acl a mulher na literatura 19 notas sobre uma poeta inglesa emily bronte odalice de castro silva

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NOTAS SOBRE UMA POETA INGLESA: EMILY BRONTE Odalice de Castro Silva A história das afinidades eletivas ou das famílias espirituais, ficcionalizada pelo romance homônimo de Goethe, pode estabelecer situações bem interessantes, como aquela que reuniu Virnia Woolf (1882 -1941) a Emily Bronte (1818 -1848). Em dezembro de 1904, a autora de ao Farol (1927) gue ainda assinava Virnia Stephen, uma vez gue a escritora só casaria em 1912, com Leonard Woolf, escrevia seu primeiro artigo para jornal, através do prestígio da amiga Violet Dickson, o gual apareceu sem assinatura, no quinzenal The Guardian, a respeito de impressões de leitura de romances das irmãs Ely e Charlotte Bronte. 193

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19 Notas Sobre Uma Poeta Inglesa Emily Bronte ODALICE de Castro Silva.

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  • NOTAS SOBRE UMA POETA INGLESA: EMILY BRONTE

    Odalice de Castro Silva

    A histria das afinidades eletivas ou das famlias espirituais, ficcionalizada pelo romance homnimo de Goethe, pode estabelecer situaes bem interessantes, como aquela que reuniu Virginia Woolf (1882 -1941) a Emily Bronte (1818 -1848).

    Em dezembro de 1904, a autora de Passeio ao Farol (1927) gue ainda assinava Virginia Stephen, uma vez gue a escritora s casaria em 1912, com Leonard Woolf, escrevia seu primeiro artigo para jornal, atravs do prestgio da amiga Violet Dickson, o gual apareceu sem assinatura, no quinzenal The Guardian, a respeito de impresses de leitura de romances das irms Emily e Charlotte Bronte.

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  • O primeiro artigo chama-se "Peregrinao a Haworth", impresses de uma excurso a Yorkshire, para visitar as relquias das irms, autoras de Jane Eyre e O J\!Iorro dos ventos uivantes, ambos os romances publicados em 1847. Charlotte viveria at 1855 e nascera em 1816. Emily viria a falecer um ano aps dar ao pblico sua famosa histria, em 1848.

    No segundo artigo, ''Jane Eyre" e "O Morro dos ventos uivantes", Virginia Woolf apresenta aos seus leitores os elementos que, de forma marcante, deixariam-lhe fundas impresses. Ela escreve para entender a potica dos dois romances, concentrando-se nas inovaes formais da obra de Emily, nas relaes espaciais, na minuciosa descrio dos lugares, na presena forte das cores, para ouvir a elaborao interna das personagens, seus conflitos, uma articulao da vida com a paisagem, a fora dos sentimentos e emoes que atravessam os tempos e continuam a arrebatar leitores na era do ps-moderno e at do ps-livro.

    Os artigos de Virgnia Woolf, que guardam a energia inaugural da leitora crtica, debruada sobre a composio madura e admirvel de Emily Brome, para compreender seu mistrio, e, ao mesmo tempo, para encontrar a escritora nas dobras e entrelinhas do romance, so indcios das afinidades e realizaes que encontraremos em criaes da prpria Virginia, quando esta amadurecer seu trabalho com a linguagem potica e construir seu universo ficcional.

    Nos exerccios iniciais destaca-se um elemento que tambm chamou a ateno de outros leitores entre ns, como Rachel de Queiroz e Lcio Cardoso: que nos incios da elaborao romanesca estava a poesia, uma viso potica na articulao das coisas, destas com as pessoas, destas com o mundo, o espao, o tempo, com os elementos que ordenam e reordenam o cosmos.

    No nico romance de Emily Bronte, no se pode pensar numa espcie de sublimao artstica de seu prprio sofrimento ou de suas prprias feridas; o que impulsionava Emily era sobretudo uma memria de lugares imaginrios, jamais habitados. A memria dos lugares e brinquedos da infncia, de jogos que criavam portas para a fantasia e o sonho trazia a fora da poesia.

    Esta mesma fora construiu resistncias bastantes para impedir que as crianas Patrick, Emily, Charlotte e Anne no sucumbissem

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  • tristeza das mortes sucessivas: a me e as irms Maria e Elizabeth, desde que chegaram a Haworth, em 1820.

    As crianas ganharam do pai um jogo com doze soldadinhos de chumbo e com eles criaram ''Angria" e "Gondal", lugares imaginrios, refgio para os personagens que dramatizavam histrias de batalhas, provas de coragem e bravura, to importantes para o que cada um poderia realizar concretamente na curta existncia que lhes coube viver.

    As frustraes e desencantos foram tematizados em poemas publicados anonimamente, em coletnea das trs irms, sem nenhum xito. Os dois exemplares vendidos deixaram, da parte da crtica, a expectativa de poesia de boa qualidade, aquela assinada como Ellis Bell, o pseudnimo de Emily Bronte, em 1846.

    A poesia no externava to somente angstia ou paixo individual, mas sentimentos experimentados pela humanidade, expressos na "evocao das foras escondidas sob as aparncias da natureza humana, sublimadas diante da imensidade"209, elementos utilizados no romance O Morro dos ventos uivantes, o que lhe confere uma dimenso incomum em relao a outros romances. Esta fora viria das experincias de Emily com a expresso em versos, depois reunidos como Poemas completos, de 1846, carregados de drama e do pathos da dor sem cura.

    O mesmo vento que insinuava entre os fios ondulados dos cabelos da voz potica, sussurrando confisses vindas das entranhas da terra, acercava-se da casa atravs da janela aberta, na alta madrugada pejada de vero, para anunciar uma lua sem nuvens, umedecendo de orvalho os roseirais, abatia o pntano e urrava pelas colinas.

    So imagens que evocam situaes e atmosferas de tenso, como aquelas que envolvem os moradores da Casa em que a paixo de Cathy e Heathcliff alcanar elevados nveis de paroxismo e angstia.

    Do mundo mgico de lugares imaginrios para a criao da Casa da Paixo romntica, Emily Bronte forjou, por trs da aparente indiferena de quem olha de longe, o lema do sofrimento do amor sem correspondncia: "Se podes, por um instante, lamentar o que me aflige, no podes partilhar da minha infinita mgoa", ou, dito com mais dureza: "If I were in Heaven, I should be extremely miserable".

    209 Woolf: 1979; p. 119 195

  • Os acentos apenas aparentemente inconciliveis das falas acima, que nos parecem provir da narradora e de seu eu-potico, emanam naturalmente do corao e do entendimento de quem sufocou sentimentos e emoes por absoluta falta de oportunidade de pratic-los no dia-a-dia da vida nas charnecas de Yorkshire. No entanto, eles explodem nos espaos imensos varridos por ventos que cortavam os galhos das poucas rvores e baixavam as gramneas quase a pisote-las, quando se fazia ouvir como bramido, como um "vento horroroso sobre os Wuthering Heights, de Emily Bronte", no dizer de Otto Maria Carpeaux (1999, p. 194).

    Com esta expresso, o crtico quase lana na categoria do gtico o elemento desencadeador dos medos e tenses do romance, aquele que varre os descampados e atemoriza os personagens enclausurados por meses, como que fugindo dos aoites e rajadas sem piedade.

    As muitas cenas de leitura existentes no enredo de O Morro dos ventos uivantes remetem os leitores indagao bem conhecida de como Emily Bronte construiu seu nico romance, vivendo deslocada do ambiente intelectual de Londres da primeira metade do sculo XIX, portanto, fora dos debates e crculos alimentados sobretudo por jornalistas-romancistas.

    O recolhimento em que viviam as Bronte no as impediu de tomar conhecimento da tradio literria inglesa que constituiu uma herana comum a todos os poetas e prosadores que conseguiram romper as vozes

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  • dos nomes consagrados. Para entender o quadro intelectual e arstico que antecedeu a primeira metade do sculo XIX, quando Emily viveu e escreveu, torna-se indispensvel a composio do cenrio em que as figuras mais representativas se movimentaram.

    Ainda no sculo XVIII, a impresso de que o leitor est lendo um "fato verdadeiro" deve-se ao estilo de Daniel Defoe (1660- 1731) contar suas histrias. Tendo sido jornalista, o efeito de realidade de seu jeito de escrever junta-se imaginao, para fazer de seus romances peas importantes da narrativa inglesa: Mo// Flanders, Robinson Crusoe, histrias em que a f nos poderes da determinao e da razo, oriundos de idias iluministas, alastrava-se pelos caminhos do pensamento.

    O contraponto do racionalismo, propcio stira e ao humor, foi desenvolvido por Jonathan Swift (1667- 17 45), ele que viria a ser o Deo da Catedral de Dublin, escreveu A Tale of tub, ironizando o fanatismo religioso. Na mesma linha sarica, Swift escreveu As Viagens de Gul!iver, no qual desenvolve uma crtica impiedosa crena radical na razo.

    O autor de Pamela e C/arissa Harlowe, Samuel Richardson (1689 -1761 ), considerado pela crtica como aquele que deu status arstico aos relatos romanescos. Pamela um romance epistolar, no qual apresentase "um entendimento da complexidade da personalidade humana e das tenses entre indivduos e sociedade que esperamos de um bom romancista" (CEVASCO: 1985, p. 43).

    As leitoras reconheceram-se nos temas e nas solues encontradas por Richardson para as situaes vividas por seus personagens. De cunho moralistico e portador da realizao de sonhos a frmula richardsoniana encantou as leitoras. O comportamento ntegro compensado, os princpios morais preservados e a mudana de classe social atravs de casamento com nobres transformam as vidas tristes e sem esperana em expectativa de sublimao, pela leitura, da absoluta falta de esperana em ascenso social.

    O romance inicia, ento, com o sonho burgus um relacionamento to ntimo e bem realizado a ponto do gnero ser considerado a forma literria dessa classe.

    Para equilibrar as solues sentimentais e impossveis de contos de fadas dos enredos de Richardson, Henry Fielding (1707 - 1754) construir uma outra imagem para o heri das tramas romanescas.

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  • Joseph Andrews assemelha-se, pelo modelo de heri que vaga pelo mundo aps perder o emprego por ter-se esquivado s tentativas de conquista por parte de sua patroa, a Tom fones, como autntico representante da p1caresca.

    A trama recheada de incidentes que contrabalanam as atitudes e aes do personagem, caracterizando-se como uma pessoa comum, o que, de uma vez por todas, transforma o protagonista do romance numa personagem muito prximo das condies psicolgicas de seus leitores, o que vai garantir ao escritor, a simpatia e identificao daqueles.

    Conviveu com Fielding, o autor de Tristan Shanqy, Lawrence Sterne (1713 -1768), um daqueles criadores de romances resistentes aos enquadramentos crticos, em virtude da autonomia e audcia que ele imprime ao discurso, composio e estrutura de seu livro. Concentrado na liberdade da trama satrica, na quebra da logicidade, nas digresses, nas pginas em branco, Sterne tem desafiado a crtica, ao aproximar-se do experimentalismo dos modernos, que fizeram das ,anguardas artsticas da passagem do sculo XX as marcas de inovaes capazes de dividir a histria do romance em antes e depois do modernismo europeu.

    Os romancistas citados acima viveram e morreram antes de dois marcos importantssimos: a Revoluo Industrial inglesa e a Revoluo Francesa, com todas as conseqncias que eventos do porte deles foram capazes de desencadear em praticamente todas as esferas da Histria e da Vida.

    A passagem, na Inglaterra, de uma estrutura agrria para um estrutura industrial, com um conjunto de agravantes, a migrao das vilas para as grandes cidades, os baixssimos salrios, a necessidade de organizaes de agremiaes em defesa dos direitos mnimos, suscitou da parte dos poetas um sentimento de rebeldia e liberdade, em prol de um poesia livre e aberta a novas formas, capaz de expressar a angstia e a esperana das pessoas comuns.

    Foi um tempo de poesia, bem depois chamada de romntica, uma poesia que acompanhou os passos e os anseios de poetas alemes na expresso de sentimentos evocados por mitos recnditos na alma de cada pessoa.

    Os modelos de inspirao clssica so substitudos pela espontaneidade, pela experincia da vida verdadeira, pelos elementos culturais, da acontecer uma salutar valorizao do folclore, das sagas e baladas

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  • meclievais, elementos guardados pela oralidade, constituindo-se numa poesia nacionalista por excelncia.

    A imaginao, a fantasia, o exotismo so eixos de fora para a poesia reforar, s vezes, o desencanto, a frustrao, a injustia social, os direitos subtrados.

    Lyrical Ballads (1798), de William Wordsworth (1770 - 1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772 - 1834) marca o incio de um estilo romntico de poesia, como evaso natural de sentimentos.

    Um dos mais importantes representantes desta nova forma de expresso dos sentimentos do homem em relao a si mesmos e ao mundo foi William Blake (1757- 1827), defensor da imaginao, criador de O casamento do cu e do inferno, uma das mais ousadas vises das foras internas do homem, em constante conflito, atravs da perversidade que caracteriza a vida entre as pessoas.

    Marcam tambm a poesia romntica inglesa, a infncia, a beleza das paisagens, o extico e o sobrenatural.

    George Gordon (1788- 1824), ou Lord Byron, transformar-se- no representante da poesia romntica, adotando na vida o comportamento que ficcionalizava em versos, como em Don Juan, em crtica hipocrisia, ambio e aos valores opressores da sociedade londrina.

    Ao lado de Byron, Percy Bysshe Shelley (1792 - 1822) foi outro poeta romntico que se notabilizou pela defesa dos rejeitados e oprimidos.

    Completa-se o conjunto dos poetas romnticos com John Keats (1795 -1821), criador de uma poesia caracterizada pela conscincia do efmero, do amor, da beleza.

    Antes de morrer, aos vinte e seis anos, Keats escreveu A Bela dama sem piedade, a mulher sedutora dos romnticos, de perversa beleza e irreduvel fascnio.

    O apogeu da poesia convivia com a concretizao do romance como um dos mais importantes gneros literrios de entre os sculos. Com Walter Scott (1771 - 1832), o romance histrico conhecer consagrao na preferncia dos leitores, como Invanhoe, com enredo situado na Idade Mclia inglesa.

    Em contraponto, a vida de nobres e pessoas ricas da provncia, o clia-a-clia das relaes sociais dominam a obra de Jane Austen (1775

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  • - 1817), cujos personagens em obras como Emma, Orgulho e Preconceito vivem os incidentes domsticos aparentemente desimportantes, mas marcados pela sutileza e ironia de sua criadora, to necessrios quanto os versos inflamados que clamavam por justia para os abandonados e oprimidos, o refugo da sociedade.

    Os temas amenos de Jane Austen fazem parte de uma forma de vida distante das terrveis condies dos trabalhadores das minas de carvo, das dificuldades de moradia, da ruberculose que matava sem piedade.

    O sculo XIX, na Inglaterra, marcado pelo estilo burgus de viver, de ser e tambm de ler. Relatos de experincias de vida em que os leitores se reconheam so os preferidos.

    Aos poucos, por volta da dcada de 1830, nota-se certo enfraquecimento do jeito romntico em favor do romance realista ou seno que as duas formas convivem para que o gnero pudesse aliar uma apresentao da vida de forma mais real a um necessrio sentimento de iluso e sonho.

    Charles Dickens (1812 - 1870) publicou em folhetins mensais e alimentou o imaginrio do leitor ,-itoriano com Pirkwick Papers, Oliver Twist, David Copperfield, Great Expectations. So romances em que Dickens tematiza a crtica social, a necessidade de mudanas, a urgncia da solidariedade, da bondade, da justia.

    O romance de Dickens uniwrsalizou-se pelo tratamento de temas constantes da vida: o egosmo, o nonsense, a ambio, o mal, antecipados em Retratos Londrinos, uma coletnea de crnicas para jornais londrinos, antecipando o realismo que marcaria o seu estilo: um trabalho muito bem realizado entre crnica jornalstica e a fico (Rollemberg: 2003, p.12).

    " O mesmo Dickens que se traveste de cronista por excelncia da classe mdia incipiente, com suas manias e seus sonhos de ascenso social, tambm aquele que se mostra a um s tempo maravilhado e abismado com a quantidade de 'coisas modernas' que comeam a invadir o seu dia-a-dia. Desde o lampio a gs, passando pelos dirigveis e seus intrpidos condutores, at chegar a novas construes pela City londrina e a novos meios de transporte como os cabriols e os nibus . . . "

    Mas, antes que Dickens preparasse uma prosa htbrida que entusiasmava os leitores com seus quadros to prximos da vida real e da

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  • experincia da cidade que j passava de um milho de habitantes, para fixar a ambientao artstica, no poderamos deixar de referir, neste cenrio de poesia e romance, de jornalismo e crnica, a pintura de Turner (1775 -1851) e John Constable (1776-1837).

    Para Kenneth Clark, "Constable nunca duvidou de que a natureza significasse o mundo visvel da rvore, da flor, do rio, do campo, do cu, exatamente como se lhes apresentavam os sentidos" (1995, p. 300).

    Este culto da simplicidade expressa uma comunho vida/Natureza, capaz de projetar o movimento da arte em prol de uma simbiose sonhada dos moinhos, diques velhos e podres, postes brilhantes, muros de tijolos, so imagens que me transformaram em pintor, e eu lhes sou grato". (Id. Ib. p.301)

    Ao lado de Constable, Turner pintou a beleza de uma natureza estetizada pela viso intuitiva que mais tarde sero chamadas de impresses: "a transformao de tudo em pura cor, a luz transmitida como cor, os sentimentos sobre a vida transmitidos como cor". (Clark: 1995, p.304).

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  • E assim, como efeitos de luz, Turner pintou o movimento do nascer do sol, as tempestades, neblinas que se desfazem, desaparecem fora do calor, deixando ao espectador a construo dos traos invisveis da trama, trama feita de ondulaes, movimentos, impresses que ferem a retina, os ouvidos, a experincia integrada dos sentidos, para ensinar mente, ao entendimento, ao intelecto, novos rumos para aproximar vida e arte.

    Com Constable e Turner abriam-se os caminhos das impresses da luz sobre as coisas, os objetos, as pessoas, os elementos na natureza, desfazendo as convenes que nos diziam como deveramos v-los; da em diante, uma conscincia nova para as possibilidades de vermos outros ngulos do mundo, atravs de uma nova tica.

    '"Wuthering Heights o nome da residncia do Sr. Heathcliff.' Wuthering um provincianismo que descreve o tumulto atmosfrico a que este local est sujeito em poca de tempestades. E com efeito ali em cima deve haver, em qualquer tempo, ventilao pura e salubre. Pode-se fazer uma idia da fora do vento norte naquelas alturas pela curvatura excessiva dos poucos e raquticos abetos nos fundos da casa e por uma fila de magros espinheiros de ramos estirados para um lado s, como se implorassem uma esmola do sol" (Bronte: 1995, p.16).

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  • Emily Bronte dispunha de tudo que precisava para criar uma das mais belas realizaes romanescas: a complexidade de uma linguagem que trouxe da poesia as metforas capazes de instalar conflitos que afastam qualquer nota de obviedade ou superficialidade quer para a trama, quer para a composio das personagens, em si mesmas marcadas pelo paradoxo dos romnticos.

    A estes elementos conjugam-se o tratamento que ela conferiu ao tempo, desmembrando-o em temporalidades que atendessem, seja aos trs momentos da narrativa, seja ao momento da escrita, entregando ao leitor diferentes quadros para ele compor a linha do enredo, compreendo a infncia de Cathy e Heathcliff, a fuga e o casamento, isto , o desaparecimento de Heathcliff na noite de tempestade e o casamento de Cathy com Linton e o desfecho, ou seja, o encontro de Hareton e Catherine.

    O espao, responsvel pelo isolamento das personagens, tem, no terreno inspito e no vento que circula pelas colinas e montes, o grande peso de dramaticidade da narrativa, em grande parte a garantir os ambientes sombrios de dentro da casa Earnshaw e das vastides varridas pelas tempestades selvagens; em contraponto, a casa civilizada por Linton.

    As oposies entre as casa estabelecem as grandes antteses do romance de Emily Bronte, marcando a ambivalncia que caracteriza o personagem romntico.

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  • A aristocracia dos Linton e a rusticidade selvagem e instintiva dos Earnshaw refletem e representam as lutas internas, os conflitos de indivduos em afirmao, buscando entender em si mesmos a dualidade, a inverso, a seh-ageria de paixes descontroladas, a inquietao da incerteza.

    A linha paradoxal do enredo ser representada por Heathcliff e Cathy, personagens que desafiaram a ordem e as convenes como crianas rebeldes; quando jovens, a Cathy competir romper o voto de fidelidade a seu amigo e, depois da fuga e da clebre confisso "I am Heathcliff ", casar-se com Linton, proprietrio de Thrusheross Grange, realizando a completa infelicidade de ambos, ou melhor, dos trs.

    Misteriosamente, como acontece a personagens mergulhados no mito, Heathcliff retorna trs anos depois, transformado num cavalheiro, com modos refinados, rico e determinado, como nunca, a reaver o que sempre julgou seu.

    Como o casamento de Cathy com Linton poderia mudar seus sentimentos para com Heathcliff, embora o primeiro fosse um representante da cultura e da civilidade? O instinto e a impulsividade, smbolos da ambivalncia da personagem, predominam, impedindo um apaziguamento de emoes como as que dominam a ao do romance.

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  • O ponto alto da narrativa define tambm o conceito de amor e de vida no romance: "l'vleus maiores sofrimentos neste mundo tm sido os sofrimentos de Heathcliff; fui testemunha deles e senti-os todos desde o comeo. Meu maior cuidado na vida ele. Se tudo desaparecesse e ele ficasse, eu continuaria incapaz de ter parte dele. Meu amor por Linton como a folhagem da mata: o tempo h de mud-lo como o inverno muda as rvores, isso eu sei muito bem. E o meu amor por Heathcliff como as rochas eternas que ficam debaixo do cho; uma fonte de felicidade quase invisve mas necessria. Nelly, eu sou Heathcliff. Sempre, sempre o tenho no meu pensamento. No como um prazer, porque eu tambm no sou um prazer para mim prpria, mas como o meu prprio ser. Portanto, no fale mais em separao: impraticvel". (Bront 1995, p.78)

    Entre o romantismo e o realismo, O morro dos ventos uivantes usa o princpio da liberdade e dos instintos, a ambivalncia dos sonhadores, para provocar nos leitores a dvida, a inquietao, de que, apesar da individualidade ter sido a grande bandeira da gerao de Emily Bronte, as convenes sociais continuam a sufocar os gritos dos inconformados.

    Uma certa paz s ser possvel atravs dos filhos da paixo: Hareton e Catherine, compondo uma unio de diferentes, o que era impossvel com os representantes dos que se viam como reflexos um do outro.

    Para Rachel de Queiroz que traduziu este belo romance, comentando sua profunda admirao por Emily Bronte: "Tudo que ela quis dizer da sua vida, da sua alma, dos seus sonhos singulares, di-lo no romance e nos poemas, no romance principalmente. Parece que nele ps quase tudo que trazia guardado no peito e morreu do livro como se morresse de parto (1995, p.11).

    Pouco sabemos sobre a escritora, as informaes sobre sua curta vida so parcas; mas, o seu romance, a cada dia, seja atravs da leitura, nas muitas lnguas que o acolheram, seja nas verses para o cinema, ganha admiradores.

    So cento e sessenta anos, em 2007, sem perder em nada a fora de sua linguagem, o poder de seus personagens em nos convencer da autenticidade de suas almas conflituosas, da ambientao e da atmosfera que arrastam o leitor para um tempo sem tempo, que pode ter sido o de Emily, que pode ser o de qualquer um de ns, ao descobrir outras formas para o que chamamos de tempo.

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  • As vozes arrastadas pelo vento gelado da noite so prolongamentos de uma personalidade apaixonada que soube contar a histria de Heathcliff e Cathy para ns, hoje, como tem encantado seus leitores h quase dois sculos, e encantar, enquanto subsistirem o mistrio e o sonho da poesia, o tumulto e o pranto, o conflito e o desassossego da alma.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BRONTE, Emily Jane. O Morro dos ventos uivantes. Trad. de Rachel de Queiroz. Rio de . The Complete Poems. England: Penguin Books, 1992. Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1995.

    CEVASCO, Maria Elisa e Siqueira, Valter Lellis. Rumos da Literatura inglesa. So Paulo: tica, 1985.

    CLARK, Kenneth. Civdizao. Trad. Madalena Nicol. So Paulo: Martins Fontes, 1995.

    MANGUEL, Alberto e Guadalupi, Gianni. Dicionrios de Lugares imaginrios. Trad. de Pedro Maia Soares. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

    ROLLEMBERG, Marcello. "Um caso de jornalismo fantstico". ln: Dickens, Charles. Retratos Londrinos. Rio de Janeiro: Record, 2003.

    WOOLF, Virginia. Les Fruits tranges et brillants de l'arl. Trad. Sylvie Durastanti. Paris: ditions des femmes, 1983.

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