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EXCELENTÍSSIMO(A) JUIZ(A) FEDERAL DA VARA FEDERAL PREVIDENCIÁRIA DE PORTO ALEGRE O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República signatária, com fulcro nos artigos 127, caput, e 129, incisos II e III, da Constituição Federal, artigos 6º, inciso VII, alíneas 'a' e 'd', e 39, inciso II, da Lei Complementar 75/93 e artigos 1º, inciso IV, e 5º, inciso I, da Lei 7.347/85, vem, perante Vossa Excelência, ajuizar AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, autarquia federal, com endereço em Porto Alegre na Rua Jerônimo Coelho, 127, pelos fundamentos fáticos e jurídicos a seguir expostos. I – OBJETO DA DEMANDA A presente Ação Civil Pública tem por objeto compelir o INSS a deduzir do cálculo da renda familiar, para fins de verificação do preenchimento do requisito econômico ao benefício de prestação continuada do art. 20 da Lei nº 8.742/93, as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes do benefício, notadamente com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico e respectivo transporte, entre outros, facultando-lhes meios de prova razoáveis. II – CONTEXTO E CONDUTA ILÍCITA COMBATIDA Remonta à própria promulgação da Lei 8.742, em 7 de dezembro de 1993, que regulamentou o direito de idosos e pessoas com deficiência a um salário mínimo mensal previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, o início dos debates acerca da inconstitucionalidade e insuficiência do critério estabelecido em seu art. 20, § 3º, para aferição da necessidade econômica dos requerentes do benefício. Eis a redação atual do dispositivo, emprestada pela Lei 12.435/11, que não alterou seu sentido:

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EXCELENTÍSSIMO(A) JUIZ(A) FEDERAL DA VARA FEDERAL PREVIDENCIÁRIA DE PORTO ALEGRE

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República signatária, com fulcro nos artigos 127, caput, e 129, incisos II e III, da Constituição Federal, artigos 6º, inciso VII, alíneas 'a' e 'd', e 39, inciso II, da Lei Complementar 75/93 e artigos 1º, inciso IV, e 5º, inciso I, da Lei 7.347/85, vem, perante Vossa Excelência, ajuizar

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

contra o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, autarquia federal, com endereço em Porto Alegre na Rua Jerônimo Coelho, 127, pelos fundamentos fáticos e jurídicos a seguir expostos.

I – OBJETO DA DEMANDA

A presente Ação Civil Pública tem por objeto compelir o INSS a deduzir do cálculo da renda familiar, para fins de verificação do preenchimento do requisito econômico ao benefício de prestação continuada do art. 20 da Lei nº 8.742/93, as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes do benefício, notadamente com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico e respectivo transporte, entre outros, facultando-lhes meios de prova razoáveis.

II – CONTEXTO E CONDUTA ILÍCITA COMBATIDA

Remonta à própria promulgação da Lei 8.742, em 7 de dezembro de 1993, que regulamentou o direito de idosos e pessoas com deficiência a um salário mínimo mensal previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, o início dos debates acerca da inconstitucionalidade e insuficiência do critério estabelecido em seu art. 20, § 3º, para aferição da necessidade econômica dos requerentes do benefício. Eis a redação atual do dispositivo, emprestada pela Lei 12.435/11, que não alterou seu sentido:

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA DA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.[...]§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

A discussão foi arrefecida momentaneamente em 1998, quando o Supremo Tribunal Federal, por maioria, julgou constitucional o comando supra no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.2321. Entretanto, gradativamente, os Tribunais federais assentaram o entendimento de que outras balizas, retiradas do próprio ordenamento, poderiam ser conjugadas a esse critério. É como nos relata o Juiz Federal Sérgio Fernando Moro no livro Temas Atuais de Direito Previdenciário e Assistência Social (2003):

Como o STF deixou de censurar a referida norma, os demais juízes viram-se forçados a julgar os casos concretos tendo por base o critério excessivamente restritivo do ¼ do salário mínimo.

Talvez em vista do excesso da restrição, desenvolveu-se jurisprudência no sentido de que se poderiam levar em conta outros dados a fim de identificação dos idosos e deficientes pobres, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, como necessidades especiais com medicamentos ou educação especial. A esse respeito:

“PREVIDENCIÁRIO. RENDA MENSAL VITALÍCIA - CF, ART. 203, V, LEI 8.742/93. RENDA FAMILIAR PER CAPITA SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.1. A Lei 8.742/93, art. 20, § 3º, regulamentando a norma da CF, art. 203, V, quis apenas definir que a renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo é, objetivamente, considerada, insuficiente para a subsistência do idoso ou portador de deficiência; tal regra não afasta, no caso em concreto, outros meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado.2. Recurso não conhecido” (REsp n.º 223.603/SP - 5. T. do STJ - Rel.: Min. Edson Vidigal - DJU de 21.02.2000, p. 163).Assim, para identificar aqueles que necessitam do benefício da assistência social,

há de se considerar as heterogeneidades pessoais, pois as pessoas apresentam características físicas díspares, relacionadas a incapacidade, doença, idade ou sexo, e isso faz com que suas necessidades difiram. Por exemplo, uma pessoa doente pode

1 CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE (ADI 1232, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/1998, DJ 01-06-2001 PP-00075 EMENT VOL-02033-01 PP-00095).

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precisar de uma renda maior para tratar da doença - uma renda de que uma pessoa sem essa doença não necessitaria.2

Daí ter sido construído, também jurisprudencialmente, o entendimento de que não deveriam ser incluídos no cálculo a que se refere o art. 20, § 3º, da Lei Orgânica da Assistência Social os gastos da família do requerente do Benefício de Prestação Continuada que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada subjacente ao requerimento, sendo exatamente o que se postula nesta ação coletiva.

Não obstante, o Réu jamais abriu margem em seu procedimento administrativo a fim de que os requerentes pudessem demonstrar eventuais gastos dessa natureza, de forma a excluí-los do cálculo da renda familiar. É o que se extrai da atual redação da Instrução Normativa INSS/PRES 20/07, arts. 623 a 6293, que norteia, atualmente, o processo administrativo de concessão do BPC.

Além disso, da própria jurisprudência também se colhe não admitir o INSS qualquer possibilidade de comprovação de tais gastos para os fins citados: TRF4, APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0011566-50.2012.404.9999/RS, D.E. 15.10.12; APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0011170-10.2011.404.9999/SC, D.E. 02.08.13; APELAÇÃO CÍVEL Nº 0003710-98.2013.404.9999/PR, D.E. 06.08.13; APELAÇÃO CÍVEL Nº 0007991-97.2013.404.9999/PR, D.E. 06.08.13.

Tratando especificamente da mesma matéria versada neste feito, foi proposta, na subseção judiciária de Joaçaba/SC – abrangendo apenas aquela subseção –, Ação Civil Pública que foi julgada procedente e posteriormente confirmada pelo TRF44, aguardando julgamento de Recurso Especial do INSS no STJ5.

Outras sete ACPs foram propostas pelo MPF com o intuito de modificar, por diversos meios, a forma de apuração do preenchimento do requisito econômico da LOAS, que resultaram, todas, em julgamento de parcial procedência no TRF4, de forma a reconhecer a possibilidade do desconto aqui tratado. E todas, ou foram anguladas já com viés local, ou tiveram reduzida a eficácia subjetiva do decisum à respectiva subseção pelo Tribunal (observando entendimento agora superado pelo STJ quanto à aplicação do art. 16 da

2 Questões controvertidas sobre o benefício da assistência social. In: ROCHA, Daniel Machado da. [et al.] Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 150.

3 Vide: http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/inss-pres/2007/20/CAP8.htm Acesso em: 07.08.13.4 EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.

BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. MISERABILIDADE ECONÔMICA (§ 3.º do art. 20 da LEI n.º 8.742/93). DEDUÇÃO DE DESPESAS COM ENFERMIDADE PRÓPRIA. POSSIBILIDADE. SENTENÇA GENÉRICA. INEXISTÊNCIA DE COMANDO CONDICIONAL. PRÁXIS FORENSE. 1. É certo - e não condicional -, o comando sentencial que determina ao INSS que, ao analisar o cumprimento do requisito da renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo para efeito de concessão do benefício assistencial, exclua as despesas relacionadas diretamente com a doença do próprio beneficiário . 2. Sendo genérica a sentença proferida na ação civil pública, não há necessidade de comprovação da efetiva existência de despesas relacionadas com a enfermidade de cada um dos substituídos. 3. Entendimento materializado na práxis das Turmas integrantes da Terceira Seção desta Corte. (TRF4, EINF 2001.72.03.001315-9, Terceira Seção, Relator Celso Kipper, D.E. 18/11/2009)

5 REsp 1.216.142/SC, concluso para julgamento desde 08.09.11.

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Lei 7.347/85, como se demonstrará no IV tópico desta Petição Inicial), sem recurso desse ponto pelo MPF, tornando-se preclusa a questão em tais feitos6. As ações são as seguintes: 1) 2001.72.01.000728-2, limitada à subseção judiciária de Joinville/SC7; 2) 2002.71.04.000395-5, limitada a Passo Fundo/RS8; 3) 2002.70.09.002122-7, limitada a Ponta Grossa/PR9; 4) 2002.72.09.002356-3, limitada a Jaraguá do Sul/SC10 5) 2002.72.06.002759-1, limitada a Lages/SC11; 6) 2003.72.00.001108-0, limitada a Florianópolis/SC12 e; 7) 2006.71.17.000984-7, limitada a Erechim/RS13.

Todas as apelações de tais processos foram julgadas de forma similar em conteúdo. Segue a decisão proferida no processo com trâmite em Florianópolis/SC:

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. REMESSA OFICIAL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. INTERVENÇÃO COMO CUSTUS LEGIS. IMPOSSIBILIDADE. ILEGITIMIDADE DA UNIÃO E LEGITIMIDADE DO INSS PARA FIGURAR NO POLO PASSIVO DA AÇÃO. EXAME INCIDENTAL DA CONSTITUCIONALIDADE DE LEI. POSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO STF. INEXISTÊNCIA. 1. Remessa oficial tida por interposta. 2. O Ministério Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos que sejam identificáveis com interesses sociais constitucionalmente relevantes, situação em que se enquadra o direito ao benefício assistencial de que trata o inciso V do art. 203 da CF/88. 3. Sendo o Ministério Público Federal autor da ação civil pública, não é de se admitir sua concomitante intervenção no feito como custus legis. Precedentes desta Corte e do Colendo STJ. 4. O INSS é o único ente passivamente legitimado nas ações objetivando a concessão de benefícios assistenciais. Exclusão da União Federal da lide, uma vez que seu interesse no feito é meramente econômico. 5. Inexiste usurpação de competência do STF quando procedido apenas de forma incidental o exame da constitucionalidade da Lei que estipula os requisitos para o deferimento do benefício assistencial. Precedentes do STF. INCAPACIDADE LABORAL E PARA A VIDA INDEPENDENTE (§ 2.º do art. 20 da Lei n.º 8.742/93). INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. 6. A incapacidade para a vida independente, para coadunar-se com o conteúdo da norma

6 A propósito, indica-se jurisprudência do TRF4 no sentido de não existir litispendência entre ações que limitadas a diferentes áreas territoriais: AG 0024224-04.2010.404.0000, Sexta Turma, Relator Celso Kipper, D.E. 01/10/2010; AC 2003.72.02.000165-0, Terceira Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Carlos de Castro Lugon, DJ 26/04/2006.

7 Negado seguimento ao Recurso Extraordinário interposto pelo INSS, aguarda-se o julgamento do AGR.INSTR. DECISÃO DENEGAT.DE REC.EXTRAORDINARIO Nº 2004.04.01.046487-0.

8 REsp 1.222.537, do INSS, aguardando julgamento. Concluso desde 08.09.11.9 Interposto pelo INSS o RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM AC Nº 2002.70.09.002122-7/PR, aguardando pronunciamento

do STF.10 Aguarda julgamento do RE 686.792, interposto pelo INSS.11 Interposto pelo INSS o RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM APELRE Nº 2002.72.06.002759-1/SC, aguardando

pronunciamento do STF.12 Aguarda julgamento do RE 645.348, interposto pelo INSS.13 Aguarda julgamento do RE 709.368, interposto pelo INSS.

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constitucional, deve ser interpretada não no sentido de incapacidade para a prática de todos os atos da vida, mas no sentido de incapacidade para prover à própria manutenção por meios diferentes do trabalho (pois a incapacidade para o trabalho encontra-se referida expressamente). A pessoa não está capacitada para a vida independente porque não possui condições econômicas para prover à própria manutenção. Logo, a constatação da incapacidade para o trabalho é indicativo suficiente do implemento do requisito "deficiência" para fins de fruição do benefício assistencial, salvo quando o INSS demonstra que a despeito dela o requerente apresenta aptidão para prover sua manutenção por meios diferentes do trabalho. MISERABILIDADE ECONÔMICA (§ 3.º do art. 20 da Lei n.º 8.742/93). CONSTITUCIONALIDADE DO LIMITE OBJETIVO DE ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO COMO RENDA PER CAPITA DA ENTIDADE FAMILIAR. DEDUÇÃO DE DESPESAS COM ENFERMIDADE PRÓPRIA. POSSIBILIDADE. SENTENÇA GENÉRICA. ADEQUAÇÃO. PRÁXIS FORENSE. 7. Ao desconsiderar o limite objetivo de ¼ do salário mínimo como renda familiar per capita mínima para fins de concessão do benefício assistencial, a sentença afastou-se da atual orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido da constitucionalidade do referido requisito para tal fim (ADI 1.232-1). 8. Considerando, no entanto, que o objetivo do legislador, tanto o constituinte quanto o ordinário, foi de proteção social reforçada da pessoa portadora de deficiência e do idoso, passa ao largo do princípio da razoabilidade entendimento que inclui na renda familiar - para efeito de averiguar o preenchimento de requisito à concessão de benefício em favor daqueles - valores desde já comprometidos com os cuidados inerentes a tal condição, razão pela qual devem ser deduzidas (a) as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes, notadamente com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico, entre outros; (b) o valor auferido por pessoa idosa a título de benefício assistencial ou benefício previdenciário de renda mínima; (c) o valor auferido a título de benefício assistencial em razão de deficiência ou a título de benefício previdenciário por incapacidade (de renda mínima) percebido por integrante da unidade familiar, independentemente da idade (EIAC N.º 2004.04.01.017568-9/PR, Terceira Seção, julgado em 02-07-2009). 9. Sendo genérica a sentença proferida na ação civil pública, não há necessidade de comprovação da efetiva existência de despesas relacionadas com a enfermidade de cada um dos substituídos. Entendimento materializado na práxis das Turmas Previdenciárias desta Corte. Precedente da Terceira Seção desta Corte (EIACP N.º 2001.72.03.001315-9/SC, D.E. de 19-11-2009). (TRF4, AC 2003.72.00.001108-0, Sexta Turma, Relator p/ Acórdão Celso Kipper, D.E. 12/01/2010)

Como se procurará demonstrar a seguir, esse entendimento deve ser confirmado em nível nacional, especialmente em face do recente julgamento da Reclamação 4.374 e Recurso Extraordinário 567.985 pelo Supremo Tribunal Federal.

III – FUNDAMENTOS JURÍDICOS

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O pedido do Ministério Público Federal tem por base três fundamentos nucleares: (1) ofensa, na omissão do Réu, aos princípios constitucionais da dignidade humana, da isonomia e da legalidade; (2) a recente declaração da inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 pela Suprema Corte; (3) a jurisprudência pacífica do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Vejamos.

(1) A Constituição Federal, em seu art. 203, inciso V, estabelece “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”. Como se sabe, a lei a que refere o texto constitucional é a Lei 8.742/93, que regulamenta esse direito no plano infraconstitucional. Sem embargo da eficácia limitada desse dispositivo constitucional, quando conjugado às demais disposições constitucionais, ele possui, ao menos, o efeito de estabelecer limites interpretativos à aplicação da lei regulamentadora.

Nesse sentido, não se pode – sem afronta ao princípio fundamental da dignidade humana (CF/88, art. 1º, inciso III), ao direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput) e ao princípio constitucional da legalidade (art. 37, caput) – prestigiar interpretação do § 3º do art. 20 da LOAS que negue a possibilidade de excluir, do cálculo a que refere, as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes do BPC.

Não se inserindo no conjunto de gastos de manutenção ordinários do núcleo familiar (v.g., com gás, água, luz, aluguel etc.), as despesas relacionadas diretamente com a deficiência ou a idade avançada devem ser excluídas do cálculo da renda global da família, pois se destinam não à manutenção da família em si, mas a fazer frente às necessidade do próprio familiar deficiente ou idoso, cuja defesa é exatamente o que busca a Constituição Federal. Disso resulta que uma interpretação da Lei que prestigie os gastos com a manutenção da pessoa com deficiência e com o idoso – e que não os desestimule – é a única forma de atender ao princípio da dignidade humana, considerando ser o direito do art. 203, inciso V, um direito fundamental (art. 5º, § 2º), cuja interpretação sempre deve ser aquela que mais amplamente o realize.

A propósito, ressaltou o Desembargador Federal Luiz Antonio Bonat em seu voto complementar no julgamento da Apelação Cível 2002.70.09.002122-7:

Resta, então, avaliar sobre o segundo requisito, de que é incapaz de prover a sua manutenção aquele cuja renda mensal "per capita" seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, como dispõe o § 3º, do art. 20, Lei 8742/93.

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Sobre a questão é certo que restou já pacificado, a partir de julgamento exarado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, em ADI nº 1.232, no sentido da constitucionalidade do art.20, § 3º, da Lei nº 8.742/93. Portanto, existe um limite objetivo de ¼ do salário mínimo per capita a balizar a concessão do benefício.

Porém, casos existem onde a renda familar "per capita" é significativamente afetada, por força de fatores relevantes. Conseqüentemente, o gasto da família com tais despesas [relacionadas diretamente ao idoso ou deficiente] deve ser deduzido da renda familiar, pois, do contrário, estar-se ia agravando ainda mais a condição já carente daquele idoso ou deficiente, o que afronta e impede a consecução daqueles princípios constitucionais, dentre os quais o da cidadania e da dignidade humana, incluídos como fundamentos da República Federativa do Brasil, delineados no art. 1º da CF.

Destarte, não se trata de desconsiderar aquela previsão legal, já consolidada como constitucional pelo julgamento do Excelso Supremo Tribunal Federal, de que é limite imposto pela renda familiar para a concessão do benefício assistencial ¼ do salário mínimo. Mas, ao reverso, de também considerar que, para a consecução do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do próprio direito à vida, quando do exame dos requisitos para a concessão do benefício assistencial (art. 203, inc. IV, CF), deverão ser levados em conta outros fatores concretos que reflitam, com segurança, o estado de miserabilidade ou risco social do pretendente ao benefício.

Assim, se existem critérios outros além daquele limite objetivo de ¼ do salário mínimo, quando o estado de miserabilidade é presumido, pode ser concluído que aquele limite objetivo, imposto pela legislação infraconstitucional, é insuficiente para atender ao mandamento do art. 203, inc. IV, CF, caracterizando a inconstitucionalidade por omissão, eis que necessária a edição de norma para o integral atendimento do mandamento constitucional (D.E. 06.05.08).

Esse entendimento é compartilhado em artigo publicado pelo Juiz Federal Marcelo Cardozo da Silva, conforme se verá abaixo.

A omissão do INSS, por outro lado, também atinge frontalmente o direito fundamental à igualdade, já que discrimina, indevidamente, situações idênticas. Quer dizer, culmina por negar o benefício assistencial a certo requerente e por concedê-lo a outro que se encontra, faticamente, na mesma situação, com a única diferença de que a família do primeiro aplica parte dos seus recursos com despesas diretamente relacionadas à deficiência ou idade avançada do beneficiário. Quer dizer, não excluindo tais despesas de sua renda familiar, termina por prejudicar justamente quem a Constituição pretende proteger.

Explica mais claramente o referido Juiz Federal:

No BPC, a Administração apenas centra sua análise ao momento do ingresso dos recursos, nenhuma consideração realizando em torno da qualidade dos gastos que são efetivados pelo grupo familiar, dispensando nenhuma apreciação sobre eventuais

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especiais gastos que são empregados para o enfrentamento de determinadas deficiências.

A conseqüência disso é evidente: podem acontecer casos em que dois deficientes sejam igualmente necessitados do ponto de vista econômico, padecendo suas famílias de idênticas privações econômicas; todavia, em face do conceito de renda adotado, um pode acabar recebendo o BPC, enquanto que o outro não. Explico-me. Figuremos a seguinte hipótese: “A”, portador de uma deficiência que não apresenta gastos especiais, encontra-se em uma família composta de quatro pessoas cuja renda mensal seja de um salário mínimo. Nesse caso, “A” receberá o benefício. Imaginemos a situação de “B”, que apresenta gastos especiais devidos à deficiência de que padece, da ordem de um salário mínimo. Caso sua família, composta de igualmente quatro membros, receber dois salários mínimos, a renda per capita familiar superará o ¼, e, por conseqüência, não seria elegível para o BPC; assim, em que pese a família de “B”, durante o mês, concretamente tenha para sobreviver ¼ de salário mínimo per capita, isso não é levado em consideração pela Administração, uma vez que os gastos especiais não são deduzidos da renda mensal. Na hipótese, portanto, embora ambas famílias acabem por experimentar a mesmíssima situação de miserabilidade, havendo, ambas, de integralmente fazer frentes às mesmas necessidades de ordem geral experimentadas por “A” e por “B”, uma família (rectius: o deficiente) receberá o BPC, enquanto que outra não.

Isso decorre do fato de o BPC não possuir, no que tange aos deficientes, nenhuma previsão de dedutibilidade de gastos especiais para fins de cálculo da renda familiar. Essa ausência de previsão de dedutibilidade de gastos especiais pode vir a gerar situações concretas em que um deficiente, que seja consumidor de grande parte da renda familiar, deixe de ter acesso ao BPC, mesmo que altamente necessitado para fins assistenciais.

Com efeito, a renda familiar, observada sem qualquer dedução de gastos especiais, poderá engendrar situação em que dois deficientes igualmente necessitados, vivendo situação de miserabilidade idêntica, recebam, para efeitos de BPC, tratamentos distintos. Ou, talvez, haja casos em que mesmo aquela família que tenha renda maior acabe por experimentar uma situação de maior miserabilidade, já que, feitos os pagamentos dos gastos especiais, poder-se-á atingir hipótese em que a distribuição dos recursos per capita seja, inclusive, inferior à daquela família que não teve de enfrentar gastos especiais com o deficiente.

Essa ausência de dedutibilidade, no caso do BPC, é fonte de desvirtuamento constitucional do benefício, que deixa de considerar a situação de necessidade especial vivida pelo deficiente. Lembre-se que, inclusive para fins de imposto de renda, de modo a atender à determinação constitucional de pessoalidade (artigo 145, parágrafo 1º), que manda sejam levadas em consideração contextos especiais do contribuinte, há previsões de dedutibilidade (despesas médicas, despesas com educação).

Portanto, a ausência de um mecanismo de dedutibilidade de gastos especiais gera violação à proibição de não-suficiência, já que, dentro da política pública, gera uma

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desconsideração de aspectos específicos de necessidade ainda maior de determinados deficientes, cuja situação de vulnerabilidade social imprescinde da proteção do BPC.14

Por fim, há de se destacar que a “ausência de um mecanismo de dedutibilidade de gastos especiais” fere o princípio constitucional da legalidade (art. 37, caput). É necessário lembrar, neste passo, que o princípio da legalidade não mais abarca tão somente o ordenamento infraconstitucional, mas também e primordialmente a Constituição da República, de modo que a atuação da Administração não pode deixar de observar todas as suas prescrições das quais emanem carga normativa, respeitada, é claro, a maior ou menor densidade normativa de cada uma das normas constitucionais. Como afirma Maria Silvia Di Pietro, “hoje, o princípio da legalidade tem uma abrangência muito maior porque exige submissão ao Direito”15.

Faceta desse princípio é o subprincípio da finalidade, segundo o qual, conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, “quem desatende ao fim legal desatende à própria lei”16. Desse modo, se a finalidade da norma inserta no inciso V do art. 203 da Constituição Federal é prover o mínimo existencial à pessoa com deficiência ou ao idoso sem condições de sustento, não poderá considerar, para efeito do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, numerário que é destinado a outro fim – e mais –, justamente ao tratamento da deficiência, incapacidade ou intercorrências da idade avançada do requerente do BPC.

A esse respeito o voto do Desembargador Federal Celso Kipper no julgamento da Apelação 2009.71.99.001550-2:

Vale ressaltar que o fato de o autor necessitar de auxílio para, praticamente, todas as tarefas do cotidiano requer, além da assistência permanente dos familiares, recursos consideráveis em decorrência da deficiência do assistido, conforme acima exemplificado.

14 SILVA, Marcelo Cardozo da. Aspectos do benefício de prestação continuada. Revista da AJUFERGS. Porto Alegre, n. 1, p. 187-222, mar. 2003, p. 217-8.

15 O direito administrativo brasileiro sob influência dos sistemas de base romanística e da ‘common law’. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, n. 1, p. 9-30, abr.-jun. 2003, p. 19-20. Oportuno, ainda, o magistério do tratadista português Paulo Otero: “Se o século XX veio produzir um desenvolvimento do sentido e do valor da Constituição que fez a lei perder a supremacia de uma divindade que havia adquirido durante o período liberal, a verdade é que, por outro lado, veio impregnar a legalidade administrativa de uma dimensão constitucional que antes lhe era alheia. Compreende-se, por isso mesmo, que toda teoria das fontes de Direito Administrativo – e, em geral, de todos os ramos de Direito – se encontre hoje alicerçada na Constituição e se assista a um efectivo “activismo” constitucional da Administração Pública.” Constituição e legalidade administrativa: a revolução dogmática do Direito Administrativo. In: OLAVO, A. V. Alves Ferreira; TAVARES, André Ramos. LENZA, Pedro. Constituição Federal – 15 anos: Mutação e Evolução – comentários e perspectivas . São Paulo: Método, 2003, p. 154-5. Sobre o dever de observância de todos os entes estatais ao princípio da igualdade, refere o Min. Celso de Mello: “Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar a discriminação e de extinguir privilégios”. MI 58, Rel. p/ Acórdão Min. Celso de Mello, órgão pleno, DJU 19.04.91.

16 "Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício – denominado 'desvio de poder' ou 'desvio de finalidade' – são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei." (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 89).

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Pois bem, é pacífico nesta Corte o entendimento de que, sempre que os necessários cuidados com a parte autora, em decorrência de sua deficiência, incapacidade ou avançada idade, acarretarem gastos - notadamente com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico, entre outros -, tais despesas podem ser levadas em consideração na análise da condição de miserabilidade da família do demandante. Aliás, se o objetivo do legislador, tanto o constituinte quanto o ordinário, é a proteção social reforçada da pessoa portadora de deficiência e do idoso, passa ao largo do princípio da razoabilidade entendimento que inclui na renda familiar - para efeito, justamente, de averiguar o preenchimento de requisito à concessão de benefício em favor daqueles - valores desde já comprometidos com os cuidados inerentes à incapacidade e à avançada idade. A posição aqui defendida, ademais, não afronta o entendimento do Supremo Tribunal Federal esposado na ADI 1.232-1, como demonstram as decisões monocráticas dos Ministros CARLOS VELLOSO (Reclamação 3891/RS - DJU de 09-12-2005), CELSO DE MELLO (Reclamações 3750/PR, decisão de 14-10-2005, e 3893/SP, decisão de 21-10-2005) e CARLOS BRITTO (RE 447370 - DJU de 02-08-2005).

Como se pode perceber, a interpretação restritiva que vem sendo feita pelo INSS sobre o § 3º do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social fere os princípios constitucionais da dignidade humana, da isonomia e da legalidade.

(2) Em julgado recente, o próprio Supremo Tribunal Federal declarou, em virtude de omissão constitucional, a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da LOAS. Apesar de o acórdão ainda não ter sido publicado, colhe-se do Informativo STF 702, de abril de 2013, sobre o julgamento da Reclamação 4.347/PE e dos Recurso Extraordinário 567.985/MT e 580.963/PR:

REPERCUSSÃO GERALBenefício de prestação continuada: tutela constitucional de hipossuficientes e

dignidade humana - 11O Plenário, por maioria, negou provimento a recursos extraordinários julgados em conjunto — interpostos pelo INSS — em que se discutia o critério de cálculo utilizado com o intuito de aferir-se a renda mensal familiar per capita para fins de concessão de benefício assistencial a idoso e a pessoa com deficiência, previsto no art. 203, V, da CF — v. Informativo 669. Declarou-se a inconstitucionalidade incidenter tantum do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 [“Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família ... § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”] e do parágrafo único do art. 34 da Lei 10.741/2003.

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Benefício de prestação continuada: tutela constitucional de hipossuficientes e dignidade humana - 12

Prevaleceu o voto do Min. Gilmar Mendes, relator do RE 580963/PR. Ressaltou haver esvaziamento da decisão tomada na ADI 1232/DF — na qual assentada a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 —, especialmente por verificar que inúmeras reclamações ajuizadas teriam sido indeferidas a partir de condições específicas, a demonstrar a adoção de outros parâmetros para a definição de miserabilidade. Aduziu que o juiz, diante do caso concreto, poderia fazer a análise da situação. Destacou que a circunstância em comento não seria novidade para a Corte. Citou, no ponto, a ADI 223 MC/DF (DJU de 29.6.90), na qual, embora declarada a constitucionalidade da Medida Provisória 173/90 — que vedava a concessão de medidas liminares em hipóteses que envolvessem a não observância de regras estabelecidas no Plano Collor —, o STF afirmara não estar prejudicado o exame pelo magistrado, em controle difuso, da razoabilidade de outorga, ou não, de provimento cautelar. O Min. Celso de Mello acresceu que, conquanto excepcional, seria legítima a possibilidade de intervenção jurisdicional dos juízes e tribunais na conformação de determinadas políticas públicas, quando o próprio Estado deixasse de adimplir suas obrigações constitucionais, sem que isso pudesse configurar transgressão ao postulado da separação de Poderes.RE 567985/MT, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 17 e 18.4.2013. (RE-567985)RE 580963/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 17 e 18.4.2013.(RE-580963)17

Conforme entenderam os Ministros da Suprema Corte, a disposição do parágrafo sob comentário é insuficiente no sentido de aferir-se a situação de necessidade do grupo familiar, justamente o que se advoga nesta ação. Da íntegra do voto do Relator, note-se a expressa menção feita pelo Ministro Gilmar Mendes a propósito das medidas adotadas pelos Tribunais a fim de suprir a omissão constitucional em questão:

A diversidade e a complexidade dos casos levaram a uma variedade de critérios para concessão do benefício assistencial, tais como os descritos a seguir:

a) O benefício previdenciário de valor mínimo, ou outro benefício assistencial percebido por idoso, é excluído da composição da renda familiar (Súmula 20 das Turmas Recursais de Santa Catarina e Precedentes da Turma Regional de Uniformização);

b) Indivíduos maiores de 21 (vinte e um) anos são excluídos do grupo familiar para o cálculo da renda per capita;

c) O benefício assistencial percebido por qualquer outro membro da família não é considerado para fins da apuração da renda familiar;

17 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo702.htm Acesso em 09.08.13.

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d) Consideram-se componentes do grupo familiar, para fins de cálculo da renda per capita, apenas os que estão arrolados expressamente no art. 16 da Lei 8.213/91;

e) Os gastos inerentes à condição do beneficiário (remédios etc.) são excluídos do cálculo da renda familiar.18

E ressalta o Ministro no voto condutor:

Assim, ao contrário de outras ordens jurídicas, que preferiram não estampar no texto constitucional promessas sociais mais ambiciosas, a ordem constitucional brasileira protege a assistência social e, especificamente o benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição de 1988, como um verdadeiro direito fundamental exigível perante o Estado. Esse direito ao benefício assistencial de um salário mínimo possui uma dimensão subjetiva, que o torna um típico direito público subjetivo de caráter positivo, o qual impõe ao Estado obrigações de ordem normativa e fática. Trata-se, nesse sentido, de um direito à prestação em face do Estado, o qual fica obrigado a assegurar as condições normativas (edição de normas e conformação de órgãos e procedimentos) e fáticas (manutenção de um estado de coisas favorável, tais como recursos humanos e financeiros) necessárias à efetividade do direito fundamental.

Além de uma dimensão subjetiva, portanto, esse direito fundamental também possui uma complementar dimensão objetiva. Nessa dimensão objetiva, o direito fundamental à assistência social assume o importante papel de norma constitucional vinculante para o Estado, especificamente, para os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Ela assim impõe ao Legislador um dever constitucional de legislar, o qual deve ser cumprido de forma adequada, segundo os termos do comando normativo previsto no inciso V do art. 203 da Constituição. O não cumprimento total ou parcial desse dever constitucional de legislar gera, impreterivelmente, um estado de proteção insuficiente do direito fundamental. Destarte, como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot).

A violação, pelo legislador, dessa proibição de proteção insuficiente decorrente do direito fundamental gera um estado de omissão inconstitucional submetido ao controle do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorre não exatamente em razão da ausência de legislação, ou tendo em vista eventual mora do legislador em regulamentar determinada norma constitucional, mas quando o legislador atua de forma insuficiente, isto é, edita uma lei que cumpre apenas de forma parcial o comando constitucional.

Tendo em vista o direito fundamental ao benefício assistencial previsto no inciso V do art. 203 da Constituição, parece sensato considerar a omissão legislativa parcial no tocante ao § 3º do art. 20 da LOAS. O próprio histórico da concessão judicial desse benefício, tal como acima apresentado, demonstra cabalmente a insuficiência da LOAS

18 Íntegra disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RCL4374.pdf Acesso em 09.08.13.

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em definir critérios para a efetividade desse direito fundamental. E, como já demonstrado, a omissão legislativa foi verificada pelo próprio Tribunal no julgamento da ADI 1.232.

O fato é que, hoje, o Supremo Tribunal Federal, muito provavelmente, não tomaria a mesma decisão que foi proferida, em 1998, na ADI 1.232. A jurisprudência atual supera, em diversos aspectos, os entendimentos naquela época adotados pelo Tribunal quanto ao tratamento da omissão inconstitucional. A Corte tem avançado substancialmente nos últimos anos, principalmente a partir do advento da Lei n.° 9.868/99, cujo art. 27 abre um leque extenso de possibilidades de soluções diferenciadas para os mais variados casos de omissão inconstitucional.

É certo que, inicialmente, o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento segundo o qual a decisão que declara a inconstitucionalidade por omissão autorizaria o Tribunal apenas a cientificar o órgão inadimplente para que este adotasse as providências necessárias à superação do estado de omissão inconstitucional. Assim, reconhecida a procedência da ação, deveria o órgão legislativo competente ser informado da decisão, para as providências cabíveis.19

A publicação do acórdão é iminente, não se justificando, s.m.j., a adoção de posição contrária ao Supremo.

Desse modo, até que sobrevenha lei que estabeleça critério mais detalhado para a aferição da vulnerabilidade econômica da família do idoso ou pessoa com deficiência incapaz de prover o próprio sustento, haverá de se suprir a omissão constitucional do Estado pela adoção de interpretações que estejam, ao menos, de acordo com a Lei Fundamental. Assim, a única interpretação constitucionalmente aceitável, como visto no tópico anterior, é aquela que exclui, do cálculo a que se refere o § 3º do art. 20 da LOAS, os gastos, como dito pelo Min. Gilmar Mendes, “inerentes à condição do beneficiário”.

(3) Ainda, é relevante ressaltar a uníssona jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região na matéria, notadamente das duas Turmas (5ª e 6ª, componentes da 3ª Seção do Tribunal) com competência para julgamento de feitos que versam sobre assistência social. A 6ª Turma inclusive já incorporou a decisão supra do STF aos seus acórdãos para fundamentar a exclusão dos gastos com o beneficiário, com se nota nos precedentes da relatoria do Des. Federal Celso Kipper: APELREEX 0001959-76.2013.404.9999, D.E. 07.08.13; AC 0007991-97.2013.404.9999, D.E. 05.08.13; APELREEX 0011170-10.2011.404.9999, D.E. 01/08/2013; AC 0018875-59.2011.404.9999, D.E. 11.07.13.

São precedentes, na mesma linha e a título meramente exemplificativo, da 5ª Turma: AC 2008.70.99.002936-1, Relatora Maria Isabel Pezzi Klein, D.E. 29/03/2010; AC 2001.71.00.013880-8, Relatora Maria Isabel Pezzi Klein, D.E. 22/03/2010; APELREEX 2002.72.09.002356-3, Relator Luiz Antonio Bonat, D.E. 27/07/2009.

19 Idem.

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Vale transcrever as seguintes ementas:

BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E PARA A VIDA INDEPENDENTE. REQUISITOS PREENCHIDOS. CUMPRIMENTO IMEDIATO DO ACÓRDÃO. 1. O direito ao benefício assistencial pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: a) condição de deficiente ou idoso; e b) situação de risco social (estado de miserabilidade, hipossuficiência econômica ou situação de desamparo) do autor e de sua família. 2. Comprovado que a autora possui impedimentos de longo prazo que a incapacitam para a vida independente e para o trabalho, bem como que a renda familiar não ultrapassa 1/4 do salário mínimo se abatidos os gastos com medicamentos e cuidados especiais com a requerente, é devido o benefício postulado. 3. Determinado o cumprimento imediato do acórdão no tocante à implantação do benefício, a ser efetivada em 45 dias, nos termos do art. 461 do CPC. (TRF4, AC 0007153-28.2011.404.9999, Sexta Turma, Relatora Eliana Paggiarin Marinho, D.E. 22/08/2011)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. QUESTÃO DE ORDEM. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. REQUISITO ECONÔMICO. CRITÉRIO OBJETIVO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ABRANGÊNCIA EFEITOS SENTENÇA - ART. 16, LEI 7.347/85, REDAÇÃO DA LEI 9.494/97. RETENÇÃO IMPOSTO RENDA NA FONTE. PREQUESTIONAMENTO. [...] 7. Quando do exame dos pleitos de benefício assistencial, visando observar o respeito à dignidade humana, para a obtenção da renda familiar "per capita", deverão ser deduzidos os gastos comprovados e relacionados diretamente ao próprio idoso, representados por medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, plano de saúde, tratamento médico, psicológico, fisioterápico, transporte especial, entre outros, devendo estar fundamentado o motivo da eventual denegação do benefício. 8. A obrigação da retenção do Imposto de Renda na Fonte sobre valores atrasados é obrigação da Instituição Financeira responsável pelo pagamento, cabendo à própria parte interessada comunicar que os rendimentos recebidos são isentos (art. 27 e § 1º, Lei 10.833/03). 9. A divulgação da decisão em jornal de circulação é perfeitamente adequada ao caso em que perseguidos direitos coletivos, quando essa forma de publicidade é a maneira mais simples e direta de fazer chegar ao conhecimento dos substituídos o direito que está sendo reconhecido. [...] 12. Se as razões que fundamentam o julgado fazem por superar os dispositivos legais e constitucionais prequestionados pelas partes, desnecessária a expressa referência a cada artigo apontado. (TRF4, APELREEX 2002.72.09.002356-3, Quinta Turma, Relator Luiz Antonio Bonat, D.E. 27/07/2009)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO DE ORDEM. REJEIÇÃO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SENTENÇA EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. CRITÉRIOS

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PARA CONCESSÃO. CRITÉRIO OBJETIVO DE AFERIÇÃO DE MISERABILIDADE DO GRUPO FAMILIAR (RENDA PER CAPITA DE ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO). MANUTENÇÃO. AVALIAÇÃO DA INCAPACIDADE. [...] 6. Conjugado com o critério objetivo de ¼ do salário mínimo per capita, por ocasião do exame dos pleitos de benefício assistencial, a fim de que sejam efetivamente atendidos os ditames da Constituição Federal, em especial o respeito à dignidade humana, quando da avaliação do critério renda familiar "per capita", deverão ser deduzidos os gastos comprovados e relacionados diretamente ao próprio deficiente ou idoso, representados por medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, plano de saúde, tratamento médico, psicológico, fisioterápico e transporte especial. 7. Mantida a determinação da sentença quanto à publicação da decisão em jornal de circulação local, pois a demanda versa sobre direitos coletivos, quando essa é a maneira mais simples de fazer chegar ao conhecimento dos substituídos o direito que está sendo reconhecido, todavia ampliado o prazo para publicação para 90 (noventa) dias. (TRF4, APELREEX 2002.72.06.002759-1, Quinta Turma, Relator Luiz Antonio Bonat, D.E. 15/09/2008)

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. QUESTÃO DE ORDEM. MINISTÉRIO PÚBLICO. CUSTOS LEGIS. NÃO CONHECIMENTO DO PARECER. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MPF. INTERESSE SOCIAL DO BENEFÍCIO. REMESSA OFICIAL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ARTIGO 20 DA LEI N.º 8.742/93. RENDA MÍNIMA. ¼ DE SALÁRIO MÍNIMO. DESCONTO DE DESPESAS COMPROVADAS E RELACIONADAS DIRETAMENTE AO PRÓPRIO DEFICIENTE OU IDOSO. ABRANGÊNCIA. SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE PONTA GROSSA /PR. MULTA DIÁRIA. DESCUMPRIMENTO. [...] 13. Na análise dos requerimentos de benefícios assistenciais, o servidor responsável deverá observar, conjugado com o critério de ¼ de salário mínimo per capita, a dedução dos gastos comprovados e relacionados diretamente ao próprio deficiente ou idoso, como medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, plano de saúde, tratamento médico, psicológico e fisioterápico, transporte especial dentre outros, devendo ser devidamente fundamentada eventual denegação. [...] 17. Estabelecido o prazo de 120 dias para a revisão administrativa determinada na sentença, mantida a multa diária de R$ 25,00 (vinte e cinco reais). 18. Apelação e Remessa Oficial parcialmente providas. (TRF4, AC 2002.70.09.002122-7, Quinta Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Antonio Bonat, D.E. 05/05/2008)

Assim, seja por força (a) dos princípios constitucionais que devem nortear a concessão do amparo assistencial, seja por conta (b) da quebra de paradigma realizada pelo Suprema Corte e pela jurisprudência pacífica do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não pode o INSS incluir, no cômputo da renda familiar de que trata o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, os gastos que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes, tais como as despesas com medicamentos, alimentação especial,

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fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico e respectivo transporte, entre outros.

IV – (LIMITAÇÃO TERRITORIAL DA) EFICÁCIA SUBJETIVA DA SENTENÇA

Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça assentou entendimento no sentido de corrigir a interpretação que vinha sendo conferida ao art. 16 da Lei das Ações Civis Públicas (Lei 7.347/85), afirmando a impossibilidade de que se limite os efeitos da sentença à circunscrição territorial do órgão prolator de decisão em Ação Civil Pública.

O voto do Relator – Ministro Luís Felipe Salomão – no Recurso Especial 1.243.887/PR, julgado em 19.10.11, é esclarecedor ao enfrentar a questão da impossibilidade de que se limite os efeitos de sentença em processo coletivo, desfazendo a confusão terminológica que deu origem à interpretação de que o provimento jurisdicional em Ação Civil Pública apenas irradia efeitos nos limites da competência territorial do órgão prolator:

Aduz o recorrente, nesse ponto, que o alcance territorial da coisa julgada se limita à comarca na qual tramitou a ação coletiva, mercê do art. 16 da Lei das Ações Civis Públicas (Lei n. 7.347/85), verbis:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Tal interpretação, uma vez mais, esvazia a utilidade prática da ação coletiva, mesmo porque, cuidando-se de dano de escala nacional ou regional, a ação somente pode ser proposta na capital dos Estados ou no Distrito Federal (art. 93, inciso II, CDC). Assim, a prosperar a tese do recorrente, o efeito erga omnes próprio da sentença estaria restrito às capitais, excluindo todos os demais potencialmente beneficiários da decisão.

A bem da verdade, o art. 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos - como coisa julgada e competência territorial - e induz a interpretação, para os mais apressados, no sentido de que os "efeitos" ou a "eficácia" da sentença podem ser limitados territorialmente, quando se sabe, a mais não poder, que coisa julgada – a despeito da atecnia do art. 467 do CPC - não é "efeito" ou "eficácia" da sentença, mas qualidade que a ela se agrega de modo a torná-la "imutável e indiscutível".

É certo também que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos ou a eficácia da sentença, os quais, como é de conhecimento comum, correlacionam-se com os "limites da lide e das questões decididas" (art. 468, CPC) e com as que o poderiam ter sido (art. 474, CPC) - tantum judicatum, quantum disputatum vel disputari debebat.

[…]A questão principal, portanto, é de alcance objetivo ("o que" se decidiu) e

subjetivo (em relação "a quem" se decidiu), mas não de competência territorial. Pode-se

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afirmar, com propriedade, que determinada sentença atinge ou não esses ou aqueles sujeitos (alcance subjetivo), ou que atinge ou não essa ou aquela questão fático-jurídica (alcance objetivo), mas é errôneo cogitar-se de sentença cujos efeitos não são verificados, a depender do território analisado.

Nesse sentido é o magistério de Rodolfo de Camargo Macuso, alinhando-se às ácidas críticas de Nelson Nery e José Marcelo Menezes Vigilar:

Qualquer sentença proferida por órgão do Poder Judiciário pode ter eficácia para além de seu território. Até a sentença estrangeira pode produzir efeitos no Brasil, bastando para tanto que seja homologada pelo STF [agora STJ]. Assim, as partes entre as quais foi dada a sentença estrangeira são atingidas por seus efeitos onde quer que estejam no planeta Terra. Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito.

Com efeito, o problema atinente a saber quais pessoas ficam atingidas pela imutabilidade do comando judicial insere-se na rubrica dos limites subjetivos desse instituto processual dito "coisa julgada", e não sob a óptica de categorias outras, como a jurisdição, a competência, a organização judiciária. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores . 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 322-323)

Prossegue o Ministro em seu voto, confrontando precedentes que emprestavam interpretação restritiva ao art. 16:

A antiga jurisprudência do STJ, segundo a qual "a eficácia erga omnes circunscreve-se aos limites da jurisdição do tribunal competente para julgar o recurso ordinário" (REsp 293.407/SP, Quarta Turma, confirmado nos EREsp. n. 293.407/SP, Corte Especial), em hora mais que ansiada pela sociedade e pela comunidade jurídica, deve ser revista para atender ao real e legítimo propósito das ações coletivas, que é viabilizar um comando judicial célere e uniforme - em atenção à extensão do interesse metaindividual objetivado na lide.

Caso contrário, "esse diferenciado regime processual não se justificaria, nem seria eficaz, e o citado interesse acabaria privado de tutela judicial em sua dimensão coletiva, reconvertido e pulverizado em multifárias demandas individuais" (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit. p. 325), "atomizando" as lides na contramão do moderno processo de "molecularização "das demandas.

Com efeito, como se disse anteriormente, por força do art. 21 da Lei n.º 7.347/85, o Capítulo II do Título III do CDC e a Lei das Ações Civis Públicas formam, em conjunto, um microssistema próprio do processo coletivo, seja qual for a sua natureza, consumerista, ambiental ou administrativa.

Assim, com o propósito também de contornar a impropriedade técnico-processual cometida pelo art. 16 da LACP, a questão relativa ao alcance da sentença proferida em ações coletivas deve ser equacionada de modo a harmonizar os vários dispositivos aplicáveis ao tema.

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Nessa linha, o alcance da sentença proferida em ação civil pública deve levar em consideração o que dispõe o Código de Defesa do Consumidor acerca da extensão do dano e da qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo.

O norte, portanto, deve ser o que dispõem os arts. 93 e 103 do CDC (...)Portanto, se o dano é de escala local, regional ou nacional, o juízo competente

para proferir sentença, certamente, sob pena de ser inócuo o provimento, lançará mão de comando capaz de recompor ou indenizar os danos local, regional ou nacionalmente, levados em consideração, para tanto, os beneficiários do comando, independentemente de limitação territorial.

[...]Embora estacionada a jurisprudência em sentido contrário, houve precedentes a

sufragar o entendimento ora proposto, o qual se retoma nesta oportunidade: Processo civil e direito do consumidor. Ação civil pública. Correção monetária

dos expurgos inflacionários nas cadernetas de poupança. Ação proposta por entidade com abrangência nacional, discutindo direitos individuais homogêneos. Eficácia da sentença. Ausência de limitação. Distinção entre os conceitos de eficácia da sentença e de coisa julgada. Recurso especial provido. - A Lei da Ação Civil Pública, originariamente, foi criada para regular a defesa em juízo de direitos difusos e coletivos. A figura dos direitos individuais homogêneos surgiu a partir do Código de Defesa do Consumidor, como uma terceira categoria equiparada aos primeiros, porém ontologicamente diversa. - A distinção, defendida inicialmente por Liebman, entre os conceitos de eficácia e de autoridade da sentença, torna inóqua a limitação territorial dos efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LAP. A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada aquela, os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador. - O procedimento regulado pela Ação Civil Pública pode ser utilizado para a defesa dos direitos do consumidor em juízo, porém somente no que não contrariar as regras do CDC, que contem, em seu art. 103, uma disciplina exaustiva para regular a produção de efeitos pela sentença que decide uma relação de consumo. Assim, não é possível a aplicação do art. 16 da LAP para essas hipóteses. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 411.529/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/06/2008, DJe 05/08/2008)

PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE - POSSIBILIDADE – EFEITOS. [...]

3. O efeito erga omnes da coisa julgada material na ação civil pública será de âmbito nacional, regional ou local conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano, atuando no plano dos fatos e litígios concretos, por meio, principalmente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe asseguram eficácia prática, diferentemente da ação declaratória de inconstitucionalidade, que faz coisa julgada material erga omnes no âmbito da vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado.

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4. Recurso especial provido. (REsp 557646/DF, Rel. MIN. ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/04/2004, DJ 30/06/2004, p. 314)

Finalmente, embora haja doutrina e precedentes que, para contornar o art. 16 da LACP, aduzam que o dispositivo somente possui operância quando se tratar de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, sendo inaplicável a direitos individuais homogêneos, o fato é que - para os direitos difusos e coletivos em sentido estrito - é que está a maior dificuldade de aplicação da norma, porquanto supõem, por definição, titulares indeterminados ou indetermináveis, ligados por circunstâncias de fato, sendo imprópria a cisão dos efeitos da sentença em razão de alegada limitação territorial.

Esse é, por exemplo, o magistério de Teori Albino Zavascki, citado por Mancuso, para quem, no caso de direitos difusos e coletivos stricto sensu: [...] não há como cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada. Observe-se que, tratando-se de direitos transindividuais, a relação jurídica litigiosa, embora com pluralidade indeterminada de sujeitos no pólo ativo, é única e incindível (indivisível). Como tal, a limitação territorial da coisa julgada é, na prática, ineficaz em relação a ela. Não se pode circunscrever territorialmente (circunstância do mundo físico) o juízo de certeza sobre a existência ou a inexistência ou o modo de ser de relação jurídica (que é fenômeno do mundo dos pensamentos). (Apud. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 320).

Diante do entendimento esposado no recente julgado do STJ, é evidente estar-se diante de verdadeiro overrulling dos precedentes anteriores, alterando-se a interpretação a ser conferida ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública.

Destarte, a sentença a ser proferida deverá, em caso de procedência, abarcar a mais recente ratio decidendi do STJ, não limitando os seus efeitos à subseção judiciária de Porto Alegre ou ao Rio Grande do Sul.

Direitos coletivos como os veiculados na presente demanda não podem ser cindidos, sendo inconcebível reconhecer a ilegalidade da conduta do Réu apenas na região abrangida pela Subseção Judiciária de Porto Alegre, permitindo-se que a conduta ilegal persista em relação ao restante do País. Não há como negar que solução diversa ofende o direito fundamental à igualdade (CF/88, art. 5º, caput): reconhece-se o direito de uns, e não de outros, apesar de ser absolutamente igual a situação de ambos.

Não é demais lembrar que CDC e Lei 7.347/85 formam, em conjunto com outros diplomas, um microssistema legal. Um sistema ao qual não se ajusta uma interpretação isolada do disposto no art. 16, sem considerar, por exemplo, o art. 103 do CDC20, que, tratando da matéria, não realiza qualquer restrição à eficácia subjetiva da sentença. A jurisprudência superada do STJ retira o sentido de ser das ações coletivas, criadas a fim de dar

20 Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;

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tutela por igual a questões massificadas, gerando flagrante desigualdade no reconhecimento de direitos coletivos.

A título ilustrativo, colacionam-se outros recentes julgados do STJ:

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA AO TERRITÓRIO SOBRE JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO JULGADOR. IMPROPRIEDADE. ENTENDIMENTO FIRMADO EM RECURSO REPETITIVO. RESP PARADIGMA 1.243.887/PR. EXTENSÃO DOS EFEITOS. NÃO FILIADOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. RETORNO DOS AUTOS.1. A Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp 1.243.887/PR, relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, submetido ao regime dos recursos repetitivos (art. 543-C do CPC), reconheceu que "os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo".2. Proposta a ação coletiva pela FENACEF - Federação Nacional das Associações de Aposentados e Pensionistas da Caixa Econômica Federal, estão legitimados a executar o julgado a totalidade dos integrantes da categoria ou grupo interessado e titular do direito, ainda que não filiados à entidade que atuou no polo ativo do mandamus.3. Necessidade de retorno dos autos às instâncias ordinárias para verificar os limites objetivos do que foi decidido no writ coletivo, bem como promover a adequada análise dos temas suscitados nos embargos à execução, sob pena de supressão de instância e violação do princípio da ampla defesa.Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 322.064/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 14/06/2013)

RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. MATÉRIA PREQUESTIONADA. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA COLETIVA. IDEC X BANCO DO BRASIL. CONDENAÇÃO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. PLANO VERÃO. CADERNETAS DE POUPANÇA COM VENCIMENTO EM JANEIRO DE 1989. FORO COMPETENTE. ALCANCE OBJETIVO E SUBJETIVO DOS EFEITOS DA SENTENÇA COLETIVA. EXEQUENTES NÃO DOMICILIADOS NO DISTRITO FEDERAL. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DEMANDA. COISA JULGADA.1. Os art. 471 e 474 do Código de Processo Civil e 93, II, do Código de Defesa do Consumidor foram debatidos no acórdão proferido pela Corte local. Ademais, o aresto recorrido analisou expressamente a matéria sob o enfoque do art. 16 da Lei 7.347/85, dispositivo, inclusive, indicado nas razões do recurso especial.2. "A liquidação e a execução individual de sentença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes

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geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC)" (REsp 1243887/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, DJe 12/12/2011).3. Assentado por ambas as Turmas de direito privado do STJ (REsp 1.321.417/DF, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma e REsp 1.348.425/DF, rel. Min. Isabel Gallotti, Quarta Turma) que a sentença proferida na ação civil pública n. 1998.01.1.016798-9 se aplica indistintamente a todos os correntistas do Banco do Brasil detentores de caderneta de poupança com vencimento em janeiro de 1989, independentemente de sua residência ou domicílio no Distrito Federal, forçoso reconhecer que o beneficiário poderá ajuizar o cumprimento individual da sentença coletiva no Juízo de seu domicílio.4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1372364/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 17/06/2013)

No presente caso, a coisa julgada encontrará seu limite subjetivo em tantos quantos forem os beneficiários que realizem despesas inerentes à condição de idoso ou deficiente e que pretendam o amparo assistencial. Como visto, não se pode cogitar que essa prerrogativa seja conferida apenas a parte dos brasileiros que dela necessitem e segundo o território ondem vivam.

V – PEDIDOS

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por sua agente signatária, requer:

a) a citação do Réu;

b) o julgamento antecipado da lide por se tratar de matéria de direito;

c) a procedência do pedido, com a determinação ao INSS para:

c.1) deduzir, do cálculo da renda familiar a que se refere o §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada dos requerentes do benefício de prestação continuada de que trata referido artigo, notadamente com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico e respectivo transporte, entre outros, facultando-lhes meios de prova razoáveis;

c.2) alterar seus regulamentos internos para adequá-los aos termos da condenação;

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c.3) comunicar às suas Agências a necessidade de observar a obrigação estabelecida na sentença;

d) receber eventual recurso de Apelação do Réu no efeito meramente devolutivo (art. 14 da Lei 7.347/85);

e) a fixação de multa diária no valor de R$ 30.000,00, a ser revertida para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos para o caso de descumprimento da sentença (art. 13 da Lei 7.347/85);

f) a condenação do Réu nos ônus sucumbenciais.

Valor atribuído à causa: R$ 30.000,00.

Porto Alegre, 28 de agosto de 2013.

Ana Paula Carvalho de MedeirosProcuradora da República

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