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TORNAR-SE VADIA: AÇÕES EDUCATIVAS DE UM MOVIMENTO FEMINISTA Carolyna Ferreira Barroca PUC-Rio Introdução Este artigo é parte das primeiras reflexões de minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós Graduação da PUC- Rio, cujo objetivo principal é compreender as práticas educativas que fazem parte da rotina de luta da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Buscarei aqui apresentar algumas considerações sobre as possibilidades educativas do movimento em questão. O trabalho foi dividido em três partes, iniciando com algumas considerações sobre as observações realizadas nas manifestações ocorridas no dia 8 de março no centro da cidade do Rio de Janeiro. A segunda parte apresenta um breve histórico do movimento, desde a sua eclosão em Toronto até as suas primeiras ocorrências no Brasil. Abordarei ainda algumas características da Marcha, tendo como fonte outras pesquisas que também estão em andamento ou foram recém concluídas sobre o movimento. No terceiro momento, apresentarei algumas considerações teóricas acerca das possibilidades educativas que podem ser vislumbradas e vivenciadas dentro dos movimentos sociais, tendo como premissa o aprendizado pelo trabalho, por meio da prática (CANÁRIO, 2006). Um dia ressignificado Como resultado dos primeiros contatos com o movimento, enquanto objeto de pesquisa, pude perceber que a Marcha das Vadias é um tipo de movimento social que surgiu em um contexto social e político em que os excluídos passaram a protagonizar suas demandas, não dependendo mais de outras instituições políticas para tais. A discussão acadêmica sobre o tema, que possui diferentes focos, me possibilitou a constatação de que a multiplicidade e o diverso substituíram o centralismo e, em certa medida, o formalismo de outras formas de atuação coletiva. Diferente da atuação de outros movimentos que, historicamente, atuaram em parceria com instituições partidárias de esquerda, a Marcha se

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TORNAR-SE “VADIA”: AÇÕES EDUCATIVAS DE UM MOVIMENTO

FEMINISTA

Carolyna Ferreira Barroca

PUC-Rio

Introdução

Este artigo é parte das primeiras reflexões de minha pesquisa de mestrado no

Programa de Pós Graduação da PUC- Rio, cujo objetivo principal é compreender as práticas

educativas que fazem parte da rotina de luta da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro.

Buscarei aqui apresentar algumas considerações sobre as possibilidades educativas do

movimento em questão.

O trabalho foi dividido em três partes, iniciando com algumas considerações sobre as

observações realizadas nas manifestações ocorridas no dia 8 de março no centro da cidade do

Rio de Janeiro. A segunda parte apresenta um breve histórico do movimento, desde a sua

eclosão em Toronto até as suas primeiras ocorrências no Brasil. Abordarei ainda algumas

características da Marcha, tendo como fonte outras pesquisas que também estão em

andamento ou foram recém concluídas sobre o movimento. No terceiro momento,

apresentarei algumas considerações teóricas acerca das possibilidades educativas que podem

ser vislumbradas e vivenciadas dentro dos movimentos sociais, tendo como premissa o

aprendizado pelo trabalho, por meio da prática (CANÁRIO, 2006).

Um dia ressignificado

Como resultado dos primeiros contatos com o movimento, enquanto objeto de

pesquisa, pude perceber que a Marcha das Vadias é um tipo de movimento social que surgiu

em um contexto social e político em que os excluídos passaram a protagonizar suas

demandas, não dependendo mais de outras instituições políticas para tais. A discussão

acadêmica sobre o tema, que possui diferentes focos, me possibilitou a constatação de que a

multiplicidade e o diverso substituíram o centralismo e, em certa medida, o formalismo de

outras formas de atuação coletiva. Diferente da atuação de outros movimentos que,

historicamente, atuaram em parceria com instituições partidárias de esquerda, a Marcha se

propõe a ser um movimento em que uma das principais características de sua forma de

organização é a horizontalidade.

Tais características presentes nas diversas Marchas organizadas pelo mundo não são

exclusivas a elas. A ocupação das ruas pelos corpos dos excluídos em formas de marchas,

ocupações e afins ganham maior visibilidade. Fazem parte do surgimento de novas formas de

protesto e de reivindicação social para o atendimento de demandas de certos grupos e/ou

indivíduos que evidenciam o seu descontentamento com o papel desempenhado pelo Estado,

sua estrutura e com aspectos da cultura hegemônica.

Tendo uma visão sociológica como referencial, tais movimentos se estruturam na

forma de redes, enquanto uma articulação política, ideológica ou simbólica (SCHERER-

WARREN, 1999). A partir do estudo de movimentos sociais sob o referencial teórico

europeu, a autora apresenta o conceito de rede enquanto uma área de movimento, formada por

grupos ou indivíduos que compartilham de uma identidade coletiva e que desafiam os padrões

dominantes e que se baseiam em códigos culturais e solidariedades construídas no cotidiano.

Tais características encontram-se presentes na Marcha, evidenciadas nos conceitos de

sororidade, e nas manifestações presenciais por meio de performances e virtuais por meio da

utilização das redes sociais.

A articulação por meio de redes burca uma interlocução entre o global e o local, entre

o particular e o universal, entre o uno e o diverso e interconexões entre as identidades dos

atores envolvidos com o pluralismo. Nas relações oriundas destas articulações, a utilização de

redes sociais tem se mostrado não só eficaz, mas também necessária.

Tais características, mobilizações e visibilidade proporcionam diversas possibilidades

de ensino, que tem como foco a formação social e crítica. Acredito ser importante a

demarcação de meu posicionamento de que a criação da Marcha das Vadias por si só já se

configura como um aprendizado para a nossa sociedade patriarcal, sexista, machista,

homofóbica e com outros tipos de fobias. Motivo de tal afirmação parte da constatação

histórica da posição subalterna que as mulheres ocupam em nossa sociedade e que, a partir

das transformações motivadas por outros movimentos sociais, incluindo principalmente os

movimentos feministas, elas passaram a protagonizar suas bandeiras de luta das mais variadas

formas, dentre elas a Marcha das Vadias.

A grande visibilidade e o crescente aumento de participantes evidenciam que as

formas de atuação dos movimentos feministas sofreram alterações estruturais. Diversas/os

teóricas/os sobre este tipo de atuação abordam o movimento como resultado da Terceira

Onda do Feminismo1. No entanto, é importante ressaltar que a Marcha é fruto também das

próprias contradições vivenciadas pelos modelos de movimentos feministas que atuavam em

espaços mistos2 de militância, mas que também enfrenta as dificuldades de se lidar com o

grande número de identidades de mulheres.

Este trabalho não pretende uniformizar ou hierarquizar as lutas cotidianas, que

ocorrem dentro de movimentos organizados ou de forma autônoma e solitária, em muitos

casos. No entanto, os acontecimentos do ato do dia 8 de março deste ano, no qual a Marcha

das Vadias do Rio de Janeiro foi um dos movimentos organizadores, nos apresentam alguns

elementos nos quais podemos compreender de que forma estes espaços possibilitam novas

potencialidades pedagógicas, onde a aprendizagem por meio da prática se faz presente.

Como proposta de luta para o Dia Internacional da Mulher, a Marcha organizou um

ato no Largo da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2015

em conjunto com outros movimentos feministas independentes. O evento foi aberto e possuía

em sua programação a proposta de “ocupar a praça com muita garra e criatividade para lutar

pela legalização do aborto e pela vida das mulheres!” 3. A convocação e divulgação do evento

se deram por meio das redes sociais, em especial, o Facebook.

A utilização do meio virtual (Facebook, Blog, Twitter, email, YouTube, dentre outros)

se faz bastante presente na marcação de reuniões, divulgação de discussões, convocação das

marchas e divulgação das próprias manifestações, bem como para a publicização de pessoas

ou situações que tiveram autoria na violência de gênero. A circulação de ideias, informações e

tomadas de posicionamento sobre os mais diversos assuntos no meio virtual tem sua

importância para a articulação dos atos. Pesquisas realizadas por meio de questionários

evidenciam que mais de 70% das participantes utilizam bastante a internet, sendo o Facebook

1 Há autores que utilizam o termo “ondas” para caracterizar as diferenças de atuação e bandeiras de luta do

movimento feminista no Brasil e no mundo. No entanto, Gomes e Sorj (2014), que também possuem uma

pesquisa em andamento na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, nos atentam que esta periodização do

feminismo em ondas vem sendo contestada. “Em primeiro lugar, por que a metáfora de “onda” remete a um

processo de constante substituição de feminismos, no qual o anterior se esvai e é sucedido por um novo,

ignorando as linhas de continuidade entre eles” (GOMES e SORJ, 2014, p. 436). Esta periodização em décadas

específicas afeta a teoria feminista, pois conforma a ideia de rupturas radicais, quando o movimento ainda

possui reivindicações que não foram atendidas. A utilização do termo “ondas” homogeneíza a atuação de

diversos movimentos feministas ao longo da história que não se encaixam nessas características fechadas,

invisibilizando as disputas de poder e de luta que ocorreram e ainda ocorrem dentro dos movimentos

feministas em geral. 2 São espaços em que mulheres e homens atuam juntos. No entanto, há diversos relatos de experiências de

machismo nestes espaços, vivenciadas inclusive por mim. Estas ocorrências motivam, cada vez mais, que as

mulheres busquem outras formas autônomas de organização dando origem a diversos coletivos feministas em

todo o mundo. 3 Descrição do evento no Facebook, disponível em: https://www.facebook.com/events/1419345745028641/

Acesso em 3 de abril de 2015.

a ferramenta de acesso mais comum.4 A presença marcante da inclusão digital das integrantes

e simpatizantes do movimento se verifica como algo de importância sumária para o

movimento. Além das funções supracitadas, para a divulgação de espaços de formação e de

atuação, tais como cineclubes e debates que podem ou não ser organizados pela Marcha do

Rio, de outros estados ou de outros movimentos e coletivos feministas.

Tratando-se especificamente da utilização do Facebook, ela divide-se em dois espaços

em que o diálogo entre as integrantes do grupo materializam a atuação em forma de rede. O

primeiro espaço se refere ao grupo fechado do aplicativo no qual estão presentes as

integrantes fixas, as simpatizantes, incluindo homens e o segundo é identificado com a página

oficial do movimento intitulada Marcha das Vadias Rio de Janeiro, de acesso e visualização

públicos.

Entendo o grupo como um local virtual no qual as integrantes do movimento buscam

trocar ideias e também apresentar um pouco mais das suas realidades e dos assuntos que mais

as instigam pessoalmente. Nesse sentido, é possível perceber este local como um meio de

disputa. As convergências são evidenciadas por meio de curtidas e de comentários de apoio. E

as divergências logo se fazem presentes por meio de discussões acaloradas nos comentários

de cada post. Se verificam, portanto, como espaço do promoções de discussões que geram a

necessidade de tomada de decisões e opiniões que são formas de aprendizados na medida em

que também viabilizam a desconstrução individuais e coletivas nesse processo.

Formas de apoio virtual foram observadas nas publicações sobre marcações de

reuniões de organização de marchas anteriores que possuem vários comentários de mulheres

interessadas em ajudar na construção do evento. Tratando-se do grupo fechado, as integrantes

podem expor suas opiniões enquanto indivíduos que fazem parte de um coletivo, e que

defendem, de certa maneira, uma identidade coletiva. Esta relação se configura de maneira

diferente quando observamos a página oficial do movimento.

Ainda não foi possível saber quem é (são) responsável (is) por administrar a página e

gerenciar suas postagens. A frequência de publicações é alta e se materializa sobre os mais

diversos assuntos, tais como, divulgação de eventos frutos de iniciativas de outros coletivos

ou por motivações individuais , divulgação de textos sobre machismo, feminismo, transfobia,

sexismo, homofobias, legalização e criminalização do aborto, denúncias de reproduções

sociais sobre gêneros, etc. A maioria das postagens possuem um pequeno comentário sobre o

que é publicizado evidenciando uma postura crítica ou de apoio sobre o assunto em questão.

4 Ver Name e Zanetti (2013).

Mas o que é importante ressaltar como uma diferença nesses dois espaços é que o primeiro (o

grupo fechado) possibilita que as participantes, enquanto indivíduos produzam suas

argumentações e divulguem qualquer informação. Na página oficial, as opiniões e publicações

são divulgadas enquanto uma opinião e/ou defesa do grupo, do movimento como um todo.

Outra argumentação a qual não podemos ignorar diz respeito à fluidez e inconstâncias

nas militâncias nestes espaços virtuais. São espaços em que as pessoas se manifestam por um

tempo ou que comentam sobre determinados assuntos, ignorando outros. O alcance das redes

sociais, atualmente, é multifacetado, global e em tempo real. Isso facilita que a frequência de

postagens seja regular e elevada. O fato de que as redes sociais se configuram como espaços

virtuais, onde as pessoas que utilizam esses locais não possuem a obrigatoriedade da sua

presença faz com que este espaço ocorra com ou sem a presença de todos os integrantes do

grupo.

No entanto, embora a mídia digital seja constante e frequente, é na materialidade física

das Marchas que se verifica que tais bandeiras não se restringem a militância virtual. A cada

ano cresce o número de adeptas da Marcha, mesmo com suas particularidades e contradições

internas sobre o feminismo e sobre as diferentes formas de lutas que são atreladas às

perspectivas classistas, de gênero e de raça. Tal materialidade física se fez presente no ato do

Dia Internacional da Mulher, no dia 9 de março deste ano.

A temática principal do ato advém da atual discussão no congresso sobre a proposta de

legalização do aborto e somada com a fala do presidente da Câmara dos Deputados de que a

mesma só seria votada “por cima de seu cadáver” 5. O elevado número de mulheres que

morrem por conta da ilegalidade do aborto complementou a pauta de reivindicação do

movimento nesta ocasião. Em decorrência desta opção, um boneco, representando o

presidente da Câmara, foi colocado no chão da praça para que todas as mulheres passassem

por cima dele, dando materialidade à fala do deputado. Performances como esta são bastante

comuns na eclosão das Marchas e possibilitam a tomada de um posicionamento público por

parte das militantes e das participantes do evento. Proporcionam, ainda, o exercício da

imaginação, visto que as performances são livres e podem ocorrer de forma não planejada

previamente.

5 http://oglobo.globo.com/brasil/eduardo-cunha-sobre-aborto-vai-ter-que-passar-por-cima-do-meu-cadaver-para-

votar-15290079. Acesso em 30 de março de 2015.

Outros itens da programação do evento que valem destacar foram as construções de

materiais, microfone aberto e sarau6. Atividades como esta apresentam a potencialidade

pedagógica de dar maior autonomia aos presentes nesta manifestação. Historicamente,

conforme já mencionado, o direito de fala foi e é negado ao sexo feminino e isto é colocado

em evidência neste tipo de construção coletiva de forma espontânea. É bom lembrar que este

tipo de atividade está sendo inserido também em diversos outros movimentos feministas. A

conscientização de que é preciso dar o poder de fala às mulheres é cada vez maior e se

viabiliza como um dos passos que levam à maior autonomia na formação desta

militante/participante.

Outra atividade observada no ato que merece referência foi a de construção e incentivo

à coletividade e sororidade por meio da proposta de formação de uma performance encenada

por todas as presentes onde a ideia era a de que cada participante levasse um sapato a mais

para que o mesmo pudesse representar o número de mulheres mortas por conta da

criminalização do aborto. Ainda na agenda houve a divulgação de um dos atos organizados

para o lançamento da Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro evidenciando que tais

espaços também estão abertos e incentivando outras formas de atuação, sem ignorar as

especificidades de cada identidade presente no coletivo Marcha das Vadias.

Estes foram apenas alguns exemplos dos tipos de vivências que são despertadas no

cotidiano de lutas de movimentos sociais. As práticas descritas nas quais se percebem ações

que buscam o empoderamento das mulheres, a desconstrução das padronizações de gênero e

também o incentivo à solidariedade potencializam outras formas diferentes de aprendizados

que não são comuns aos espaços formais de ensino. Neste tipo de prática pedagógica

(Libâneo, 2007; Canário, 2006) as experiências vividas produzem concepções críticas,

principalmente sobre as questões e temáticas que regem a desigualdade estrutural de nossa

sociedade. A partir daí, novas atitudes podem ser tomadas buscando a promoção da igualdade

e transformação da sociedade. Para compreender melhor este processo, uma apresentação

sobre o contexto de formação da Marcha e sobre o que busco problematizar sobre essas

potencialidades pedagógicas (Libâneo, 2007) se faz necessário.

Mulheres em marcha

6 Atividades também descritas na página do evento no Facebook.

A primeira Marcha das Vadias (SlutWalk) ocorreu em Toronto, Canadá, em 2011. O

caso que desencadeou o evento foi a fala de um policial durante uma palestra sobre segurança

dentro do campus na Universidade de York, após a ocorrência de muitos casos de abusos

sexuais. De acordo com o policial Michael Sanguinetti, uma das possibilidades de prevenção

destes casos de abusos sexuais seria a mudança na maneira de se vestir das mulheres, isto é,

elas não deveriam se vestir mais como sluts (vadias, putas). Tal comentário foi interpretado

como um dos resultados da ótica machista e do controle sobre o corpo da mulher ainda

presente em nossa sociedade.

Devido à visibilidade do caso, em abril daquele mesmo ano, cerca de três mil mulheres

se reuniram no Queen’s Park, em protesto contra todas as formas de opressão à mulher. Após

a ocorrência no Canadá, a Marcha foi realizada nos Estados Unidos, Austrália, Nova

Zelândia, Grã-Bretanha, Holanda, Suécia, Argentina e Índia, dentre outros países (MORAIS,

2013). No Brasil, onde ganhou o nome de Marcha das Vadias, a primeira ocorrência foi em

São Paulo, também no ano de 2011, e se expandiu para outras cidades. A cada ano a Marcha

ganha mais adeptos e mais ocorrências.

A utilização do termo Sluts/Vadias trata-se de uma ressignificação da palavra pelas

manifestantes buscando maior autonomia sobre seus corpos e maior liberdade sexual e social.

A Marcha se inseriu dentro de um novo contexto de luta dos movimentos feministas pelo

mundo e pelo Brasil que defendem a igualdade de condições de gênero. Além da posição de

defesa da mulher, o movimento também reivindica uma luta contrária ao ideal

heteronormativo e monogâmico dominante no contexto nacional.

Por movimento social, Gohn (2011) argumenta ser a compreensão da busca pela

concretização de ações coletivas que possuem um caráter sociopolítico e cultural e que ainda

apresenta inúmeras formas de organização e de atuação. Essas particularidades sugerem

diferentes demandas e ocasionam a formação de diferentes grupos que possuem identidade

própria, mas que não estão impedidos de se relacionar e de formar uma frente de atuação

conjunta em algumas manifestações públicas ou reivindicações que se dão no âmbito jurídico

e/ou legislativo.

A Marcha, materializando a dinamicidade destes tipos de reivindicação, é composta

por mulheres e homens cis e trans, embora estes não tenham participação ativa e constante, ou

seja, não participam como protagonistas da marcha, mas como sujeitos que a apoiam.

Historicamente, a mulher ocupa um lugar secundário nas formações culturais ocidentais7. No

Brasil, a idealização da mulher é datada desde a época da colonização em que mulheres eram

trazidas à Colônia a partir de duas definições binárias, para ser esposa ou para ser prostituta.

A mulher esposa assumiria as tarefas domésticas e a ela seria delegado amplo uso do espaço

privado. Enquanto que ao homem, era incentivado o uso do espaço público. Compreendo

como espaço público não só a participação política, mas também o espaço de fala, o que

acarretava pensamentos e preocupações majoritariamente masculinas, enquanto que os

posicionamentos femininos eram delegados para o lugar da invisibilidade.

Tal mentalidade social tem sido reforçada pela religião e, durante o século XIX,

também foi reforçada pela ciência. A distinção biológica (dimorfismo sexual) foi amplamente

utilizada como fator determinante das funções sociais a serem desempenhadas por elas e eles.

Às mulheres cabia a maternidade, visto que lhes foram assim “determinadas naturalmente”,

devido à capacidade de gestar uma criança, enquanto que aos homens caberiam os trabalhos

intelectuais, externos e o provimento da casa.

Durante o século XIX, a sexualidade estava diretamente relacionada aos aspectos

reprodutivos. Tal contexto fez com que a heteronormatividade fosse colocada no centro das

relações sexuais, bem como os comportamentos delegados aos homens e às mulheres para que

a reprodução da espécie humana se concretizasse. Atrelado a esta discussão, insere-se o

conceito de gênero que é definido e construído socialmente a partir da determinação biológica

visível. Scott (1990) define o gênero como sendo um elemento construído a partir das relações

sociais que são baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Atualmente, a influência

dessas prerrogativas sexuais e sociais ainda embasa argumentações que delegam um lugar

secundário ao feminino.

A partir destas discussões e com as diferenças locais (não somente dentro de sua

ocorrência em diversas cidades do Brasil, mas também no mundo) a Marcha comunga dos

desafios que são colocados hoje ao feminismo. “Em outras palavras, em todos os lugares, a

marcha se depara com a necessidade de gerenciar os critérios que definem quem o feminismo

inclui e exclui” (GOMES e SORJ, 2014, p. 437). As autoras abordam que o sujeito político do

feminismo apresenta-se mais diversificado, não se definindo nem se enquadrando pelas e nas

identidades sexuais e biológicas da mulher.

7 Também há experiência de invisibilização da mulher na cultura Oriental, mas esta não é foco de nossa análise

neste trabalho.

A utilização do corpo é central na forma de atuação da Marcha. É comum em todas as

eclosões do movimento que o corpo assuma o papel de meio de protesto e como reivindicação

de autonomia. Palavras de ordem são escritas em seus corpos, bem como a prática do topless

como subversão à opressão dos padrões estéticos que são impostos, bem como dos padrões de

vestimenta da mulher enquanto todos os homens podem, por exemplo, andar livremente sem

camisa nas ruas sem serem atacados. Harvey (2012) fala sobre a legitimação do uso do corpo

como espaço político no qual o poder coletivo de corpos ocupando um espaço público

continua sendo um bom instrumento de oposição quando o acesso a todos os outros meios

está bloqueado (HARVEY, 2012, p. 61)

O corpo se torna objeto de reivindicação na Marcha na defesa da legalização do

aborto, pautada no empoderamento da mulher sobre si e também em seu posicionamento

contrário à violência de gênero, por compreender que este aspecto ainda é muito marcante nas

relações que se estabelecem em nossa sociedade.

Esta, teoricamente, engloba tanto a violência de homens contra mulheres

quanto a de mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é

aberto, sendo este o grande argumento das críticas do conceito de

patriarcado, que como o próprio nome indica, é o regime da dominação-

exploração das mulheres pelos homens. (SAFFIOTI, 2004, p. 44)

Um dado importante sobre a composição da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro

aponta8 que a maioria das integrantes são mulheres jovens, brancas e com alto grau de

escolarização. Name e Zanetti (2013) apontam ainda que este também é o perfil das jovens

que aderem ao movimento nas ruas. Esta composição gera algumas contradições internas,

visto que o movimento feminista negro, por exemplo, possui as suas particularidades e que

muitas militantes deste movimento não se sentem representadas pela Marcha. É importante

destacar aqui que o movimento feminista negro se diferencia (e reivindica essa diferença) do

movimento feminista organizado por mulheres brancas. Tais diferenças também são

levantadas na questão do uso do termo “vadias”, que possui um peso histórico muito maior

para as negras, não sendo utilizado, nem ressignificado por elas. Exemplos similares também

são percebidos na conjuntura de luta das mulheres trans.

São nestas contradições que se verificam as potencialidades educativas do movimento,

visto que a formação da identidade coletiva passa por todas estas particularidades.

8 Name e Zanetti (2013); Gomes e Sorj (2014).

Tornar-se vadia

Libâneo (2007) alerta para a generalização de conceitos relativos às práticas

educativas visto que as definições formuladas são produto do olhar de diferentes formações.

Partindo da premissa de que a educação se constitui como um processo de desenvolvimento

individual e também das relações interpessoais. A prática educativa é, portanto, sempre uma

expressão de uma determinada forma de organização das relações sociais numa dada

sociedade. Defende que a educação compreende um conjunto de processos formativos que

podem ser intencionais ou não, institucionalizados ou não, que buscam o desenvolvimento

individual e inserção social. A primeira compreende, portanto, todo fato, influência, ação,

processo que ocasiona uma intervenção na configuração da existência humana, individual ou

grupal.

Na mesma perspectiva, Canário (2006) afirma que o ser humano aprende durante toda

sua vida e defende que o trabalho de aprender, desenvolvido dentro do ambiente formal de

ensino, seja substituído por “aprender pelo trabalho” no qual por meio da prática o

aprendizado será de forma mais autônoma e com maior capacidade para o tratamento de

questões relativas à diferença.

A defesa da atuação coletiva é um dos principais pilares de sustentação e de

compromisso da atuação em movimentos sociais. A necessidade de lidar com o diverso,

intrínseca nesse tipo de relação e atuação social, ocasiona a existência de possibilidades para a

construção e reconstrução de conhecimentos sobre si, sobre o mundo e sobre as ações no

mundo. Schütz (2004) argumenta que as atividades desenvolvidas contra as desigualdades e

injustiças sociais geram constantes transformações na percepção de mundo de cada sujeito

que milita num determinado movimento. As mudanças ocorrem por meio da formação

ideológica e da defesa de uma utopia, mas também a partir da adoção e ressignificação de

símbolos para o fortalecimento das ideias e das argumentações, necessárias para externalizar o

discurso proposto.

Neste sentido, as potencialidades das práticas educativas intencionais dos movimentos

sociais podem ser verificadas de forma indireta e quase inconsciente, na medida em que

ocorre por meio de vivências cotidianas e por meio do estabelecimento de novas interações

sociais. Podem ocorrer a partir de uma característica mais formal por meio de cursos de

formação e dos processos de ensino e aprendizagem dos princípios, práticas e documentos do

movimento em questão. Os movimentos sociais se configuram como um local de

aprendizagem diverso e plural, uma vez que as/os militantes e as pessoas que são por estes

aproximadas atuam dentro do coletivo visando a sua expansão, onde as manifestações,

passeatas e apitaços, por exemplos, podem ser apontados como ações motivadoras.

No caso específico da Marcha, a vivência com homens e mulheres cis, transexuais,

transgêneros e homossexuais, bem como as particularidades atribuídas às questões de classe,

de raça/etnia e de identidades e culturas diferenciadas produzem um ambiente bastante

fecundo para que novas formas de aprendizado sejam desenvolvidas. As motivações das sias

militantes possibilitam a recriação e criação de novas identidades que, por sua vez, alteram

visões de mundo e sobre como agir no mundo. Um novo sujeito político se forma a partir da

vivência, do trabalho prático empregado dentro de movimentos sociais, como entendo ser o

caso da Marcha.

Considerações Finais

A pesquisa ainda está em andamento e pretende aprofundar na descrição das

potencialidades educativas vivenciadas na Marcha das Vadias. No entanto, já se pode

observar que, devido ao alto grau de complexidade que o movimento apresenta em sua

constituição e ao fato de se configurar como um movimento novo, este estudo possibilitará

maior diálogo sobre práticas educativas baseadas na experiência e no aprendizado por meio de

ações.

Dentro de ações e atuações como as que foram planejadas e desempenhadas no evento

do Dia Internacional da Mulher é possível perceber de que forma as participantes podem se

formar, sob o ponto de vista de utilização destes espaços para a formação de mulheres que

partilham dos ideiais de solidariedade e respeito à diversidade. Bem como o processo de

criação de identidades individuais e/ou coletivas que são marginalizadas pela cultura

hegemônica baseada no etnocentrismo, na heteronormatividade, no sexismo e em outras

ideologias dominantes. Em momentos como os que foram apresentados ao longo do trabalho,

é possível a percepção de que a transgressão (de gênero, sexo, cultura, etc.) proporcionada e

incentivada por este movimento por si só já apresenta uma possibilidade de aprendizado que

não concorre com a que ocorre em ambientes formais de ensino, mas que, ao contrário,

complementa tais conhecimentos. O perfil de militantes com alto grau de instrução é um dado

que vem a reforçar esta hipótese. A possibilidade de que a Marcha das Vadias, bem como

qualquer outro movimento social, possa ser um espaço privilegiado de formação baseada nos

preceitos de tolerância e de coexistência pode ser a maior contribuição desta discussão.

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