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ACCÃD 00 CALOR SOBRE OS ALIMENTOS

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Rodrigo Marques d'Andrade

Acção do calor wbre

os alimentos (UM CAPITULO D'HYGIENE ALIMENTAR)

DISSERTAÇÃO INAUGURAL

APKESENTADA A

ESCHOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO

• ♦ ~v

qofj SNC

PORTO Typographia do «Commereio do Porto»

102—Rua do «Commereio do Porto»—112

1897

ESCHDLA MEDICO-CIHURGICA DO PORTO

CONSELHEIRO DIRECTOR

T>r. Wenceslau de Sou^a 'Pereira de Lima SECRETARIO, 0 ILL."10 E EXC.m0 SNR.

E I C A R D O D ' A L M B I D A J O R Q B

-—*«*-> c****—

CORPO DOCENTE LENTES CAÏIIEDBAÏICOS

OS ILL."1"8 E EXC.mos SNRS.

l.a Cadeira—Anatomia descriptiva e geral João Pereira Dias Lebre.

2." Cadeira—Physiologia Antonio Placido da Costa. !i.a Cadeira—Historia natural dos me­

dicamentos e materia medica— Illydio Ayres Pereira do Valle. i.a Cadeira—Patliologia externa e the-

rapeutica externa Antonio .1. de Moraes Caldas. 5." Cadeira—Medicina operatória Eduardo Pereira Pimenta. 6.* Cadeira—Partos, doenças das mu­

lheres de parto e dos recem-nas-cidos Dr. Agostinho A. do Souto.

7." Cadeira—Patliologia interna e the-rapeutica interna Antonio d'Oliveira Monteiro.

8." Cadeira—Clinica medica Antonio d'Azevedo Maia. 9." Cadeira—Clinica cirúrgica Cândido Augusto C. de Pinho.

10.* Cadeira—Anatomia pathologica Augusto H. Almeida Brandão. 11.* Cadeira—Medicina legal, hygiene

privada e publica e toxicologia.. Ricardo d'Almeida Jorge. 12.a Cadeira—Patliologia geral, semeio-

logia e historia medica Maximiano A. 0. Lemos. Pharmacia • Nuno Freire Dias Salgueiro.

LENTES JUBILADOS

Dr. José Carlos Lopes. José d'Andrade Gran

Secção cirúrgica , Pedro Augusto Dias.

LENTES SUBSTITUTOS

( João Lopes da Silva M. Junior. heceao medica i .„ . _ . „ .,. . ( Alberto Pereira P. d Aguiar. ( Roberto II. do Rosário Frias. Secção cirúrgica j ^ ^ , d o s S a n t o s ph | t0_

LENTE DEMONSTRADOR

Secção cirúrgica Carlos A. de Lima.

Secrão medica José d Andrade brainaxo.

A Escliola não responde pelas doutrinas expendidas na disser­tação e enunciadas nas proposiç5es.

(Regulamento da Eschola, de 23 d'abril de 1810, artigo tãã.°)

Á MEMORIA DE MEU PAE

Ao presidente da minha these

o 111."1" e Exc."w Snr.

JZyi. CsCtiiff-iiÁo-ç-~J0-aà/u.ivn de. cyLCo-ic.es L^aíaas

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PRIMEIRA PARTE

Inirodiicção

I

H i s t o r i a o c r i t i c a .

«Duas coisas, dizia Leibnitz, devem servir de fito ás nossas preoccupações—a virtude e a saúde. »

DR. RICARDO JORGE. (Hygiene Social).

Decerto que a religiosa maxima do illustre sábio alle-mão deveria cahir delicada e docemente no animo de quem a ouvisse ou lesse; mas a mim me palpita que pou­quíssimos a terão cumprido, porque, desde as remotíssi­mas civilisações orientaes onde o regimen dos Deuses a apregoava já, até este fim de século luminoso, eu não co­nheço senão prescripções, regras e decretos tendentes a estabelecêl-a e confirmai-a, signal positivamente seguro de que nem a Moral, nem a Hygiene, tiveram ainda aos pés, penitente e contricta, a Humanidade arrependida.

Quero eu dizer que, no decorrer de séculos incontá­veis, desde o homem primitivo, simiano e trogloditta, até ao janota perfumado e palaciano do nosso tempo, a ma­xima do bom Leibnitz só excepcionalissimamente terá sido executada; e o certo é que, embryonaria nos primei­ros alvores da intelligencia humana, se tornou ao depois

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tão intuitiva que, no volver dos tempos, foi successiva­

mente uma preoccupação constante de todas as institui­

ções civilisadoras. Nos livros sagrados de Sucutra (1) e de Manou (2) como no Livro da ra^ão suprema de Lao­

Tseu e nos preceitos phylosophicos e moraes de Confú­

cio; no Zend­Avesta dos Persas, que contém toda a moral de Zoroastro, como nas Leis de Moysés; na "Bíblia—o doce e extraordinário poema—como em toda a antiga ou moderna legislação civil e religiosa, lá surge constante­

mente a apologia fervorosa da Ethîca e da Hygiene. Não ha duvida que, desde a mais remota antiguida­

de, ao vmenos desde que a intelligencia humana produziu as maravilhosas civilisações da China e da India, da Per­

sia e do Egypto e, mais tarde, as de Grécia e Roma,—■ desde então até este extraordinário século de maravilhas scientificas pôde dizer­se que o generoso e alevantado principio, ainda que bem gravado no espirito de todos os povos, raras vezes teve uma prática regular e, menos ve­

zes, recebeu uma consagração geral e rigorosa. O fito de virtude tem sido mais ou menos vivamente

escavacado, ao bello prazer de milhares de gerações que ahi nos legaram o divertimento, em gosto, penso eu, do melhor quilate. Hoje, como hontem, a virtude de cada um, e por isso a virtude humana, tem consistido antes

(') Ayur­Veda, Samá­Veda e Atharva­Veda. ('­) Manava­Dharmçt­Sastra ou Lei de Manou. (Código religio­

so, politico c social, dividido em 12 livros que tratam da educação, da purificação, maneira de vida, etc.)

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n'uma formula muito prática e muito simples—aconselhar o que não fazemos,—e tanto que o povo, que muitas ve­zes é sábio, lá glosou—iBem p prega frei Tlioma^.. .

Já com a sande eu acceito e comprehendo melhor que, ás preoccupações constantes dos sábios hygienistas, haja, da parte dos povos e em todas as civilisações, desde as mais antigas, correspondido um maior disvelo sem que, toda­via, este tenha sido, em tempo algum, motivo para louvo­res. A lucta pela vida, o instincto da conservação e trans­missão da espécie, o egoismo natural, são effectivamente testemunho seguro de que a Humanidade tem procurado, de par com a sua evolução civilisadora, viver commoda-mente, rodeada de confortos e precauções, livre de males e de agruras, na conquista infinda de um paraizo terreal.

Certo que, isto só, seria pouquíssimo dentro do vasto e grandioso programma da Hygiene; mas o certo é tam­bém que a sua evolução, mais scientifica do que intuitiva € natural, só podia fazer-se de par com a marcha da ci-vilisação, e é por isso mesmo que apenas n'este fim de século de maravilhoso progresso a Hygiene começou de facto, entre os povos civilisados, a receber uma consa­gração sincera, merecendo a sábios e- leigos a mais viva e rigorosa dedicação.

Verdade é que a noção ethica, uma ou outra vez, so­brelevou a noção de hygiene, como succedeu no período tenebroso da Edade Média, rigorosamente instaurado o domínio do catholicismo. Então, «o corpo era um cárcere

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obscuro e vil, tolhendo nas impurezas da carne e do de­leite a posse da vida eterna, a felicidade mysteriosa da bem-aventurança. Esmague-se esse diabólico inimigo da alma, torture se a materia execranda, macere-se a jejuns e penitencias, e anniquile-se a infernal sensualidade cor­pórea.

«Pureza é só a da alma que se redime pelo soffrimen-to para a eternidade celeste; impureza é só a d'aquelle que mergulha no pântano mundanal, presa do diabo e ré­probo do inferno onde não ha tortura que lhe não infli-jam ou dôr que o não excrucie. Era o nihilismo em hy­giene como em tudo.

«Cuidar do bem-estar, recrear-se nos gosos naturaes, lavar o corpo, acear-se e compôr-se, ter a preoccupação do deleite e da belleza, anathema sit.

«Assim o guerreiro da cruz era typo immundo de que a pelle crassa só tinha sentido o contacto molle da agua na pia baptismal; a devota dama da mansão feudal, a quem a catéchèse sacerdotal persuadira que o banho era indecente pratica, descuidosa da limpeza, era uma urna de detestável fragrância; as habitações eram d'uma por­caria revoltante, e as alcovas lôbregas sentinas; as cida­des, emfim, eram recortadas de viellas infectas e matiza­das de esterquilineos, espécie de esgotos livres, por onde o transeunte cauteloso não sabia se resguardar os pés do monturo, se a cabeça do agua vae!» (*)

(i) Du. R. JORGE (Hygiene Social, pag. 9 e 10.)

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De uma verdade flagrante esta bem cabida critica do illustre professor, pois que a Epocha Medieva represen­ta, na Historia da humanidade, uma crise única e ex­traordinária, em que o fanatismo religioso levado até ao delirio, conseguiu victoria completa da evolução scientific ca nas suas múltiplas manifestações; mas, passada a cri­se, embora lentamente, lá surge de novo a Sciencia, ra­diante, na sua marcha ininterrompida até este século de apothéose triumphal; e, por isso, a Moral, cá chegou também, mas arruinada e rota, aos solavancos, n:um es­tado de miséria que faz.pena até aos scepticos.

Mas, de parte e carinhosamente a tão mal compre-hendida Ethica, preoccupação constante dos sábios le­gistas desde remotíssima edade, confirme-sc aqui, num rápido esboço histórico, que a sciencia que procura pre­venir os desvios da saúde lhes não mereceu menor inte­resse. Então, é claro, embryonnaria ainda, não era uma Hygiene á moderna, invadindo e assenhoreando-se com' manifesta anctoridade de todas as múltiplas manifesta­ções da nossa Vida; constituía, a bem dizer, apenas um capitulo do seu vastíssimo programma de hoje.

Naturalmente, a Hygiene alimentar foi a primeira preoccupação do homem intelligente, obrigado a nutrir-se para viver e cioso da sua vida por egoísmo e instincto de conservação. Assim, devia constar nas primitivas so­ciedades que a ingestão das substancias alimentares, po­dendo ser seguida de accidentes de natureza e gravidade

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muito variáveis, precisava da observância de um certo numero de cuidados que, já então, não deviam ser estra­

nhos; e é absolutamente acreditável que, desde o primi­

tivo vegetarista até ao omnívoro das antigas civilisacões Orientaes, durante esse largo periodo do mais rigoroso silencio, soubesse já o homem seleccionar os alimentos bons e abster­se cautelosamente dos que, pelo aspecto, pelo sabor e aroma lhe parecessem maus. Mas, quando a estes primeiros principios de Hygiene alimentar se suc­

cède uma Hygiene de auetoridade incontestável, é quan­

do, no fulgor das civilisacões orientaes, nós a vemos col­

locada sob o regimen dos Deuses. São elles quem dieta os preceitos hygienicos, e Sucu­

tra no seu Ayur­Veda dedica dois longos capítulos ás substancias salubres e insalubres, aos alimentos e ás be­

bidas. Mas ha ainda na litteratura Indú um livro notabi­

lissimo, verdadeiro código de prescripções de tudo o que diz respeito á hygiene alimentar: é o livro das «Leis d ■Manou ou Manava­Darma­Sastra.» (l)

Ahi aponta Manou os alimentos prohibidos e insiste também sobre a necessidade de que a pessoa que vende ou offerece os alimentos não deve ser um louco, nem colérico, nem doente; do mesmo modo o alimento tocado por mulher menstruada devia ficar interdicto. E, outro capitulo muito curioso: «A alimentação de um medico,

(i) Leia­se, a este propósito, um bello artigo de Dujardin­Beau­

metz. (Semaine Médicale, 1893, pag. 225.)

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de um caçador, de um preverso, d'uma mulher grávida cu recentemente parida, é impura desde que, no ultimo caso, não tenham passado dez dias sobre o parto.» E accrescenta que «é necessário jejuar durante três dias depois de haver comido da alimentação d'alguma d'estas pessoas.»

No livro v das Leis, apparece uma longa enumeração das substancias prohibidas e permittidas-, assim, o alho, a cebolla, os cogumcllos e todos os vegetaes cultivados em matérias impuras não deviam ser comidos pelos dividjas—homens bons e regenerados, pertencentes a uma das primeiras classes dos brahmes.

As prescrições de Manou dizem ainda respeito ao lei­te e á carne que prohibe quasi por completo.

Quasi os mesmos preceitos encontramos nos Egypcios; e é também invocando a divindade que são impostas as regras d'hygiène referentes á alimentação. Esta variava com as castas: «As castas populares eram quasi ex­clusivamente alimentadas com vegetaes e peixe; as cas­tas aristocráticas e sacerdotaes só comiam carne de vac-ca, de cabra ou de carneiro, submettida a uma rigorosa inspecção sanitaria, e d'isto se incumbiam zelosamente os sacerdotes, com todo o cuidado e circunspecção.

Na hygiene alimentar dos Judeus as indicações são mais gefaes e mais precisas. Moysés introduz nas prati­cas hygienicas e particularmente alimentares um conjun-cto de conhecimentos de policia sanitaria verdadeiramen­te admiráveis, sobretudo no que se referem aos meios de

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reconhecer se a carne dos anirnaes deve ou não servir para consumo. São tão notáveis estas prescripções que, pouco haveria hoje a modificar, para conseguir uma ex­cellente guia de veterinária.

E' claro que o sábio legislador para dar ás suas regras de policia sanitaria uma certa garantia transformou-as em regras religiosas. Moysés prohibia o consumo da car­ne de porco, dos roedores, dos reptis, dos peixes gordos e das aves selvagens, assim como prohibia também que o povo se alimentasse dò sangue ou da carne de um ani­mal morto naturalmente ou nas garras d'outro.

O vinho e licores eram apenas consentidos, pois que a embriaguez era motivo de rigorosa censura. A agua era a bebida aconselhada e considerada mesmo como eleita para os que deviam ter uma vida pura, como os sacerdotes e os nazarenos.

Desde então, pôde dizer-se que, em todo o largo pe­ríodo que chega até nós, atravéz das civilisações da Gre -cia e de Roma, ainda não houve sequer um momento em que a noção d'Hygiène alimentar faltasse no espirito dos povos ou esquecesse nos decretos dos legistas, pois que, da sua boa interpretação, depende principalmente o augmento da duração média da vida e o bem-estar, a força e saúde dos povos; e, mais do que nunca, n'este fim de século, as questões da alimentação são considera­das de tal magnitude, sob o ponto de vista physiologico, medico e social, merecem tal interesse, tanto cuidado e tão grande importância que, em seu favor, perpassa

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actualmente nos povos civilisados urna revolução ardente e sympathica.

II

Deveras interessante é o recordar-se que, de toda a escala animal, somente ao homem occorreu ainda a lem­brança de fazer passar os alimentos por certas prepara­ções, entre as quaes a cocção tem o logar mais notável, tanto sob o ponto de vista da digestibilidade como sob o ponto de vista da destruição dos productos pathogenicos.

Inquirir da Historia humana como e quando surgiu a lembrança é, certamente, problema intrincadíssimo; basta­rá saber-se que o fogo tem relações tão remotas com o homem que já o duvidoso antropopitheco da Beauce e do Cantal d'elle se utilizava para aperfeiçoar as ferramentas de silex, (') e que, ao depois, a prehistoria confirma que o trogloditta das cavernas submettia á acção do destrui­dor elemento uma parte ao menos da sua alimentação— a que lhe provinha da caça.

Effectivamente o primeiro antropoide devia ser vege­tariano e alimentar-se exclusivamente de raizes e fructos. Mas, á medida que o seu génio inventivo lhe foi facul­tando meios de lucta, de modo a transformar-se num verdadeiro domador das feras colossaes que o cercavam,

(') DE MORTILLET. (Préhistorique. Comptes rendus de la Société Géologique de France à Awillac, i884.^

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então, tornou-se caçador e, seguidamente, carnívoro e ichtyophago, fazendo, talvez, intervir n'esta altura, um elemento já conhecido—o fogo.

A alimentação assim preparada tende sobretudo a ge-neralizar-se desde a edade neolithica. N'esta epocha es­sencialmente agrícola, a cocção dos alimentos era uni­versalmente praticada, por isso que a alimentação sendo quasi exclusivamente vegetal, o fim principal da agricul­tura de então como o de hoje, consistia no cultivo de plantas que, só depois de uma preparação artificial, (moagem, maceração, cocção) poderiam servir de ali­mento. (')

Mas, frugívoro e vegetariano, antes por necessidade do que por natureza, o homem tornou-se omnívoro des­de que se armou em caçador dos grandes mamíferos de que tirava as pelles para seu vestuário e a carne da sua alimentação.

Na índia, onde ainda hoje os vegetarianos formam seita numerosa, como também n'algumas sociedades eu­ropeias, este regimen alimentar tão util, por vezes, em therapeutica, é principalmente o resultado de uma con­venção religiosa ou não. Os Boshimans, os Australianos, os povos selvagens, ainda os mais miseráveis, são omní­voros; e até a anatomia, pela organisaçao do systhema dentário, prova que o homem não é, de ha muito, exclu­sivamente vegetarista.

(') VIRCHOW. (Histoire de la cuisine. Revue scientifique, t. xx.)

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Vegetariano ainda ou já omnívoro, o certo é que o trogloditta acordou um dia consciente de que, submet-tendo os alimentos á acção da agua e do calor, e condi-mentando-os com substancias varias, preparava assim uma espécie de digestão preliminar da digestão natural definitiva, e transformava as carnes sangrentas, d'aspecto repugnante e aroma desagradável, n'um alimento aperi­tivo e saboroso.

Assim, a agua, o calor e os temperos se tornaram os três principaes agentes da preparação dos alimentos. Mas, d'entre elles, se destaca o calor como agente essencial «por que a agua é raras vezes empregada a frio, e os condimentos nem sempre são utilizados. E', pelo contra­rio, graças ao calor que a agua promove a solução e des-aggregação; que certos temperos podem ser facilmente empregados; que, finalmente, as substancias alimentares experimentam notáveis modificações em presença de óleos e gorduras.

«O calor, pois, a cocção, determina modificações mais importantes do que a agua: desaggrega ou concentra as partes alimentares, dá-lhes um aroma aperitivo pela pro-ducção do osmazone (') e augmenta-lhes as qualidades

(*) Foi Thenard quem descobriu e assim denominou o princi­pio oloroso dos caldos. E ' um liquido vermelho-escuro cujo cheiro lembra o da carne cozida e cujo sabor é análogo ao do extracto concentrado de carne.

Prepara-se triturando e macerando na agua distillada pequenos pedaços de carne muscular, filtrando e evaporando depois até á sec-cura, e tratando emfim pelo alcool a 6o° que dissolve o osniajonc. E'

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nutritivas. Mas o calor tem ainda uma outra vantagem de uma importância capital: esteriliza os alimentos, desem-baraça-os de certos alcalóides tóxicos e dos micróbios e parasitas de que podem estar invadidos. Se pensarmos que é por intermédio dos alimentos sólidos ou líquidos que a maior parte das doenças epidemicas se propagam (fe­bre typhoide, cholera, etc.) conviremos facilmente que o uso duma cocção conveniente tem um alto valor prophy-latico e hygienico. » (')

Uma vez conhecido e successivamente aperfeiçoado com os progressos da olaria e da cerâmica, ainda assim o processo de cozinhar os alimentos parece não ter va­riado muito nos différentes povos da antiguidade, como o testemunham os poemas nacionaes dos Vedas, o Zend-Avesta, a Biblia, etc., nem, desde então até hoje, as modi­ficações culinárias parece terem sido notáveis. O homem primitivo, como o selvagem da actualidade, devia expor a carne directamente ao fogo, ou suspendendo-a de qual­quer instrumento apropriado, ou atirando-a ao seio do brazeiro, ou, talvez já, aquecendo primeiro ao rubro a lasca de silex e sobrepondo-lhe ao depois o appetecido alimento.

a elle que o caldo e a carne devem suas propriedades aromáticas e aperitivas. Todavia, o osmafom, não é mais do que uma mistura complexa de substancias, entre as quaes podemos citar a xanthina, a creatina, a creatinina, a sarcosina e o acido inosico que, certamen­te, lhe dá o bom aroma e o gosto particular.

(') DR. J. LAUMONIER (Hygiène de l'alimentation), pag. 78.)

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Nos Patagonios está ainda em uso um processo aná­logo. (') Como não possuem vasos susceptíveis de sup-portar a acção do fogo, servem-se de pedras concavas, em forma de escudella, nas quaes fervem a agua em que deve entrar o alimento. Outras vezes entalam a carne entre duas pedras ardentes, ou então recorrem a uma espécie de fornos primitivos, análogos decerto aos que hoje se improvisam pelas nossas romarias.

Este processo de cozinhar os alimentos foi, pois, uni­versalmente empregado no principio da humanidade por­que, n'esta epocha, a olaria neolithica, trabalhada n'uma massa permeável e porosa, não podia prestar-se aos mes­mos serviços que as nossas modernas louças; mas, á me­dida que a olaria e a cerâmica foram progredindo na evolução das civilisaçoes, de par com os conhecimentos chymicos e physiologicos, a culinária transformou se n'uma arte verdadeira, de processos múltiplos e deli­cados.

(') VIRCHOW (Histoire de la Cuisine. Revue scientifique, t. xx.)

SEGUNDA PARTE

Acção do calor sobre os alimentos do reino animal

1

C a r u o s

Porque julgo inutil detêr-me com os variados proces­sos actuaes de cocção dos alimentos, passo immediata-mente ao estudo seguido e ordenado da múltipla acção do calor sob o ponto de vista das modificações physicas e chimicas que elle determina e, sobretudo, sob o ponto de vista da sua influencia anti parasitaria e anti-micro-biana.

ã) MODIFICAÇÕES 1'HYSICAS

Dos curiosos trabalhos de Trousseau e Beaunis a este propósito realisados, conclue se que a temperatura cen­tral das carnes mal passadas é, em média, de 56" c , po­dendo á peripheria attingir cerca de 70o. Mais recente­mente, Vallin realisou, a propósito da trichina, experiên­cias deveras interessantes.

Na sua memoria sobre a «Temperature centrale des viandes préparées» (*) investigando principalmente a tem-

(') Revue d'hygiène et de police sanitaire; année 1881, pag. 177.

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peratura attingida pelas partes mais profundas, obteve os seguintes resultados:

i." Carne de vacca mal assada, com alguns pontos violáceos— 5i a 55°; bem passada, de cor vermelho-vivo e não sangrando—55 a Go°.

2.° Carne de carneiro preparada e observada exa­ctamente nas mesmas circumstancias—48 a 5o° e 52 a 56°

3.° Carne de porco, assada—62 a 68°. Esta temperatura, relativamente elevada, pôde ser de­

vida á grande quantidade de gordura que a carne con­tém.

Vallin estudou egualmente a temperatura das carnes cosidas e conclue que, uma posta de très kilos de carne de vacca, mergulhada na agua fervente, só ao fim de uma hora terá attingido nas suas partes profundas a tempera­tura de 90 a 100o c. O toucinho salgado attinge 52° ao fim de vinte minutos, 76" ao fim de quarenta e 84o ao fim de uma hora. Quando a carne, porém, é muito compa­cta e envolta de uma camada de gordura ou coberta de pelle espessa, então a temperatura, só passadas horas, sobe a cerca de 85".

De uma série de experiências emprehendidas pelo dr. Bardet, resulta que a carne assada ou grelhada (em bife) não attinge geralmente, senão uma temperatura central média de 55"; uma costelleta chega a 63°, e o peixe as­sado varia entre 53" (sardinha) e 5i° (arenque). Na en­guia e no demais peixe de carne gorda, póde-se observar uma temperatura de 70". O mesmo acontece para as cos-

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telletas de porco (77o), e para os filetes de gallinha e de outras aves gordas em que a temperatura pôde subir a cerca de 90o c.

Do que fica exposto, e resumindo, conclúe-se que o modo de preparação das carnes assim como a qualidade e a quantidade têm uma influencia considerável sobre a temperatura que podem attingir tanto nas partes centraes como á superficie. Mas ha ainda uma outra causa e bem importante da variação de temperatura: a presença de gordura nos tecidos. Effectivamente, os hydrocarbonetos ardem mais facilmente e o seu ponto de ebullição é mais elevado que o da agua. E' por isso que os alimentos gor­dos apresentam geralmente uma temperatura superior á dos alimentos magros, ainda que tratados nas mesmas condições.

Quando, na preparação dos alimentos, a acção do ca­lor não é convenientemente regulada, estes soffrem um certo numero de modificações. Em primeiro logar pro-duz-se a exsiccação, dependente da perda d'agua que o alimento contém, e, com este prejuízo, perde também o alimento uma parte das suas propriedades digestivas e saborosas. Depois, se a carne for por- muito tempo dire­ctamente submettida á acção do fogo, torna-se sêcca e, como perdeu agua e gordura, diminue de volume e de peso; se a exsiccação se prolonga, tudo termina pela car-bonisação.

A cocção evita estes inconvenientes. A carne diminue de consistência, absorve agua em maior ou menor quan-

:s

'22

tidade, e cede ao meio liquido materiaes solúveis que dão ao caldo o seu aroma e propriedades digestivas. Esta preparação das carnes por ebullição é o proces­so mais vulgarisado entre as classes operarias, e ex­plicate pela facilidade de obter dois pratos com o mes­mo alimento—o caldo e o cozido. Os hygienistas consi­deram oprimeirocomoum producto quasi inteiramente des­tituído de valor nutritivo, actuando, sobretudo, como esti­mulante das funcções digestivas, propriedade devida aos seus princípios aromáticos.,Varia, além d'isso, de compo­sição e riqueza segundo a maneira da confecção: mergu­lhando a carne na agua fria levada depois, gradualmen­te, até á ebullição, e assim mantida durante 4 ou 5 ho­ras, obtém-se um caldo succulento e rico, e um cozido sêcco e fibroso; mas, se ajuntarmos a carne somente no momento da ebullição, conservamos-lhe os seus princí­pios nutrientes com prejuízo manifesto do caldo.

«O caldo bom e vulgar contém 75 a 3o grammas de resíduo sêcco, um terço do qual de matérias salinas (chloretos, phosphatos)' e dois terços de matérias orgâni­cas (creatina, creatinina, sarcina, acido láctico, etc.) gor­dura e uma pequena porção de matérias albuminóides.

«A carne fervida perde 40 % do seu peso. «Não é, pois, o caldo um alimento reparador para o

homem de boa saúde, mas serve facilmente de vehiculo ao pão, massas, legumes, e, sob a forma de sopa, cons­titue um alimento completo e de fácil digestão.» (*)

(i) PoLiN ET LABIT (Examen des aliments suspects, pag. 220.)

23

b) MODIFICAÇÕES CHYMICAS

Pois que já me referi, por incidente, á origem e natu­reza do osma\one assim como aos productos olorosos que o compõem, é azado agora o momento de estudar as modificações da albumina e peptonisação.

O calor determina, effectivamente, notáveis modifica­ções nas substancias albuminóides. Encontra-se a albu­mina, no estado normal, no sangue, nos líquidos serosos, na clara dos ovos, etc. Mas, ao lado d'ella, existe ainda uma grande quantidade de substancias albuminóides, simples modificações da albumina tvpo, como sejam a serina, a musculina, a caseína, a hemoglobina, a ossei-na. . ., etc., e, sobre todas ellas, actua o calor de modo análogo. Nenhuma é volatil, e todas téem, geralmente, pontos diversos de coagulação. Assim, para a albumina dialysada, a coagulação começa pelos 5o°, augmenta no­tavelmente dos 57o aos 63°, torna-se quasi nulla dos 63° aos 71o e produz-se, para os */8 da albumina dissolvida, entre os 72° e 75o. (')

Os trabalhos de Grimaux, Hoppe-Seyler, Gautier, mostraram que a albumina diluida e levada a uma tem­peratura de mais de 100o, durante um certo tempo, se transformava em peptona, o que tem feito pensar que as peptonas são uma forma hydratada da albumina. Ora, as peptonas sendo, sob o ponto de vista physiologico, o re-

(') A. GAUTIER. (Cours de. chymie biologique, t. m, pag. 124.)

'24

sultado de uma transformação das matérias albuminói­des, comprehende-se facilmente que, se a cocção se fizer em presença do vapor d'agua, mantido durante um certo tempo a uma temperatura elevada, podemos obter uma transformação parcial dos albuminóides em peptonas e operar assim uma primeira digestão que facilitará singu­larmente as operações ulteriores da nutrição e da assimi­lação, sobretudo se o estômago estiver enfraquecido e doente. Comprehende-se a vantagem, pois que sabemos que as matérias albuminóides são no estômago transfor­madas em peptonas sob a influencia do sueco gástrico, transformação que tem por fim tornál-as solúveis nos lí­quidos do organismo e, por conseguinte, assimiláveis.

C) ACÇÃO ANTI-PARASITARIA.

E' facto bem averiguado que as carnes d'alimentaçao contêm muitas vezes larvas e ovos de parasitas, entre os quaes, como mais vulgares e importantes, estão as tentas e as trichinas. Pois, é necessário, para os destruir, que a temperatura attinja pelo menos 65° ou perto d'isso, por­que, do contrario, não se fará a coagulação da albumina; e logo d'aqui se conclue que devemos preferir ás carnes assadas, em que a temperatura só excepcionalmente é su­perior a 6on, as carnes cozidas, de temperatura variável entre 90 e 100o.

As doenças parasitarias entre nós, são, felizmente, muito pouco vulgares, e isto é principalmente devido a

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que, ao inverso do que succède na Allemanha, na Ingla­terra e outros paizes do norte da Europa, usamos muito pouco de carnes cruas ou mal assadas.

A tenia solium provém da carne de porco. No tecido cellular d'esté animal se encontra um parasita, o cys-ticerco, de forma ombilicada e cabeça provida de uma dupla coroa de colchetes que lhe permittem a fixação no tecido intermuscular.

O parasita pôde ficar n'este estado, immovel, duran­te muito tempo. Somente depois da morte d'esté e da in­gestão da sua carne é que, entrado no intestino do ho­mem, ahi se fixa por meio dos colchetes, até que se trans­forma na tenia verdadeira, com um numero d'anneis con­siderável, podendo attingir o comprimento de 6, 10 e mesmo i5 metros, e occasionando múltiplas perturbações digestivas e nervosas: salivação, nauseas, boulimia, vó­mitos, spasmos laryngeos, vertigens, tosse spasmodica e convulsões epileptiformes.

Cada cucurbitino, ou annel que se desenvolve, é her-maphrodita e fecunda-se a si próprio. Depois, ou o annel se destaca, ou deixa sahir os ovos fecundados que, cahi-dos no solo ou na agua, podem ser ingeridos pelo porco, onde se tornam cysticercos, e d'ahi passarem de novo pa­ra o homem

A cocção cuidada e completa da carne é o melhor preservativo de tão incommodo hospede, porque basta uma temperatura de 65° para destruir os cysticercos. Também, a ingestão de carne afiambrada, salsichas, etc.,

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deve ser cuidadosamente evitada quando se não esteja certo da boa saúde do animal morto.

A tenia medio canellata ou inerme é, analogamente á tenia solium, um parasita do boi onde existe sob a forma de cysticerco, apenas provido de ventosas. Ingerido, pro­voca symptomas idênticos, assim como passa as mesmas transformações. Na França e n'outros paizes da Europa, a sua frequência está na razão directa do emprego da carne crua ou mal passada. Em Portugal, o parasita é ainda mais raro do que a tenia solium e, como para es­ta, o melhor preservativo está no uso de carne sujeita a uma temperatura superior a 65°.

A tenia lata ou botriocéphalus não possúe, contraria­mente ás precedentes, nem colchetes, nem ventosas. Dis-tingue-se, a. demais, pela cor cinzento-amarellado, e pela forma dos anneis, mais largos do que compridos.

Ignora-se onde passa a phase de cysticerco, mas, co­mo se encontra de preferencia nas proximidades dos la­gos, do mar e rios, Bordier e Leuckart crêem que os pei­xes são os hospedes habituaes do cysticerco.

O Dr. Braun, de Dorpat, demonstrou que o botrio­céphalus provinha dos salmões, lúcios e enguias, por­que conseguiu botriocephalisar gatos alimentados com este peixe. (*)

Como recentemente já fiz notar, a invasão do parasita é devida a uma imperfeita cocção do alimento.

(!) BORDIER (Géographie Médicale, pag. 363.)

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A trichina provêm ainda, como a tenia solium, da carne de porco. A sua descoberta, por Tiedeman em 1821, ou por Wood em 1834, é d'origem ingleza e a Owen se deve o nome que hoje conserva. O porco tri-chinosado possue nas fibras musculares pequenos kistos que contéem a trichina spiralis. E', geralmente, única em cada kisto, mas, no emtanto, pôde apparecer associa­da, e o numero dos kistos é, por vezes, considerável.

Ingerida a carne, o kisto é digerido e as trichinas fi­cam livres no tubo digestivo. Ahi se desenvolvem e, mal nascidos, os embryões, encaminham-se para as fibras musculares, escolhendo, de preferencia, os músculos da nuca, da espádua, do braço, o diaphragma, a lingua, etc., onde se enkistam.

A trichinose é uma affecçao grave, de symptomas vá­rios: embaraço gástrico, febre, dyspnêa, edema, aspecto typhoïde, etc. «Nas epidemias d'Halberstadt em i863 (28 defuncções em iõo indivíduos atacados) .e de Emersle-ben, estudadas por Brouardel e Grancher, os symptomas mais característicos foram: diarrheia coleriforme ao prin­cipio, dores musculares depois, estado typhoide, e, so­bretudo, um notável edema desde o peito até ás faces. Houve então mais de 100 mortos em 3oo atacados.» (')

A morte pôde mesmo sobrevir ao fim de seis sema­nas a dois mezes; e, se a cura vence, a pelle do doente cobre-se de pequenas ulcerações dolorosas que, por feli­cidade, passam rapidamente.

(!) PoLiN ET LABIT (Examen des aliments suspects, pag. 5ç>.)

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A trichinose reveste, por vezes, a forma epidemica e pôde considerar-se endémica na America do Norte e na Allemanha onde, desde i860 a 1865, se observaram mais de 40 casos n'um pequeno numero de localidades.

Ora a melhor prophylaxia da doença é a cocção tão completa quanto possível dos alimentos, pois que, a de­mais, as trichinas offerecem uma notável resistência á sua destruição pelo calor, não merecendo confiança uma tem­peratura inferior a 70o. Algures li eu que, pedaços de carne trichinosada mergulhados, durante vinte minutos, na agua fervente, continham ainda trichinas vivas, que não morreram senão ao fim de meia hora!

Vallin realisou, a este propósito, experiências muito importantes, submettendo a temperaturas determinadas entre 48o e 6o"c. e durante vinte minutos, partes eguaes de carne trichinosada que depois fazia ingerir a caviás e coelhos. A carne era cozida em recipientes de vidro con­tendo todos a mesma quantidade d'agua. Eis os resul­tados: (d)

CALOR RESULTADOS

, oo S 3 coelhos atacados "T" 46 c j 1 coelho indemne -)- 5o° c 1 cão atacado -)- 52° c 2 coelhos atacados , r 0 l 2 coelhos indemnes

~> 4 c j 1 coelho atacado , ,fi(j , 2 coelhos indemnes

T 5D e 3? | 1 coelho atacado \ c „ ( 2 coelhos indemnes

"T" ( 4 caviás indemnes

(l) VALLIN (De la resistance des trichines à la chaleur. Revue d'hygiène, 1881, pag. 178.)

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Como se vê, somente á temperatura de 6o° é que os animaes em experiência ficaram indemnes, e deduz-se claramente que a carne da nossa alimentação deve sem­pre soffrer uma temperatura superior.

d) ACÇÃO ANTI-MICROBIANA

Muito propositadamente reservei para ultimo logar o estudo do calor sob o ponto de vista da sua acção bioló­gica, de uma importância capital em hygiene alimentar.

Leucomàinas, ptomaïnas e toxinas.—As carnes que servem para a nossa alimentação são compostas de um numero considerável de elementos anatómicos, denomi­nados cellitlas de formas e funcções múltiplas, que, no estado normal como no estado pathologico, dão origem a alcalóides—leucoma'ïnas de Gautier ou—«productos de secreção da cellula animal viva, no estado physiologico ou pathologico». São as variações determinadas na natu­reza d'estes productos de secreção cellular que determi­nam o estado de saúde ou de doença de todo o orga­nismo.

Ao lado d'estas cellulas encontram-se também outros organismos infinitamente pequenos, parentes próximos das algas: são os micróbios, tão úteis como perigosos, e, n'este caso, pathogenicos e toxinigeros.

Trate-se de leucomàinas ou de toxinas, estes produ­ctos são sempre fornecidos por cellulas vivas, e, quando estas morrem, produzem-se notáveis modificações chv-

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micas; apparecem então as ptomiinas,—alcalóides muito mais tóxicos que as leucomaïnas physiologicas, porque são alcalis orgânicos de putrefação.

Pois, se estes alcalóides entrarem na circulação san­guínea ou forem absorvidos em quantidade sufficiente, podem determinar a intoxicação e phenomenos convulsi­vos, stupefacientes ou paralysantes, análogos aos do curara.

Se notarmos, a demais, que existem sempre nos ali­mentos e que a temperatura a que sao destruídos é ra­ras vezes attingida pela carne cozida e quasi nunca pela carne assada, fica reconhecida toda a sua importância em hygiene alimentar.

As principaes leucomaïnas são: (:t) A adenina, derivado da nucleina, deshyratando se á

temperatura de ioo°c. A sarcina, proveniente da carne muscular, menos to­

xica que a precedente. A xanthina, que provém do tecido glandular e se des-

tróe a i56° com formação do cyaneto de potássio. A guanina, descoberta no guano mas que também

pôde provir das glândulas e carne muscular, deshydra-tando-se a ioo°.

A carnina, encontrada no extracto de carne; deshy­drata se a ioo°.

(') Consultar a este propósito o t. m do Cours de Chymie Bio logique, de Gautier.

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A creatina, extrahida da carne muscular, do cérebro e do sangue.

E um anhydride dà leucoma'ina precedente e acom-panha-a muitas vezes, a creatinina, descoberta na urina e secreções animaes, e no liquido amniótico. Ao lado d'estes dous últimos corpos enfileiram ainda as leuco-maïnas denominadas creatinicas: xantho-crealinina, am-phi-creatinina, pseudo xanthina, etc.

Pois que todos estes corpos são produetos de consum-pção, devem ser expulsos do nosso organismo, porque, se n'elle demoram e se accumulam, determinam uma verdadeira intoxicação.

Bouchard provou que cada individuo fabricava em cincoenta e duas horas a quantidade de veneno capaz de o intoxicar. E' o que elle denomina—urotoxia.

Estas leucomaïnas foram encontradas por Gautier na saliva, por.Pouchet, Bouchard e Charrin nas urinas, e, nas dejeções dos coléricos, por Villiers e Pouchet; mas é provável que n'este ultimo caso, se trate antes de toxi­nas provenientes de micróbios pathogenicos e, particular­mente do komma bacillus ou bacillo do cólera.

As ptomainas são muito mais numerosas e mais toxi­cas, pois que são produetos de putrefação. Inutil, penso eu, a sua descripção chymica e physiologica. Tanto bas­tará resumir num quadro as principaes, indicando na primeira columna o nome das ptomainas e toxinas; na segunda, as matérias orgânicas em que se encontram; na terceira, a sua acção physiologica; na quarta, emfim, a

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temperatura a que são destruidas—informação recolhida do já citado livro de Gautier:

Plomaínas e to­ Temperatura de xinas Proveniência Acção pliysiologica destruição

Butilamina. Figado de ba­ Estupefaciente e calhau. convulsiva. 4- 86° c.

Tetanoxina. Tétano. .— 4-100° c. Keuridina. Cadáveres hu­

manos. Não toxica. — Cadaverina. Idem. Idem. + 115° a + 120' c. Saprina. Carne podre. Idem. — Putrescina. Idem. — + 115° Collidina. Gelatina podre. — — Hydrocollidina. Carne podre. Convulsiva. + 210° c. Cholina Idem. Acção do curara. —: Neurina. Idem. Idem. — Muscarina. Peixe estraga­

do. Toxica. — Mytilotoxina Marisco. Idem. -f 182° c. Midotoxina. Cadáveres em

decomposição Acção do curara. 4- 193" Midioa. Idem. — + 195° Typhotoxina. Typho. Toxica. — Tetanina. Tétano. Idem. — Spasmo-toxina. Idem. Idem. + 210° c. Tyrotoxina. Queijos. Toxica.

Compare-se o quadro presente com o breve resumo já feito a pag. 20 sobre a temperatura central das car­nes assadas e cosidas e logo resaltará que nenhum d'es-tes corpos é decomposto pela temperatura ordinária de cocção das carnes. Somente as carnes cosidas, pela na­tureza dos phenomenos de peptonisação que podem pro-duzir-se, parecem algum tanto melhor preservadas de in­toxicação pelos alcalóides dos micróbios pathogenicos.

A intoxicação produz-se quasi sempre por inoculação

,33

directa e o perigo resultante subsiste quando as carnes não tenham soffrido anteriormente uma temperatura ele­vada. Empregue-se, pois, sempre uma cocção tão com­pleta e rigorosa quanto possível.

E', a demais, sobre estes dados como sobre a esteri-lisação pelo calor que se funda o principio da conserva­ção das carnes de que, a propósito, direi algumas pala­vras, alludindo, todavia, primeiro, á putrefacção—decom­posição das substancias animaes e vegetaes quando ces­saram de viver. Julgava-se outr'ora que, para taes phe-nomenos se produzirem, eram necessárias certas condi­ções de ar, de humidade e temperatura; mas, actualmen­te, graças aos trabalhos de Gautier, outras são as thec-rias.

Pensava-se, effectivamente, que a cellula animal tinha necessidade, para viver, do oxygenio carreado pelos gló­bulos sanguíneos; e Gautier demonstrou que tal não suc-cedia, pois a cellula é anaeróbia. E' fora do ar e sem constituintes chymicos que ella evoluciona, e o papel do oxygenio reduz-se ao de conductor,-^vá lá o termo, e comburente dos productos de eliminação, inúteis e noci­vos á vida cellular. Para comprovar a sua theoria, Gau­tier encerrou em vasos hermeticamente fechados e man­tidos no meio de gelo á temperatura de o° a 2n, pedaços de carne de animaes recentemente abatidos, e ahi os con­servou durante quinze dias a três semanas. E, contraria­mente a Pasteur, que pretendia que esta carne, porque estava inteiramente ao abrigo do ar, devia estacionar e

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não se putrefazer, Gautier mostrou que as cellulas d'essa mesma carne continuavam a viver ainda por algum tem­po e, como na vida animal, continuavam a fabricar leu-comaïnas. Mas, como o oxygenio lá não existia para as destruir e queimar, as leucomainas accumulavam-se, ter­minando por envenenar as cellulas que então morriam definitivamente.

De resto, a vida cellular pôde apresentar períodos de maior ou menor actividade. Assim, notou Gautier que, desde -\~ 25" c. até 40o c , a vida cellular augmenta de intensidade e, a par e passo, a producção de toxinas; e, para além de 40o c , declina e cessa em breve definitiva­mente.

A causa d'estes diversos phenomenos está na ruptura dos equilíbrios que constituem a vida. Os elementos chy-micos abandonam as combinações orgânicas de que fa­ziam parte durante a existência do animal, e desdobram-se em compostos successivamente mais simples e mais fixos.

Taes phenomenos são igualmente devidos, como o demonstrou Pasteur, á presença de bactérias e micro­organismos. E tanto que, se d'algum modo impedir­mos a producção d'estes principios sépticos, a putrefa-cção não tem logar. O mesmo acontece se elevarmos a temperatura a -(- 100o c. ou se a abaixarmos a — 10 e— i5" c , ou ainda se empregarmos substancias antisepti-cas, ou, fiqalmente, se purificarmos o ar fazendo-o pas­sar por um tubo ao rubro ou cheio de algodão.

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As principaes bactérias da putrefacção normal são: bacterium termo, bacterium lineola, bacterium punctum c bacterium catenula.

Nos casos pathologicos, a putrefacção diffère segundo a natureza da doença que determinou a morte. E' mais rápida nos cadáveres infecciosos do que nos que sucum­biram a uma doença inflammatoria. *

E' sobre estes dados que assenta o principio da con­servação das carnes. Effectivamente, nenhum ser vivo pôde resistir a uma temperatura de -f- iooa-f- no°c. em presença da agua; e é provável que a coagulação da al­bumina seja também a causa immediata da destruição de toda a vitalidade.

Micróbios. Esterilísaçãojas carnes pelo calor—Já tive occasião de dizer que, ao lado dos elementos anatómi­cos, o nosso corpo e o de todos os animaes continham quasi sempre micro-organismos isolados ou associados em colónias numerosas. Estes são os micróbios.

Já no tempo dos Romanos, Lucrécio acreditava que a atmosphera estava cheia de corpúsculos que a tornavam maligna; e Varron e Columello afrirmavam que certas febres dizimadoras das populações eram devidas a pe­quenos animaes que se propagavam facilmente de indivi­duo para individuo.

Na edade média perderam-se estas ideias: corria en­tão como bem acceita a theoria fácil do génio epidemico.

Mais tarde, os trabalhos de Leuvenhœck sobre os in-fusorios, e a descoberta dos micro-organismos da leva-

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dura de cerveja por Cagniard-Latour dão ao parasitismo microscópico das doenças infecciosas uma base mais scíentifica; mas é necessário chegar á segunda metade do século actual e parar surpreso ante os maravilhosos tra­balhos de Davaine e de Pasteur para encontrar no con­tagio de certas doenças e na sua etiologia uma explica­ção verdadeiramente racional.

Depois de Pollender que, em 1849, encontrou no san­gue dos animaes atacados de carbúnculo pequenos orga­nismos em forma de bastonêtes, Davaine demonstrou, em i863, que taes bastonêtes eram a causa immediata da doença carbunculosa.

Quasi ao mesmo tempo, Pasteur, depois dos traba­lhos sobre a fermentação láctica em que estabeleceu as primeiras bases certas do estudo physiologico dos pe­quenos seres, reconhecia que as fermentações eram de­vidas a organismos análogos e que, para todas as doen­ças geraes, devia egualmente haver um fermento espe­cial.

Effectivamente se descobriram ao depois os agentes da diphteria, do môrmo, do cholera das gallinhas, da rai­va, da Menorrhagia, do cholera, da tuberculose, e de mui­tas outras doenças que seria massante enumerar.

O que, sobretudo, tomou esta descoberta fecunda e de uma extraordinarissima utilidade para a prophylaxia das doenças infecciosas foi o methodo das culturas, assim justamente denominado e inaugurado por Pasteur.

D'esté modo se pôde referir á classe das doenças pa-

37

rasitarias, todas as doenças infecciosas, epidemicas e con­tagiosas. E o que prova que estes micro-organismos são os factores reaes da doença é que o liquido que lhes serve de meio perde, quando filtrado, as suas propriedades no­civas, ao passo que o filtro em que os corpúsculos infec­ciosos ficaram, pôde facilmente propagar de novo a doen­ça por inoculação. Assim o provou Chauveau para a vac­cina e môrmo, e Toussaint para o carbúnculo.

Por outro lado, Chauveau demonstrou por meio da bistoitrnage que estes fermentos circulavam no sangue, e Claude Bernard acrescentou que elles produziam verda­deiras fermentações.

Taes micro-organismos dão origem a accidentes me­cânicos, embolias, ou a productos tóxicos que envenenam o organismo e aos quaes já me referi.

Comprehende-se, pois, facilmente, como se faz a in­fecção nas doenças epidemicas: umas vezes é o fermen­to directamente inoculado no sangue, como succède para

a raiva, para a syphilis, carbúnculo, etc.; outras vezes é transportado pelo ar, como no sarampo e na variola; ou­tras vezes, emfim, é vehiculado pela agua, como aconte­ce na febre typhoide e no cólera.

E' aqui, no que respeita a hygiene elementar, que. se mostra a importância das condições da cocção normal dos alimentos. O fim da cocção não é somente tornar a carne mais agradável ao paladar e mais facilmente dige-rivel; é ainda supprimir a nocividade dos parasitas que pôde conter.

i

3S

Todavia, a cocção completa podendo destruir os mi­cróbios, ruão parece igualmente destruir os productos tó­xicos por elles elaborados, que precisam, para a sua de­composição, de uma temperatura muito mais elevada.

Segundo Gautier, as carnes alteradas contéem alca­lóides tóxicos, e Brouardel e Pouchet affirmaram que podem advir perigos do consumo de alimentos avariados de origem animal. Outros auctores, todavia, crêem que é possível comer, déçois de uma cocção rigorosa, a car­ne de animaes mortos de carbúnculo, de raiva ou môr-mo. Monin, por exemplo, (') declara que, porcos d'Alfort alimentados com carne de cavallos mortos de môrmo, ti­nham uma carne boa, salubre e saborosa.

A solução de tão importante assumpto está, clara­mente se vê, no ponto de temperatura a que são des­truídos os micróbios e toxinas; e, pelo que respeita a es­tas, eu já frizei as dificuldades de, na cocção ordinária das carnes, poder-se attingir o grau de calor necessário á sua destruição, pois'que a maior parte dos alcalóides animaes não são decompostos senão para além de ioo°c.

A resistência das toxinas ao calor é realmente consi­derável. Assim, Dubief, querendo indagar da resistência do bacillo da tuberculose, verificou que, se o bacillo era destruído á temperatura de + 70% não succedia o mes­mo aos sporo.s que resistiam perfeitamente á temperatu­ra de 4- 100o e somente desappareciam entre 110 e 1 i5"c.

(i) MOWN. (Hygiene de l'estomac).

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Importa, pois, recommendar, sempre que as carnes não forem absolutamente e incontestavelmente sãs, que sejam demoradamente submettidas á acção do calor, a fim de que se tornem livres dos productos pathogenicos que possam conter. E julgo inutil acrescentar que as car­nes cruas ou mal cosidas são óptimos vehiculos para o contagio das doenças. As medidas prophylaticas devem, a este propósito, redobrar de severidade em occasiáo de epidemia.

II

Resta-me agora, para terminar a já bem longa segun­da parte da minha tarefa, fallar de um alimento de ori­gem animal, importante deveras pelo valor do seu coeffi-ciente nutritivo na alimentação do homem. Refiro-me aos oi'os que, sendo realmente um alimento de proveniência animal, pareceu-me, todavia, merecerem um lugar e re­ferencias á parte.

Como o garantem Bouchardat e Dujardin-Beaumetz, os ovos são quasi alimentos completos, pois que apenas lhes falta alguma gordura para se tornarem um typo .ali­mentar do mesmo valor que o leite. Essa gordura pôde ser-lhes fornecida artificialmente em certas preparações culinárias.

Geralmente, os ovos, mesmo preparados na casca, são sufricientemente cosidos para que a albumina coa-

*

40

guie; e então a sua digestibilidade, assim como o seu valor não são os mesmos.

De facto, a digestibilidade da albumina está em rela­ção com a sua cohesão assim como o provam experiên­cias physiologicas directamente feitas, taes como as de W . Beaumont.

Revendo o quadro da «demora dos alimentos no es tomago» vê-se que o ovo crû é digerido ao fim de hora e meia; o ovo quente, ao fim de duas horas e meia, e o ovo cosido, somente ao fim de três horas e meia (l).

A coagulação da albumina do ovo que se produz á temperatura de y5nc é um obstáculo á sua peptonisação e, por conseguinte, um atraso para a digestão, como já disse precedentemente. Isto explica porque os gelados d'ovos, por exemplo, formados de albumina n u m estado de divisão extrema, são digeridos ao fim de uma hora, ao passo que os ovos simplesmente crus o não são senão meia hora mais tarde.

Sob a influencia do calor, a coagulação da albumina não se acompanha de nenhuma modificação chymica. A digestação faz-se somente no intestino delgado que, como affirma Schiff, possúe a propriedade de dissolver a albu­mina e a caseína coaguladas.

(') BEAUNIS. (Physiolpgia humaine, t. i, pag. 701 ) .

TERCEIRA PARTE

Acção do calor sobre os alimentos do reino vegetal

I

L e g u m e s

a) MODIFICAÇÕES l'HYSICAS . . . . . .

Feculentos ou aquosos, menos ricos mas tão impor­tantes como os alimentos d'origem animal,, os vegetaes são indispensáveis como base de uma boa alimentação. Fornece-nos o reino vegetal de legumes, cereaes e fru-ctos.

A temperatura de cocção dos legumes é, em geral, muito mais elevada que a das carnes porque, salvo a sua preparação em saladas, são quasi sempre cosidos, attin-gindo assim, facilmente, 95o a ioo°c.

A acção graduada do calor sobre os legumes pôde também determinar a sua exsiccação,—operação que consiste em roubar-lhes por intermédio d'aquelle agente a agua de constituição que n'elles existe em proporções muito variáveis. Payen constituiu assim o quadro da per­centagem d'agua:

LEGUMES SECCOS

Favas 15 % d'agua Feijões 9,9 % " Lentilhas 11 °/o » Ervilhas 8 ,3% »»

44

Nas leguminosas verdes a proporção d'agua é consi­deravelmente superior; assim, as batatas contéem 74 °/o, e as cenouras 88 °/o- (') Podemos, pois, considerar os le­gumes seccos como tendo naturalmente experimentado a exsiccação, processo hoje frequentemente empregado para a sua conservação.

Para este fim são os legumes cuidadosamente esco­lhidos e limpos, e depois cosidos em apparelhos próprios a uma temperatura de -\- ii2°c a u5°c; outras vezes utilisa-se a compressão por meio da prensa hydraulica; outras, emfim, o processo de conservação dos legumes é o mesmo de que já fallei a propósito das carnes. Os le­gumes são cosidos n'agua d'ebulliçao e, seguidamente, en­cerrados em caixas hermeticamente soldadas.

O processo da exsiccação pela estufa tem a grande vantagem de levar os legumes a uma temperatura que os esteriliza por completo, destruindo não somente as bacté­rias mas também os sporos. Comprehende-se, pois, que este seja o processo preferível.

Quando os legumes são cozidos na agua, entram ra­pidamente n'uma phase d'amollecimento porque tal pro­cesso de cocção determina modificações histológicas, dis­sociando os elementos anatómicos, pelo que, ao depois, a digestão se torna mais fácil; se, porém, a cocção se fi­zer directamente ao fogo, os legumes adquirem um sa-

(!) Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales, t. m, pag. 222.

45

bor a assucar queimado, que é devido a transformação do amido em dextrina e depois em glycose.

b) MODIFICAÇÕES CHYMICAS

Acção sobre a albumina vegetal.—Esta albumina, tam­bém denominada legumina, não diffère em nada da albu­mina animal.

Sob a acção do calor coagula-se, e depois, se a tem­peratura continua a elevar-se, transforma-se em peptona.

Ha, portanto, na sua cocção, uma peptonisação ou di­gestão prévia inteiramente análoga á da albumina animal e de consequências identicamente favoráveis.

Acção sobre o amido.—A cocção em presença da agua modifica os feculentos: o grão de fécula entumesce e ad­quire um volume vinte vezes mais considerável. Ainda que não dissolvido, attinge todavia um estado de desag-gregação extremamente favorável á sua ulterior digestão.

Os grãos d'amido começam a desaggregar-se aos 6o°; mas já antes, aquecidos a uma temperatura média, em presença da agua fracamente acidulada, se transformam em dextrina. Esta transformação é o primeiro passo para o termo ultimo das modificações digestivas dos feculen-tos^-a glucose.

Acção sobre as toxinas vegetaes.—No capitulo das mo­dificações chymicas produzidas pela acção do calor sobre os vegetaes, certamente que este é o paragrapho mais in­teressante e de maior valor para o hygienista, pois que

4jj

os vegetaes representam uma quota muito importante na alimentação e fornecem também um contingente notável de accidentes tóxicos, de intensidade maior ou menor, variável sobretudo com.as espécies. Assim é, por exem­plo, que os cogumellos, ás vezes utilizados como alimen­to, apresentam, elles sós, uma lista já enorme e frequente­mente augmentàda de accidentes graves pelas suas pro­priedades toxicas.

A mycología é uma sciencia difficil e pouco sabida, de modo que os accidentes suecedem-se dia a dia quan­do se trata de espécies comestíveis, principalmente por­que não existe ainda hoje nenhum reagente que permitta distinguir os cogumellos tóxicos. Mas sabe-se que «a sua acção toxica é devida, não a um só veneno, mas a uma serie d'alcaloides análogos, de effeito mais ou menos rá­pido e violento». (*)

Esta toxidez, deveras importante para os cogumel­los, diz ainda respeito a outras espécies que, mesmo que não propriamente perigosas, como taes se podem tor­nar pelo parasitismo de certos vegetaes microscópicos e alcaloïdicos.

Ora, para a maioria das plantas alimentares, a neu­tralização das suas toxinas só poderá fazer-se á custa de temperaturas elevadas. «A cocção desempenha, por ve­zes, um certo papel preservador, porque algumas espé­cies comestiveis, como a amanita vitbescens e invaginata,

(') POI.IN ET LABIT (Examen des'aliments suspects, pag. 186).

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teem um sueco toxico que se torna inoffensivo depois de alguns minutos de ebullição; algumas ritssulas, como o hfdmtm repandum, algumas lactarias, perdem o sabor causticante e as propriedades toxicas: é este o único fa­cto experimental d'onde se pôde deduzir uma applícação prática». (d)J

Estes resultados já Bertillon (2) os havia, muito antes, apresentado. N'uma serie d'estudos feitos, principalmente sobre a espécie amanita, demonstrou qu« os cogumellos venenosos deixam de o ser, ou perdem pelo menos uma grande parte da sua nocividade, quando submettidos a uma cocção sufficiente.

C) ACÇÃO ANTIPARASITARIA

O habito de regar os vegetaes com as aguas das fos­sas e esgotos, sempre inquinadas; não determina somen­te o contagio das doenças infecciosas; pôde egualmente provocar a propagação de certos parasitas,'entre os quaes tem maior importância a tenia echinococcus. Esta tenia, que produz os kistos hydatkos, contrariamente ás outras já descriptas, tem apenas 4 a 5 millimetres de comprido e não passa no homem as suas ultimas phases: é no cão que ella vive no estado adulto, e os seus ovos, excretados pelo animal, podem facilmente entrar nas aguas potáveis ou cahir sobre os vegetaes alimentares. Ingeridos então, e,

(') PouN ET LABIT. (Examen des aliments suspects, pag. 187). {-) Galette hebdomadaire de médecine et de chirurgie, 1869.

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rota a capsula, pela acção dos líquidos intestinaes, surge um embryão hexacantho que se encaminha geralmente para as ultimas ramificações da veia porta onde vem a constituir os kystos hydaticos do fígado, cuja descripçao é inutil.

A ecliynococcus é um parasita muito perigoso e muito frequente nos paizes onde o homem vive em promiscui­dade com os cães, como succède na Islândia, e, a melhor defeza contra a visita de tão incommodo hospede está no uso cuidadoso da agua filtrada ou fervida assim como na cocção conveniente dos vegetaes.

d) ACÇÃO ANTI-MLCROBIANA

Os vegetaes e, principalmente, os legumes não são nunca os propagadores directos das doenças infecciosas: só de modo secundário, por motivo de serem frequente­mente regados com aguas de proveniência pouco limpa, tendo em suspensão innumeros micróbios pathogenicos que passam a viver sobre elles. Comprehende-se assim que, se forem ingeridos em natureza ou insuficientemen­te cozidos, devam constituir um perigo seriíssimo para a saúde do individuo.

Torna-se, pois, indispensável, sobretudo em tempo de epidemia (febre typhoïde, cólera, etc...) que os vegetaes d1 alimentação não sejam ingeridos senão depois de have­rem passado por uma temperatura suficientemente ele­vada. .

49

II

P ã o

O pão, a carne e o vinho representam os alimentos por excellencia do homem civilisado e, n'esta lista, o pão occupa o primeiro lugar em razão da facilidade relativa do seu fabrico e da sua composição chymica que o reve­la um alimento completo, susceptível por si só de susten­tar a vida por largo tempo. (*) Também a sua importância nos é garantida, de velha dacta, nos antigos alfarrábios onde a sua consagração chega mesmo a tornal-o o sym-bolo de todos os mais alimentos: «O pão nosso de cada dia,.. . »

A cocção do pão tem, sob o ponto de vista alimentar, uma importância tão grande como a fermentação da mas­sa, pois é a ella que o alimento deve as suas proprieda­des digestivas.

Mas a cocção não é nunca tão completa como se pôde crer. Está effectivamente provado que a tempera­tura do pão, ao sahir do forno, não excede nunca 70", sal­vo para pães especiaes, e, a esta temperatura, nem todos os micróbios são destruídos.

Por isso, sempre que não estiver garantida a pureza

(') Dictionnaire Dechambre (Art. Pain.)

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da agua, devem os padeiros fervêl-a previamente e, só depois, proceder ao fabrico do pão.

A cocção do alimento dá ainda lugar a outros pheno-menos: quanto mais cozido, tanto mais digerivel. E assim que o miolo é mais- indigesto do que a côdea, e é por isso que aos estômagos doentes e cançados importa re-commendar o pão bem cozido e quasi exclusivamente em tosta.

A analyse de pesos eguaes de côdea e miolo demons­tra o seguinte:

CÔDEA MIOLO

Substancias azotadas solúveis 5,70 0,75 » » insolúveis . . . . 7,3o 5,90 » não azotadas, solúveis.. 3,88 3,71 » » » insolúveis 64,76 44,25 » mineraes 1,21 0,84

Agua 17,15 44,55

100,00 100,00

De modo que, actualmente, se dá por bem acceita a superioridade do pão tostado sobre o pão molle.

Experiências feitas por Bovet (') vieram, de resto, confirmar a supposição. Bovet empregou o methodo da refeição de prova com o pão torrado e o pão branco no mesmo individuo e na mesma unidade de tempo—x hora, e concluiu o seguinte:

«Com o pão torrado que devia entrar no regimen de todo o dyspeptico, como o leite faz parte da medicação de todo o albuminurico, os resultados são muito mais fa-

I1) DR. EDUARDO DE SOUZA. These—O Pão; 1897.

•f)l

voraveis. As peptonas tornamse abundantes no succo gástrico; as fermentações anormaes são quasi nullas, e o residuo não excede 12 °/o- Assim, pois, o pão fresco está para o pão torrado como 1 está para 5, isto é, o segun­do é mais digestivo que o primeiro.»

D'aqui, o vulgarisar-se o fabrico do pão em tosta que se obtém por exsiccação demorada a uma temperatura conveniente. Assim, por motivo da ausência da agua e por motivo da temperatura a que o pão foi submettido, produz-se a dextrina em abundância e torna-se, portanto, a digestão mais fácil.

Outro inconveniente do pão molle e mal cozido é que o miolo é um meio deveras favorável ao desenvolvimento dos microorganismos e, principalmente, do oïdium au-rantiacum.

Em resumo: não convém ingerir senão pão bem cosi­do, por causa das suas propriedades mais digestivas e da sua esterilisação mais completa.

III

A l i m e n t o s í v l c í i l o i t l i c o s

Dujardin-Beaumetz designa assim os vegetaes que contéem alcalóides úteis e reparadores, como a cafeína, principio activo do café, a theina do chá, a theobromina do cacau.

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Pertencem estes différentes alcalóides á série xanthica de Fischer, não sendo a cafeína na opinião d'esté auctor, senão a tvimethylxanthina, e a theobromina—a bimethyl-xanthina.

Nenhuma d'estas substancias alimentares é ingerida no estado verde. Para que sejam utilmente absorvidas, soSrem primeiro a exsiccação ou a torrefação que é, so­bretudo para o café, uma preparação muito especial. Se­gundo Payen (') «a torrefação actua sobre o chloroquini-to de potássio e de cafeína o qual se desaggrega e deixa em liberdade uma parte da cafeína de combinação. Des­envolve além d'isso o aroma empyreumatico que dá á infusão o cheiro e sabor agradáveis; emfim, a cellulose e congéneres soffrem uma ligeira caramelisação com des­prendimento d'oleos voláteis. A temperatura pôde subir a 280" c a perda de peso regula por 18 °/o.»

O chá soffre antes a exsicação. O cacau contém manteiga, theobromina e um aroma

especial devido a um óleo—a cacaona, em dissolução na manteiga. A torrefação determina a liquefação da man­teiga e o desenvolvimento do seu principio aromático.

E', pois, a torrefação um phenomeno necessário para tornar estes vários alimentos mais assimiláveis e mais agradáveis ao paladar.

(') Mémoire sur le cafe. (Annales de physique et de chymie, 1849, t. xxvi, pag. 408).

QUARTA PARTE

Acção do calor sobre- os líquidos alimentares

I

A. g- ti i i

Pôde dizer-se, de um modo geral, que a agua é tão indispensável á nutrição das plantas como á alimentação dos animaes. Todos os seres organisados exhalam per­manentemente vapores aquosos, mas, para manterem a integridade vital, precisam da constante absorpção de consideráveis proporções d'agua. O precioso liquido re­presenta, pois, uma das mais notáveis questões de hy­giene alimentar, porque é a única bebida necessária e indispensável, não importa sob que forma, na ração ali­mentar quotidiana. A sua importância exaltou-se, princi­palmente, depois das descobertas do sábio e illustre Pasteur.

A agua é, effectivamente, o vehiculo preferido da maior parte dos micróbios pathogenicos e, sobretudo, dos bacillos do cholera, febre typhoide e affecções dy. sentericas. «Em these, as aguas são muito mais ricas em bactérias do que o ar, porque o liquido offerece aos se­res inferiores muito melhores condições de vida:—evitam a exsiccação nociva e encontram proporções muito maio­res de substancias nutritivas.» (l)

E. MACE. (Traité pratique de bactériologie, pag. 693,année 1892).

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Podemos, pois, dizer que a maior parte das epide­mias de forma intestinal provêem da absorpçáo de aguas contaminadas que, filtrando através do solo, arrastam uma quantidade maior ou menor de matérias sépticas, propagadoras das doenças infecciosas.

Ora, desde que se reconheceu a acção pathogenica tão poderosa que a agua impura podia exercer, tem se procurado todos os meios possíveis de a tornar inofiensi-va; e assim se propozeram vários processos de corre­cção, desde a simples decantação, desde o alúmen, o carbonato de soda, o carvão vegetal e o alcool, até á purificação real por filtração e ebullição.

Julgou-se por um momento que os filtros bastariam para a esterilisaçao completa da agua, desembaraçando-a de todas as impurezas e detendo a passagem dos micró­bios, mas isto não é inteiramente verdadeiro. Assim o filtro Chamberland, um dos melhores, esterilisa a agua dos germens, o que é o essencial, mas não retém as ma­térias dissolvidas, nem os saes tóxicos, nem as ptomai-nas, nem as matérias albuminóides. A demais, o appa-relho, cujo principio consiste na passagem da agua atra-véz de uma vela de porcelana, precisa de ser frequente­mente limpo e esterilisado, porque, do contrario, torna-se elle mesmo uma fonte de contagio para a agua que o atravesse, e, neste caso, é mais perigoso do que util.

Julgou-se também já que'as baixas temperaturas po­diam purificar a agua: erro grave comprovado por recen­tes experiências.

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Duclaux congelou aguas inquinadas e liquefêl-as de novo ao fim de tempo variável, encontrando sempre mi­cróbios ainda vivos e, portanto, nocivos. Parece que o frio actua suspendendo-lhes a vida sem a anniquilar com­pletamente. Comprehende-se, assim, que o gelo possa, por. vezes, tornar-se de um uso perigoso e que, para o seu fabrico, convenha o emprego de uma agua absoluta­mente pura.

A agua fervida, como o nome indica, é previamente levada á ebullição e depois resfriada. Conserva a sua pureza durante 24 horas e, absorvida n'este lapso de tempo, é absolutamente inoffensiva. «A ebullição é um meio seguro de purificação da agua porque não ha ba­ctérias pathogeriicas que resistam a uma temperatura de 100o prolongada por vinte minutos. As experiências re­centes de Miquel sobre as aguas de Pariz não deixam duvidas a tal respeito.» (J)

A ebullição tem apenas um inconveniente: desarejar a agua, mas o mal remedeia-se facilmente, agitando-a no meio de uma atmosphera salubre.

O calor é, pois, o único esterilisador absolutamente rigoroso, capaz de fornecer uma agua inteiramente pura.

(') POUN ET LABIT (Examen des aliments suspects, pag 212).

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II

L e i t e

O leite é o typo mais perfeito dos alimentos comple­tos, quer em natureza, quer pelos seus derivados (man­teiga e queijo) e, com este titulo, desempenha em the-rapeutica um papel importantíssimo. De facto, a sua al­bumina e a caseína correspondem ás matérias albumi­nóides; a manteiga corresponde ás gorduras; a lactose • aos hydratos de carbone, e o soro, emfim, contém a agua e os saes necessários.

A lactose, sob a influencia de um bacillo especial, o oïdium lactis ou bacterium termo, transforma-se em acido láctico que produz a precipitação da caseina e a separa­ção do leite em duas partes: o soro ou pequeno leite e as partes sólidas.

O soro compõe-se, sobretudo, de saes, assucar e cer­ta quantidade de manteiga e de caseina que escapou á precipitação.

A fermentação láctica succede-se a fermentação bu-tyrica e, depois ainda, a fermentação pútrida, com for­mação de leucina, tyrosina, ammoniaco, etc.

A limpidez do liquido, sempre que bebemos um copo d'agua, dá-nos o valor relativo da sua pureza: é um pro­cesso primitivo de verificação, mas tão simples e tão ra­dicado que cada um o applica despercebidamente.

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Com o leite falha esta garantia: a sua opacidade, a intensidade da côr branca, encobrem qualquer signal de impureza, de modo que, mesmo por habito, todos bebe­mos uma taça do precioso alimento. E, todavia, subsis- * tem aqui, e innumeros, os perigos de intoxicação.

«O leite pôde ser o agente de transmissão de muitas doenças virulentas, quer provenha d'animaes portadores d'affecçoes transmissíveis, quer tenha sido contaminado pela visinhança de focos infecciosos ou pela addicção fraudulenta de agua impura.

As doenças que o leite pôde transmittir são, de pre­ferencia, a tuberculose, a febre typhoïde, o carbúnculo, a febre aphtosa.» (*)

Para obviar a tão graves inconvenientes ha apenas um processo que oflerece as melhores garantias e que, como para a agua, consiste na esterilisação do liquido por meio da ebullição, que deverá mantêr-se durante três minutos, pelo menos. N'estas condições, a esterilisa­ção não será absoluta, mas os bacillos da tuberculose, do cólera, da febre typhoide, o bacterium acidi lactis, tão perigoso para os órgãos digestivos das creanças, todos os micro-organismos, emfim, que o liquido, normal ou accidentalmente contiver, são destruídos.

A pastorisação do leite, por aquecimento em vaso fe­chado á temperatura de i2o°c, seria um processo de es­terilisação completa e rigorosa se não modificasse pro­fundamente o valor e o gosto do alimento.

(!) POUN ET LABIT. (Examen des aliments suspects, pag. 169).

Consequências therapeut i cas

No decurso da minha tarefa tive de referir-me á acção esterilisante do calor sobre os alimentos e as bebidas, e de recordar as theorias mais recentes relativamente ás funcções chymicas que se realisam por intermédio das cellulas vivas, dos micróbios e das cellulas mortas. Con­firmei que as cellulas fabricam constantemente um certo numero de elementos que devem ser eliminados tão ra­pidamente quanto possível por impróprios e nocivos.

Taes productos d'eliminação, que são uma resultante immediata da actividade cellular, constituem, de facto, um meio eminentemente impróprio para a vida, e, a acção que exercem, denomina-se—intoxicação.

Mais especialmente se designa por auto-intoxicação— os phenomenos de envenenamento devidos ás leucomai-nas das cellulas do organismo; e por hetero-intoxicação —os referentes ás toxinas dos micróbios contagiosos, accidentalmente introduzidas na economia.

Ptomainas, leucomainas, venenos mineraes e agentes infecciosos ameaçam constantemente o nosso organismo que, para luctar e manter o equilibrio vital, possúe tam­bém múltiplos processos de resistência e, sobretudo,

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dous apparelhos especiaes de um alto valor: o rim e o tubo digestivo.

Se, por um motivo qualquer as funcções d'estes ór­gãos forem alteradas, as toxinas eliminam-se mal; accu-mulam-se e determinam então phenomenos pathologicos mais ou menos graves, que eu posso referir a quatro ca-thegorias.

i.° Simples embaraços gástricos e accidentes conse­cutivos: diarrheias fétidas ou constipação;

2.° Accidentes nervosos, sob a denominação geral de neurasthenia, produzidos pela intoxicação das cellulas nervosas;

3.° Accidentes convulsivos, eclamptiformes, devidos á intoxicação neuro-muscular;

4.0 Accidentes cardíacos diversos: retardamento, asys-tolia, cyanose.

A ausência ou desapparecimento d'estes diversos phe­nomenos é eminentemente tributaria de um regimen di­verso, segundo a intoxicação é devida a leucomaïnas, a uma hyper-actividade da cellula viva—surmenage, n'uma palavra—ou a ptomainas, isto é, a productos ppathogeni-cos vindos do exterior.

E' aqui, que se mostra a importância do estudo que acabo de fazer sobre a esterilisação dos alimentos por uma temperatura elevada. E' evidente que o organismo terá tantas mais probabilidades de se defender com suc-cesso, quanto menor for o numero dos elementos noci­vos invasores.

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Nas epidemias de intoxicação pelas matérias orgâni­

cas pútridas, não é raro que um certo numero de indi­

víduos escape aos accidentes. Ora esta apparente immu­

nidade é susceptível de um certo numero de explicações. Em primeiro logar, a intensidade do ataque é, geral­

mente, proporcional á quantidade d'alimento ingerido; depois, o veneno não está egualmente repartido por todo o alimento, e certas regiões putrefazem­se mais rapida­

mente, quer por motivo da sua estructura delicada, quer por motivo da sua situação na visinhança de cavidades habitadas pelos germens saprogenios; as funcções diges­

tivas não offerecem sempre a mesma actividade, e, ás digestões lentas, incompletas, corresponde o máximo das fermentações intestina.es e das reabsorpções; os emun­

ctorios podem ou não possuir a sua integridade, e d'aqui depende que, o fígado e os rins principalmente, possam eliminar com rapidez os venenos ou fiquem incapazes de bem desempenhar a sua funcção—■£, n'este caso, a into­

xicação é muito grave; emfim, resta ainda a idiosyncra­

sia que desempenha um papel importante no modo como o organismo se comporta em presença das substancias toxicas.

A surmenage é a forma de intoxicação pelas leuco­

maïnas. Manifesta­se quando a vida cellular é muito in­

tensa e produz, portanto, mais toxinas do que as que pôde eliminar. Isto se deduz directamente da pathologia comparada. «E por esta razão que nos matadouros de

f>3

Pariz, os animaes não são nunca abatidos senão depois de um dia.de descanso, pelo menos. Rœser viu appare-cer accidentes muito graves em indivíduos, após uma re­feição em que entrara um cabrito apanhado ao laço e morto depois de longas torturas. Arnauld, cita, segundo Kuhnert, o exemplo de muitos porcos envenenados pela carne de um cavallo que succumbíra a violências empre­gadas para o ensinar, e Parkard observou uma .creança de quatro mezes atacada de convulsões que recuperou a saúde logo que a mudaram de ama: aleitava a a mãe em estado de surmenage.» (l)

No homem, pois, a auto-typhysação de Peter produz effeitos análogos. Observa-se nos operários e, sobretudo, nos soldados que fazem longas marchas.

Em todo o caso, o que é necessário praticar cuidado­samente é a eliminação dos productos sépticos. Já a an­tiga medicina reconhecia os inconvenientes da sua accu-mulação no organismo. Affirmava a existência de humo­res peccanies de que era necessário, a todo o custo, puri­ficar o individuo e, para isto, ordenava profusamente os purgativos, clystéres e sangrias.

Este methodo honrou-se, sobretudo, no século de Luiz xiv. Praticava-se então um antisepsia ignorada, pois que todos esses humores peccantes não são mais do que as modernas toxinas.

Atualmente, graças á vastidão dos nossos conheci-

(!) POUN ET LABIT. (Examen des aliments suspects, pag. 43).

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mentos sobre os phenomenos physiologicos e chymicos da vida c, particularmente, da nutrição, empregamos methodos incomparavelmente mais suaves e menos de­primentes.

Fora dos antisepticos mineraes, taes como o salol, o salcylato de bismutho, etc., dispomos principalmente do regimen alimentar, que deve variar com os phenomenos que a intoxicação determinou.

Vou, num relance, percorrer as diversas affecções antes de instituir o regimen geral que lhes convém.

No estômago, a intoxicação manifesta-se, sobretudo, por dilatações consecutivas a fermentações anormaes.

No intestino, a intoxicação manifesta-se por diarrheia fétida, ou, mais vezes, por uma constipação rebelde. E, com efíeito, no intestino grosso que se constituem defini­tivamente as matérias fecaes; se estas ahi se accumula-rem, a absorpção das toxinas escrementicias torna-se emi­nentemente perigosa.

No rim, a insuficiência urinaria ou uremia e, sobre­tudo a nephrite, são o indicio do envenenamento. O rim que funeciona mal não pôde eliminar as toxinas que in­vadem rapidamente o organismo.

Do lado do coração, a doença consiste na sclerose das fibras musculares produzida sob a influencia directa de um elemento pathogenico: a toxina não eliminada. De resto, Potain, discutiu e affirmou nitidamente este fa­cto, instituindo n'estas affecções o regimen lácteo, o mais

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favorável de todos para a rápida eliminação dos produ-ctos nocivos.

Emfim, de parte do fígado, quasi todas as affecçÕes indicam claramente uma intoxicação. Com effeito, a cel-lula hepática serve de barreira aos venenos diversos e numerosos que entram na economia; retém-nos, fi!tra-os a bem dizer, e destróe-os. Se, portanto, as suas funcções normaes forem alteradas por-uma causa qualquer, as toxinas não serão mais retidas nem neutralisadas e a in­toxicação sobrevem.

Fora d'estas affecções, podemos affirmar que quasi todas as doenças de pelle traduzem um envenenamento.

A urticaria, em especial, que se manifesta tantas ve­zes depois da ingestão de peixe, marisco, crustáceos, ri­cos em toxinas, testemunha que a cellula hepática está alterada e que a eliminação se faz por via cutanea.

Como todos estes phenomenos pathologicos, que aca­bo de estudar rapidamente, derivam das mesmas causas, devem também ser tratados de um modo análogo, ainda que variável em certa medida. E necessário, evidente­mente, attender á sua gravidade c á diathese especial do doente.

' O regimen lácteo está inteiramente indicado para to­dos os indivíduos atacados de pertubações cardíacas, gás­tricas, hepáticas ou urinarias; c, absoluto ou mixto, addi-cionaremos n'este caso, de preferencia, os legumes, fecu­lentos e .fructos que produzem relativamente poucas to­xinas.

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Quanto ás carnes, será preciso toda a reserva na sua prescripção, e usar principalmente de carnes cozidas, cuja temperatura central\ visinha de ioo°, offerece mais segu­rança sob o ponto de vista da nocividade dos productos tóxicos que ellas possam conter.

N'uma palavra: dar ao organismo doente o menos trabalho possível para luctar pela sua integridade sem deixar de garantir-lhe os melhores elementos para a sua resistência, essa deve ser a nossa constante preoccupação. E aqui deix.o concluído o meu trabalho, verdadeira tare­fa d'improviso, que nunca pensei derealisar senão dentro de um outro assumpto muito mais vasto e laborioso.

PROPOSIÇÕES

Anatomia — O cremaster é um musculo indepen­dente.

Physiologia—A ideação explica-se por meio da sen­sibilidade: não ha sensações, não ha ideias.

Anatomia pathologie a —São múltiplas as lesões anatómicas d'origem toxica.

Pathologia geral—Na microbía do tubo digestivo ha elementos que determinam uma digestão complemen­tar.

Pathologia interna—A icterícia grave não é nunca uma doença primitiva.

Pathologia externa —Nos abcessos da cavidade isckio-rectal, o melhor critério recommenda a intervenção immediata.

Operações—Nas neoplasias do recto, é preferível a via vaginal á via sagrada.

Partos—Nos casos de procidencia do cordão somente ha perigo para o feto.

Therapeu t ica -Para a desinfecção das vias urinarias, deve preferirse ao acido bórico, o acido benzóico e com­postos.

Hygiene—A therapeutica prophylatica é a primeira condição de uma boa hygiene alimentar.

Imprima-se. O. Lebre,

DIRECTOR INTERINO.

Visto. Moraes Caldas,

PRESIDENTE,