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1 ACIDENTES DE TRABALHO: CONTEXTO SOCIAL, PROCESSO E CULTURA DOS TRIBUNAIS 1 2 Albino Mendes Baptista Mestre em Direito Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa I Em 1.º lugar, agradeço ao Supremo Tribunal de Justiça, na pessoa do seu Presidente, o convite formulado, felicitando-o pela realização deste evento. Agradeço, em particular, e de forma sentida, a circunstância de estar aqui pelo 2.º ano consecutivo. Quando se convida alguém para voltar à nossa casa, é porque consideramos essa pessoa, sendo, por isso, uma enorme honra este regresso ao tribunal supremo do país, tanto mais que tenho a consciência profunda, como muitas vezes sublinho junto dos meus alunos, de que os tribunais são um dos redutos fundamentais do Estado de Direito Democrático. Cumprimento os meus colegas de mesa que, na diversidade, nos ajudam a compreender melhor os problemas e a encontrar as soluções jurídicas mais adequadas. Finalmente, cumprimento todos os presentes, manifestando o enorme gosto em me dirigir a um auditório tão qualificado. II 1 Corresponde à Intervenção feita no “Colóquio Anual sobre Direito do Trabalho”, subordinado ao título “O Contrato de Seguro e os Acidentes de Trabalho”, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que teve lugar no seu Salão Nobre no dia 15 de Outubro de 2008. 2 A análise que aqui se fará é a que se julgou adequada a uma intervenção oral, com naturais limitações de tempo. Procedeu-se a uma selecção de alguns aspectos que se julgaram mais relevantes, que carecem seguramente de desenvolvimentos adequados a um outro contexto.

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Page 1: ACIDENTES DE TRABALHO: CONTEXTO SOCIAL ......13 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, cit., p. 5. 5

1

ACIDENTES DE TRABALHO: CONTEXTO SOCIAL, PROCESSO

E CULTURA DOS TRIBUNAIS1 2

Albino Mendes Baptista Mestre em Direito Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa

I

Em 1.º lugar, agradeço ao Supremo Tribunal de Justiça, na pessoa

do seu Presidente, o convite formulado, felicitando-o pela realização

deste evento.

Agradeço, em particular, e de forma sentida, a circunstância de

estar aqui pelo 2.º ano consecutivo.

Quando se convida alguém para voltar à nossa casa, é porque

consideramos essa pessoa, sendo, por isso, uma enorme honra

este regresso ao tribunal supremo do país, tanto mais que tenho a

consciência profunda, como muitas vezes sublinho junto dos meus

alunos, de que os tribunais são um dos redutos fundamentais do

Estado de Direito Democrático.

Cumprimento os meus colegas de mesa que, na diversidade, nos

ajudam a compreender melhor os problemas e a encontrar as

soluções jurídicas mais adequadas.

Finalmente, cumprimento todos os presentes, manifestando o

enorme gosto em me dirigir a um auditório tão qualificado.

II

1 Corresponde à Intervenção feita no “Colóquio Anual sobre Direito do Trabalho”, subordinado ao título “O Contrato de Seguro e os Acidentes de Trabalho”, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que teve lugar no seu Salão Nobre no dia 15 de Outubro de 2008. 2 A análise que aqui se fará é a que se julgou adequada a uma intervenção oral, com naturais limitações de tempo. Procedeu-se a uma selecção de alguns aspectos que se julgaram mais relevantes, que carecem seguramente de desenvolvimentos adequados a um outro contexto.

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Uma palavra sobre o tema desta mesa-redonda, “Acidentes de

Trabalho: Contexto Social, Processo e Cultura dos Tribunais”.

Trata-se de uma escolha inteiramente feliz, porquanto a temática

dos acidentes de trabalho (como muitas outras) ultrapassa as

fronteiras do jurídico e obriga a um estudo multidisciplinar3. Esta

abertura a novas áreas do conhecimento aproxima o Direito da vida,

potencia o conhecimento das limitações do jurídico e ajuda a

encontrar soluções mais ajustadas às mentalidades e à cultura do

país. Dir-se-ia mesmo que a inevitável valorização das vertentes

sociais e culturais aconselha humildade do legislador, diálogo

intenso com os operadores judiciários e prudência e contenção

legislativas.

III

O problema dos acidentes de trabalho é um problema sobretudo de

direitos humanos. Como sublinhava Hegel, “Ser pessoa e respeitar

os outros como pessoas é a essência do Direito.”

Depois, como há mais de 4 décadas escreveu GUILHERME DE

VASCONCELOS, a matéria dos acidentes de trabalho, mais do que

qualquer outra, “deve corresponder aos critérios e aos ideais de

uma superior justiça social.”4

Quem trabalha para viver e para se realizar como pessoa deve viver

num ambiente de trabalho seguro. A afirmação é seguramente

consensual, mas os números são muito preocupantes.

Em 2005, o Bureau Internacional do Trabalho (BIT) da Organização

Internacional do Trabalho (OIT) estimou que 2,2 milhões de

3 Vd., por exemplo, SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, Lisboa, 2008, p. 44. 4 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, Curso de Direito Processual do Trabalho, Lisboa, 1964, p. 154.

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pessoas em todo o mundo morrem anualmente de acidentes de

trabalho e de doenças profissionais. Calcula-se que todos os anos

ocorrem 270 milhões de acidentes de trabalho não mortais

(resultando em, pelo menos, três dias de falta ao trabalho) e 160

milhões de novos casos de doenças profissionais5.

Portugal, como se sabe, é um dos países da União Europeia mais

afectados por acidentes de trabalho e que apresenta níveis de

sinistralidade laboral mais elevados6. Em 2004 verificaram-se 197

acidentes mortais e em 2007 morreram 163 trabalhadores vítimas

de acidente de trabalho (mais seis do que em 2006), o que revela

que o número de mortes continua a não diminuir de forma

significativa7. O sector da construção civil é o responsável pelo

maior número de mortes (cerca de 50%) 8, sendo a principal causa

a queda em altura9.

Relativamente aos acidentes de trabalho em geral verifica-se uma

evolução, no essencial, positiva, mas ainda com resultados muito

preocupantes. Registe-se que o número de acidentes de trabalho

foi em 1991 de 293.886, em 1997 de 214.326, em 2000 de 222.780

e em 2003 de 229.41010.

5 Vd. o Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, intitulado A Minha Vida. O meu Trabalho. O meu Trabalho em Segurança. Gestão dos Riscos no Ambiente de Trabalho, que pode ser consultado em www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisboa/pdf/28abril_08.pdf. 6 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., pp. 20 e ss. 7 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, 15 de Setembro de 2008, em www.act.gov.pt. Os acidentes mortais objecto de inquérito em 2005 e 2006 foram, respectivamente, 169 e 157. Segundo dados de 2007, num total de 163, as empresas até 9 trabalhadores registaram 68 acidentes mortais e as empresas com mais de 50 trabalhadores registaram 43 acidentes mortais. Até 15 de Setembro de 2008 tinham sido contabilizados, por referência ao ano em curso, 80 acidentes mortais objecto de inquérito. 8 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, já citado. 9 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, já mencionado. 10 “Relatório das Actividades de Segurança e Saúde no Trabalho”, de 2007, da ACT, que pode ser consultado em www.act.gov.pt.

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O problema da elevada taxa de sinistralidade que existe em

Portugal não é um problema dos acidentados. É um problema da

comunidade. E certamente de respeito pela lei e pelo Direito.

A nossa lei fundamental elenca entre os direitos dos trabalhadores

a prestação de trabalho em condições de higiene, segurança e

saúde11 e a assistência e justa reparação quando vítimas de

acidente de trabalho ou de doença profissional12.

Mas, ter-se-á de levar em linha de conta ainda que a República

Portuguesa, nos termos do art.º 1.º da CRP (de que pouco se fala),

baseia-se na dignidade da pessoa humana e está empenhada na

construção de uma sociedade justa e solidária.

Em todo o caso, não subscrevo um discurso que impute toda a

responsabilidade em matéria de segurança e saúde no trabalho

aos empregadores e às empresas.

A segurança e saúde no trabalho exigem um esforço

concertado dos governos, dos empregadores, dos

trabalhadores e da comunidade em geral.

A OIT calculou recentemente que os custos económicos globais dos

acidentes de trabalho e das doenças profissionais perfazem o

equivalente a 4% do Produto Interno Bruto mundial – mais de 20

vezes o montante da ajuda oficial ao desenvolvimento13.

A ausência de adequados níveis de protecção resulta em

absentismo e desmotivação dos trabalhadores e origina

incapacidades permanentes, com elevados custos sociais e

económicos.

11 Art.º 59.º, n.º 1, alínea c), da CRP. 12 Art.º 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP. 13 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, cit., p. 5.

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Em Portugal, segundo dados do ano de 2000, os trabalhadores

estiveram ausentes durante 840 609 dias devido a acidentes de

trabalho (sendo a média de dias perdidos por acidente igual a

23,5)14.

Depois, nos termos do art.º 121.º do CT, constituem deveres do

trabalhador:

- Cooperar, na empresa, estabelecimento ou serviço, para a

melhoria do sistema de segurança, higiene e saúde no

trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes

dos trabalhadores eleitos para esse fim15;

- Cumprir as prescrições de segurança, higiene e saúde no

trabalho estabelecidas nas disposições legais ou

convencionais aplicáveis, bem como as ordens dadas pelo

empregador16.

BERNARD TEYSSIÉ, destacando as obrigações do trabalhador,

afirma, e bem, que a segurança na empresa não releva apenas do

empregador17, e FRANÇOIS FAVENNEC-HÉRY dedicou mesmo

um estudo desenvolvido à “obrigação de segurança do

trabalhador”18.

Por sua vez, vincando-se o carácter bilateral das obrigações em

matéria de segurança no trabalho, o empregador deve, por força do

disposto no art.º 120.º do CT:

- Prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a

protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo

14 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 26. 15 Art.º 121.º, n.º 1, alínea h), do CT. 16 Art.º 121.º, n.º 1, alínea i), do CT. 17 BERNARD TEYSSIÉ, “Sur la sécurité dans l`enterprise", Droit Social, 2007, n.º 6, p. 672. 18 FRANÇOIS FAVENNEC-HÉRY, “L`obligation de sécurité du salarié", Droit Social, 2007, n.º 6, pp. 687 e ss.

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indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de

trabalho19;

- Adoptar, no que se refere à higiene, segurança e saúde no

trabalho, as medidas que decorram, para a empresa,

estabelecimento ou actividade, da aplicação das prescrições

legais e convencionais vigentes20;

- Fornecer ao trabalhador a informação e a formação

adequadas à prevenção de riscos de acidente e doença21.

Não se ignora que a questão da precariedade laboral, que está

associada a uma “cultura de incumprimento”, é fundamental na

abordagem desta temática. Vários autores referem a existência de

uma forte ligação entre a precariedade e a incidência da

sinistralidade laboral22 23. Efectivamente, as pressões para a

produção e o lucro ameaçam a segurança24.

Mas também não se ignora que a rigidez da legislação pode

potenciar o seu incumprimento25.

O discurso jurídico, nesta como noutras matérias, deve ser

equilibrado e sensato.

IV

19 Art.º 120.º, alínea g), do CT. 20 Art.º 120.º, alínea h), do CT. 21 Art.º 120.º, alínea i), do CT. 22 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 402. 23 Como já tive a oportunidade de escrever, não sou favorável a que as leis do trabalho premeiam um patronato em muitos momentos exclusivamente preocupado com o lucro rápido e fácil, sem respeito mínimo pelos direitos dos trabalhadores e sem quaisquer preocupações de cidadania (ALBINO MENDES BAPTISTA, Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, Lisboa, 2008, p. 28). 24 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 394. 25 “Em sentido amplo – escreve CASIMIRO FERREIRA – considero que a problemática dos riscos profissionais pela sua gravidade e injustiça social constitui uma linha de questionamento da “rigidez” da lei dos despedimentos.” (Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, Coimbra, 2005, p. 376).

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Neste contexto, tem inteira pertinência trazer à discussão o tema

dos procedimentos laborais na empresa.

B. LOBO XAVIER tem chamado a atenção, com uma mestria

singular, para a importância desta tema26 27. Nas suas palavras, os

aspectos relativos à saúde e segurança “são um excelente exemplo

da consagração dos métodos do diálogo social.”28.

O CT consagra o direito à informação e consulta dos trabalhadores,

bem como a existência de representantes dos trabalhadores para a

segurança, higiene e saúde do trabalho29 30 , mais estabelecendo

que os trabalhadores e seus representantes devem ser informados

e receber formação no domínio da segurança e saúde no trabalho31.

Por sua vez, o Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da

OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008,

sugere que empresários e trabalhadores reflictam sobre formas de

controlar e reduzir os riscos no seu local de trabalho, para prevenir

acidentes e proteger a sua segurança e saúde32, alude a “tarefas

26 B. LOBO XAVIER, “Procedimentos laborais na empresa e Direito Comunitário”, Prof. Doutor Galvão Telles: 90 anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pp. 163 e ss., e “Procedimentos na empresa (para uma visão procedimental do Direito do Trabalho)”, Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra, 2007, pp. 409 e ss. 27 Vd., também, ALBINO MENDES BAPTISTA, Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 28, onde se pode ler:

“A relação de trabalho é uma relação de poder (a meu ver, este é um facto assente) e como tal as questões que se terão de discutir são a da procedimentalização dos poderes empresariais e a da participação dos trabalhadores no exercício desses poderes. Aí sim a discussão passa a ser séria e equilibrada.”

28 B. LOBO XAVIER, “Procedimentos laborais na empresa e Direito Comunitário”, cit., p. 186. 29 Estes representantes dos trabalhadores são também trabalhadores protegidos – crédito de horas (art.º 280.º da RCT), faltas (art.º 281.º da RCT), procedimento disciplinar e despedimento (art.º 282.º da RCT), transferência (art.º 283.º da RCT). 30 Arts. 272.º a 280.º. A RCT desenvolve depois a matéria nos arts.º 211.º a 289.º. 31 Art.º 275., n.º 2, art. 272.º, n.º 3, alínea d), art.º 278.º, n.º 1 e n.º 2, todos do CT, e art.º 216.º e art.º 217.º, n.º 1, da RCT. 32 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, p. 5.

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partilhadas... trabalhador, entidade patronal, governos e sociedade”

e a cooperação dos trabalhadores com as entidades patronais33.

Finalmente, um dos objectivos34 da “Estratégia Nacional para a

Segurança e Saúde no Trabalho: 2008-2012”, destinada a melhorar

os níveis de saúde e bem-estar no trabalho e reduzir os índices de

sinistralidade laboral, e no quadro de uma abordagem tripartida, é

“aprofundar o papel dos parceiros sociais e implicar empregadores

e trabalhadores na melhoria das condições de trabalho nas

empresas”, acrescentando-se que “a participação e o diálogo social

afiguram-se fundamentais para a consensualização de políticas de

melhoria das condições de trabalho e do bem-estar nos locais de

trabalho.”35

Convém, todavia, sublinhar que a introdução de mecanismos de

participação dos trabalhadores na melhoria da segurança “pode não

ter os resultados pretendidos porque naquela empresa a

participação dos trabalhadores nunca foi estimulada e/ou não é

valorizada.”36 37.

V

Um outro ponto pode merecer reflexão.

É preciso equacionar a conformidade com a Directiva 89/391/CEE

do Conselho, de 12 de Junho de 1989, da atribuição às comissões

33 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, p. 8. 34 Objectivo n.º 10. 35 E indicando, entre outras medidas, “dinamizar a constituição de comissões paritárias para a promoção da segurança e saúde no trabalho” e “incentivar a introdução de matérias de segurança e saúde na negociação colectiva.” 36 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, Lisboa, cit., p. 402. 37 Como já tive a oportunidade de defender, julgo preocupante, por exemplo, ver as organizações patronais portuguesas defenderem o fim do controlo de gestão das empresas por parte das comissões de trabalhadores (Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 28).

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de trabalhadores das funções que na lei portuguesa cabem aos

representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e

saúde do trabalho. É certo que aquelas teriam de ter funções

específicas em matéria de protecção da segurança e da saúde dos

trabalhadores. Continuo a entender que as comissões de

trabalhadores, que têm a mais elevada dignidade constitucional,

não têm um tratamento conforme na lei ordinária, existindo nesta

matéria aquilo que já designei como um “equívoco histórico”38.

Refira-se que na Alemanha cabe ao comité de empresa promover

as medidas de protecção frente aos riscos do trabalho e de

protecção do ambiente de trabalho39.

Também em França se sugere o reagrupamento das instituições

representativas, pelo menos nas pequenas e médias empresas40.

VI

A cultura de prevenção é fundamental no estudo desta

problemática41.

E releva em matéria de “velhos riscos profissionais” e de “novos

riscos profissionais”, onde se incluem o stress e o assédio42.

Já em 1994, VÍTOR RIBEIRO (que bom recordá-lo aqui e a este

propósito!) aludia a “sábia ideia de PREVENÇÃO”43.

38 ALBINO MENDES BAPTISTA, Estudos sobre o Código do Trabalho, 2.ª ed., Coimbra, 2006, pp. 315 e ss. 39 A solução adoptada na Alemanha é sumariada em JESUS MARTÍNEZ e ALBERTO ARUFE VARELA, Leys Laborales Alemanas. Estúdio Comparado y Traducción Castellana, Corunha, 2007, p. 55. 40 ANTOINE MAZEAUD, “La sécurité dans l`enterprise : rapport de synthèse", Droit Social, 2007, n.º 6, p. 739. 41 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 43. Como nos diz esta autora a comissão que analisou o acidente do vaivém Columbia colocou especificamente a cultura de segurança entre os seus determinantes (p. 387). 42 Onde se incluem ainda os problemas de ordem muscular (dores de costas, nos braços e nas pernas), outros problemas de ordem psicossocial e outras formas de violência no trabalho (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 374 e p. 375, n. 235).

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Isto não é incompatível com a afirmação de que quem incumpre a

lei deve ser punido, nomeadamente em sede criminal, de que se

deve reforçar a actividade fiscalizadora e de que importa combater

um certo sentimento de impunidade.

O que se pretende apenas dizer é que se impõe dar primazia à

prevenção, verdadeira pedra de toque da matéria. É preciso

adequar a legislação às mentalidades, numa atitude que assenta

também em princípios de concertação e de diálogo.

A mera aprovação de legislação e a adopção de políticas

estritamente repressivas, a meu ver, não resolvem os problemas

associados à segurança e saúde no trabalho.

De resto, não é só em Portugal que se discute o problema da

efectividade do Direito do Trabalho, em particular o respeito pelas

normas de segurança no trabalho44.

A “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho:

2008-2012”45 aponta a promoção de mudanças de comportamento

como uma das definições estratégias para diminuir os acidentes de

trabalho e alude a cultura partilhada entre empregadores e

trabalhadores de prevenção dos riscos profissionais.

Pode ler-se neste documento:

“Tem-se colocado, enquanto prioridade estratégica, uma

maior ênfase na publicação de normas jurídicas do que numa

verdadeira concepção de políticas públicas de segurança e

43 VÍTOR RIBEIRO, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. Colectânea de Legislação Actualizada e Anotada, Lisboa, 1994, p. 7. 44 ANTOINE MAZEAUD, “La sécurité dans l`enterprise : rapport de synthèse", cit., p. 740. 45 Resolução do Conselho de Ministros n.º 59/2008, de 12 de Março de 2008, já mencionada. No Anexo a esta resolução faz-se um importante enquadramento histórico-legislativo da matéria da segurança e saúde no trabalho. Vd., também, com interesse, o Plano de Acção da ACT “Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho”, de 31 de Março de 2008, que pode ser consultado em www.act.gov.pt., onde se faz igualmente menção a “participação tripartida, apanágio dos processos de desenvolvimento das políticas e promoção da segurança e saúde no trabalho.”

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saúde no trabalho, não se tendo cuidado adequadamente as

condições e a capacidade de aplicação das leis por parte de

uma importante fatia do tecido empresarial português,

nomeadamente as pequenas, médias e micro-empresas.”

O objectivo n.º 1 da “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde

no Trabalho: 2008-2012” é mesmo “desenvolver e consolidar uma

cultura de prevenção entendida e assimilada pela sociedade”,

entendida nos termos da Convenção n.º 187 da OIT (2006)46, com

particulares preocupações relativamente às médias, pequenas e

micro-empresas.

Outro objectivo47 é “incluir, nos sistemas de educação e

investigação, abordagens no âmbito da segurança e saúde no

trabalho”, lembrando-se que 2,5 milhões de cidadãos portugueses

não dispõem de escolaridade obrigatória, “situação que funciona

como travão da estratégia de inovação tecnológica e organizacional

e não possibilita encarar convenientemente a competitividade da

economia portuguesa.”

VII

Se as leis, por si só, não resolvem os problemas, também não se

tem dúvidas de que o combate eficaz à sinistralidade laboral passa

pela adopção de um adequado corpo normativo, acompanhado de

boas práticas processuais.

O Direito dos Acidentes de Trabalho deve constituir parte relevante

da ordem pública social, com a consequente característica da

indisponibilidade e irrenunciabilidade de direitos48, e exige um

46 Sobre o quadro promocional para a segurança e saúde no trabalho. A convenção não foi ainda ratificada por Portugal. 47 Objectivo n.º 3. 48 Nos termos do art.º 34.º da LAT:

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desenvolvido conjunto de normas processuais próprias, “sob pena

de se ferir e trair o próprio carácter tutelar da lei substantiva”49.

A matéria dos acidentes de trabalho assume a maior relevância

processual e exige, em particular, “prontidão, simplicidade e rigor”,

impostas pela sua própria natureza e finalidade sociais50.

Não é, todavia, pela escassez de normas processuais que os

índices de sinistralidade laboral não são menos elevados. Lembre-

se que o Título respeitante ao processo emergente de acidente de

trabalho e de doença profissional vai do artigo 99.º ao artigo 155.º,

ocupando, por isso, 56 artigos, o que corresponde a mais de 25%

da matéria do CPT.

E, não obstante, os problemas interpretativos que algumas normas

processuais têm levantado, e sobre as quais falaremos mais à

frente, julgo que, também aqui, é fundamental avaliar a aplicação

prática do Direito.

É importante lembrar que alguns magistrados, a propósito

justamente da temática em apreciação, se “queixam” da falta de

partilha de experiências, da discussão alargada das matérias,

afirmando mesmo que existe ainda um elevado número de

questões “que na grande generalidade dos casos, acaba por ficar

confinada à solução encontrada nos autos respectivos, não

conhecendo a devida difusão.”51

Ou na formulação de um outro magistrado:

É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidos na lei dos acidentes de trabalho ou com eles incompatível. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nessa lei.

49 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 156. 50 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 154. 51 ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, p. 123.

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“Desde há muito que sinto necessidade de partilhar

dificuldades que, dia a dia, me surgem no âmbito das funções

que, no Tribunal do Trabalho, venho desempenhando, há já

algum tempo.

A vida judiciária (...) é rica de práticas e costumes

sedimentados, muitas vezes sem que os operadores se

interroguem sobre se estarão a usar os meios mais

adequados. E, com o passar do tempo, os resultados vão

surgindo mas, muitas vezes, sinto que se actuasse de outra

forma, os resultados alcançados poderiam ser diferentes e

mais próximos da Justiça, que é o fim de qualquer acto

processual.”52

Segue-se que situações como aquela que se vive no Tribunal do

Trabalho de Lisboa, em que um sinistrado pode esperar cerca de 1

ano e meio para obter uma decisão reparadora53, podem traduzir-se

no esvaziamento de normas adjectivas, particularmente das que

consagram a natureza urgente do processo.

Quanto à importância desta temática ela exprime-se facilmente com

indicação de que cerca de metade dos processos entrados nos

tribunais do trabalho são emergentes de acidentes de trabalho. Por

referência ao ano de 2002, o maior parte das acções respeitam a

acidentes de trabalho – 22.340 e a contratos individuais do trabalho

– 14.42454 55, sendo que “o elevado valor dos acidentes de trabalho

52 MANUELA BENTO FIALHO, “Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, p. 79. 53 Segundo informação colhida no Jornal Público, de 21.7.2008. 54 CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 258-259. 55 Como escreve A. CASIMIRO FERREIRA, “ (...) o grande aumento das acções de acidentes de trabalho é acompanhada pela diminuição das acções de contrato de trabalho o que significa existirem menos conflitos conexos com os despedimentos.” (Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 376).

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reflecte-se num acréscimo da actividade dos tribunais do trabalho

portugueses”56 57.

VIII

No momento em que me propus dedicar a atenção a matérias de

natureza estritamente processual procedi a uma selecção de dez

temas que me parecem ser óptimas pontes para a importante fase

de debate.

A 1.ª escolha recaiu na nova providência cautelar nominada – a

Protecção da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho58.

Como se sabe, as associações sindicais tem um papel da maior

importância no acesso ao direito e à justiça por parte dos

trabalhadores. O actual CPT alargou a sua legitimidade

processual59 e, porventura, deveria até ter ir mais longe.

Mas forçoso é também reconhecer que os sindicatos não têm dado

a resposta correcta aos novos desafios que lhe são colocados, por

vezes por atitude de mera inércia resultante de alguma falta de

sensibilidade para novas realidades laborais60. Por exemplo, a

“aposta sindical” na concessão de apoio jurídico tem muitas

insuficiências61.

56 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 376. 57 “As acções de acidentes de trabalho são um indicador sociológico da articulação existente entre as condições de trabalho e riscos profissionais e a actividade da administração da justiça laboral.” (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 374). 58 Criada pelo CPT – arts.º 44.º a 46.º. 59 Art.º 5.º do CPT. 60 Pode falar-se de inércia das associações sindicais, por exemplo, também em matéria relativa à discriminação das mulheres e homens no domínio laboral. Neste sentido, igualmente, A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 416. 61 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 406 e ss., que se refere, nomeadamente, à falta de contratação de juristas.

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15

A baixa taxa de sindicalização em Portugal (entre 20% e 30%), que

exige também estudo atento e multidisciplinar, contribui

seguramente para a pouca efectividade dos direitos laborais.

O reforço da intervenção judicial dos sindicatos tem concretização

nesta nova providência cautelar, destinada a conferir mais

expressiva tutela do direito constitucional à prestação do trabalho

em condições de higiene, saúde e segurança62 63.

Efectivamente, num país com a taxa de incidência de acidentes de

trabalho e de doenças profissionais, a criação de uma providência

cautelar no domínio dos riscos profissionais tem inteira justificação.

A legitimidade para requerer este procedimento cautelar cabe aos

trabalhadores, individual ou colectivamente, bem como aos seus

representantes64. A legitimidade é, assim, estabelecida de forma

ampla, o que se julga correcto, tanto mais que os trabalhadores na

maior parte dos casos não têm condições para actuar, também por

ausência de uma cultura de aceitação do recurso aos tribunais

como exercício de cidadania.

Apesar de tudo quanto se disse, o recurso a esta nova providência

quase não tem expressão, tudo indicando “estar-se perante uma

62 Vd. ALBINO MENDES BAPTISTA, Código de Processo do Trabalho Anotado, 2.ª ed. – reimpressão, Lisboa, 2002, pp. 113 e ss. 63 No preâmbulo do novo CPT referem-se ainda duas motivações para a criação deste novo procedimento cautelar:

- 1.ª ser um instrumento de pedagogia individual e social de sensibilização de todos os intervenientes no mundo do trabalho;

- constituir um meio expedito e idóneo ao dispor dos trabalhadores para salvaguarda da respectiva saúde, quando não da própria vida.

64 A referência aos representantes dos trabalhadores permite abranger as Comissões de Trabalhadores, o que nos merece destaque e aplauso, já que, como temos insistentemente referido, a dignidade constitucional das comissões de trabalhadores não tem acolhimento na lei ordinária, nomeadamente no domínio do direito processual. Remete-se, a este propósito, para ALBINO MENDES BAPTISTA, Código de Processo do Trabalho Anotado, 2.ª ed. – reimpressão, cit., pp. 42-43.

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16

situação de subaproveitamento das potencialidades que a lei

encerra.”65

Também neste âmbito cabe-nos a todos encontrar soluções.

IX

A 2.ª “escolha processual” recaiu sobre a natureza urgente das

acções emergentes de acidentes de trabalho.

Constitui hoje matéria consensual que a natureza urgente mantém-

se ao longo das várias fases do processo (conciliatória e

contenciosa, que inclui a fase de recurso), correndo durante o

período de férias judiciais66.

O acórdão do STJ, de 9.1.2008.67, “cortou”, todavia, com o “critério

do dano irreparável” 68, entendendo que todos os actos processuais

cujos prazos terminem em dias que correspondam às férias

judiciais, deverão ser praticados no decurso dessas mesmas férias,

não se transferindo o momento da sua prática para o 1.º dia útil

subsequente a esse período, jurisprudência que me parece

correcta.

Mas a matéria não tem a clareza desejável. Estamos a pensar no

comando ínsito no art.º 139.º, n.º 1, do CPT, segundo o qual o

65 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 411. 66 Neste sentido, STJ, 24.11.2004. (www.dgsi.pt). Vd. a nota a este acórdão da autoria de MARIA ADELAIDE DOMINGOS em Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, pp. 48-49. Vd., também, no mesmo sentido, RP, 5.5.2008. (www.dgsi.pt), STJ. 7.2.2007. (www.dgsi.pt), 1.3.2007. (www.dgsi.pt) e 22.3.2007. (www.dgsi.pt). 67 Publicado em www.dgsi.pt. 68 Sobre a matéria, remete-se para JOÃO MONTEIRO, “Fase conciliatória do processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho – notas práticas”, Estudos em Homenagem ao Dr. Vítor Ribeiro, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 76 (no prelo). Aproveita-se para agradecer ao Dr. João Monteiro a amável disponibilização do texto, mesmo antes da respectiva publicação.

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17

exame por junta médica, constituída por três peritos69, tem carácter

urgente.

Mas não resulta já do art.º 26.º, n.º 2, do CPT, o carácter urgente

das acções emergentes de acidentes de trabalho?

Estou convencido que o legislador quis sublinhar, face à

necessidade de intervenção de peritos médicos, que o exame deve

ser praticado em férias. Só que, a este propósito, podem colocar-se

legítimas interrogações, impostas até pelas dificuldades práticas em

marcar juntas médicas particularmente para o mês de Agosto. A

matéria exige debate, desde logo em termos de coordenação entre

os diversos regimes processuais70 71, e suscita-me, por outro lado, o

entendimento de que o processo, em geral, só teria a ganhar com a

implementação de mecanismos de flexibilização e com a

atribuição ao juiz de um maior poder de gestão processual72.

X

69 PEDRO FREITAS PINTO, em intervenção feita no CEJ em Janeiro de 2008 sob o título “Perícias médicas no âmbito do processo de acidentes de trabalho, afirmou:

“Parece-me ser útil que na tentativa de conciliação e quando esta se frustra por não haver acordo quanto ao grau de incapacidade, se colha logo da vontade ou não do sinistrado em fazer-se acompanhar de um médico na junta que possa vir a ter lugar”.

E acrescenta: “É que por vezes assiste-se a uma verdadeira “dança de cadeirinhas” a que os peritos médicos são naturalmente alheios mas que acarreta a que um perito médico esteja a representar uma companhia de seguros em determinado processo, passados alguns momentos seja nomeado oficiosamente para representar um ou mais sinistrados noutros processos e volte a representar a companhia de seguros noutros processos, tudo na mesma tarde.”

Aproveita-se para agradecer ao Dr. Pedro Freitas Pinto a simpática disponibilização do texto escrito da sua intervenção. 70 JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, “Duas questões práticas na aplicação do Direito e Processo dos Acidentes de Trabalho: Urgência e Intervenção de Terceiros”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, p. 110. 71 Como tive a oportunidade de defender a propósito da recente reforma dos recursos:

“(...) é altura de se fazer uma reforma processual global e integrada, com ponderação de regras adoptadas e a adoptar em todos os ramos do direito adjectivo.” (Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 255).

72 Vd. o art.º 2.º do Regime Processual Experimental – Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho. Remete-se, a propósito, para MARIANA FRANÇA GOUVEIA, Regime Processual Experimental, Coimbra, 2006, págs. 31 e ss.

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18

Vamos para o 3.º ponto de reflexão, que se centra na relevância do

Ministério Público neste âmbito, explicada pelo interesse público

subjacente.

Essa relevância é atestada, desde logo, pela circunstância, de,

entre 1989 e 2001, 90% dos sinistrados e os seus beneficiários

legais terem sido representados pelo Ministério Público73, sendo

que a situação não se tem alterado nos últimos anos.

O processo de acidentes de trabalho começa, como se sabe, por

uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por

base a participação do acidente74, e visa promover o acordo dos

interessados quanto à fixação da reparação devida75.

Deste modo, o processo só passará à fase contenciosa se a fase

conciliatória não resultar em acordo76.

Na fase conciliatória, não existem partes, não há litígio, nem

formulação de pedido. Como escreve JOÃO RATO, nesta fase o

Ministério Público “não defende quaisquer interesses particulares,

mas apenas o interesse público da correcta definição dos direitos e

deveres resultantes de um acidente de trabalho. Tem, pois, uma

função própria de “órgão de justiça” em sentido estrito, supra

partes.”77

A meu ver, é de manter e de valorizar nesta sede o papel do

Ministério Público. 73 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 443-444. Em comparação, nos mesmos anos de 1989 e 2001, 70% do patrocínio judiciário nas acções de contrato individual de trabalho foi exercido por advogado, para em 2001 subir para 79,9%, contra 19,8% pelo Ministério Público. 74 Art. 99.º do CPT. 75 Para efeitos de promoção e homologação do acordo, o Ministério Público deve assegurar-se, pelos necessários meios de investigação, da veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes – art.º 104.º, n.º 1, do CPT. 76 Sublinhe-se que os intervenientes não ficam vinculados ao resultado do exame médico realizado na fase conciliatória (art.º 105.º do CPT), podendo, nos termos do art.º 138.º do CPT, requerer exame por junta médica. 77 JOÃO RATO, “Ministério Público e Jurisdição do Trabalho”, Questões Laborais, n.º 11, 1998, p. 44.

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19

Com natural respeito pelo patrocínio judiciário exercido por

advogado. A título de exemplo refira-se que o n.º 2 do art.º 119.º do

CPT permite a prorrogação do prazo, a requerimento do Ministério

Público, para obtenção de elementos de facto necessários à

elaboração da petição inicial, esquecendo o mandatário judicial,

mas a quem tal prorrogação deve ser igualmente concedida78.

XI

Uma 5.º questão, conexa com a anterior prende-se com a

circunstância de também nos processos emergentes de acidentes

de trabalho o legislador ter privilegiado a autocomposição dos

litígios79.

Sublinhe-se que a grande maioria das acções por acidente de

trabalho termina por conciliação.

No ano 2000, 65,7% dos acidentes participados resolveram-se na

fase conciliatória, 27,7% foram resolvidos na fase contenciosa, mas

antes do julgamento, sendo apenas 6,6% do total dos processos

participados os resolvidos em sede de julgamento80 81. No essencial

mantém-se a mesma tendência em anos mais recentes (em 2006

alude-se a 69% de processos findos na fase conciliatória).

78 A fase contenciosa pode iniciar-se com a petição inicial ou com o requerimento, a que se refere o n.º 2 do art.º 138.º (se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade), devendo ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos – art.º 117.º, n.º 1 e n.º 2 do CPT. O Ministério Público assume então o patrocínio do sinistrado ou dos beneficiários legais. 79 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 329. 80 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 317. 81 Relativamente ao ano de 2001, dos processos que passam à fase contenciosa, 47,2% findam por condenação do réu no pedido (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 399).

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20

Deste modo, como escreve CASIMIRO FERREIRA, o processo

funciona como um “redutor da complexidade”82.

Normalmente o acordo traduz-se no pagamento de uma

indemnização ao trabalhador, a ser suportado pela seguradora.

Se os interessados chegarem a acordo este será submetido ao juiz

para efeitos de homologação83, por simples despacho84, sem

prejuízo do dever de fundamentação, nos termos do art.º 158.º do

CPC, não podendo o juiz, substituindo-se às partes, alterar o

acordo, corrigindo o montante da pensão por elas acordado85.

Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são

consignados, entre outras menções expressas, os factos sobre os

quais tenha havido acordo86 87.

Esta exigência legal visa circunscrever o litígio na fase contenciosa

às questões em relação às quais não tenha havido acordo.

O interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um

desses factos, estando já habilitá-lo a fazê-lo, é, a final, condenado

como litigante de má fé88. É, por isso, inadmissível a assumpção de

uma “posição negativa ou de omissão absoluta de factos” 89 90.

82 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 318. 83 Art.º 114.º do CPT. 84 Art.º 114.º, n.º 1, do CPT. 85 RC, 12.6.97. (CJ, 1997, III, 69). 86 É o seguinte o conteúdo do art.º 112.º, n.º 1, do CPT: Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca:

- da existência e caracterização do acidente; - do nexo causal entre a lesão e o acidente; - da retribuição do sinistrado; - da entidade responsável e - da natureza e grau da incapacidade atribuída.

87 Refira-se que, findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado, nomeadamente a considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados – art.º 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT. 88 Art. 112.º, n.º 2, do CPT. 89 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 161. 90 Como se sabe, não havendo acordo – art.º 112.º do CPT ou não sendo homologado – art.º 114.º do CPT, por desconforme com as normas aplicáveis, inicia-se a fase contenciosa.

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21

XII

A 6.º questão processual que seleccionei foi a da fixação de pensão

ou de indemnização provisória91 92.

Trata-se de uma providência cautelar específica dos processos

emergentes de acidentes de trabalho93.

Da decisão que fixar a pensão ou indemnização provisória não há

recurso, mas o responsável pode reclamar com o fundamento de se

não verificarem as condições da sua atribuição94 95. Trata-se de

uma excepção à regra de que nos processos emergentes de

acidentes de trabalho há sempre lugar a recurso96, determinada

pela própria natureza da providência. Já a decisão que indefere o

requerimento é susceptível de recurso.

Julgo dever aplicar-se nesta matéria o regime da caducidade da

providência cautelar fixado no art.º 389.º do CPC, que, a meu ver,

em nada afecta a existência do direito substantivo subjacente97.

A direcção do processo passa a incumbir então ao juiz. 91 Se houver acordo acerca da existência e caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, se o autor o requerer ou se assim resultar directamente da lei aplicável, fixa provisoriamente a pensão ou indemnização que for devida pela morte ou pela incapacidade atribuída pelo exame médico, com base na última remuneração auferida pelo sinistrado, se outra não tiver sido reconhecida na tentativa de conciliação – art.º 121.º, n.º 1, do CPT. 92 Quando houver desacordo sobre a existência ou a caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, a requerimento da parte interessada ou se assim resultar directamente da lei aplicável, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo processo, pensão ou indemnização provisória nos termos do artigo anterior, se considerar tais prestações necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, se do acidente tiver resultado a morte ou uma incapacidade grave ou se se verificar a situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 102.º - art.º 122.º, n.º 1, do CPT. 93 Assim, também, RL, 10.9.2008. (www.dgsi.pt). 94 Art.º 124.º, n.º 1, do CPT. 95 A decisão que fixe pensão ou indemnização provisória é imediatamente exequível, dispensando-se a prestação de caução – art.º 124.º, n.º 3, do CPT. 96 Art.º 79.º, alínea b), do CPT. 97 Assim, também, RL, 10.9.2008. (www.dgsi.pt). Em sentido diferente, MANUELA BENTO FIALHO, por essa aplicação “contender com o espírito subjacente ao processo emergente de acidente de trabalho no qual, como se sabe, o direito de acção, desde que atempadamente participado o acidente, não caduca.” – Arts.º 32.º, n.º 1, da LAT e 26.º, n.º 3, do CPT (“Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, cit., p. 85).

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22

XIII

A 7.º questão é relativa à intervenção de terceiros.

Quando estiver em discussão a determinação da entidade

responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência,

mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser

eventual responsável98, comando que importa distinguir do

chamamento de intervenção acessória provocada99, bem como a

da intervenção principal provocada 100, que não são admissíveis

em matéria de acidentes de trabalho101.

É que o terceiro não é responsável na acção especial emergente de

acidente de trabalho102, não devendo ocupar lugar neste processo,

por ser entidade alheia à relação laboral, sendo, no entanto, a meu

ver seguro que não se pode possuir, em simultâneo, a qualidade de

terceiro e de representante relativamente à mesma entidade.

XIV

O 8.º tema eleito prende-se com a intervenção de junta médica.

Como se sabe, quando não se conformar com o resultado do

exame realizado na fase conciliatória do processo, a parte requer

na petição inicial ou na contestação exame por junta médica103 104.

98 Art.º 127.º, n.º 1, do CPT. 99 Regulado nos arts.º 330.º e ss. do CPC. 100 Regulada nos arts.º 325.º e ss. do CPT. 101 Vd., respectivamente, RP, 28.6.99. (CJ, 1999, III, 258) e RL, 26.1.2000. (CJ, 2000, I, 159). 102 Assim, também, STJ, 30.9.2004. (www.dgsi.pt). Vd. a nota a este acórdão de MARIA ADELAIDE DOMINGOS em Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, pp. 37-41. Remete-se ainda para JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, “Duas questões práticas na aplicação do Direito e Processo dos Acidentes de Trabalho: Urgência e Intervenção de Terceiros”, cit., pp. 112 e ss., e para JORGE LEAL, “Algumas questões relativas à determinação de quem pode ser parte na acção declarativa, com processo especial, emergente de acidente de trabalho”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, pp. 117 e ss. 103 Art.º 138.º, n.º 1, do CPT. 104 Tendo o sinistrado, na tentativa de conciliação, discordado do grau de I.P.P. (incapacidade permanente parcial) que lhe foi atribuída no exame médico realizado na fase conciliatória do processo, deve requerer a realização de exame por junta médica na petição inicial com que dá início à fase contenciosa do mesmo processo. Se o não faz, o Tribunal terá de rejeitar o pedido

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23

Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância

quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é

deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o

n.º 1 do artigo 119.º (20 dias)105 106. Tal prazo não pode ser

prorrogado. Porém, porque se trata de um prazo judicial pode o

requerimento, para tal efeito, ser apresentado nos três dias úteis

seguintes ao abrigo do disposto no art.º 145.º do CPC. Se, dentro

daquele prazo, o sinistrado apresenta requerimento pedindo apenas

a prorrogação do prazo para obter relatório médico da

especialidade, não pode esse requerimento ser considerado pelo

Juiz como pedido de junta médica, por tal contrariar o princípio do

dispositivo107.

XV

Em conexão com o assunto, introduz-se um 9.º tópico.

Nos termos do art.º 139.º, n.º 6, do CPT, é facultativa a formulação

de quesitos para exames médicos, mas o juiz deve formulá-los,

ainda que as partes o não tenham feito, sempre que a dificuldade

ou a complexidade do exame o justificarem.

As respostas dos peritos médicos deverão ser fundamentadas de

forma clara108, e levar em linha de conta de que só assim o julgador,

que não é técnico, estará em condições de decidir correctamente.

do autor para que lhe seja fixada uma determinada I.P.P. (incapacidade permanente parcial), superior à atribuída pelo perito no exame médico singular – RP, 29.1.96. (CJ, 1996, I, 253). 105 Art.º 138.º, n.º 2, do CPT. 106 Se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de desvalorização e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º. A decisão pode, assim, limitar-se à parte decisória, precedida da identificação das partes e da sucinta fundamentação de facto e de direito do julgado. 107 RP, 29.11.99. (CJ, 1999, V, 247). 108 “Nesta linha, não se encontram devidamente fundamentadas, por exemplo, as respostas que consistem tão só em remeter para os artigos da TNI ou as respostas que se limitem a indicar uma determinada percentagem de incapacidade.” (ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, cit., p. 126).

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24

Por outro lado, não devem invadir esferas que revelam do jurídico,

como seja a caracterização do acidente como acidente de trabalho

ou o nexo de causalidade entre as lesões e o evento109.

Tenha-se presente que a principal fonte de conflito respeita à

“fixação da incapacidade” do sinistrado, tendo representado, em

2001, 76% dos objectos da acção110.

É frequente que o requerimento para fixação de incapacidade se

limite a anexar dois ou três quesitos, sem que se alegue perante o

juiz qual a razão pela qual se discorda do grau de incapacidade

proposto pelo perito médico na fase conciliatória. “Na verdade, o

que se impunha, porque é o juiz quem vai decidir – e não os

médicos, como, erroneamente, se pressupõe –, é que se

adiantassem as razões da discordância de forma a que o juiz que,

necessariamente, preside ao exame realizado por junta médica,

possa confrontar os peritos com os vários argumentos em

discussão.”111

A lei determina que o juiz presida ao exame112 113, seguramente

para vincar a sua posição activa e interveniente, que, aliás, é timbre

de todo o processo do trabalho.

O juiz, se o considerar necessário, pode determinar a realização de

exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres

técnicos114. Pense-se, por exemplo, numa disparidade apreciável

109 Vd. o acórdão da RL, de 24.9.97. (www.dgsi.pt). 110 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 337. 111 MANUELA BENTO FIALHO, “Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, cit., p. 87. 112 Art. 139.º, n.º 1, do CPT. 113 Solução diferente da que se encontra no domínio do processo civil comum – art.º 582.º, n.º 2, do CPC. 114 Art.º 139.º, n.º 7, do CPT. Vd. o acórdão da RE, de 13.7.2004. (CJ, 2004, I, 267).

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entre o grau de incapacidade fixado pelo perito médico em sede de

exame singular e o atribuído pela junta médica115.

O exame por junta médica, sendo uma forma de prova pericial116 117, está sujeito à livre apreciação do Juiz118. Nestes termos, os

laudos da junta médica, mesmos os emitidos por unanimidade,

enquanto prova pericial, não são vinculativos para o tribunal. Actua

aqui o princípio da livre apreciação pelo tribunal, que se baseia na

sua prudente convicção sobre a prova produzida, isto é, em regras

da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência119. Em todo

o caso, discordando, o juiz tem de apresentar uma sólida

fundamentação da discordância120.

XVI

O 10.º e último ponto, para eventual debate, propõe-se avaliar as

consequências da apresentação do requerimento de junta médica.

Assim, se as partes se não conciliarem, na fase conciliatória do

processo, apenas por divergência quanto ao grau de incapacidade

do sinistrado fixado no exame médico singular e se só o acidentado

requereu exame por junta médica121, despoletando, deste modo, a

fase contenciosa, fixar a incapacidade de acordo com este último

exame, onde foi arbitrada uma incapacidade menor do que a não

aceite na tentativa de conciliação, não constitui uma reformatio in 115 Vd. ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, cit., pp. 126-127. 116 Relativamente à prova pericial, vd. os arts.º 568.º e ss. do CPC. 117 Sobre a prova pericial, remete-se para o estudo de MARIA ADELAIDE DOMINGOS, “A prova pericial no âmbito dos acidentes de trabalho”, Revista do CEJ, n.º 3, 2005, pp. 269 e ss. 118 Art.º 389.º do CC e art.º 655.º, n.º 1, do CPC. 119 Não há razões objectivas para se discordar dos laudos médicos ou para se formular qualquer pedido de esclarecimento aos peritos médicos, se estes responderem com precisão a todos os quesitos, indicando a lesão da sinistrada e respondendo aos restantes quesitos de forma lógica sem qualquer deficiência, obscuridade ou contradição – RL, 11.10.2000. (CJ, 2000, IV, 167). 120 Vd. RE, de 19.4.2005. (CJ, 2005, II, 276), RE, 30.1.2001. (CJ, 2001, I, 291) e STJ, 22.5.2007. (www.dgsi.pt). 121 Art.º 138.º, n.º 2, do CPT.

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pejus, sendo, por isso, admissível122. E isto porque a principal

consequência processual que decorre da apresentação do

requerimento de junta médica é a de remeter para a fase

contenciosa a decisão sobre a fixação da incapacidade (a questão

do grau de incapacidade está totalmente em aberto, atendendo a

que não se obteve acordo dos interessados), assumindo neste

contexto particular relevância o exame realizado por junta

médica123.

Manifestando a minha disponibilidade para a fase de debate,

agradeço a atenção que me dispensaram.

122 Neste sentido, RL, 13.11.2002. (CJ, 2002, V, 151), RP, 14.2.2005. (www.dgsi.pt), e STJ, 14.12.2005. (www.dgsi.pt), 27.4.2006. (www.dgsi.pt). Em sentido diferente, RE, 30.1.2001. (CJ, 2001, I, 291) e RE, 30.5.2005 (www.dgsi.pt). Sobre a matéria, remete-se para JOÃO MONTEIRO, “Processo especial emergente de acidente de trabalho. Exame médico singular – Tentativa de conciliação – Exame por junta médica – Fixação de incapacidade”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 72, 2005, pp. 155 e ss., que defende igualmente a posição sustentada no texto (pp. 159-160). 123 Art.º 139.º do CPT.