acostumar-se a tudo

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Acostumar-se a tudo? Leandro Konder  Jornal do Brasil - 26/07/03 A gente se acostuma praticamente a tudo. sso ! "om? sso ! ruim? A resposta - ine#it$#el - !% isso ! "om e ! ruim. &en 'o( #e)amos. *ossa elasticidade( nos sa capaci dad e de ada pt a+'o( tem perm iti do ,ue so" re# i#a mos em condi+es muitas #ees "astante ad#ersas. Lem"ro-me de ,ue o escritor rancs &aint-1up!r contou( uma #e( so"re como o a#i'o caiu em cima de montan4as geladas e como o piloto conseguiu so"re#i#er durante #$rios dias( enrentando o rio( a ome( a dor e in5meros perigos( adaptando-se s circunstncias para( na medida do poss8#el( poder domin$-las.  *unca es,uecerei o )ustiicado org ul4o com ,ue ele alou% 99: ,ue eu i( nen4um "ic4o )amais aria99. ;or outro lado( a capacidade de adapta+'o pode uncionar como mola propulsora de um mecanismo oportunista( de uma acilita+'o resignada aceita+'o de coisas inaceit$#eis. < um en=meno ,ue( inelimente( n'o ! raro. Acontece nas mel4ores am8lias. ;ode estar acontecendo agora mesmo( com #oc( ,ue est$ lendo este )ornal. >uando nos acostumamos a #er o ,ue se passa em #olta e come+amos a ac4ar ,ue tudo ! 99normal99( deiamos de energar as 99anormalidades99( deiamos de nos assustar e de nos preocupar com elas. : poeta espan4ol ederico @arcia Lorca este#e nos 1stados nidos em C2C/C30 e icou assustado com *o#a DorE. 1n,uanto os turistas( como nFs( icam mara#il4ados com a imponncia dos pr!dios( Lorca se reeria a eles como 99montan4as de cimento99. 1n,uanto os turistas admiram a ,ualidade da comida nos magn8icos restaurantes( Lorca se espanta#a com o ato de ningu!m se escandaliar com a matan+a dos animais. ;ara alimentar a popula+'o da megalFpole( eram mortos diariamente( segundo o poeta( G mil4es de patos( mil4'o de galos( H mil4es de porcos( mil4'o de #acas( mil4'o de cordeiros. 1m seu poema :icina denuncia( ele ala nos 99intermin$#eis99 trens de sangue e de leite ,ue #ia passarem( de madrugada. 1 ala( tam"!m( e m trens de rosas algemadas 99pelos comerciantes de perumes99. A insensi"ilidade se generalia( a indieren+a em rela+'o aos animais se estende( ineora#elmente( aos seres 4umanos. A mesma m$,uina ,ue tritura os animais( esmaga as #acas e suoca os seres 4umanos. Lorca interpela os ,ue se "eneiciam com esse sistema( in#este contra a conta"ilidade deles% 991m"aio das multiplica+es/ 4$ uma gota de sangue de pato./ 1m"aio das di#ises( 4$ uma gota de sangue de marin4eiro99. Acusa os detentores do poder e da ri,uea de camularem a dura realidade social para a-la aparecer apenas como espa+o de rudes entretenimentos e #ertiginoso progresso tecnolFgico. urioso( "rada% 99Iuspo-l4e s na cara99. < poss8#el ,ue alguns aspectos da rea+'o do poeta nos pare+am eagerados( unilaterais. Ainal( *o#aDorE tam"!m ! lugar de cultura( tem museus mara#il4osos( encena pe+as magn8icas( a um ecelente cinema( apresenta espet$culos musicais ant$sticos. : eagero( por!m( a)uda @arcia Lorca a c4amar a nossa aten+'o para o 99lado noturno99 dessa 99ace luminosa99 de *o#a DorE. 1 *o#a DorE( no caso( #ale como s8m"olo das contradi+es ,ue est'o enraiadas em praticamente todas as grandes cidades modernas. :s 4a"itantes dessas cidades tendem a iar sua aten+'o em al4as ,ue podem ser sanadas( em deeitos ,ue podem ser superados( em eridas ,ue podem ser curadas por um tratamento tFpico. alta-l4es a percep+'o de ,ue determinadas ,uestes sF poderiam ser eeti#amente resol#idas por uma mudan+a radical( atra#!s de um no#o modelo. &F um modelo no#o de cidade permitir$ ,ue se)am pensadas e postas em pr$tica solu+es para os impasses a ,ue c4egaram as nossas megalFpoles. : ,ue ! pior do ,ue ter gra#es pro"lemas? < ter gra#es pro"lemas e se recusar a recon4ec-los. A condena+'o do poeta le#anta ,uestes para as ,uais n'o temos( atualmente( solu+es #i$#eis. Lorca nos presta( contudo( o rele#ante ser#i+o de nos co"rar ,ue as encaremo s.

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Texto de Leandro Konder sobre a naturalização realizada no quotidiano

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7/17/2019 Acostumar-se a tudo

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Acostumar-se a tudo?

Leandro Konder –Jornal do Brasil - 26/07/03

A gente se acostuma praticamente a tudo.sso ! "om? sso ! ruim?A resposta - ine#it$#el - !% isso ! "om e ! ruim.&en'o( #e)amos. *ossa elasticidade( nossa capacidade de adapta+'o( tem permitido ,ue so"re#i#amos emcondi+es muitas #ees "astante ad#ersas.Lem"ro-me de ,ue o escritor rancs &aint-1up!r contou( uma #e( so"re como o a#i'o caiu em cima demontan4as geladas e como o piloto conseguiu so"re#i#er durante #$rios dias( enrentando o rio( a ome( a dor ein5meros perigos( adaptando-se s circunstncias para( na medida do poss8#el( poder domin$-las. *unca es,uecerei o )ustiicado orgul4o com ,ue ele alou% 99: ,ue eu i( nen4um "ic4o )amais aria99.;or outro lado( a capacidade de adapta+'o pode uncionar como mola propulsora de um mecanismo oportunista(de uma acilita+'o resignada aceita+'o de coisas inaceit$#eis.< um en=meno ,ue( inelimente( n'o ! raro. Acontece nas mel4ores am8lias. ;ode estar acontecendo agoramesmo( com #oc( ,ue est$ lendo este )ornal.

>uando nos acostumamos a #er o ,ue se passa em #olta e come+amos a ac4ar ,ue tudo ! 99normal99( deiamos deenergar as 99anormalidades99( deiamos de nos assustar e de nos preocupar com elas.: poeta espan4ol ederico @arcia Lorca este#e nos 1stados nidos em C2C/C30 e icou assustado com *o#aDorE. 1n,uanto os turistas( como nFs( icam mara#il4ados com a imponncia dos pr!dios( Lorca se reeria a elescomo 99montan4as de cimento99.1n,uanto os turistas admiram a ,ualidade da comida nos magn8icos restaurantes( Lorca se espanta#a com o atode ningu!m se escandaliar com a matan+a dos animais.;ara alimentar a popula+'o da megalFpole( eram mortos diariamente( segundo o poeta( G mil4es de patos( mil4'o de galos( H mil4es de porcos( mil4'o de #acas( mil4'o de cordeiros.1m seu poema :icina denuncia( ele ala nos 99intermin$#eis99 trens de sangue e de leite ,ue #ia passarem( demadrugada. 1 ala( tam"!m( em trens de rosas algemadas 99pelos comerciantes de perumes99.A insensi"ilidade se generalia( a indieren+a em rela+'o aos animais se estende( ineora#elmente( aos seres

4umanos. A mesma m$,uina ,ue tritura os animais( esmaga as #acas e suoca os seres 4umanos.Lorca interpela os ,ue se "eneiciam com esse sistema( in#este contra a conta"ilidade deles% 991m"aio dasmultiplica+es/ 4$ uma gota de sangue de pato./ 1m"aio das di#ises( 4$ uma gota de sangue de marin4eiro99.Acusa os detentores do poder e da ri,uea de camularem a dura realidade social para a-la aparecer apenas como espa+o de rudes entretenimentos e #ertiginoso progresso tecnolFgico. urioso( "rada%99Iuspo-l4es na cara99.< poss8#el ,ue alguns aspectos da rea+'o do poeta nos pare+am eagerados( unilaterais. Ainal( *o#aDorE tam"!m ! lugar de cultura( tem museus mara#il4osos( encena pe+as magn8icas( a um ecelente cinema(apresenta espet$culos musicais ant$sticos.: eagero( por!m( a)uda @arcia Lorca a c4amar a nossa aten+'o para o 99lado noturno99 dessa 99aceluminosa99 de *o#a DorE. 1 *o#a DorE( no caso( #ale como s8m"olo das contradi+es ,ue est'o

enraiadas em praticamente todas as grandes cidades modernas.:s 4a"itantes dessas cidades tendem a iar sua aten+'o em al4as ,ue podem ser sanadas( em deeitos ,ue podemser superados( em eridas ,ue podem ser curadas por um tratamento tFpico.alta-l4es a percep+'o de ,ue determinadas ,uestes sF poderiam ser eeti#amente resol#idas por uma mudan+aradical( atra#!s de um no#o modelo.&F um modelo no#o de cidade permitir$ ,ue se)am pensadas e postas em pr$tica solu+es para osimpasses a ,ue c4egaram as nossas megalFpoles.: ,ue ! pior do ,ue ter gra#es pro"lemas? < ter gra#es pro"lemas e se recusar a recon4ec-los.A condena+'o do poeta le#anta ,uestes para as ,uais n'o temos( atualmente( solu+es #i$#eis. Lorca nos presta(contudo( o rele#ante ser#i+o de nos co"rar ,ue as encaremos.