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Abre-se a Floresta. (detalhe) 2012

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Abre-se a Floresta. (detalhe) 2012

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Po e s i a E s t r a n g e i r a

mahmoud darwich

Tradução de Michel Sle iman

mahmoud darwich nasceu em 1941 em Albirwa, uma aldeia da Galileia então sob mandato britânico, mas que passaria

a pertencer a israel após a criação do estado pela ONU em 1947. Já no início do novo estado, a aldeia é totalmente arrasada e a família se força ao exílio no líbano, de onde retorna um ano depois, pas-sando a viver clandestinamente na aldeia de dair Alassad. Adulto, e estabelecido em Haifa, darwich milita no partido israelense maki, de orientação comunista, e publica seus primeiros livros de poemas, alguns dos quais notabilizam o poeta mundialmente. sem autoriza-ção para cursar faculdade em israel, inicia ciências Políticas na União soviética, mas logo abandona o curso e o país por julgar o regime incompatível com o exercício da liberdade. muda-se ao cairo, depois a Beirute, trabalhando em jornais e revistas literárias: Alahram, Alfajr, Chuun Filistinia, a importante Alkarmel. entre 1973 e 1995, esteve filia-do à Organização da libertação da Palestina, chefiando o seu centro de Pesquisa. Foi quando darwich teve proibida a entrada em todos os territórios em que israel exerce controle. enquanto não fixou re-sidência em ramallah, cisjordânia, em 1995, morou em sucessivas localidades do estrangeiro: nove anos em Beirute (1973-1982), 10 em Paris (1985-1995), com passagens rápidas por cidades como da-masco, Nicósia, cairo e túnis. morreu em agosto de 2008, num hos-pital de Houston, nos eUA. A obra poética de mahmoud darwich compõem-se de 23 livros, traduzidos sobretudo ao Francês.

Professor, poeta e tradutor. michel sleiman é autor do poemário Ínula Niúla (Ateliê, 2009) e organizador-tradutor da antologia Poemas, de Adonis (companhia das letras, 2012). Publicou os ensaios A arte do zajal (Ateliê, 2007) e A poesia árabe-andaluza (Perspectiva, 2000) e é professor de língua e literatura árabe da UsP.

Tradução de Michel Sle iman

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Mahmoud Darwich

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AiNdA É lONGO o caminho

Ainda é longo o caminho. Guarda espaço para o peregrino.muitas rosas jogaremos no rio até que o atravessemos. e nenhuma viúva quer voltar para nós.Vamos para lá... a norte dos relinchos. lembre algo simples que combine com o pensamento por vir.Fale sobre ontem, meu amigo, assim posso ver minha imagem no arrulho da pomba, posso segurá-la no colar, ou quem sabe encontre a flauta deixa-da numa figueira esquecida...Bate a saudade, por tudo, de mim faz vítima e assassino,o caminho é longo ainda, há muito o que andar. Até onde vão me levar as perguntas?sou daqui, sou de lá. mas não estou nem aqui nem lá.muitas rosas jogarei até chegar à rosa da Galileia.

Tradução de Michel Sle iman

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Mahmoud Darwich

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VirÃO outros bárbaros

Virão outros bárbaros. A mulher do imperador será raptada. Baterão os tambores baterão os tambores para que os cavalos empinem as patas sobre as pessoas, desde o mar egeu até o dardanelos.mas nós, o que temos com isso? O que as nossas mulheres têm a ver com os cavalos?A mulher do imperador será raptada. Baterão os tambores. e virão outros bárbarosbárbaros encherão os vazios das cidades, mais altos que o mar, mais fortes que a espada no tempo da cólera.mas nós, o que temos com isso? O que as nossas crianças têm a ver com essa sem-vergonhice?Baterão os tambores. Virão outros bárbaros. e a mulher do imperador será raptada de dentro da casa delee de dentro da casa dele se formará a campanha militar para trazer de volta a noiva até a cama.mas nós, o que temos com isso? O que tem a ver a morte de cinquenta mil com esse casamento apressado?depois de nós nascerá Homero? se abrirão a todos as portas dos mitos?

Tradução de Michel Sle iman

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Mahmoud Darwich

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eles me QUerem morto

eles me querem morto, para dizer: era um dos nossos, era nosso.escuto os mesmos passos. Vinte anos faz que os escuto baterem na mura-lha da noite. Vêm, não abrem a porta.mas agora entram, são três: um poeta, um assassino, um leitor. Aceitam tomar um vinho?, perguntei. Aceitamos, disseram.Quando vão descarregar as armas em mim? responderam: calma! esvazia-ram cada qual sua taça e foram cantar para o povo.eu disse: Quando começam a me executar? disseram: Já começamos... por que envia sapatos para a alma?Para ela andar na terra, eu disse. e eles: mas por que escreve um poema branco se a terra é toda preta?respondi: Porque trinta mares desembocam no meu peito. disseram: e por que gosta de vinho francês?eu disse: Porque mereço a mulher mais bela. como quer morrer?Azul, como as estrelas que fluem do teto – aceitam mais vinho? disseram: Aceitamos. eu disse: Pedirei que sejam lentos, que me matem pouco a pou-co, a tempo de escrever um último poema para a mulher do meu coração.mas eles se riram e da casa só roubam as palavras que direi à mulher do meu coração.

Tradução de Michel Sle iman

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Mahmoud Darwich

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JOsÉ eU sOU, meu pai

José eu sou, meu pai. meus irmãos não me amam, não me querem entre eles. tramam contra mim, meu pai, me atiram pedras e más palavras. Querem que eu morra para então me louvar. A tua porta bateram na minha cara.me expulsaram do campo. envenenaram minha vinha, ó meu pai. Quebra-ram meus brinquedos.Quando a brisa passou e revolveu meu cabelo, se enciumaram, se rebelaram contra ti. e tu, o que lhes fizeste, meu pai?As borboletas pousam nos meus ombros, as espigas arqueiam sobre meu corpo, os pássaros pousam nas minhas palmas.O que eu fiz, meu pai, por que eu? tu me chamaste José, e eles me jogaram no poço, incriminaram o lobo, mas o lobo é mais clemente que meus ir-mãos, ó meu pai! Fiz mal a alguém quando eu disse que onze astros eu vira, e que o sol e a lua se prostravam diante de mim?

Tradução de Michel Sle iman

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Mahmoud Darwich

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cONtAmOs NOssOs diAs com as borboletas

contamos nossos dias com as borboletas do campo, descemos a escadaria dos dias, escalamos a parte oculta do carvalho. deixamos fora as ilusõese fomos até a poesia pedir que ela nos renove alguma terra para a nossa inspiração.Vedou a rosa dos ventos... tornou-se ela própria a cara de nossos ídolos.então escreveremos... escreveremos para não morrer... para sonharescreveremos nosso nome para que mostre ao corpo a sua origem quando tiver se levantado escreveremos o que os pássaros escrevem no espaço, e esqueceremos a trilha dos passospassamos no ar... é nosso o messias, é nosso o Judas, é nosso o cronista da nossa linhagempassamos na terra... não queremos a pedra, nem para formar palavras, nem para saudar nossa síria.Perdemos, e a poesia não levou nada... perdemos nossos dias carregados de vida.

Que tenhas muita sorte e Que deus Não te Abandone. 2010

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Po e s i a E s t r a n g e i r a

david Vogel

Tradução de Moacir Amâncio

J udeu, nascido em 1891 na rússia, david Vogel foi uma espécie de homem errado no seu tempo. estudou hebraico numa escola

rabínica de Vilna e em 1912 já estava em Viena, onde, durante Pri-meira Guerra mundial, acabaria preso como russo. era o momento em que seus correligionários europeus se dividiam, grosso modo, entre os que apoiavam e militavam pela construção de um país na região do antigo israel, e aqueles que se opunham à ideia lançada pelo jornalista e escritor austríaco theodor Herzl, criador do sionis-mo político como um modo de enfrentar e evitar o anti-semitismo crescente. A mobilização daqueles que se engajavam nessa luta era total. Uma luta revolucionária, contra a oposição religiosa interna e contra a política dúbia desenvolvida pela inglaterra que domi-naria a região do antigo israel, após a Primeira Guerra mundial. Um momento épico que exigia também uma arte comprometida.

Poeta, autor de Ata (record), Yona e o Andrógino – notas sobre poesia e cabala (Nankin/edusp), Dois palhaços e uma alcachofra (Nankin). traduziu e organizou coletâneas dos poetas israelenses yona Wollach e ronny someck (Gol de esquerda, Annablume), a novela “Badenheim 1939”, de Aharon Appelfeld. É professor de literatura hebraica da Universidade de são Paulo.

* sinalização vocálica em hebraico: Naamá silverman Forner.

Tradução de Moacir Amâncio

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O haluts, o pioneiro, disposto a forjar um novo judeu (muito diferente daque-les que viam como passivos, segundo a ideologia da época), que se entregaria ao trabalho braçal e estaria pronto para a autodefesa. Vogel no entanto escre-via poemas melancólicos, angustiados, perpassados por vezes de atmosfera decadentista. seu primeiro livro, Mul haShaar haAfel (Diante do portão escuro) não foi bem recebido pela crítica, acharam que seus poemas, pelos quais perpas-sa uma atmosfera decadentista, eram efeminados. sua vida foi uma sucessão de tragédias. A primeira mulher morreu tuberculosa, doença que também o acometeria. Novamente casado, passou um período em israel com a família e retornou à europa. Na Primeira Guerra mundia foi preso na áustria por ser russo, na segunda, foi preso na França por ser austríaco. depois caiu nas mãos dos nazistas. desapareceu no campo de extermínio de Auschwitz em 1944. Além de poesia, também escreveu prosa, inclusive em iídiche, e seu romance Vida de Casado é um exemplo de virtuosismo linguístico e mirada tragicômica – dois feitos notáveis, quando se considera que o hebraico ainda engatinhava na sua recuperação como língua plena, isto é, escrita e falada, após um período de quase 2000 anos, não morta, mas em semi-silêncio. ele pertence à famí-lia, portanto, de escritores como iossef Haim Brenner, micha Berditchevski e Haim Nahman Bialik, entre outros, que produziram toda uma literatura nos moldes da época, mas em hebraico e por isso na maioria permanecem desconhecidos fora do âmbito israelense, confinados num território invisível da cultura europeia. A obra de Vogel contribuiu para a renovação da poesia hebraica produzida em israel a partir dos anos 50 e 60: linguagem enxuta, incisiva, precisa em suas pinceladas rápidas e únicas. diversas vezes, enquanto falam de um presente e de um passado, suas composições assumem um tom premonitório. Os poemas abaixo pertencem a Diante do portão escuro, cuja tra-dução integral encontra-se em andamento, com possível alteração nos textos aqui apresentados.

David Vogel

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esperando. (detalhe) 2008

Tradução de Moacir Amâncio

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David Vogel

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*lentamente meus cavalos sobema rampa da montanha,a noite negra já mora em nós, em tudo.

Pesado, por vezes geme o meu carrocomo se levasse milhares de mortos.

despeço uma canção em surdina,que seguirá para longesobre os escombros da noite.

meus cavalos escutam, e, lentamente, sobem.

1Passam os dias por mime eu sigo em busca de ti, meu pai.

Numa pedra descansareià margem do caminho,e a todo passante perguntarei:“Aonde foi meu pai?”

Palavra de deus zelosoeis que és por mim,aquele que inflama toda a minha vida.

sim, de novo estarei diante de ti,o teu bom menino pequeno,minha mão puxa discretao botão de teu casaco preto.

Onde dormirás, meu pai?

Tradução de Moacir Amâncio

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David Vogel

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Por uma eternidade, como ansiei sentar-me à tua margemguardando-te o sono tranquilo.

Passam os dias – e eu sigo em busca de ti, meu pai.

2Aos limites da cidade retornarei,cansado retornarei.

tive pai, uma vez,um pai tristonho, calado.

em meio às sombras docesde verão as árvores sussurravam escuras.

tive uma aldeia, uma vez.

Aos limites da cidade retornarei,cansado, retornarei.

3sim, tua barba negra,encrespada,flutuava sobre minhas faces tenras –e meu coração se punha a bailar.

tua mão peludaa descansar entre as minhas mãos pequeninas, meu pai.

Tradução de Moacir Amâncio

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David Vogel

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mas teus olhos tristescontinuarei a ver sobre mim todos os dias da minha vida.

todos os caminhos levam até ti, meu pai!

Quando em libação entornareitoda a minha vida aos teus péscomo o vinho dourado, cintilante?

4Amplos como lagos e transparenteseram os dias,porque éramos crianças.

sempre nos sentávamos às suas margense ríamos,ou a nadar caíamosnas águas cristalinas.

Até chorávamossobre o avental de nossas mãespois a vida nos preenchiaqual cântaros de vinho.

40Nas noites de outonocai nos bosques uma folha invisívele pousa em silêncio no solo.

Tradução de Moacir Amâncio

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David Vogel

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Nos riossaltará um peixe das águase o eco do choque molhadoresponderá na treva. Na distância negrasemeia-se o galope de cavalos invisíveisque desvanecem e se vão. tudo isso ouviráo caminhante cansadoe um tremor percorrerá o seu corpo.

62sala de espera desses grandes médicos,com pesada cortina nas janelas;O burburinho e o rumor dos carrosdo baixo das ruas não chegam lá.

Ao redor, nas pinturas de outros tempos,mudas estátuas para o salto prontas; Profundo carmim na parede e armáriose um silêncio antigo cobre os objetos.

O homem que no silêncio mergulhouPerdendo-se no coxim e apagando também ele é igual a objetos antigos;

No tapete macio o surdo passo Perturba-lhe o conforto e em fúria trêmula,O médico ele mira com revolta.