel contraparte, amo-te,reconheo-te, vem. No Senhor ressuscitado se via o lugar dos cravos, "Pe teu dedo sobre a chaga em meu peito", disse Ele a um Tome incrdulo. Comeu com eles quemviera da morte, comeu peixe com eles. O Corpo, o Corpo! o Senhor, disseram prostrando-se. Eu nunca mais quisera levantar minha cabea da terra para sempre adoraro que, tendo sangue, pulsaes e vsceras, diz numa voz que s de imagin-la subtrai-me a conscincia: Sou o Teu Deus, no temas, lava e beija meus ps, traz-mede encontro ao peito e diz-me como se diz aos meninos assustados: pra de chorar, eu estou aqui.Meu pai saa de madrugada para "adorar o Santssimo". Usando opas vermelhas, por uma hora in-

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teira ficavam, ele e os adoradores, diante de um sacrrio aberto, louvando e pedindo graas. A intervalos clamavam: "Ns Vos adoramos Santssimo Senhor Jesus Cristoe Vos bendizemos, porque pela Vossa Santa Cruz remistes o mundo." Remistes o corpo, eu digo, tenho agora um corpo para adorar, o corpo de Deus, um corpo que poroculta e misteriosa maneira eu sei que o corpo dos homens.

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Civilizao e calores

"De Coqueirinho ao Rio num moderno nibus executivo." A faixa amanheceu na esquina da minha casa. Oba! At que enfim as carroas vo pra sucata. Durou pouco a festae seu melhor foi esperar pela primeira decepcionante viagem. O nibus novo continuou parando nos mesmos pontos de caf e almoo, todos, menos um, com banheirosnojentos e comida duvidosa. O prprio, isto , o nibus, tinha ar condicionado e televisozinha, duas, passando do comeo ao fim da viagem o mesmo filme brasileiroruim. No se podia apagar a coisa porque 'tem gente que dormiu na primeira sesso, minha senhora, e tem direito reprise'. A janela no se podia abrir porque 'nossoar condicionado'. 'Nosso ar', coitado do motorista, obrigado, depois de velho, a decorar aquelas baboseiras. Um pasto to bonito l fora, a poeira maravilhosae eu sem aproveitar o ar do mato, respirando com apenas metade do meu fole, preocupada. Vi no sei onde que ar condicionado ar reciclado e aquelas tosses todase espirros... Ah, nem ar, meu deus, se pode ter ao vivo. A moa passou com a bandeja: gua, senhora? Caf, senhora? Jornal, senhora?

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Uma moa que ia se coar toda e beber gua de torneira, assim que se visse longe, sua fineza to falsa quanto o brinquinho que lhe tremelicava nas delicadas orelhas.Por que ser que ningum falava a lngua que sabia? A estrada t melhorando bastante, com certeza isso. Numa rodovia esburacada difcil manter a pose. Voc de Coqueirinho?, perguntei menina. Sou. Emprego est difcil, meu pai achou muito ruim eu ser rodomoa, mas minha me convenceu ele, disse animada. Se eu nogostar, eu saio. A confeco fechou. Gosto mesmo de costura. Adoro. A senhora aceita mais caf? Aceitei. Que viagem! Em todo caso, melhorzinha que esta de agora,com ar natural - em termos - e pessoas condicionadas que no abrem a janela de jeito nenhum. Estou num vago nazista levando judeus aos fornos. Tenho medo de medar uma coisa e eu comear a gritar. Posso pedir ao moo da frente para puxar o vidro, mas perigoso ele me dar a entender que no suporta mulheres no climatrio.No sei se tenho foras para isso agora. As janelas do teto podem ser abertas. Por quem? Ser que s eu sinto calor no mundo? No quero puxar conversa com o velho,pode ser daqueles que conversam demais e eu quero ar. A viagem no tem fim. Na certa cochilei e devo ter gritado com o solavanco da nave no sonorizador, porquetodos me olhavam. O que que me deu? Sonorizador! Tudo to moderno!

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O resto dos passageiros feliz? Por que s achei este lugar, nesta vidraa emperrada? Tem jeito no, dona, falou com muita preguia o moo da poltrona da frente,'esse trem t enferrujado'. Prefiro o nibus de ar condicionado, falei com o Teodoro quando cheguei em casa. Prefere nada, ele disse, o executivo para o Rio agora EXECUTIVE-SE. Voc mesmo, no final do carro, pega o caf, que ficou mais morno e mais doce. gua uma bobagem, porque em qualquer parada a gente pega gua.Tiraram as televises, uma boa, e o povo t aproveitando os suportes vazios pra botar bugigangas e, pior de tudo, sumiram com aquelas mocinhas rodomoas bonitinhas.S sobrou o que no precisava, as janelas lacradas, porque 'nosso ar condicionado', voc sabe. O bom humor de Teodoro me fez cair em mim. Havia pensado em botarno jornal uma carta aberta sobre o pssimo servio de transporte de humanos, mas concedi-me: certas aflies ntimas tornam piores o que de si reles e mais fcilde resolver. Estou sem humor, o que sempre pssimo. vou melhorar primeiro.

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O cidado

com sua melhor roupa, tentava soletrar nos guichs o nome da sua biboca. Tem um comeo de bcio, os dentes superiores saltados e o ar parvo e assustadio de quems pensa em linha reta, solicitado e aturdido pelo alto-falante, a moa chamando: 'senhores passageiros para o Canjica, faltam cinco minutos, ocupem seus lugarese...' Fala muito afetada e diferente. O homem no sabe se ela falou mesmo Canjica. Deus o livre de pegar o nibus errado e ir parar no Benfica, lugar de gente atrasada,ele pensou. E tinha mais, tudo numa hora s, uma televiso ligada no alto da parede, moas passando pano no ladrilho e os choferes passando em grupos, conversandosabidos, com muita tenncia, homens com o ombro no lugar. Profisso de motorista d respeito, falou baixinho sem perceber que falava. Voltou a si e conferiu amala pela dcima vez: o despertador, a receita, os remdios, o automovinho de plstico, o guarda-chuva de dobrar, o registro de Santa Luzia. Olhou prs lados, apalpouo bolso, fez que ia se levantar e voltou atrs. Conferiu o fecho da mala, tornou a olhar a sua volta, pensando, sem saber que pensava: porqueira. No Canjica eu

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sou desasnado. A placa, mais fcil de soletrar, anunciava churrasquinho. Desenharam o anncio com tinta preta, as carnezinhas no espeto pareciam trs quadradinhosde carvo. Riu daquilo: eta povo bobo! Isso lhe deu coragem, uma bobeira daquelas! Alou a mala e foi ao balco. Pega a ficha primeiro, a moa disse. Hein? A ficha,s Z, a ficha. Baixou a cabea, coando a testa. Ele no pitava, no sabia fazer nada parecido com o que fazia o moo do seu lado, pedindo caf e mexendo no botodo rdio, tudo numa hora s, com um feitio muito positivo. Aqui, s Z, pega a ficha aqui. Vai querer churrasquinho tambm? Estamos em promoo. Promoo? T bom.No senhora, no como carne na sexta. S o caf puro, tou servido. Anh! Achou o caf meio sem graa, mas se achou mais altivo, enfim aprendera: primeiro a fichano caixa, depois o caf no balco. Mas tinha vocao suicida. Ao invs de voltar pr banco e saborear a cidadania recm-adquirida, aventurou-se um pouquinho mais:O pastis de qu? A mocinha no teve piedade: tem de carne, de queijo e de beijo. Brigadinho, falou com o corao aos pulos e agora com perigo de esquecer amala e o que viera fazer na cidade. Ai, no acabava nunca, era um embarao atrs do outro. Moas bem destemidas, pensou, ele, o Servulino que nunca falara a palavrabeijo, mas sabia o que era, ora se sabia. Sentiu saudade da mulherzinha dele,

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boa, boa. Se tiver coragem, quando chegar em casa dou um beijo nela. Cidade at que bom pra certas coisas. Olhou se a passagem continuava no bolso da algibeirae - audcia! - cruzou as pernas. Viu? Ningum nem olhou. Balanou o p embotinado e consultou o relgio de pulso maneira dos pioneiros que comeavam a sacar seuscelulares. ATENO PASSAGEIROS PARA O CANJICA. Tem de carne, de queijo e de beijo? Moa de cidade! Co'efeito! A ficha no caixa, bonito, melhor que na caixa! Levantou,o passo firme, e foi fazer o que j tinha aprendido, despachar a mala. E, audcia de novo: botou as mos nos bolsos, enquanto esperava! Se algum do Canjica o visseali ia contar em casa: tinha um sujeito na rodoviria, a cara do Servulino, o papinho, a dentua, tudo igualzinho, mas no era ele no, alguma coisa estava diferente.Vai ser parecido assim! Eta vida variada! Foi o que o Servulino falou antes de entrar no nibus e seguir pr Canjica.

99Olinda

Nem bem chegou, foi dizendo, os olhos fixos em mim: minha vida d um romance, dona Geres. Vi que no adiantava debater-me. Era anzol poderoso aquele, caprichadamenteretorcido e afilado em anos de rejeio e sofrimento. Em meu prprio proveito, decidi relaxar. De verdade no tinha nada urgente pra fazer. Queria apenas ficar sozinha,bem nos fundos da casa, pensando no avio acidentado, naquele carvo com forma humana que a televiso mostrava, morto que uma hora antes levantara-se, fizera abarba, tomara caf e ainda soprara migalhas do seu punho engomado. Queria organizar na cabea aquele horror, descobrir uma lgica no caos. dose, a Olinda prosseguiucentrada em seu prprio e ntimo desastre: 'ele faz desse jeito, chega em casa com os bife j tirado, pe na geladeira e manda eu fritar dois s pra ele sozinho.Eu e os meninos comemos sem carne e sem mistura, afora couve e chuchu, porque verdura que d l em casa. No acostumo com passar falta. Se ele me ver conversandoaqui com a senhora, ai, ai, porque, nossa senhora, t doido, n? Ai, ai! Mas homem assim mesmo, n?' Escuta, Olinda, por que

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voc no frita um bendito bife pra voc e os meninos? Seu marido no fica trs dias por semana na empreiteira? Uai, porque ele ps tranca na geladeira. Saio assimpra conversar um pouquinho com a senhora, porque s vezes fico meio agoniada, di aqui, , fico entalada, tomo bicarbonato sem parar. Deixa eu ir, t quase nahora dele chegar e hoje eu posso ver a novela. Ia perguntar se ele trancava tambm a televiso, mas no precisava, Olinda j havia respondido. O desastre do aviocomeava a se enquadrar perfeitamente. Queria lhe perguntar se ela ainda gostava do Incio, mas achei imprudente. Deus me livrasse de bancar o psiclogo naquelatristeza de vida. Fiz o que pude na hora: Olinda, ganhei uns ovos e no vou deixar voc sair sem levar alguns. Que isso dona Geres, como que a senhora adivinhouque eu gosto de ovo?

Jakeline

Estava na cozinha tagarelando sem descanso, escutei do porto. O advogado na certa enganava ela. Tinha acabado de pagar a ltima prestao dos quatro salrios queele cobrou pra cuidar de provar que o pai do menino dela era o filho do dono da "Doces e Balas Queridinha". Sabe?, ela disse, eu sei que ele o pai, tou carecade saber, mas na lei diferente, no ? Precisa de exame de laboratrio, exame de deeneal. Sei no, dona Clia, eu tou achando este advogado meu meio esquisito,parece que ele t de tramia com o advogado deles. Me disseram que advogado ganha dos dois lados. Ser? Pior que j paguei ele. A senhora precisava ver quando elel, o pai do menino, veio o juiz intimou ele -, eu quase morri de vergonha. Minha casa era uma baguna s, o quintal muito sujo de folha seca e eu tinha acabadode chegar do posto, por causa daquelas crises que a senhora conhece, uma feira s, e aquele carro na minha porta. Mas tem uma coisa, me tratou otimamente, passoua mo na cabea do menino, perguntou o nome, do que que ele gostava. Oh! falou, igual eu, tambm adoro rodeio, mexida com cavalo. O menino estourava,

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porque afinal, com treze anos, era a primeira vez que punha os olhos no pai. S teve uma coisa chata, veio com o irmo dele, advogado tambm. Preferia tivessevindo sozinho. Era mais bacana, eu acho. Outra coisa chata foi que, quando a visita acabou - mas tudo muito educado, nem parecia aquele de quando me fez o filho-, pediu licena, levantou a ponta da toalha da mesa, vergonha, minha casa naquela baguna, preencheu um cheque pr menino. Essa hora eu tive raiva. Cheque! Quecheque!? Agora eu tou querendo outra coisa, mas criana no entende nada, no ? O menino, dessorando de gosto, o pai preenchendo o cheque com uma mo e coma outra alisando a cabea dele. Aceitei, porque educao eu tenho e no ia criar caso com uma bobagem dessas. Entrou no carro e foi embora prometendo que tudo seriamelhor resolvido depois do deeneal. Me disse, educadssimo tambm, que o advogado irmo dele trabalha pr laboratrio onde vai ser feito o exame de apurao e, seele for o pai mesmo... A fez uma pausa e tomou dois goles do caf emendando: olha aqui, dona Clia, seja l o que der no resultado, cumpri minha obrigao de contarpr meu filho quem o pai dele. Que o pai eu tenho certeza. Primeiro, porque fui eu quem fez a besteira, segundo, por causa das bochechas, igualzinho nos doise, terceiro - s lembrei quando o danado tinha ido embora -, ele

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preencheu o cheque com a mo esquerda. canhoto ele que nem o menino! Animou-se de novo a outro gole de caf e levantou-se: No quero nada dele, e, se for s metadedo salrio que o juiz obrigar, eu dispenso. Criei o filho sozinha, no preciso de esmola. S quero reconhecimento, s isso. O menino ficou to encantado que pediu: me, mexe com justia no, t bom assim. Entrou no carro do pai e perdeu a fala. Coitadinho, qu