acesso aos cuidados paliativos dos doentes não oncológicos. · doenças crónicas graves, bem...
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Artigo de Revisão Bibliográfica
Mestrado Integrado em Medicina
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não
oncológicos.
Sílvia Oliveira Remondes
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto
Centro Hospitalar do Porto, Hospital de Santo António
Rua de Jorge Viterbo Ferreira nº228, 4050-313, Porto, Portugal
ORIENTADORA:
Doutora Elga René Freire
Assistente Hospitalar Graduada em Medicina Interna, Professora convidada do Instituto de
Ciências Biomédicas Abel Salazar
PORTO JUNHO 2015
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
1
RESUMO
“Os cuidados paliativos definem-se como uma resposta ativa aos problemas decorrentes da
doença prolongada, incurável e progressiva, na tentativa de prevenir o sofrimento que ela gera e
de proporcionar a máxima qualidade de vida possível a estes doentes e suas famílias.”
A Organização Mundial de Saúde e a Worldwide Palliative Care Alliance publicaram em 2014 o
Atlas Global de Cuidados Paliativos no final de Vida que conclui que apenas uma em cada dez
pessoas que precisam de Cuidados Paliativos recebe estes cuidados. Em Portugal, pela avaliação
de necessidades, conclui-se que existe uma enorme lacuna de recursos assim como um fosso
entre as regiões geográficas.
Tradicionalmente, os cuidados paliativos no final de vida eram disponibilizados sobretudo a
doentes oncológicos. Mas o emergir de necessidades de um crescente número de portadores com
doenças crónicas graves, bem como a evidência da eficácia dos cuidados paliativos, implicou a
sua extensão, de uma forma mais integrada nos Serviços de Saúde, nomeadamente a doentes não
oncológicos.
A principal dificuldade para incluir os doentes não oncológicos em programas de cuidados
paliativos é a dificuldade em prever a sua sobrevivência. Alguns instrumentos foram, ao longo
dos anos, estudados e adaptados a este grupo de doentes para colmatar esta dificuldade dos
profissionais em fazer um prognóstico de terminalidade. Os mais usados são a “questão
surpresa”, os critérios de terminalidade da National Hospice Organization e a escala Palliative
Performance Scale.
PALAVRAS-CHAVE: Cuidados paliativos, Doente não oncológico, Critérios de terminalidade,
“questão” surpresa, Palliative Performance Scale.
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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ABSTRACT
“Palliative care is defined as an active response to problems arising from prolonged, incurable
and progressive disease in an attempt to prevent the suffering it generates and provide the highest
possible quality of life for these patients and their families."
The World Health Organization and the Worldwide Palliative Care Alliance published in 2014
the Global Atlas of Palliative Care at the end of life that concludes that only one in ten people
who need palliative care receive that care. In Portugal, the needs assessment, it is concluded that
there is a huge resource gap and a gap between geographic regions.
Traditionally, palliative care at the end of life were mainly available to cancer patients. But the
emerging needs of a growing number of patients with serious chronic diseases, and evidence of
the effectiveness of palliative care, led to its extension in a more integrated way in health
services, especially to patients not cancer.
The main difficulty to include patients not cancer in palliative care programs is the difficulty in
predicting survival. Some instruments have been, over the years, studied and adapted to this
group of patients to overcome this difficulty of professionals to make a terminally prognosis. The
most used are the "surprise question", the terminally criteria of National Hospice Organization
and Palliative Performance Scale.
KEY-WORDS: Palliative care, non cancer patients, guidelines for terminal phase, “surprise”
question, Palliative Performance Scale.
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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INTRODUÇÃO
“Cuidados paliativos é a abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes,
e das suas famílias, que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e
com prognóstico limitado, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à
identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, como a dor,
mas também dos psicossociais e espirituais”
Definição de cuidados paliativos proposta pela
Organização Mundial da Saúde, 2002.
HISTÓRIA DOS CUIDADOS PALIATIVOS
A história dos cuidados paliativos na Europa iniciou-se na idade média; eram principalmente
instituições cristãs, que acolhiam pobres, doentes e moribundos que beneficiavam de assistência
física e psicológica por parte de pessoas muito devotas onde eram tratados e acompanhados com
muito respeito até à sua morte. Esta forma de hospitalidade tinha como característica o
acolhimento, a proteção, o alívio do sofrimento, mais do que a busca pela cura. O termo
“paliativo” tem a sua origem no étimo latino pallium (coberta, manta) cujo sentido remete para
acolher, abrigar, proteger. No século XVII, um jovem padre francês chamado São Vicente de
Paula fundou a Ordem das Irmãs da Caridade em Paris e abriu várias casas para órfãos, pobres,
doentes e moribundos. (2)
Em 1834 a francesa Jeanne Garnier, perde o marido e a filha em poucas semanas e nesse período
de luto decide acompanhar e dedicar o seu tempo a doentes incuráveis, visita-os e permanece à
cabeceira de cama tentando aliviar o seu sofrimento. Em 1842 funda na cidade de Lyon, em
França, o primeiro hospício: “A associação das Damas do Calvário” e é então com Jeanne
Garnier que a palavra hospício (o latim “hospitium” que significa hospedagem, acolhimento)
toma outro significado e passa a ser consagrado especialmente para indicar estabelecimentos que
acolhem pessoas em fim de vida. (3)
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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Em 1900, as Irmãs da Caridade, irlandesas, fundaram o St. Josephs´s Convent, em Londres, e
começaram a visitar os doentes nas suas casas. Em 1902, inauguram o St. Joseph´s Hospice com
30 camas para moribundos pobres. (3)
Uma das figuras emblemáticas, fundadora dos cuidados paliativos modernos, foi a médica
inglesa, Cicely Saunders que dedicou a sua vida ao alívio do sofrimento humano. Em 1967
fundou o Hospício de São Cristóvão em Londres onde os doentes incuráveis e moribundos
beneficiavam não só de um tratamento médico específico e de cuidados adaptados como também
de apoio emocional, espiritual e social. Faleceu nessa instituição com 87 anos em 2005. (4)
Portugal é um dos países mais antigos do ocidente, atualmente com 10,6 milhões de habitantes,
sem grande diversidade étnica com domínio da religião católica (5)
. A história dos cuidados
paliativos, em Portugal, é relativamente recente. Embora existam textos médicos que datam do
século XVI (6)
, somente no início dos anos 90 do século passado é que se iniciou o movimento
pela implementação de unidades especializadas para este tipo de cuidados no nosso país.
A Organização Mundial de Saúde estima que, em todo o mundo, mais de 20 milhões de pessoas
necessitam de cuidados paliativos. A maioria são adultos, com mais de 60 anos. As principais
doenças são as cardiovasculares, cancro e doença pulmonar obstrutiva crónica. A Europa
concentra a percentagem mais elevada de doentes com necessidade de cuidados paliativos e
destes a doença não maligna progressiva representa a maior proporção seguida pela doença
oncológica. (7)
DOENTES NÃO ONCOLÓGICOS NOS CUIDADOS PALIATIVOS
Os cuidados paliativos destinam-se ao cuidado de doentes sem perspetiva de responder ao
tratamento curativo e com uma progressão natural da doença rápida, com uma expectativa de
vida limitada, em intenso sofrimento e, com problemas e necessidades de difícil resolução que
exigem apoio específico, organizado e interdisciplinar. (8)
Historicamente, os cuidados paliativos eram associados ao cuidado de doentes oncológicos em
fim de vida. Atualmente reconhece-se que têm muito para oferecer aos doentes e suas famílias
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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num estado mais precoce da doença. A existência de uma doença grave e debilitante, ainda que
curável, pode determinar elevadas necessidades de saúde pelo sofrimento associado e assim
justificar a intervenção dos cuidados paliativos, numa perspetiva de cuidados de suporte e não de
fim-de-vida. (8)
Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde de 2002, os cuidados paliativos não são
determinados pelo diagnóstico, mas pela necessidade do doente e por isso não se destinam
exclusivamente aos doentes oncológicos mas sim a todos os doentes com doença crónica e
evolutiva que necessitem de alívio de sintomas. (7)
A Organização Mundial de Saúde define os seguintes princípios dos cuidados paliativos (7)
:
Providenciam alívio da dor e outros sintomas angustiantes;
Afirmam a vida e aceitam a morte como um processo natural;
Não pretendem adiar nem acelerar a morte;
Integram o cuidado psicológico e espiritual do doente;
Oferecem um sistema de suporte que auxilie os doentes a viver tão ativamente quanto
possível até à morte;
Oferecem um sistema de suporte que ajuda as famílias a adaptar-se à doença e
prolongam-se pelo período do luto;
Usam uma abordagem em equipa para atender às necessidades dos doentes e suas
famílias, incluindo, se indicado, aconselhamento no luto;
Promovem a qualidade de vida e podem influenciar positivamente o curso da doença;
Podem ser introduzidos em fases precoces da doença, em conjunto com terapias que
pretendem prolongar a vida;
Incluem investigação que objetive compreender e gerir complicações clínicas.
O Atlas Global de Cuidados Paliativos no final de Vida, publicado em 2014, pela Organização
Mundial de Saúde e a Worldwide Palliative Care Alliance que identifica as necessidades de
cuidados paliativos existentes estima que apenas 1 em cada 10 pessoas necessitadas de cuidados
paliativos estão presentemente a recebê-los e que um terço desses doentes sofrem de um cancro.
Os outros doentes são doentes não oncológicos, que sofrem de doenças crónicas evolutivas. (7)
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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Vários estudos, ao longo dos anos, tentaram demonstrar que os doentes não oncológicos teriam o
mesmo grau de sofrimento e dor do que os doentes oncológicos. Já na década de 60
evidenciou-se que, em doentes agónicos (aqueles cuja sobrevida estimada é de horas ou dias), o
sofrimento físico e mental era mais pronunciado nos doentes com insuficiência cardíaca e
insuficiência renal do que em doentes oncológicos. (9)
No estudo de Solano et al. manifestações clínicas associadas a sofrimento são comuns na fase
terminal das doenças oncológicas e não oncológicas. Sintomas como dor, depressão, ansiedade,
confusão, astenia, dispneia, insónia, náuseas, obstipação, diarreia e anorexia estão presentes nos
doentes terminais com cancro, insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crónica,
insuficiência renal e síndrome de imunodeficiência adquirida. Neste estudo a dor, dispneia e
astenia estavam presentes em mais de 50% de todos os doentes. (10)
Em 2010 um estudo comparativo entre doentes oncológicos e não oncológicos, realizado na
Alemanha, as náuseas, vómitos e anorexia foram os sintomas mais frequentes nos doentes
oncológicos. A astenia e dispneia foram mais frequentes nos doentes não oncológicos. Não se
verificaram diferenças quanto aos problemas sociais, no entanto o grupo de doentes não
oncológicos necessitava de mais apoio nas atividades da vida diária. Este estudo também revelou
que os doentes não oncológicos são raros nas unidades de internamento de cuidados paliativos,
representando 10% nos países da Europa como Alemanha, Inglaterra, Espanha e França. (11)
Os cuidados paliativos não se destinam apenas aos últimos dias de vida ou aos doentes agónicos
contudo é na fase final da evolução da doença que os sintomas se intensificam e que os doentes
mais necessitam de cuidados específicos. (8)
A intervenção em cuidados paliativos abrange o apoio às doenças crónicas não oncológicas, em
fase avançada, onde se incluem doentes com grandes incapacidades. Por isso é importante
conhecer o prognóstico, a gravidade da doença e a informação sobre a tomada de decisão. Esta
informação depende, do tipo de doença, da fase em que se encontra, do grau de
disfuncionalidade, da frequência dos episódios de agudização e sempre da opinião do doente e da
família.
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A National Hospice Organization define a doença terminal como a presença de uma doença
avançada, progressiva e incurável, a falta de perspetiva razoável de resposta ao tratamento
específico, presença de numerosos problemas ou sintomas graves, múltiplos, multifatoriais e em
mudança com impacto emocional sobre o doente, família e intimamente relacionado com a
presença, explícita ou não, da morte e de prognóstico de vida de menos de 6 meses. (12)
Uma das grandes diferenças entre os dois grupos de doentes (oncológicos e não oncológicos) é a
fase final geralmente curta e com marcado declínio dos doentes com cancro que se opõem a uma
fase terminal arrastada dos doentes não oncológicos, pontuada com agudizações da doença,
várias hospitalizações, tempos longos de estabilização fazendo com que a sua evolução e declínio
possa ser moroso. Todo este percurso, muito característico, das doenças crónicas dificulta ainda
mais a determinação do início da fase paliativa. (13)
A National Hospice Organization (NHO) estabeleceu alguns critérios para definir os doentes com
doença crónica não oncológica como doente terminal (12)
:
A progressão da doença tem de estar bem documentada por critérios clínicos,
laboratoriais ou exames complementares de diagnóstico;
Várias idas a um serviço de urgência ou internamento nos últimos seis meses com
declínio funcional ou dependência para 3 ou mais atividades da vida diária.
Desnutrição ou deterioração nutricional com perda de peso superior a 10% nos
últimos 6 meses ou albumina sérica inferior a 2,5 gr/dl.
Segundo a mesma organização, NHO, considera-se doentes terminais não oncológicos os doentes
com insuficiências orgânicas avançadas, doenças degenerativas do sistema nervoso central,
doentes geriátricos com múltiplas patologias. (Anexo 1)
A prevalência da Insuficiência Cardíaca tem aumentado nos últimos 25 anos, especialmente
entre os indivíduos idosos, e é uma condição progressiva associada a alta morbilidade e
mortalidade e marcada diminuição funcional. A NHO criou critérios de terminalidade
baseando-se na classificação da New York Heart Association (NYHA) (Tabela I) e na
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classificação da American College of Cardiology (ACC) e da American Heart Association
(AHA) (Tabela II) caracterizando os doentes em fase terminal os doentes com insuficiência
cardíaca Classe funcional IV e/ou no Estádio D. Recomenda-se para cuidados paliativos os
doentes com insuficiência cardíaca refratária a tratamento médico e sem indicação para
transplante cardíaco.
Tabela I
Classificação Funcional da NYAH (14)
Classe II Restrição ligeira da atividade física. Confortável em repouso, mas a atividade física
normal provoca fadiga, palpitações ou dispneia.
Classe III Restrição acentuada da atividade física. Sintomático na realização de pequenos
esforços.
Classe IV Incapacidade de realizar qualquer atividade física sem sentir desconforto.
Sintomas em repouso. Aumento do desconforto perante a realização de qualquer
atividade física.
Tabela II
Classificação Estrutural da ACC/AHA (15)
Estádio B Doença cardíaca estrutural estreitamente associada ao aparecimento de insuficiência
cardíaca, mas sem sinais ou sintomas.
Estádio C Insuficiência cardíaca sintomática associada a doença cardíaca estrutural subjacente.
Estádio D Doença cardíaca estrutural avançada e sintomas acentuados de insuficiência cardíaca
em repouso apesar da terapêutica médica máxima
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Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), é uma doença com marcada evolução nos
últimos anos sendo uma causa importante de morbilidade e a 4ª causa de mortalidade mundial. A
GOLD (Global Iniciative for Chronic Obstrutive Lung Disease) classifica a gravidade da DPOC
estabelecendo critérios de doença avançada nos doentes com limitação grave do fluxo aéreo
(FEV1/FEV< 0,70; FEV1< 30% ou FEV1< 50% na presença de insuficiência respiratória crónica
(PaO2 <60 mmHg e/ou PaCO2 > 50 mmHg ou Cor Pulmonale) (16)
.
O critério mais utilizado para definir o grau de Insuficiência hepática dos doentes com doença
hepática é a classificação de Child-Pugh (17)
, sendo que os doentes em fase terminal estão no
estadio C dessa classificação. (Tabela III). Nestes doentes, se não houver indicação para
transplante hepático o prognóstico de vida estimado é inferior a 6 meses e beneficiam de
cuidados paliativos.
Tabela III
Estadios de Child-Pugh
1 ponto 2 pontos 3 pontos
Encefalopatia Ausente I-II (mínima) III-IV (avançada)
Ascite Ausente Leve Moderada
Bilirrubina (mg/dL) ≤2 2-3 ≥3
Albumina (g/dL) >3,5 2,8-3,5 <2,8
Protrombina ≥50% 50-30% ≤30%
Estadio A: 5-6 pontos
Estadio B:7-9 pontos Estadio C:10-15 pontos
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A insuficiência renal (IR) caracteriza-se por uma perda lenta, progressiva e irreversível da
função renal. O estadiamento e classificação da doença renal crónica baseia-se na taxa de
filtração glomerular. (tabela IV) (18)
Tabela IV
Estadiamento e classificação da doença renal crónica
Estadio Filtração Glomerular
(ml/min)
Grau de Insuficiência renal
0 >90 Grau de risco para doença renal crónica, ausência de lesão renal.
1 >90 Lesão renal com função renal normal.
2 60-89 IR leve ou funcional
3 30-59 IR moderada ou laboratorial
4 15-29 IR severa ou clínica
5 <15 IR terminal ou dialítica.
Um doente em fase terminal encontra-se no estadio 5, com uma filtração glomerular <15 ml/min.
Se o doente não tiver indicação para diálise ou transplante renal a sobrevida estimada é de 6
meses.
Em Portugal estima-se que 1,5% da população sofre de demência (19)
. Ao longo dos últimos anos
diversas escalas foram desenvolvidas com a finalidade específica de investigar a gravidade da
demência. Um exemplo nesse sentido é a "Escala de Estadiamento Funcional" (FAST) (20)
desenvolvida por Reisberg em 1986. A FAST é composta de sete níveis funcionais que são
distribuídos por ordem crescente de gravidade de acordo com a capacidade cognitiva e funcional
do paciente. O nível igual ou superior 7 desta classificação apoia o prognóstico de terminalidade.
(Tabela V)
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Tabela V
Estadiamento funcional (Functional Assessment Staging — FAST)
Estágio Características Diagnóstico Clínico
1 Nenhuma dificuldade objetiva ou subjetiva Adulto normal
2 Queixas de esquecimento de locais ou objetos. Dificuldades subjetivas no
trabalho Idoso normal
3 Decréscimo do funcionamento no trabalho, evidente para os colegas.
Dificuldade nas viagens para novas localidades.
Compatível com doença de
Alzheimer incipiente
4 Decréscimo na habilidade de execução de tarefas complexas, manejo de
finanças pessoais, execução de compras, etc. Doença de Alzheimer leve
5 Requer assistência na escolha de trajes adequados Doença de Alzheimer moderada
6 _ A Dificuldade em vestir-se adequadamente Doença de Alzheimer moderada
a grave
6 _ B Incapaz de banhar-se adequadamente, pode desenvolver medo do banho
6 _ C Incapacidade de manuseio da toalete
6 _ D Incontinência urinária
6 _ E Incontinência fecal
7 _ A Capacidade de falar limitada a meia dúzia de palavras ou menos, no
curso médio de um dia Doença de Alzheimer grave
7 _ B Capacidade de falar limitada a uma única palavra inteligível no
curso médio de um dia
7 _ C Capacidade de deambulação perdida
7 _ D Perda da capacidade de se sentar sem assistência
7 _ E Perda da capacidade de sorrir
7 _ F Perda da capacidade de levantar a cabeça
7 _ G Postura fletida
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Outra ferramenta útil na doença crónica avançada é a escala Palliative Prognostic Score (PPS).
(21)
A escala PPS foi desenvolvida no Victoria Hospice Society B.C em 1996, revista em 2003 com o
intuito de prever um prognóstico de vida do doente. Esta escala é mais um instrumento de medida
do estado funcional em contexto de cuidados paliativos. Trata-se de uma modificação da escala
de Karnofsky que avalia 5 funcionalidades do doente: a capacidade de deambular, o nível de
atividade e evidência exterior de doença, o auto cuidado, a ingestão oral e o estado de
consciência. A PPS subdivide-se em 11 níveis, de 0% a 100% correspondendo a 0% um
individuo morto e a 100% um individuo independente do ponto de vista ambulatório e saudável.
(Tabela VI). O nível PPS é determinado da esquerda para a direita no sentido de se encontrar a
linha horizontal que melhor descreva a situação. Começando na coluna mais à esquerda vai-se
descendo até ser encontrado o nível que se adequa à capacidade de deambular. Seguidamente, e
partindo da mesma linha, toma-se em consideração a coluna “atividade e evidência de doença”,
descendo-se se necessário ao longo dessa coluna até ser encontrada a melhor descrição para o
grau de atividade mantida e sinais de doença e assim sucessivamente. (21)
Tabela VI
Escala PPS versão 2
% MOBILIDADE ATIVIDADE E
EVIDÊNCIA DE DOENÇA
AUTO-CUIDAD
O
INGESTÃO NIVEL DE
CONSCIÊNCIA
100 Total Atividade
normal
Sem evidência de doença Total Normal Total.
90 Total Atividade normal; alguma
evidência de doença sem
declínio físico, com
recorrência de doença.
Total Normal Total.
80 Total Incapaz de realizar o trabalho
normal; alguma evidência de
doença.
Total Normal ou
reduzida
Total.
70 Reduzida
Incapacidade de
manter o
Incapaz de realizar hobbies;
doença significativa.
Progressão com declínio
Total Normal ou
reduzida
Total.
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emprego,
atividades de
lazer e domésticas
físico.
60 Reduzida Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Apoio ocasional.
Ajuda uma vez
por dia, restante
dia realiza
auto-cuidados
sem ajuda.
Normal ou
reduzida.
Diminuição da
quantidade
habitual.
Total ou com
períodos de
confusão.
Presença de delírio
ou demência.
50 Sobretudo sentado
ou deitado
Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Apoio
considerável.
Ajuda quase todos
os dias para todas
as atividades.
Normal ou
reduzida
Total ou com
períodos de
confusão.
40 Sobretudo na
cama
Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Ajuda quase
total.
Ajuda para todas
as atividades,
exceto pequenas
atividades como
comer
Normal ou
reduzida
Total ou com
períodos de
confusão.
30 Totalmente
acamado
Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Dependência
completa.
Reduzida Completa ou com
períodos de
confusão.
20 Totalmente
acamado
Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Dependência
completa.
Ingestão reduzida a
algumas colheres.
Completa ou com
períodos de
confusão.
10 Totalmente
acamado
Incapacidade para qualquer
trabalho.
Doença extensa.
Complicações graves ou
metástases múltiplas.
Dependência
completa.
Apenas cuidados à
boca.
Estupor.
Delírio por efeito
secundário de
medicação ou
morte próxima.
0 Morte
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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A introdução de cuidados paliativos no momento apropriado garante uma melhor qualidade de
vida ao doente e à sua família. Tem sido usada como indicador para um doente ser elegível para
cuidados paliativos a chamada “Pergunta Surpresa” (22)
“Ficaria surpreendido se o seu doente
morresse nos próximos 12 meses?”.
Como a “questão surpresa” foi reconhecida como fulcral para identificar os doentes com mau
prognóstico e que beneficiariam de acompanhamento de cuidados paliativos, em 2008, um estudo
sobre doentes crónicos renais realizado nos Estados Unidos da América conclui que a “Questão
Surpresa” também se adequou para identificar um sub-grupo de doentes renais a fazer
hemodiálise com alto risco de morte nos 12 meses seguintes, validando e alargando assim esta
pergunta surpresa para doentes renais crónicos. (23)
No entanto esse critério de estimativa clínica de sobrevida usado isoladamente é muito pouco
específico e necessita ser complementado pelo estado funcional do doente, suas co-morbilidades
e o seu estado nutricional. (24)
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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CONCLUSÃO
O envelhecimento da população e a prevalência crescente de doenças crónicas fez aumentar a
percentagem de doentes não oncológicos com necessidade de acesso aos cuidados paliativos. Os
cuidados paliativos pretendem diminuir o sofrimento através da antecipação dos problemas que
podem ser de natureza física, psicológica, espiritual e ou social.
Os cuidados paliativos são muito abrangentes e as suas competências ultrapassam a fase da
doença terminal. A definição de doença terminal num doente não oncológico torna-se ainda mais
difícil do que na doença oncológica. Contudo esse constrangimento não justifica a não inclusão
dos doentes não oncológicos nos cuidados paliativos.
A identificação das necessidades efetivas do doente paliativo não oncológico pode contribuir para
a melhoria da sua qualidade de vida.
Os doentes não oncológicos ainda são pouco referenciados às equipas de cuidados paliativos e é
necessário mais investigação assim como o desenvolvimento de um modelo melhorado para que
que o trabalho das equipas interdisciplinares dedicadas aos cuidados paliativas seja mais eficaz.
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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pacientes con enfermedades no oncológicas en programas y/o servicios de cuidados
paliativos. Med Pal (Madrid), 2010
Acesso aos Cuidados Paliativos dos doentes não oncológicos
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Anexo 1
Critérios de terminalidade
Cancro Qualquer doente com cancro metastático ou inoperável
Sintomas de insuficiência cardíaca congestiva durante o repouso
Fração de ejeção <20%
DOENÇA Nova disritmia
CARDIACA Ataque cardíaco
Síncope ou acidente vascular cerebral
Idas frequentes ao serviço de urgência devido aos sintomas.
Dispneia durante o repouso
DOENÇA Sinais ou sintomas de insuficiência cardíaca direita
PULMONAR Saturação de O2 <88%
Pressão parcial de CO2>50
Perda de peso não-intencional.
Incapacidade para andar
Incontinência
DEMÊNCIA Menos de seis palavras inteligíveis
Albumina <2,5 ou menor ingestão por via oral
Idas frequentes ao serviço de urgência
Tempo de protrombina> 5 s
Albumina <2,5
DOENÇA Ascite refratária
HEPÁTICA Peritonite bacteriana espontânea
Icterícia
Desnutrição ou perda de massa muscular.
Não candidato à diálise
DOENÇA RENAL Depuração da creatinina <15 ml/min
Creatinina sérica> 6
Idas frequentes ao serviço de urgência
SINDROME DE Albumina <2,5
FRAGILIDADE Perda de peso não intencional
Úlceras de decúbito
Confinamento ao leito/domicílio
Fonte: Arantes, ACLQ, Indicação dos Cuidados Paliativos, in Manual de Cuidados Paliativos