aÇÃo civil pÚblica com pedido de antecipaÇÃo dos …. vedacao de doacoes... · lei 8313/90...

29
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da __________ Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no de sua atribuição legal conforme expressamente previsto no art. 129, III da Constituição da República e art. 25 IV da Lei 8625/93 e art. 201, V da Lei 8069/, através dos Promotores de Justiça que subscrevem a presente, vem, respeitosamente, propor a presente: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA Em face do Estado do Rio de Janeiro, pessoa jurídica de direito público a ser citado na sede da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, na Rua Dom Manuel, 25, Centro, Rio de Janeiro, pelos fatos e fundamentos que a seguir aduz. 1 - DO CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CEDCA-RJ E DO FUNDO PARA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA - FIA Através da Lei Estadual 1697, de 22 de agosto de 1990, foi criado o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, conforme determinado pela diretriz da política de atendimento à infância e juventude expressamente prevista no art. 88, II do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme dispositivo legal expresso, o CEDCA atua como “Órgão normativo, consultivo, deliberativo e fiscalizador da política de promoção e defesa dos Direitos da infância e da adolescência”, sendo composto por integrantes (conselheiros) membros da administração pública estadual e de organizações representativas da sociedade. O Conselho é formado por 20 (vinte) Conselheiros, na forma do art. 4º da Lei 1697/90, metade destes ligados aos

Upload: voliem

Post on 15-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da __________ Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no de sua atribuição legal conforme expressamente previsto no art. 129, III da Constituição da República e art. 25 IV da Lei 8625/93 e art. 201, V da Lei 8069/, através dos Promotores de Justiça que subscrevem a presente, vem, respeitosamente, propor a presente:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO

DOS EFEITOS DA TUTELA

Em face do Estado do Rio de Janeiro, pessoa jurídica de direito público a ser citado na sede da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, na Rua Dom Manuel, 25, Centro, Rio de Janeiro, pelos fatos e fundamentos que a seguir aduz.

1 - DO CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CEDCA-RJ E DO FUNDO PARA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA - FIA

Através da Lei Estadual 1697, de 22 de agosto de 1990, foi criado o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, conforme determinado pela diretriz da política de atendimento à infância e juventude expressamente prevista no art. 88, II do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme dispositivo legal expresso, o CEDCA atua como “Órgão normativo, consultivo, deliberativo e fiscalizador da política de promoção e defesa dos Direitos da infância e da adolescência”, sendo composto por integrantes (conselheiros) membros da administração pública estadual e de organizações representativas da sociedade. O Conselho é formado por 20 (vinte) Conselheiros, na forma do art. 4º da Lei 1697/90, metade destes ligados aos

Page 2: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

órgãos públicos (conselheiros governamentais) e metade representantes de organizações representativas da sociedade (conselheiros não-governamentais). A composição paritária retrata o paradigma de consenso, unindo Estado e Sociedade na realização da política de atendimento, conforme preceito do art. 227 da Constituição da República e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. A mesma Lei 1697/90, criadora do CEDCA, institui o FIA (Fundo para Infância e Adolescência), nos moldes como ditado pelo art. 88 IV do ECA, o qual é composto de receita proveniente de:

a) Dotações orçamentárias; b) Doações de Entidades Nacionais e Internacionais Governamentais ou não Governamentais voltadas para a defesa da criança e do adolescente; c) Doações de particulares; d) Legados; e) Contribuições Voluntárias; f) O produto das aplicações dos recursos disponíveis; g) Produto de vendas de materiais, publicações e eventos realizados.

Há expressa previsão de redirecionamento de parcela devida de Imposto de Renda, por pessoas físicas e jurídicas, em favor do FIA, na forma como expressamente estabelecido pelo art. 260 do ECA, com a redação dada pela Lei 8248/91, na forma a saber:

Art. 260. Os contribuintes poderão deduzir do imposto devido, na declaração do Imposto sobre a Renda, o total das doações feitas aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente - nacional, estaduais ou municipais - devidamente comprovadas, obedecidos os limites estabelecidos em Decreto do Presidente da República.

Lembramos que o propósito da existência de um Fundo Especial, paralelo ao cofre único da Administração, tem por escopo materializar os Princípios da Prioridade Absoluta, insculpido no art. 227 da CF/88 e da Destinação Privilegiada de Recursos, estabelecido no art. art.4º, par. único, alínea “d” da Lei nº 8.069/90. O conceito orçamentário de Fundo Especial está expressamente descrito no art. 71 da Lei 4320/64, como sendo: “o

Page 3: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”. Das diversas formas de receita estabelecidas em Lei, o maior percentual financeiro do Fundo, sem dúvida, provém de doações subsidiadas realizadas por pessoas físicas e jurídicas através do encaminhamento da verba fiscal, conforme sistema assinalado. No caso em questão, não há necessidade de qualquer contrapartida por parte do contribuinte, basta escolher a opção de direcionamento de parte do tributo e formalizar a doação, com integral abatimento do valor no crédito tributário.1 A propósito, são os estudos do Promotor de Justiça do Estado do Paraná, Murilo José Digiácomo, in “O Fundo Especial dos Direitos das Crianças e Adolescentes e as Doações Casadas”:

“Embora tais fundos tenham diversas fontes de receita dotações orçamentárias, transferências de recursos inter e intra-governamentais, multas administrativas aplicadas em procedimentos para apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente (arts. 194 a 197 e 245 a 258, da Lei nº 8.069/90) e/ou cominadas em ações civis públicas ajuizadas com vista à garantia de direito fundamental de crianças e adolescentes (art.213, §2º e 3º da Lei nº 8.069/90), tal qual previsto nos arts.154 e 214 da Lei nº 8.069/90, dentre outras previstas na lei específica que cria o fundo., uma das principais é (ou a menos pode vir a se tornar), sem dúvida, a doação de recursos por pessoas físicas e jurídicas, resultado de campanhas de arrecadação que o Conselho de Direitos pode - e deve - periodicamente promover campanhas estas que devem ser desencadeadas em especial no sentido da

1 Neste sentido, trago à colação o pensamento de Luciana Caiado Ferreira em seu artigo “O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente: “Ressalte-se que o valor das doações subsidiadas ao fundo, dentro de tais limites, será deduzido do valor do Imposto de Renda a pagar e não da base de cálculo do imposto. Assim, as doações subsidiadas não trazem qualquer ônus ao contribuinte e tem como vantagem a garantia da aplicação em políticas públicas afetas à infância e juventude. O contribuinte, na verdade, redireciona ao fundo dos direitos da criança e do adolescente recursos que seriam pagos a título de imposto de renda ao caixa único do Tesouro Nacional. A doação subsidiada também é um instrumento de exercício democrático, pois convida o contribuinte a fiscalizar e a participar de forma mais visível da proteção às crianças do seu município, ficando mais próximo das deliberações acerca do destino de seu imposto. Através delas o contribuinte do imposto de renda pode optar por destinar percentual de seu imposto devido aos fundos geridos pelos conselhos, sabendo que tais valores, diferentemente do restante dos valores devidos a título de imposto, têm destinação previamente definida: políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes de cada estado ou município.

Page 4: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

conscientização da população no sentido de sua efetiva participação no debate, descoberta e implementação de soluções para os problemas enfrentados na área da infância e juventude, pois afinal, a "mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade" (verbis) é uma das diretrizes da política de atendimento traçada pela Lei nº 8.069/90, ex vi do disposto em seu art.88, inciso VI.4.”

2 - DA NATUREZA JURÍDICA DA VERBA DEPOSITADA NO FUNDO E DA FORMA DE GESTÃO

Seja qual for a origem dos recursos, ao ingressarem nos cofres do Fundo, tal montante passa a ter a natureza jurídica de “verba pública”. Como tal, sua gestão e administração devem ser pautadas pelas normas e princípios que norteiamo atuar dos entes públicos, emblematicamente a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. No que se refere ao montante proveniente das doações subsidiadas, tal verba sempre foi de natureza pública, pois é proveniente de renúncia fiscal da União Federal, que deixa de arrecadar créditos de Imposto de Renda, na forma prevista em Lei. Ou seja, não tivesse ocorrido à doação subsidiada ao Fundo Estadual (ou Municipal), o montante deveria ser regularmente arrecadado pela Receita Federal. Assim sendo, quando o contribuinte opta pela doação subsidiada, deixa de pagar ao Fisco para depositar no Fundo (FIA), ficando a verba integral sob administração do Conselho Estadual de Direitos. A destinação a ser dada a tal verba é questão de política pública, a ser definida pelos Conselheiros eleitos, que por definição legal expressa, são detentores únicos do poder de gestão e disposição do montante, nos moldes do art. 214 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A aplicação dos recursos, como em toda política pública, deverá obedecer aos princípios formais da administração pública e nortear-se pela finalidade precípua da Administração que é o atendimento do interesse público, mais especificadamente, o interesse das crianças e adolescentes.

Page 5: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

Devem os conselheiros, revestidos do poder político que lhe é conferido, utilizando os critérios de oportunidade, conveniência e razoablidade, estabelecer dentro do diagnóstico da sociedade que representam, quais as áreas de atendimento devem ser priorizadas, de que forma a verba deverá ser empenhada e quais os destinatários diretos dos recursos, tudo sem olvidar do poder/dever de fiscalização inerente a qualquer forma de emprego de recursos públicos. A propósito é o entendimento de Fernando Henrique de Moraes Araújo , mestre em direito pela PUC-SP:

“Deixando a história de lado, simples reflexão jurídica sobre o tema permite concluir que o conceito de doação não é adequado, já que o interessado/destinador de recursos aos fundos da infância terá direito a abatimento em seu imposto de renda (de 1% a 6%). Ou seja, não se trata de um "favor às criancinhas", como muitos falsa e publicamente alardeiam.

Além disso, uma vez depositado o dinheiro na conta dos fundos, que, por sua vez, integram os respectivos cofres públicos de municípios, Estados e União, o dinheiro passa a ser público, e não mais particular, cabendo a obediência a todo o regramento normativo de direito público brasileiro.”

3 - DA IMPOSIÇÃO DE GESTÃO PLENA DOS RECURSOS DEPOSITADOS NO FUNDO PELOS MEMBROS CONSELHO E DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO FEDERAL O art. 260 da Lei 8069/90, ao definir a forma de dedução tributária, não estabeleceu nenhuma disposição especial, de forma a retirar do Conselho a gestão plena destes recursos. Saliente-se que há outros mecanismos de fomento de patrocínio público, como o estabelecido em favor da Cultura Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador eleja o projeto ou a entidade favorecida, sem que haja depósito em fundos públicos. De acordo com a dinâmica implantada por estas leis, cabe ao próprio executor da atividade artística ou desportiva a busca de patrocínio perante a iniciativa privada. Assim, a verba

Page 6: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

destinada, apesar de também ser proveniente de renúncia fiscal, não ingressa nos cofres públicos, passando diretamente de particular para particular. O art. 18 da Lei Rouanet, permite ao patrocinador escolher entre doar ao FNC – Fundo Nacional de Cultura – ou diretamente ao projeto cultural escolhido, sendo notória a opção majoritária pela última hipótese:

Art. 18. Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, como através de contribuições ao FNC, nos termos do art. 5o, inciso II, desta Lei, desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1o desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 9.874, de 1999)

Já no caso dos incentivos aos esportes, a Lei 11438/06 estabelece a regra da doação diretamente aos encarregados da execução dos projetos esportivos:

Art. 1o A partir do ano-calendário de 2007 e até o ano-calendário de 2015, inclusive, poderão ser deduzidos do imposto de renda devido, apurado na Declaração de Ajuste Anual pelas pessoas físicas ou em cada período de apuração, trimestral ou anual, pela pessoa jurídica tributada com base no lucro real os valores despendidos a título de patrocínio ou doação, no apoio direto a projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministério do Esporte. (Redação dada pela Lei nº 11.472, de 2007)

Tais mecanismos vêm sendo alvo de criticas por parte da sociedade.2 A forma de captação direta de recursos, em

2 Em discussão postada no site Globo.com, em 23.03.09, é citado que o próprio Ministro da Cultura não está satisfeito com a forma de captação de patrocínio estabelecida: “Na entrevista coletiva que concedeu esta segunda-feira, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, criticou o pouco acesso que a população tem à cultura hoje (apenas 14% vão ao cinema ao menos uma vez por mês, segundo o Ministério) e a concentração de recursos públicos para o financiamento de propostas culturais nas mãos de poucos proponentes. - Não queremos demonizar a Lei Rouanet, mas 18 anos depois, temos que fazer uma discussão. A lei tem muitas qualidades, mas também tem defeitos gravíssimos. No ano passado disponibilizamos R$ 1 bilhão em recursos públicos e 50% desses recursos foram captados por 3% (dos proponentes). Isso não é justo. Isso não é política pública - reclamou.

Page 7: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

regra, favorece os eventos culturais e esportivos com mais notoriedade e possibilidade de obtenção espaços na mídia, em detrimento de manifestações genuínas e populares, que não tenham tanta visibilidade A empresa doadora, com permissão legal, vincula seu nome ao projeto cultural ou esportivo eleito, usufruindo da publicidade daí advinda. Certamente que irá optar por patrocinar os espetáculos e competições com maior potencial de público, mesmo que não representem manifestações culturais populares.3 Todavia, no caso da administração dos Fundos da Infância e Adolescência, não há previsão semelhante. Propositalmente, não quis o legislador dar tal opção ao particular doador, em relação à gestão da política de atendimento à infância e juventude, em razão da indisponibilidade do direito em questão, na forma estipulada pelos arts. 204 e 227 § 7º da CF. Em face da complexidade que envolve o tema e a seriedade com que deve ser tratada a problemática da supressão dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, não quis o legislador despir o ente público, in casu, os Conselhos de Direito, da plena gestão da verba arrecadada. Assim, o dinheiro depositado no Fundo não pode, de nenhuma forma, ter qualquer comprometimento com sua aplicação, além da destinação a ser dada por aqueles investidos do poder de decisão, no caso, os Conselheiros de Direitos. Ausente previsão legal específica, não é possível o doador limitar a atuação dos Conselheiros, através do direcionamento das verbas públicas doadas aos Fundos de Direito. Nunca é demais lembrar que, em sede de direito público, regulado pelo principio da legalidade estrita, o silêncio do legislador deve ser interpretado como vedação. A propósito, frise-se que a competência legislativa para regulamentação da matéria é exclusiva da União Federal, já que se trata de definição de forma de escrituração de crédito

3 A propósito, o então Ministro da Cultura Gilberto Gil teceu severas críticas ao sistema da Lei Rouanet, quando o Banco Bradesco, utilizou o montante de R$ 9.400.000,00 (nove milhões e quatrocentos mil reais) que deixaram de ser destinados ao Imposto de Renda, para patrocinar o espetáculo Saltimbancos do Cirque de Soleil, cujos ingressos variavam entre R$ 100,00 (cem reais) e R$ 350,00 (trezentos e cinqüenta reais).

Page 8: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

tributário para fins de Imposto de Renda, conforme disposição do art. 48, I da CF. Sendo assim, não é possível aos Estados e Municípios a edição de Leis ou atos normativos que disciplinem a matéria de modo diferente, sob pena de caracterizar-se benefício fiscal heterônomo, o que afronta o Sistema Tributário Nacional contrariando expressamente o art. 150 § 6º e o preceito contido no art. 151, III da Carta Magna. Uma breve passagem sobre a evolução da Legislação Federal indica que a Lei 7713/88, que disciplinava aspectos sobre a incidência do Imposto de Renda, expressamente previa a possibilidade de abatimento dos valores das doações feitas pelo contribuinte, de acordo com sua livre escolha, às entidades assistenciais que atendam aos critérios e Lei Federal, conforme disposto em seu art. 24 § 7º:

“O Contribuinte que optar por recolher o imposto nos termos do artigo poderá deduzir do imposto a pagar: b) o valor das contribuições e doações efetuadas às entidades de que trata o art. 1º da Lei 3830/60, observadas as condições estabelecidas no art. 2º da mesma Lei.”4

Tal diploma foi expressamente modificado pela Lei 8134/90 que, ao estabelecer a possibilidade de doações faz expressa referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente e, conseqüentemente, à soberania dos Conselhos de Direito acerca da gestão dos fundos especiais em questão, conforme disposição textual:

Art. 8° Na declaração anual (art. 9°), poderão ser deduzidos:

4 Lei 3860 de 25 de novembro de 1960, que dispunha sobre Dispõe sobre “Deduções da Renda Bruta das Pessoas Naturais ou Jurídicas para o Efeito da Cobrança do Imposto de Renda.”: Art.1º - Poderão ser deduzidas da renda bruta das pessoas naturais ou jurídicas, para o efeito da cobrança do imposto de renda, as contribuições e doações feitas a instituições filantrópicas, de educação, de pesquisas científicas ou de cultura, inclusive artísticas. Art.2º - Para que a dedução seja aprovada, quando feita a instituições filantrópicas, de educação, de pesquisas científicas ou de cultura, inclusive artísticas, a beneficiada deverá preencher, pelo menos, os seguintes requisitos: 1) Estar legalmente constituída e funcionando em forma regular, com a exata observância dos estatutos aprovados. 2) Haver sido reconhecida de utilidade pública por ato formal de órgão competente da União e dos Estados, inclusive do Distrito Federal. 3) Publicar, semestralmente, a demonstração da receita obtida e da despesa realizada no período anterior. 4) Não distribuir lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados, sob nenhuma forma ou pretexto.

Page 9: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

...

II - as contribuições e doações efetuadas a entidades de que trata o art. 1° da Lei n° 3.8305, de 25 de novembro de 1960, observadas as condições estabelecidas no art. 2° da mesma lei;

III - as doações de que trata o art. 260 da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990;

Desta feita, resta a única e imperiosa conclusão de que as doações feitas ao Fundo da Infância e Adolescência – FIA são de natureza incondicionada, ou seja, uma vez incluída no fundo não é possível ao doador indicar em qual ou quais planos de atuação pretende que sua verba seja fomentada. O entendimento em sentido contrário levaria à esdrúxula conclusão de que caberia ao particular doador o direcionamento da política de assistência em questão. Assim, tal como ocorre no incentivo à cultura, este irá optar por patrocinar os projetos que dêem maior visibilidade à sua marca.6 Na contramão, os projetos sociais nas áreas menos abastadas da periferia, longe da classe média consumidora da marca, onde em regra estão as maiores necessidades de intervenção, não receberão os recursos devidos. Por óbvio que uma empresa privada irá optar por realizar a doação vinculada a uma atividade cujo espaço na mídia esteja garantido em detrimento de projetos que visem as melhorias das condições dos estabelecimentos de internação de adolescentes que pratiquem atos infracionais, clínicas e outras instituições para prevenção

5 O dispositivo é repetido no art. 1 da Lei 8383/91. 6A propósito, cite-se a orientação do Ministério Público do Rio de Janeiro no que tange aos Conselhos Municipais de Direitos: “Determinadas entidades, ao fazerem suas doações ao Fundo, “exigem” que os beneficiários dos recursos sejam as entidades A, B ou C. Este procedimento é errado e inaceitável, além de esvaziar completamente o papel social do CMDCA e seu poder na elaboração da política pública municipal. Portanto, ao ser depositado na conta do fundo, o recurso passa a ser público e só pode ser aplicado em consonância com o que estiver previsto no orçamento (Plano de Aplicação), nos programas de trabalho previamente definidos pelo CMDCA, e após o procedimento licitatório, sendo a entidade que apresentar a melhor proposta a que vai executar o projeto. Se algum doador quiser repassar recursos diretamente à entidade A ou B, porque confia no trabalho da pretensa beneficiária, em seus administradores ou por outra razão qualquer, que o faça diretamente, sem a intermediação do Fundo. O que muitos desejam, na verdade, é auferir o benefício tributário em virtude de estarem repassando recursos ao Fundo. Para gozarem desse benefício, deverão seguir as “regras do jogo”: recursos do FMDCA somente serão aplicados de acordo com as normas que regem o setor público.” Conselho de Direitos e Fundos da Criança e do Adolescente – Noções Jurídicas para operadores do Sistema – José Carlos Oliveira de Carvalho e Bianca Mota Moraes

Page 10: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

e combate à drogadição, apoio à adolescentes vítimas de exploração sexual e prostituição, etc. 7. Certo, ainda, que o Conselho Gestor do Fundo se veria em um estado de sujeição em relação ao patrocinador, não podendo alterar o direcionamento das verbas, nem mesmo se verificada hipótese de urgência e necessidade. É contra tal situação que o CEDCA de todas as formas tenta instituir no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, que o Ministério Público ora busca a tutela jurisdicional através da presente demanda. 4 – DAS ILEGALIDADES NA CAPTAÇÃO E DESTINAÇÃO DOS RECURSOS DO FIA a) Resoluções e Deliberações que instituíram o Banco de Projetos do CEDCA Apesar de todas as considerações acima traçadas, na contramão do que indica a melhor doutrina sobre a questão, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDCA-RJ, institui através de Deliberações e Resoluções, uma sistemática ilegal denominada Banco de Projetos. Em verdade, a criação do referido sistema de escolha de direcionamento de verbas teve previsão na Deliberação CEDCA 14/07, cujo art. 1º § 4º taxativamente prevê:

Parágrafo 4.º - Fica criado o Banco de Projetos, com projetos aprovados e vinculados aos eixos desta deliberação, e que poderão ser apoiados através de doações espontâneas ao FIA na forma da lei.

O parágrafo seguinte expressamente estabelece a hipótese aqui combatida, viabilizando a escolha por parte do doador do projeto a ser financiado:

7 Em reportagem de capa o Segundo Caderno do Globo de 14.07.09, “Patrocínio Negado” cita as dificuldades em obtenção de patrocínio por parte de Rodrigo Letier, Produtor do filme sobre a garota de programa Bruna Surfistinha: “Como ele, outros produtores e cineastas dão com a cara na porta na hora de pedir patrocínio. Temas como prostituição, drogas, violência, homossexualidade e incesto afastam os investidores.”

Page 11: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

Parágrafo 5.º - As pessoas física ou jurídica poderão sugerir o apoio a determinado projeto estando sujeitos, porém, à aprovação do CEDCA, através de critérios estabelecidos em edital próprio.

A instituição foi estabelecida na Deliberação CEDCA 17/08, em seu art. 1º:

Artigo 1º: Fica instituído o Banco de Projetos da Criança e do Adolescente, para a exposição de projetos públicos e privados voltados para a promoção e defesa dos direitos da infância e juventude em todo o Estado do Rio de Janeiro.

A prática do Banco de Projetos traveste de oficialidade o ato de doação subsidiada direcionada, na medida em que a verba recebida do patrocinador ingressa pró-forma nos cofres do Fundo, revertendo-se diretamente à entidade realizadora do projeto social em questão. Para implantação da escolha dos projetos que integraram o referido Banco de Projetos, foi iniciado pelo CEDCA um arremedo de procedimento licitatório, atualmente em fase de conclusão, tendo sido aprovados oito projetos, trazidos por entidades concorrentes. Conforme informado em Assembléia, motivado pelo rigorismo do primeiro edital, que deixou de fora a maioria dos projetos por razões de ordem formal e documental, está em vias de ser lançado um segundo edital, com critérios mais flexibilizados. Frise-se que este novo edital, que embora aprovado ainda não foi publicado, além de não prever exigência documental específica acerca da qualificação profissional dos envolvidos e da capacidade econômica da sociedade recebedora, abre a possibilidade para participação de empresas privadas com fins lucrativos no certame.8 Igualmente não faz qualquer exigência de prestação de caução ou comprovação de solvabilidade da pessoa jurídica que receberá o numerário. Nada garante ao poder público que o

8 Estas empresas privadas formaram contratos (ou convênios) com a Administração Pública, recebendo verba pública, sem prévio procedimento licitatório formal. Ademais, haverá expressa afronta ao seu objeto social, já que o convênio a ser firmado com o CEDCA envolve a prestação de serviço de assistência social.

Page 12: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

conveniado terá condições financeiras de arcar com a obrigação social assumida ou, eventualmente, de responder por perdas e danos. b) Da sistemática inconstitucional estabelecida pela Lei 5459/09 Inobstante a ilegalidade apontada e apesar da existência do Banco de Projetos, em nova tentativa de impor a prática do direcionamento da verba arrecadada pelo Fundo, foi publicada a Lei 5459/09, que restabelece o ultrapassado Certificado de Captação. Assim, em afronta a todos os princípios constitucionais de repartição de competência legislativa, a nova Lei Estadual cria uma sistemática de arrecadação de Imposto Federal (Imposto de Renda), que não encontra previsão na Lei específica que instituiu, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente. É notório que a norma em questão padece de inconstitucionalidade por invadir competência normativa da União Federal, conforme art. 48, I da Carta Magna. Há ofensa direta, também, ao preceito insculpido no art. 151, III da CF, que veda a concessão de benefício fiscal heterônomo (instituído por ente federativo diverso daquele dotado de competência tributária ativa). Nunca é demais lembrar que quando o Legislador (Federal) quis permitir a concessão de incentivo fiscal através da captação direta pelo particular, ele o fez diretamente, conforme exemplos já citados da Lei Rouanet (Cultura) e da Lei 11438 (Esportes). No caso das verbas destinadas ao amparo da Infância e Juventude, não há qualquer outra possibilidade de doação subsidiada, através do manejo de parcela do Imposto de Renda, que não seja o depósito no Fundo de Direitos, Estadual ou Municipal. Assim, a integralidade da verba renunciada pela União deve ser depositada na conta dos Conselhos Gestores e, como tal, tratada como verba de natureza pública, obedecendo todas as formalidades legais inerentes, em especial a impossibilidade de delegação da gestão. A prática de emissão de certificados de captação já fora utilizada pelo CMDCA/RJ – Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, com a denominação “Selo de Qualidade”, o qual reconheceu que, apesar de

Page 13: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

aumentar numericamente a arrecadação, a prática não importava em benefício direito à política da infância e juventude. A propósito é a abordagem de Aline Carvalho Martins em estudo publicado e distribuído gratuitamente pelo Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente do Município do Rio de Janeiro, que traz entrevista de uma Conselheira que afirma a imoralidade ocorrida através da emissão dos Selos de Qualidade ou Certificados de Captação:

“De acordo com ela, este projeto surgiu, quando, através do FIA, tentou-se acabar com a sonegação de recursos que havia anteriormente... Antes da implementação do Estatuto as pessoas faziam doações para as entidades e recebiam um recibo. E esse recibo descontava do Imposto de Renda. Mas, lamentavelmente, a grande maioria não representava a realidade. Então, uma entidade estava precisando de dinheiro e uma pessoa chegava e dizia: ‘Olha, eu te dou R$ 200, e você me dá um recibo de R$ 1.000, mas na realidade só tinha dado R$ 200. Como o mecanismo de controle ainda era muito falho isso era possível. (...) E como as entidades precisavam de dinheiro, elas aceitavam. E quem era lesado era o fisco, que deixava de receber e as entidades não eram beneficiadas porque deixavam de ganhar. Então uns poucos é que se beneficiavam dessa falta de seriedade. Aí, com essa lei [o ECA], você tem que doar ao Fundo só o Fundo é que te dá o recibo. E o Fundo, através de programs e projetos, ele direciona esses recursos (...), então você não pode mais fingir que dá e não dar”9

A autora afirma também que “muitas empresas que contribuíam deixaram de contribuir com a criação do Selo de qualidade, onde conseguem promover socialmente a empresa, e criar uma relação de favor entre a instituição ‘beneficiada’ e a empresa ‘doadora’ ignorando (ou fingindo ignorar) os benefícios fiscais conseguidos com essa doação. Portanto, este programa pode incentivar o clientelismo, as políticas de favor e a propaganda por parte de quem faz a doação de recursos à instituição, podendo estimular propostas de medidas personificadas em detrimento de uma política geral.”10 Para completar, cita outra conselheira representante das entidades representativas da população:

9 MARTINS, Aline de Carvalho. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro: a trajetória de um novo espaço político. Rio de Janeiro: CMDCA/Rio, 2001, p. 27) 10 Ibid p. 27/28

Page 14: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

“Isso daí não está muito bem amarrado, porque volta aquele problema do início as entidades que são gerenciadas por pessoas de bons conhecimentos, de boa penetração, têm muito mais facilidade de captar recurso do que pequenas entidades, de pessoas simples, de lugares distantes, carentes e etc. E o objetivo é justamente propiciar a todos da mesma maneira”.

Mais gravoso, ainda, é que a Lei Estadual 5459/09 não estabelece pré-requisitos para a entidade que entidade recebedora destes recursos (captadora). Há uma flexibilização inadmissível, abrindo um perigoso caminho para dilapidação do erário público e para evasão fiscal. Note-se que a legislação federal fiscal anterior, que permitia a doação direta de recursos a entidades, fazia referência à Lei Federal 3860/60, já comentada. Este diploma exigia como condição para aprovação da dedução fiscal que a doação fosse feita a: “feitas a instituições filantrópicas, de educação, de pesquisas científicas ou de cultura, inclusive artísticas. O diploma Federal revogado exigia também das entidades recebedoras dos créditos fiscais renunciados: “1) Estar legalmente constituída e funcionando em forma regular, com a exata observância dos estatutos aprovados. 2) Haver sido reconhecida de utilidade pública por ato formal de órgão competente da União e dos Estados, inclusive do Distrito Federal. 3) Publicar, semestralmente, a demonstração da receita obtida” A Lei Estadual comentada, omissa em tais precauções, abre possibilidade para que uma sociedade civil que não esteja regularmente constituída ou com pendências de ordem fiscal, etc., venha a receber verba pública (de origem federal) através do citado certificado. Tamanha flexibilização torna possível, até mesmo a empresas privadas que realizem atividades em prol de crianças e adolescentes (ex. comércio de roupas e sapatos), venham a se enquadrar na previsão. Também não há qualquer exigência de solvabilidade da pessoa jurídica que irá receber os valores. Não se exige qualquer lastro patrimonial que garanta o cumprimento da

Page 15: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

obrigação social assumida ou o eventual ressarcimento de perdas e danos aos cofres públicos.

Destacamos, também, a disposição do art. 2º da Lei 5459/09, segundo a qual para obtenção do certificado basta que o formulário padrão seja analisado por Conselheiro (singular) e submetido à Mesa Diretora para decisão. Há expressa afronta ao próprio principio democrático regedor dos Conselhos de Direitos, subtraindo da Assembléia Geral decisão de tamanha importância diretamente ligada à vontade política da ente colegiado. Tal sistemática transforma o Fundo da Infância e Juventude em um mero recebedor e repassador de verbas, reduzindo a nihil a função constitucional do Conselho de Direitos. A vontade indelegável dos Conselheiros formalmente investidos na função pública passa a ser substituída pela vontade do particular “doador”.11 Esta possibilidade é combatida por Luciana Caiado Ferreira em estudo aprofundado sobre os Conselhos de Direitos e a gestão dos fundos da Infância e Juventude, in verbis:

“... transfere-se a discricionariedade administrativa acerca da definição de políticas públicas e melhor aplicação dos recursos públicos escassos diretamente ao contribuinte, quando nem mesmo ao Judiciário tem sido admitida tal ingerência, conforme repedidas decisões dos nossos Tribunais, a não ser em casos excepcionais em que a política pública já fora definida constitucionalmente”.

Os dispositivos da citada Lei 5459/09 não deixam dúvidas acerca da utilização da conta do FIA, não como destinatária da verba, mas como meio de chancela para obtenção da redução do crédito fiscal:

11 “De forma simples e objetiva: os Conselhos são os gestores dos fundos. Tratando-se de obrigação de cunho essencialmente financeiro, a ser desempenhado por órgão de composição colegiada, afigura-se evidente a impossibilidade de delegação. Aos Conselhos, e só a eles, compete definir os critérios de utilização dos recursos públicos contidos nos fundos. Note-se que na seara da realização da despesa pública somente se faz aquilo que é permitido por lei, não aquilo que a lei simplesmente não veda.” (GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 334)

Page 16: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

“Art. 5º Toda captação de recursos financeiros, com base na presente Lei, deverá ser feita à conta do Fundo Estadual de Direito da Criança e do Adolescente, administrado pelo CEDCA.

Parágrafo Único. Os valores depositados no Fundo, com base no Certificado de Captação, serão feitos em conta corrente específica.

Art. 6º Recebida a doação financeira, a entidade mantenedora do projeto, mediante ofício, informará ao CEDCA o nome do doador, juntando cópia do depósito feito à conta específica do Fundo.

Art. 7º Em 60 (sessenta) dias, a partir da data do depósito na conta do Fundo, deverá o CEDCA transferir o valor doado para a conta bancária da entidade mantenedora do projeto beneficiado, deduzido o percentual de 3% (três por cento), a título de taxa de administração do Fundo.

Parágrafo Único. A transferência do recurso será feita mediante o nada opor do Presidente do CEDCA e autorização do Ordenador de Despesa da Secretaria Estadual que o Conselho esteja vinculado.”

Trata-se, enfim, de indevida intervenção do Legislativo Estadual acerca da administração e tramitação de verba proveniente de renúncia fiscal da União Federal, contra a qual vem a Juízo o Ministério Público. DA OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE:

Como tratado acima, os valores objeto de doação subsidiada ao Fundo da Infância e Juventude – FIA, possuem natureza jurídica de verba pública: quer em razão de ser administrada por um órgão público da administração estadual direta; quer em razão de ser produto de renúncia fiscal expressa da União Federal. Assim, a administração, gestão e emprego das quantias depositadas no Fundo, devem obedecer estritamente às regras gerais financeiras e orçamentárias, tal como as verbas destinadas ao cofre geral da Fazenda Pública Estadual. A propósito, cite-se o entendimento de Alexandre Câmara:

Page 17: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

“O tradicional principio da legalidade, previsto no art. 5º, II, da Constituição Federal e anteriormente estudado, aplica-se normalmente na Administração Pública, porém de forma mais rigorosa e especial, pois o administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva, pois na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza, diferentemente da esfera particular, onde será permitido realização de tudo que a lei não proíba. Esse principio se coaduna com a própria função administrativa, de executor do direito, que atua sem finalidade própria, mas sim em respeito à finalidade imposta pela lei e com a necessidade de preservar-se a ordem jurídica.”

A distribuição de recursos através do Banco de Projetos ou a emissão de Certificados de Capitação afronta, entre outros, a Lei Federal 4320/64, que estabelece “Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal”12 Há previsão expressa no art. 2º, § 2º, I do citado diploma que devem acompanhar a Lei de Orçamento Público o “Quadro Demonstrativo de Receitas e Plano de Aplicação dos Fundos Especiais”, como no caso, o Fundo da Infância e Adolescência, FIA. Ora, se os recursos já ingressam no fundo com destinação especifica em favor de determinada entidade ou projeto social, não é possível haver prévia destinação orçamentária.

12 Maurício Vian e Tatiana Maranhão ressaltam que “o orçamento público está relacionado com a definição e a implantação das políticas sociais, portanto, é um instrumento político através do qual a sociedade civil e o governo discutem e disputam os objetivos e as metas destas políticas. Portanto, o Fundo da Criança e do Adolescente se insere nesta discussão ao tratar do orçamento destinado às políticas na área da infância e da juventude.” (VIAN, Maurício; MARANHÃO, Tatiana. Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. In Fundos Públicos e Políticas Sociais. São Paulo: Instituto Polis, 2004, p. 49)

Page 18: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

Note-se que, a prática subtrai também o controle por parte do Poder Legislativo, já que dispõe o art. 72 especificamente que:

Art. 72. A aplicação das receitas orçamentárias vinculadas a turnos especiais far-se-á através de dotação consignada na Lei de Orçamento ou em créditos adicionais.

A gestão dos recursos em comento deve obedecer a norma geral em relação ao orçamento público, com o estabelecimento das metas em um Plano Plurianual, obediência das formalidades contidas nas Leis de Diretrizes orçamentárias, encaminhamento ao Poder Legislativo para inclusão na Proposta Orçamentária e Aprovação pela Assembléia Legislativa.13 As práticas pretendidas pelo CEDCA violam frontalmente a disposição do art. 167, I da Constituição Federal “o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual”; Outrossim, sempre é bom lembrar que a elaboração de qualquer orçamento público deve obedecer ao Princípio da Especificação14, segundo o qual cada previsão de receita e despesa deve ser detalhadamente especificada de modo a permitir a compreensão por parte do Poder Legislativo, encarregado da aprovação e o pleno controle fiscal por parte dos legitimados. Na sistemática do Banco de Projetos e na emissão dos Certificados de Captação, não haverá prévio detalhamento da despesa, ou sequer aprovação da mesma pelo Poder Legislativo. O comentado art. 7º da Lei 5459/09 e o item IX, 3 do Edital que institui o Banco de Projeto pontuam tal assertiva, in verbis:

13 A propósito é o entendimento de Murillo José Digiacomo, no artigo O Fundo Especial para a

Infância e Adolescência – FIA e o orçamento público. “Assim, cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, da forma mais transparente e participativa possível, esboçar, discutir e aprovar, a cada exercício, um “Plano de Aplicação” dos recursos captados pelo Fundo Especial para a Infância e Adolescência, que deve estar intimamente relacionado a seu “Plano de Ação”, quanto às políticas, programas e ações a serem implementadas no município, e ser incluído na proposta orçamentária respectiva, elaborada pelo Executivo e encaminhada à Câmara Municipal para análise, discussão e aprovação.” 14 Cite-se a doutrina de Eber Zoehler Santa Helena, consultor de orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados: “Trata-se do princípio da especificação, ou especialidade, ou ainda, da discriminação da despesa, que se confunde com a própria questão da legalidade da despesa pública e é a razão de ser da lei orçamentária, prescrevendo que a autorização legislativa se refira a despesas específicas e não a dotações globais.”

Page 19: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

3. Os recursos financeiros serão repassados do FIA/CEDCA/RJ diretamente para a conta bancária específica indicada pela organização e em número de parcelas previstas no Convênio.

As formalidades legais para a quitação das dívidas públicas também não serão levadas em conta, excluindo-se os mecanismos legais de empenho, liquidação, ordenação e pagamento, afrontando o disposto no art. 32 § 1º da Lei Estadual 5290/08 – Lei de Diretrizes Orçamentárias, que prevê, in verbis:

“Art. 32. São vedados quaisquer procedimentos pelos ordenadores de despesa que viabilizem a execução de despesas sem comprovada e suficiente disponibilidade orçamentária. § 1º É vedada a realização de despesas, com início de obras e a celebração de contratos sem o devido empenho prévio.”

a) Da Ofensa ao Princípio da Impessoalidade Também resta ofendido o princípio constitucional da impessoalidade, o qual constitui variação mais específica do próprio princípio da igualdade, disposição primeira do art. 5º da Constituição da República. Prevê o art. 1º, parágrafo único, da Lei 8666/93, a necessidade de prévia licitação para elaboração de contratos de prestação de serviços custeados com verbas públicas, especificando os Fundos Especiais, in verbis:

Art. 1o - Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Parágrafo único - Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Page 20: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

A Lei 8666/93 prevê a hipótese de certame para escolha de projetos técnicos, científicos ou artísticos, como o que pretende o CEDCA implantar. A licitação em questão obedecerá a modalidade concurso, conforme previsto no art. 22§ 4º do diploma em comento. O procedimento realizado pelo CEDCA, no entanto, afronta o disposto no art. 52 § 2º da Lei de Licitações, que consubstancia a impossibilidade do próprio autor do projeto vencedor vir a ser o seu realizador, na medida em que estabelece para este a obrigação de autorizar a Administração que o execute no momento que julgar conveniente:

Art. 52. O concurso a que se refere o § 4o do art. 22 desta Lei deve ser precedido de regulamento próprio, a ser obtido pelos interessados no local indicado no edital. ... § 2o Em se tratando de projeto, o vencedor deverá autorizar a Administração a executá-lo quando julgar conveniente.

A análise das Deliberações do CEDCA e do Edital que estabeleceu o Banco de Projetos, criam uma esdrúxula forma de concorrência pública na qual o próprio proponente do projeto será o seu executor e, conseqüentemente, o beneficiário com a destinação financeira. Não há, definitivamente, qualquer previsão legal neste sentido.15 Assim, além dos Conselheiros terem se despido indevidamente do poder/dever de elaboração da política pública, delegam à própria entidade apresentante do projeto a sua execução, o que afronta diretamente o citado princípio da impessoalidade da administração, dificultando ou tornando questionável qualquer forma de fiscalização. Mesmo nos casos de assinatura de convênio, não está a Administração Pública desonderada do atendimento das normas cogentes da Lei 8666/93, conforme previsão expressa de ser art. 116. Sobre o tema, trago à colação o posicionamento da professora Odete Madauar:

15 Some-se a isto que, em muitos casos, as entidades sociais recebedoras de recursos têm assento no Conselho, o que representa uma concentração ainda maior de funções. Assim, não é raro que haja identidade entre o idealizador, o realizador do projeto e o ordenador da despesa.

Page 21: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

“Se a administração resolver realizar convênio para resultado e finalidade que poderão ser alcançados por muitos, deverá ser realizada licitação ou se abrir a possibilidade de conveniar sem limitação, atendidas as condições fixadas genericamente; se assim não for, haverá ensejo para burla, acobertada pela acepção muito ampla que se queira dar aos convênios. Alguns casos ocorrem na prática, nos quais, a título de convênio, obras são contratadas sem licitação e pessoas são investidas em funções e empregos públicos sem concurso ou seleção"

c) Da Ofensa ao Princípio da Moralidade Neste particular, forçoso concluir que a dinâmica que pretende o CEDCA implantar para arrecadação e destinação dos recursos destinados ao Fundo da Infância e Adolescência viola não só os dispositivos legais já comentados, positivados em normas cogentes de direito público, como as disposição não escritas inerentes ás boas práticas e a moralidade administrativa. Ora, é fato notório o crescimento do chamado terceiro setor, com uma participação maior da sociedade na execução direta de políticas públicas através das entidades não-governamentais. Tal fenômeno se mostra positivo, eis que materializa o próprio preceito de cooperação disposto no art. 227 da Constituição da República. Por outra, a dissipação da aplicação das verbas públicas entre entes de natureza privada, seja diretamente, mediante convênios ou outras modalidades de repasse, vem dificultando sobremodo o controle acerca da aplicação dos recursos, sendo fonte de uma série irregularidades16 no âmbito Federal17, Estadual18 e Municipal19.

16 Manchete de capa do Jornal O Globo de 14.06.2009: “TCU ESTIMA QUE 47% DOS CONVENIOS DA UNIÃO QUE NÃO PASSARAM POR FISCALIZAÇÃO CONTÉM IRREGULARIDADES” .

17 Em matéria jornalística publicada no site do Senado Federal (www.senado.gov.br), consta entrevista do Ministro do TCU Marcos Bemquerer, afirmando que mais das metades dos convênios celebrados entre a União e as Organizações Não Governamentais possuem vícios: “A relação entre o Estado e as ONGs, de acordo com o TCU, é pautada pela quase absoluta falta de controle, com conseqüente prejuízo aos cofres públicos e à população. “– O que está ocorrendo é uma verdadeira terceirização da execução das políticas públicas para organizações da sociedade civil, daí descambando para toda sorte de ilícitos administrativos, tais como a burla da exigência de concurso público e de licitações, o uso político-eleitoreiro dos recursos transferidos, o desvio de recursos para enriquecimento ilícito, entre muitos outros – dizia o relatório da auditoria assinada por Bemquerer.”

Page 22: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

Nada justifica que o Administrador venha abrir mão de seu poder personalíssimo de definir o objeto da política pública, bem como retire mecanismos de controle e transparência de seus atos.20 D) Da Ofensa ao Principio da Publicidade Como já dito acima, a concentração das funções de planejamento e execução do projeto social nas mãos da mesma pessoa jurídica importará em dificuldades para o controle administrativo eis que não haverá transparência em relação à análise do alcance de seus objetivos. Outrossim, o mecanismo que permite ao particular a escolha direta do projeto a ser patrocinado criará barreiras para fins de distribuição equânime dos recursos dentre as metas aprovadas pelos Conselheiros. Certo, outrossim, que a modalidade de distribuição de recursos aqui questionada dificulta a ação fiscalizatória

18 Nota publicada no Jornal O Globo de 09.05.2006 denuncia que: "O Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Cidadania (CBDDC), que no ano passado recebeu R$ 105,6 milhões do governo do estado do Rio de Janeiro, repassou parte dessa verba a cooperativas ligadas a doadores da pré-campanha do ex-governador Anthony Garotinho (PMDB) à Presidência da República. A ONG contratou a Pró-Service e a Coopersonal, que têm entre seus integrantes Luiz Antônio Motta Roncoli, Nildo Jorge Raja e Marcos André Coutinho. Eles são sócios da Virtual Line, da Emprin e da Inconsul, que doaram juntas R$ 400 mil ao PMDB.”

19 Em 09 de dezembro de 2007, reportagem do Fantástico aponta um esquema de corrupção no Município de Rosana, interior de São Paulo, na qual um empresário (hoje foragido da Justiça) faz uma proposta a um político da região : “Você monta uma ONG, eu empresário vou lá e deposito na ONG, você é o dono da ONG, por trás você pega o dinheiro. Faz alguns beneficinhos lá, faz alguns cursinho lá, acabou. Eu desconto do meu imposto de renda e você se beneficia, é a única forma, da forma legal”, 20 A propósito é o entendimento de Emerson Garcia disposto no artigo Fundo Especial dos Direitos da Criança e do Adolescente Direcionamento das doações e possível configuração da improbidade administrativa -Tópicos de análise: “Na medida em que os Conselhos atuam como órgãos deliberativos e não meramente consultivos, mostra-se manifestamente ilegal a edição de um ato regulamentar que busque definir a priori, de forma contínua e inalterável, insensível aos circunstancialismos fáticos e jurídicos pelos quais passa qualquer sociedade, em especial em um país de modernidade tardia como é o Brasil, a forma de aplicação dos referidos recursos. A ratio dos Conselhos é simples: conferir a mobilidade necessária em matéria tão sensível, como aquela afeta à infância e à juventude, permitindo que um órgão público, dotado de representatividade popular, defina as prioridades que lhe pareçam mais adequadas à satisfação do interesse público. À evidência, não é legítimo aos Conselhos abrirem mão de seu decisionismo concreto em prol de uma regulamentação abstrata, isto sob pena de colocar em causa a própria razão de ser de sua existência, pois deliberações dessa natureza fazem melhor figura na lei, editada por órgão democraticamente legitimado.

Page 23: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

do Tribunal de Contas do Estado e demais órgãos da rede de proteção à infância e juventude. e) Da ofensa à eficiência Parece óbvio que macula o principio da eficiência a forma de distribuição do recurso proveniente da renúncia fiscal da União em programas definidos pelas próprias sociedades tomadoras dos recursos. Não haverá espaço para que o gestor, in casu¸ os membros do Conselho, exerçam a discricionarieade de eleger quais setores merecem atendimento prioritário. Nem mesmo, diante de novos fatos ou questões graves e de urgência, será possível alteração da forma de emprego da verba, através de alterações orçamentárias. Ficará o Conselho engessado, sendo obrigado a repassar os valores diretamente às sociedades eleitas pelos “doadores”, em detrimento da finalidade específica que é o atendimento prioritário dos interesses das crianças e adolescentes. A questão se reveste de importância quando temos em conta que os recursos administrados não são suficientes para abarcar toda a gama de anseios das crianças e adolescentes. É uma gestão de recursos finitos, onde a vontade do agente político é fundamental para indicar quais setores serão beneficiados, de forma e em que oportunidade. f) Da Ausência de Reserva substancial mínima A distribuição de verbas destinada ao Banco de Projetos ofende à norma impositiva do art. 260 do Estatuto da Criança e do Adolescente que obriga aos Conselhos de Direitos a destinação de percentual do fundo gerido para “incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente, órfão ou abandonado, na forma do disposto no art. 227 § 3º VI da CF” No caso, não há tal previsão já que o recurso arrecadado será destinado a entidade eleita pelo patrocinador, o que importa em negativa de vigência ao dispositivo comentado.

Page 24: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

O Professor Fernando Henrique de Moraes Araújo expressamente prevê a invalidade de qualquer outra disposição de verbas quando não obedecida a reserva legal:

“Ora, se o Conselho Municipal, Estadual ou Nacional não aplica um mínimo percentual de recursos do Fundo para o fim acima apontado, a conseqüência jurídica será a de imediata ilegalidade de qualquer outra posterior destinação dos recursos, pois trata-se de reserva substancial mínima que não pode ser desrespeitada, por expressa previsão legal.”

g) Da sujeição à Lei de Improbidade Administrativa Na qualidade de gestores de verba e bens públicos, os Conselheiros de Direitos, membros do CEDCA ou dos Conselhos Municipais, atuam como agentes públicos, manifestando a vontade da administração e, como tal, estão sujeitos à normatização e às penalidades previstas na Lei 8429/92. A dicção legal não deixa dúvidas acerca de tal aplicabilidade, conforme se constata in verbis:

Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.

Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente

Page 25: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

Ao analisar hipótese assemelhada, Fernando Henrique de Moraes Araújo concluiu que:

“Significa dizer que se os Conselhos deliberam sobre a forma de captação, seleção de projetos e destinação dos recursos do Fundo por mero “achismo”, sem qualquer diagnóstico objetivo da territorialidade respectiva, com quadro sério de indicadores sociais, é óbvio que não estará havendo respeito aos requisitos dos atos administrativos acima apontados e, imediatamente aos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e eficiência, permitindo adequação típica aos preceitos dos artigos 9º, II, XI e 11, I, ambos da Lei nº 8.429/92.”

Nunca é demais lembrar que, caso apurada qualquer hipótese de ilicitude, haverá solidariedade entre os agentes envolvidos para com a obrigação de reparar os danos causados ao erário, sendo cada um dos Conselheiros responsável pela integralidade da verba irregularmente repassada às sociedades civis, com eventual direito de regresso, nos moldes do art. 942 do Código Civil. Por todas estas razões, somos forçados a concluir pela ilegalidade das deliberações e resoluções administrativas que instituíram o Banco de Projetos de CEDCA, bem como a sistemática de Certificados de Captação e, conseqüentemente, pela invalidade de todos os atos subseqüentes, inclusive em relação aos atos já praticados e futuros tendo como objeto repasse de verbas provenientes do Fundo da Infância e Adolescência – FIA sem expressa deliberação dos Conselheiros e obediência às formalidades orçamentárias e administrativas inerentes. IV – DA IMPORTÂNCIA DA TUTELA JURISDICIONAL PLEITEADA Convém frisar que o Ministério Público, enquanto componente do Sistema de Garantias de Direitos das Crianças

Page 26: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

e Adolescentes jamais viria a Juízo pleitear medidas que militem contra os interesses que diariamente defende. Ao contrário do que possa vir a ser dito, o ajuizamento desta medida foi fruto de ampla reflexão institucional e amadurecimento sobre o tema. Temos ciência de que, em um primeiro momento, poderá haver um impacto negativo no índice de arrecadação do FIA. Todavia, esta redução momentânea não é justificativa para a implantação da política ilegal de direcionamento de verbas. Cabe ao próprio Conselho, através da adoção de políticas positivas e educacionais (como já vem fazendo satisfatoriamente) firmar o nome da entidade e buscar junto ao setor privado o financiamento necessário para materializar os projetos fruto de sua própria vontade política autônoma. Enaltecemos o empresariado que pretende vincular o nome de sua marca a determinado projeto social. Ora, isto não é defeso em lei. Nada impede que este realize tal publicidade vinculando-se à marca do Conselho de Direitos ou mesmo que eleja um dos programas escolhidos pelos Conselheiros para diretamente fiscalizar, apadrinhar, incentivar o trabalho voluntário de seus empregados, etc. Este amadurecimento do Colegiado é fruto de evolução da própria formação desta espécie de entidade deliberativa. Temos certeza de que em curto espaço de tempo será notório o trabalho social realizado pelos Conselhos e a conscientização dos doadores (pessoas físicas e jurídicas). Todavia, o que não se pode conceber é que a título de incremento de arrecadação venha a se deslocar do legitimado o poder/dever de definição da nobre política de atenção à criança e ao adolescente. Lembramos que ainda é possível a caridade através da realização de doações por qualquer pessoa física ou jurídica diretamente ao órgão ou entidade sem fins lucrativos de sua escolha. Tais verbas serão geridas exclusivamente pelo doador. Contudo, a estas

Page 27: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

doações a lei não deu o incentivo do desconto no imposto de renda devido. A decisão mais uma vez é do contribuinte: pode gerir pessoalmente seus recursos, fazendo doações a quem entender pertinente ou pode obter o desconto no imposto de renda, depositando tais valores no fundo dos direitos da criança e do adolescente. Mas, uma vez depositadas no fundo, a gestão integral de tais verbas compete exclusivamente ao conselho de direitos da criança e do adolescente. A lei não admite nenhum direcionamento, mesmo que percentual, dos valores depositados. Em contrapartida, não só permite como incentiva a fiscalização popular. Utilizando-se da doação subsidiada como instrumento de materialização da democracia, o contribuinte não só pode como deve exercer sua cidadania acompanhando o andamento e a execução dos programas financiados com verbas do fundo. Pode acompanhar aqueles que ficam nas proximidades de sua residência ou sede e fazer visitas sistemáticas, oferecer auxílio técnico ou mão-de-obra voluntária, observar se vêm sendo atendidas a contento as demandas das comunidades locais. Caso observe alguma irregularidade, o contribuinte não poderá, ele mesmo, determinar a suspensão do financiamento da atividade, mas poderá levar o fato ao conhecimento dos órgãos fiscalizadores e do próprio Conselho, de forma sigilosa ou publicamente em assembléia, com vistas a obter a imediata suspensão do financiamento, além de eventual responsabilização cível e criminal do autor da irregularidade.

IV – DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA Sendo assim, considerando a verossimilhança do direito aqui afirmado, tendo em vista os fatos, argumentos e posicionamentos doutrinários expostos, e em face da possibilidade de dano de difícil reparação aos cofres públicos e aos direitos coletivos das crianças e adolescentes do Estado do Rio de Janeiro, requer o Ministério Público seja liminarmente deferida, inaudita altera pars, a antecipação dos efeitos da tutela, para que: seja determinada a paralisação do procedimento administrativo para escolha dos Projetos que integrarão o Banco de Projetos do CEDCA, inclusive com a invalidade dos convênios eventualmente celebrados, e impedidos qualquer outro meio de distribuição de verbas do FIA através de doações “casadas” ou direcionadas, sem prévia deliberação

Page 28: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

específica e circunstanciada dos Conselheiros e obediência às formalidades administrativas, licitatórias e orçamentárias, até decisão final da presente demanda. V – DO PEDIDO Por fim, requer o Ministério Público:

a) o recebimento e regular processamento da presente Ação Civil Pública;

b) seja deferido o pedido de antecipação dos

efeitos da tutela nos moldes acima referidos;

c) A citação do réu para, querendo,

contestar a presente ação no prazo legal, sob pena de revelia;

d) Seja devidamente instruído o presente

feito, protestando o Ministério Público pela produção de provas documental superveniente, oral e pericial;

e) Seja, ao final, julgado procedente o

presente pedido para que:

* seja declarada nulidade das Deliberações e Resoluções que instituíram o Banco de Projetos do CEDCA, com a invalidade de todos os atos praticados, inclusive convênios e repasses de verbas públicas já efetuados; * seja declarada a impossibilidade da emissão de Certificados de Capitação, reconhecendo-se, incidentalmente, a inconstitucionalidade formal e material da Lei Estadual 5459/09;

Page 29: AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS …. vedacao de doacoes... · Lei 8313/90 (Lei Rouanet) e dos Esportes (Lei 11438/06), que expressamente permitem que o doador

* seja emitida ordem judicial vedando qualquer forma de distribuição de recursos financeiros do FIA que afaste o poder total e irrestrito de deliberação dos Conselheiros ou a legislação administrativa, licitatória e orçamentária pertinente.

f) Seja o réu condenado a arcar com custas

e honorários de sucumbência a serem revertidos em favor do Centro de Estudos Jurídicos do Ministério Público.

Atribui-se à presente causa, para efeitos meramente formais, o valor de R$ 20.000 (vinte mil reais).

Rio de Janeiro, de agosto de 2009

_______________________ Danielle Cavalcante de Barros

Promotora de Justiça

_______________________ Karina Valesca Fleury Promotora de Justiça

_______________________ Luciana Caiado Ferreira

Promotora de Justiça

______________________ Luciana Carvalho Youssef

Promotora de Justiça