abertura da cilada: a exposição pós-moderna e magiciens de la terre

8
A arte tem como principal função social a definição do eu coletivo – e sua redefinição em função da evolução da coletividade. Suas imagens, qualquer que seja seu grau de variedade, de mistério ou de abstração, fundem- se com o espírito coletivo em algo semelhante a um rosto vacilante ante o espelho. A exposição, por seu lado, é uma tentativa ritual de agrupamento de uma comunidade em torno de uma definição de si mesma, seja uma comunidade recente ou estabelecida há muito tempo. 1 O exame aprofundado das obras de arte de qualquer cultura que seja permite fazer sobressair a visão que essa cultura tem tido ou pretendeu ter de si mesma em cada época. Um museu, enquanto depositário de tais épocas, ilustra a imagem que uma cultura tem de si, uma imagem historicamente estratificada. Poderíamos comparar a coleção permanente de um museu com as marcas feitas em uma parede para registrar o crescimento de uma criança ou com uma série descontínua de fotos de viagem, ou, ainda, com imagens em câmera rápida da evolução do curso de um rio. As exposições temporárias refletem igualmente idéias do eu, porém muito mais pelo viés de uma visão fugitiva do que por fragmentos conservados do passado, na medida em que as vitrinas diante das quais passamos nos permitem entrever o eu no detalhe de sua evolução. Cada objeto sugere definições, mas, enquanto ele não estiver exposto, essas definições permanecem em estado letárgico. É a exposição que ativa esse poder de definição e o canaliza. O objeto exposto foi isolado da matéria que rodeia as coisas e disposto deliberadamente de modo a projetar uma certa afirmação da identidade que envolve todo sujeito que se introduz em seu campo, mesmo que apenas o olhando. Os espectadores podem, é claro, rejeitar as atribuições de identidade projetadas pelos objetos expostos, mas têm de considerá- las de uma maneira ou de outra, seja por afirmação glorificadora, resistência interior, aceitação passiva, distanciamento irônico ou por qualquer outra postura. O objeto de arte exposto encerra, então, uma noção do eu em um sentido vivo e constitutivo, enquanto conjunto de sugestões e de proposições; algo de animista é aqui sugerido, estranhamente similar ao modo como falamos de obras de arte teorizando sobre a expressão ou sobre a alma. Uma exposição é uma proposta, e esta, habitualmente, se concentra sobre um ponto muito preciso, na medida em que um curador reúne, tradicionalmente, objetos que tenderão a confirmar suas recíprocas implicações com a realidade e com o papel do eu no seio dessa realidade. As propostas costumam ser distribuídas em estratos ou em séries; emergem TEMÁTICA • THOMAS MCEVILLEY 177 Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre Thomas McEvilley O texto discute o papel da exposição de arte em seu poder de definição e canalização das definições presentes, mas em estado letárgico, nos objetos expostos, os quais postulam um processo de definição do espectador, bem como determinadas afirmações sobre os grupos aos quais pertencem. Contrapondo os critérios pós-modernos de curadoria aos que regeram as exposições modernistas, o autor analisa, em particular, os pressupostos da mostra Magiciens de la Terre, realizada no Centro Georges Pompidou, em 1989, fundados na contradição, pluralidade e falta de essência. Exposição pós-moderna, arte etnológica, colonização, pluralidade.

Upload: dinhdieu

Post on 08-Jan-2017

223 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

A arte tem como principal função social adefinição do eu coletivo – e sua redefinição emfunção da evolução da coletividade. Suasimagens, qualquer que seja seu grau devariedade, de mistério ou de abstração, fundem-se com o espírito coletivo em algo semelhante aum rosto vacilante ante o espelho. A exposição,por seu lado, é uma tentativa ritual deagrupamento de uma comunidade em torno deuma definição de si mesma, seja umacomunidade recente ou estabelecida há muitotempo.1 O exame aprofundado das obras dearte de qualquer cultura que seja permite fazersobressair a visão que essa cultura tem tido oupretendeu ter de si mesma em cada época. Ummuseu, enquanto depositário de tais épocas,ilustra a imagem que uma cultura tem de si, umaimagem historicamente estratificada. Poderíamoscomparar a coleção permanente de um museucom as marcas feitas em uma parede pararegistrar o crescimento de uma criança ou comuma série descontínua de fotos de viagem, ou,ainda, com imagens em câmera rápida daevolução do curso de um rio. As exposiçõestemporárias refletem igualmente idéias do eu,porém muito mais pelo viés de uma visãofugitiva do que por fragmentos conservados dopassado, na medida em que as vitrinas diantedas quais passamos nos permitem entrever o euno detalhe de sua evolução.

Cada objeto sugere definições, mas, enquantoele não estiver exposto, essas definiçõespermanecem em estado letárgico. É a exposiçãoque ativa esse poder de definição e o canaliza.O objeto exposto foi isolado da matéria querodeia as coisas e disposto deliberadamente demodo a projetar uma certa afirmação daidentidade que envolve todo sujeito que seintroduz em seu campo, mesmo que apenas oolhando. Os espectadores podem, é claro,rejeitar as atribuições de identidade projetadaspelos objetos expostos, mas têm de considerá-las de uma maneira ou de outra, seja porafirmação glorificadora, resistência interior,aceitação passiva, distanciamento irônico ou porqualquer outra postura. O objeto de arteexposto encerra, então, uma noção do eu emum sentido vivo e constitutivo, enquantoconjunto de sugestões e de proposições; algode animista é aqui sugerido, estranhamentesimilar ao modo como falamos de obras de arteteorizando sobre a expressão ou sobre a alma.

Uma exposição é uma proposta, e esta,habitualmente, se concentra sobre um pontomuito preciso, na medida em que um curadorreúne, tradicionalmente, objetos que tenderão aconfirmar suas recíprocas implicações com arealidade e com o papel do eu no seio dessarealidade. As propostas costumam serdistribuídas em estratos ou em séries; emergem

T E M Á T I C A • T H O M A S M C E V I L L E Y 177

Abertura da cilada: a exposição pós-modernae Magiciens de la Terre

T h o m a s M c E v i l l e y

O texto discute o papel da exposição de arte em seu poder de definição e

canalização das definições presentes, mas em estado letárgico, nos objetos

expostos, os quais postulam um processo de definição do espectador, bem como

determinadas afirmações sobre os grupos aos quais pertencem. Contrapondo os

critérios pós-modernos de curadoria aos que regeram as exposições modernistas, o

autor analisa, em particular, os pressupostos da mostra Magiciens de la Terre,

realizada no Centro Georges Pompidou, em 1989, fundados na contradição,

pluralidade e falta de essência.

Expos ição pós-moderna, a r te etno lóg ica , co lon ização, p lu ra l idade.

Page 2: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

no espírito como cadeia de implicações, paradizer a verdade, como uma discussão global,ainda que camuflada por elementos de negaçãoou de ambigüidade. Se a exposição se propõe areivindicar a qualidade da obra, essareivindicação se transforma tacitamente em umadeclarção de qualidade. Ao mesmo tempo, aafirmação da qualidade dos elementos expostosse desdobra em uma terceira afirmação relativaa sua importância histórica, e essa proposta setransforma, por sua vez, em definição dahistória. É essa corrente particular que deveráacolher a noção específica da importância queela mesma extrai da natureza da qualidade,concretizada por essas obras particulares. Pormais que as idéias dominantes relativas àqualidade, à importância e à história determinemo sentido da natureza humana e de seudesenho, a pessoa do espectador termina presaem uma teia de proposições, que reforçam ouameaçam sua idéia de identidade e sua idéia dosentido da vida. Sob tal perspectiva, é o eu doespectador que está em jogo em uma exposiçãoartística, e não o eu do artista. A exposição seapodera do espectador para inseri-lo em seusistema de definições, de implicações e depropostas, sistema mudo, porém convergente.

A apropriação do espectador não diz respeitoapenas ao artista ou a qualquer outro criador deobjetos para sua exposição: os objetos podemexpressar um sentido individual da noção do eusem intenção de apropriação; diz tambémrespeito ao organizador da exposição ou docurador, que transportam os objetos do ateliêao espaço de exposição, do privado à esferapública, colocando-os em um lugar ou posiçãoprontos para capturar o espectador naarmadilha. Sob esse ponto de vista, amuseologia é o estudo não das imagens ouobjetos, mas dos arquivos do eu humano, desua série de definições e de redifinições, de suanudez em seu próprio passado.

Em seu processo de definição do espectador, oobjeto exposto postula, além disso,determinadas afirmações sobre os grupos aosquais pertence o espectador. A hegemonia deuma comunidade de gosto atua sempre emproveito de uns – sobretudo dos que ditam oscritérios – e em prejuízo dos outros – dos quevêem as coisas de maneira distinta. Em temposnormais, as afirmações que emanam de umaobra de arte ratificam tacitamente uma secretapretensão à normalidade da opinião de umadeterminada classe ou camarilha, negando aomesmo tempo esse status aos excluídos,

implicitamente designados como detentores deuma opinião anormal. Superficialmente, o grupoque é elevado ao nível da normalidade pelaexposição de uma determinada definição dequalidade o consegue graças a seupertencimento a uma comunidade de gostos; osoutros grupos são, necessariamente, supostosde não possuir o gosto apropriado. Levando-seem consideração, porém, um meio platônico(englobando, de certa maneira, a estéticakantiana e a crítica formalista que dela deriva), a“faculdade do gosto” é uma analogia oculta daalma;2 a denegação do gosto equivale a umadenegação da humanidade dos que não fazemparte do grupo dominante. Os membros dacomunidade secreta do gosto conformamtambém a comunidade dos eleitos, daquelesque têm uma alma em um mundo de brutos.De resto, a proclamação de uma ambiçãoespiritual mascara uma série de outras ambições,sobretudo as manifestaçpes do poder; e, emcertos casos, um materialismo subjacente.3

Ao proclamar a normalidade dos valores e dasatitudes da comunidade que ela tem porobjetivo congregar, uma exposição sugereigualmente a universalidade de sua validade.Talvez, por meio dessa afirmação queaparentemente não necessita de discussão, aexposição pareça dar provas de sua veracidadeou, pelo menos, da potência de suasproclamações. Nos períodos de estabilidade,vê-se um certo tipo de exposição se padronizar,demonstrando que a sociedade se estratifica emtorno de uma estrutura de poder que seautolegitima expondo regularmente osobjetos-fetiche do grupo no poder.Ao se identificar mutuamente comum conjunto de imagens queconsidera suas, o grupo se vêreforçado em seus interesses eno sentido de sua elementarexatidão. É dessa maneira queuma exposição é umacontecimento social quecimenta ritualmente uma classeque, por mais que, em últimainstância, seus limites sejameconômicos, se define abertamentepela similitude do meiosociocultural. Trata-se de um rito deaproximação mais distendido e nãotão estritamente profissional comoum acordo comercial, mas esse ritoserve paralelamente a um gruporestrito cujos membros sabem

178

R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J • 2 0 0 6

Page 3: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

perfeitamente quem são. Podem-se encontarno antigo Egito ou na Europa medieval – aindaque não seja preciso retroceder tanto notempo – casos extremos de uma arte e de umestilo de exposição ossificados ao redor deuma estrutura social estável.

A arte modernista de base era um mostruáriode objetos-fetiche camuflados, carregados deproposições ocultas. Essas proposições atuamcomo uma espécie velada de descrição,presente de maneira complexa na arte dita nãofigurativa. Sob o ponto de vista cosmográfico[cosmogrammique], por exemplo, os pintoresabstratos modernos tendem a descrever idéiasrelativas à realidade como se fossem ilustraçõesde idéias metafísicas. A similitude visual entre aspinturas de Piet Mondrian e determinados estilosclássicos da abstração tântrica hindu do século18 reflete um conteúdo metafísico igualmenteprocurado pelos artistas desses dois domínios decomparação, como testemunham suasdeclarações. Ambos mostram uma imagemmetafórica de um universo matemático regido apartir de seu interior por uma rigorosapluralidade de forças eternas. Do mesmo modo,os drippings de Jackson Pollock são cosmogramasda idéia de flutuação metafísica, processo emcujo curso emergem e desmoronam entidadessem períodos intermediários permitindointerromper sua definição. Podemos fazerobservações semelhantes acerca da artemodernista quase em sua totalidade: seusexemplos clássicos estão amiúde impregnadosde intervenções metafísicas.4 Tais proposiçõessobre a natureza do cosmo implicam outras,relativas à natureza humana e à realidadesocial, indicando que suas bases metafísicas seapóiam em leis cósmicas.

As declarações da obra de arte sobre aidentidade individual e suas formulaçõesmetafísicas conjugam-se em um só movimentodinâmico de dimensão política, em que sedesenvolve um tipo de descritivo ou designificante, unindo o individual e o arquetípico.As reivindicações e as proposições relativas àidéia do eu se estendem aqui da escala dointeresse individual ou particular do grupo àescala da nação. As obras da vanguarda daEscola de Paris, por exemplo, sinalizamtacitamente a hegemonia cultural da Europanessa época, e, em particular, da França; asobras de pós-guerra da Escola de Nova Yorksinalizam igualmente, entre outras coisas, aemergência da hegemonia da América. Ao

concretizar a corrente de poder, as obras dearte de uma cultura dominante legitimamigualmente a reivindicação de uma determinadaarte de viver; as obras do expressionismoabstrato norte-americano do período da guerrafria, por exemplo, foram enviadas ao exteriorpara defender a legitimidade das democraciascapitalistas frente às ditaduras comunistas.5 Emum marco ainda mais amplo e mais global, aarte modernista, único e gigantesco ícone,representava a supremacia internacional daclasse rica e instruída, que apreciava, colecionavae expunha esses fetiches.

Esse sistema de reivindicações desprovidas depalavras produziu outros meios convincentes,como um estilo de instalação semanticamentecarregado que se desenvolveu em torno daabstração modernista. O espaço da galeria emforma de “cubo branco”,6 purificado comostentação, reivindica não somente auniversalidade, mas também a eternidade. Oespaço de exposição, de um branco imaculado,muitas vezes sem abertura, apresenta para acontemplação fetiches da classe dirigente em umnão-espaço abstrato ou idealizado, como oscentros ritualizados das culturas arcaicas, queseus usuários consideram situados fora doespaço ordinário, fora do tempo e dacausalidade. O espaço dedicado à arte se subtraia todo provável contágio de mudança, subtrai-seaos movimentos da rua, aos conflitos e àsdivisões sociais aparentes – como aconfrontação com os sem-teto –, eevidentemente a toda a sociedade comoconjunto de circunstâncias em constantemudança mais do que como ordemeternamente aprovada. No interior protegido dagaleria ou do museu, como num espaçoreservado a ritos religiosos, compartilha-se opão e o vinho por ocasião do vernissage. Umavez este concluído, o consumo, marca demudança e de transformação, é proibido; osvisitantes não devem comer, nem beber, nemdormir, nem rir nesse lugar. Os banheiros estãoocultos, como negação do processo dedefecação com a mensagem de sic transit. Oúnico consumo autorizado, a compra de obrasde arte, se faz em segredo, atrás de portasfechadas. A arte se apresenta num espaço quesugere que o processo de mudança no mundose interrompe aqui. Como o antigo centro ritual– o espaço situado na cúpula do zigurat ou nocoração da pirâmide –, o espaço dedicado à arteé um cordão umbilical ligado à eternidade; pormeio dele, a ratificação da eternidade se modela

T E M Á T I C A • T H O M A S M C E V I L L E Y 179

Page 4: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

sobre certos objetos e, por extensão, sobre asatitudes e a hegemonia da classe à qualpertencem por comunidade de gosto. Oaspecto quase eterno do lugar implica que aratificação dessas obras não se debilita nemmuda jamais; em conseqüência, o gosto (a alma)que se oculta por detrás das obras encontra-seprojetado sobre a eternidade como por efeitode um ditame ou de um decreto divino; aestrutura social que se apóia nesse gosto seencontra, em virtude da magia benevolente queconsiste em tornar eternos esses fetiches,igualmente afastada da idéia de mudança.7Assim, pois, o estilo da exposição aporta à redede persuasões novas proposições ocultas.

Quando uma cultura expõe os objetos de outra,o conjunto de proposições e de apropriaçõesencontra-se ampliado do mesmo modo. Paraalém da escala do indivíduo, dos agrupamentosde interesses, da nação e da classe internacional,a exposição coloca o acento nas relações entreas zonas de culturas multinacionais. O melhorexemplo, claro, é a exposição, pelas culturascolonialistas ocidentais, de objetos pertencentesàs culturas colonizadas do chamado TerceiroMundo. Em tal situação, os objetos expostos,que em seu contexto original eramfreqüentemente fetiches religiosos, seconvertem, ao contrário, em fetiches da religiãoprofana do imperialismo, o que simbolicamentese justifica pelo fato de coagir tais objetos àsubmissão. A demonstração da superioridade dacivilização ocidental graças às conquistas coloniaisfoi uma idéia muito difundida na Europa desde oséculo 17. No século 19, abrigados nosgabinetes de curiosidades e nos primeirosmuseus etnográficos, os objetos tribaisreforçaram esse ponto de vista; representavamas conquistas dos povos tradicionais pela culturaocidental modernista, um pouco à maneira dobutim tomado aos povos de pele escura que seapresentavam nas marchas triunfais da Romaantiga. O butim do colonialismo é também suavalidação e a prova de sua superioridade.Assim como os templa Augusti situados nosconfins do Império, como o de Barygaza naÍndia, os objetos capturados representam obraço da civilização ocidental, que se estendeem volta do mundo, que toma o que quer esempre está disposto a defender seu direito aatuar dessa maneira.8

Enquanto os críticos ocidentais de princípios doséculo 20 começaram a dar aos objetos tribaiscapturados o qualificativo de “arte”, e enquanto

se começava a transferir esses objeto dosmuseus etnológicos aos museus de arte, essesobjetos passavam a se integrar maisprofundamente na grande série de fetichesmodernos, penhores da superioridade doOcidente. A reinterpretação desses objetos,longe das intenções originais de seus criadores,extirpando seus desígnios para integrá-los naintencionalidade de desígnio alheio, e fazendo omesmo com seu gosto, representa uma violaçãoperpétua da integridade da cultura estrangeira.Supõe, além disso, que os criadores nãocompreendem as intenções contidas em seuspróprios objetos e que precisava o olhosupostamente superior do connaisseur ocidentalpara lhes explicar qual era realmente o destinode seus próprios objetos. Transferidos,atualmente, dos museus etnológicos aos dearte, os objetos usurpados concretizam emsilêncio, ainda que com eloqüência, aafirmação de que a transcendência do olharda cultura ocidental retifica a má compreensãodos outros povos da orbe.9

A estratégia da exposição modernista consisteem supor que a instalação de objetos tribais noentorno depurado da galeria os liberta de seucontexto; essa estratégia os coloca efetivamenteno contexto da pretensão do Ocidente de sesituar fora de todo contexto. Isso os coloniza denovo, retrospectivamente, em um deleite deseus cadáveres. Na exposição modernista doque se chama a arte primitiva, a idéia estética ouformalista da arte se sobrepõe aos objetos quepossuem desígnios fundamentalmentediferentes. A visão historicista hegeliana éimposta aos objetos percebidos em umaapreensão distinta do tempo. Os critérios dequalidade ocidentais são impostos às obras que,ainda que sejam “arte”, não foram criadas emconformidade com os seus princípios. Oresultado é uma pretensão à universalidade deuma certa idéia de qualidade, ou de um certogosto – uma pretensão que excede globalmenteo plano do espectador para estender-se aoplano da cultura.

A convicção de que existiam valores universais eimutáveis, e de que esses valores se amparavamna política cultural e social de Europa Ocidentale da América do Norte – política de naçõesessencialmente colonizadoras – tem sido típicado modernismo e foi efetivamente um de seusamparos históricos. O modernismo hegelianoenunciava a história como uma força que atuavateologicamente para a consecução de umameta; essa força do subjetivo universal, atuando

180

R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J • 2 0 0 6

Page 5: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

no seio dos objetivos particulares, receberia suadefinição e sua posição dominante de um grupode indivíduos hiperconscientes que, mediantevisão ou intuição superiores, captavam osvalores para os quais a história secretamentetendia e a ajudariam em sua démarche. Essepapel de vanguarda histórica foi adotado pelasnações colonialistas, tal e como antes oscruzados haviam justificado sua conquista emnome da salvação das almas.

O modernismo, apoiando-se em um misticismodo progresso e do método científico,considerava-se um ponto de vista global outranscendente, capaz de se situar acima dosinumeráveis pontos de vistas tribais dos demaispovos e de julgá-los. Terminou, recentemente,por parecer representar ele próprio apenas umponto de vista tribal, o da cristandade ocidentaldesde o Renascimento. Sua irrefutável auto-imagem coloca em questão seu papel deconquistadora, que remonta pelo menos aoséculo 11. Daí se infere talvez o fato de que ocontato com outras culturas, iniciado pelascruzadas e intensificado pelo colonialismo, nãobaste para relativizar imediatamente as atitudeseuropéias (ou cristãs) em relação a uma escalamais ampla, mais parecia reforçá-las pela via deuma submissão imposta aos povosestrangeiros. Mais perto de nós, a noção decomunidade de nações entendida como aldeiaglobal tem dado lugar a uma crítica e àrelativização das atitudes ocidentais.

A ameaça de ver a cultura ocidental destruir oecossistema da Terra inteira, para não falar dadestruição total da própria Terra, da devastaçãodo sudeste asiático causada pelas intrusõesneocolonialistas, do longo impasse da guerra fria,tudo isso e ainda muitos outros problemas,obrigou a tomar consciência de que a culturaocidental, sob um ponto de vista histórico, nãopodia mais ser indefinidamente justificada apenaspelo simbolismo. A estúpida crença em seucaráter universal e eterno estava abalada. Ostranstornos sociais que desse fato derivaramtiveram ressonâncias em todo o mundo da arte.

O sentimento de que sua própria cultura nãodefine um modelo que todas as demais culturasestão distantes de querer, mas simplesmenteuma posição entre outras, constitui a própriaessência da virada de opinião que se chama pós-modernismo, pela qual todas as comunidadesde gosto se relativizam. Isso não significa o fimda qualidade ou da autoridade do gosto, massua limitação a um grupo condicionado. Dentro

de uma comunidade de indivíduoscondicionados da mesma maneira, os padrõesde qualidade consensuais estabelecemdefinições, vínculos e uma justificativa, dentrodos limites desse consenso. E, no entanto, noseio de outra comunidade ou dessa mesma,mas em época diferente, é possível que sedefinam padrões totalmente diferentes, padrõesportanto reais em sua época e que seguem osmesmos princípios de realidade: eles oferecem aseu grupo uma esfera de auto-reflexão e deautodefinição, um espelho que lhe serve paraexaminar as significações de suas mudanças e desuas evoluções, bem como de hipóteses básicasque sejam relativamente estáveis.

A estratégia de uma exposição pós-modernaparte da descoberta do fato de que as categoriase os critérios não possuem validade inata – mastão – somente a validade que se lhes atribui – eque sua transgressão pode ser, portanto, umcaminho para a liberdade. Em termos de culturada exposição, isso significa que os homenspodem expor aos outros homens o que querque seja e pelos motivos que sejam, desde queessas razões possam ter ressonâncias no interiordo grupo a que se dirige. A exposição pós-moderna não intervém nas contendas sobre asidéias de qualidade ou centralismo histórico.Graças a isso, diferentes desígnios, diferentesdefinições e padrões de qualidade podem seesbarrar sem que nenhum predomine ou seimponha aos outros. Do mesmo modo, oprograma pós-moderno da história da arteprecisa de estudos sobre os cânones, vistos emsua relatividade de uma época a outra dentro damesma tradição, e de uma tradição a outra. Opropósito desses estudos não será a busca deuma essência comum a todos, mas a insistênciana própria diferença.

A estratégia da exposição pós-moderna deveesforçar-se não para obter fragmentos deuniformidade, como ocorria com a exposiçãomodernista em sua tentativa de universalizaçãodos cânones, mas para atingir uma concentraçãona diferença que honra o outro e lhe permiteser ele mesmo sem tratar de reduzir ainumerável multiplicidade, estabelecendo oprincípio autoritário de uma uniformidade oculta.Ela coloca em jogo o difícil ideal que consiste emdeixar que as coisas sejam o que são, ou aquiloque eram quando eram elas mesmas, antes deser integradas em categorias que não são assuas. Um fracasso nesse aspecto podecomportar ao menos uma tomada deconsciência, ou uma tentativa de tomada de

T E M Á T I C A • T H O M A S M C E V I L L E Y 181

Page 6: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

consciência da categoria e da qualidade implícitasem tal tática, assim como de suas razões elimitações. A exposição pós-moderna nãoenuncia um princípio da qualidade, mas simmuitos princípios pluralistas e relativizados;tampouco enuncia um princípio unificador domovimento em geral, nem da história da arte,nem, claro, da história, muito menos nenhumahierarquia definida. Nos anos 80, arelativização das atitudes ocidentais deu lugara uma nova abordagem das culturas nãoocidentais com um sentimento fascinado emrelação à realidade de sua diferença, vista nãocomo um sentimento romântico do nobreselvagem, e sim como interesse pelo futuro,um interesse compartilhado e de fatomutuamente dependente.

Magiciens de la Terre é umatentativa marcante de execução deuma estratégia de exposição pós-moderna, ou seja, uma estratégiaque tenta conscientementedesdenhar das crenças modernistasem relação aos cânones universais,da história dominada pelo progressoe da realidade transcendente daforma pura. Redigindo este textoantes da exposição, por ora não sei(e provavelmente tampouco osaberei depois) se Magiciens de laTerre cumprirá bem seucompromisso pós-moderno. Hádeterminados problemas derivadosde método em parte das dimensõesda exposição. Ela deve apresentar100 artistas, distribuídos mais oumenos eqüitativamente entreocidentais e não ocidentais. Essaseleção bipartite, apesar de suaspretensões liberais, concede aindaum claro predomínio ao grupoocidental, cuja população é muitomais reduzida. Entretanto, oscuradores da exposição têm asensação de que a distinção entreocidental e não ocidental possuiautenticidade discutível (tendo emvista a situação do Japão) – bemcomo, aliás, a mistura das culturasem geral; essa sensação não édesprovida de plausibilidade.

Outro problema de metodologia,em parte também fruto dasdimensões da exposição, reside nofato de que a seleção das obras foi

majoritariamente efetuada por indivíduosocidentais, que, embora se esforçando comsinceridade para evitá-lo, podem ter tendido aimpor à seleção um determinado gosto. Emalguns casos, mas nem sempre, os curadorescontaram com a ajuda de especialistas locais. Oideal talvez tivesse sido que o mesmo ocorresseem todos e cada um dos casos e que as obrasde cada comunidade fossem escolhidas porespecialistas representativos de cadacomunidade em questão, valorizando assim umavariedade de critérios de qualidade, todos comigual pretensão ao reconhecimento. O fato deque os responsáveis pela seleção não tenhamsido sempre especialistas no campo em quedeveriam efetuara suas escolhas e de que, emalguns casos, não tivessem podido ver uma

amostra completa totalmenterepresentativa das obras disponíveis,acrescenta um evidente grau deacaso, o que equilibra de algummodo os problemas metodológicos,graças a sua abertura.

Magiciens de la Terre espera, afinalde contas, oferecer um ponto devista sobre a situação global da artecontemporânea, com todas as suasfragmentações e diferenças. Esseponto de vista pode por sua vezmodificar o formato das grandesexposições internacionais queneglicenciam a arte de 80% dapopulação mundial. É possíveltambém que ela amplieconsideravelmente o conjunto deartistas passível de ser mostrado eque modifique completamente ascorrentes dominantes em matériade gosto. A realidade da artecontemporânea como empresacomum dos artistas da Europa, daAmérica, da Índia, da China, doJapão, da Austrália, do Egito e deoutros países exige uma revisão daconsideração da história e de suasmúltiplas correntes e direções. Osartistas contemporâneos da Índiaassimilam a Escola de Paris e aEscola de Nova York, da mesmamaneira que os artistas europeus eamericanos assimilaram fragmentosda arte africana e da Oceania.10 NaChina, os artistas contemporâneoslutam por entremear os estilos detradições milenares e as influências

182

R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J • 2 0 0 6

Page 7: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre

que atualmente recebem do Ocidente. NaAustrália, os artistas aborígenes de hojedescobrem pontos de interseção entre seusestilos tradicionais e a abstração dos anos 60.Na Grécia, os artistas contemporâneosremetem-se alternativamente à obra daAcrópole e à obra de Joseph Beuys.

Na medida em que esta exposição, comoqualquer outra, se esforça em preencher asduas funções de definição e de aproximação, suaescala global acarreta alguns problemas. O maiordeles talvez resida em manejar a dimensãoquase universal da exposição sem enunciarprincípios universais, em evitar as afirmaçõesplatônicas de justificação universal e eterna quepoderiam surgir perfeitamente de um sentidoextático da aproximação global. Sua contradiçãointerna oculta – cuja resolução seria gloriosapara a exposição – reside no fato de que nãopode existir definição que não seja em relaçãoao que é exterior à definição, e de que nãopode existir aproximação no interior de umgrupo que não seja em relação a outro grupo.Em seu afã de não impor categorias, mas decriar uma abertura, Magiciens de la Terre defineo indefinido ou a variedade contraditória epropõe uma aproximação em torno dacontradição, da pluralidade e da falta deessência, em torno de uma idéia do eu que háde ser relativa, mutante, com múltiplas facetas,em torno, em outras palavras, de uma não-idéiado eu. A dificuldade desse projeto éproporcional a sua importância.

Thomas Mc Evilley é professor de História da Arte na Rice University,em Houston. Publicou numerosos livros – incluindo monografias sobreJulian Scnabel, Les Levine, Pat Steir, Ulay e Marina Abromovic, JannisKounellis e Anselm Kiefer –, dos quais se destacam Art&Discontent:Theory at the Millenium (Nova York: McPherson & Company, 1989);Art&Otherness: Crisis in Cultural Identity.(Nova York: McPherson &Company, 1992). Colabora com as revistas Artforum e Art in America.

McEvilley, Thomas. Ouverture du piège: l’expositionposmoderne, catálogo da exposição Magiciens de la Terre.Paris: Centre Georges Pompidou, 1989: 20-23. (tr. fr. deElisabeth Galloy). Rep. In: Guasch, Anna Maria (org.): Los man-ifiestos del arte posmoderno. Texto de exposiciones, 1980-1995.Madri: Ediciones Akal, 2000.

Tradução: Xenia Roque Benito

Revisão Técnica: Glória Ferreira

NNoottaass1 Para mais dados, ver McEvilley, T. “On the Art Exhibition

in History: The Carnegie International and theRedefinition of the American Self ”, no catálogo daexposição Carnegie International, Pittsburgh: TheCarnegie Museum of Art, 1988: 18-25.

2 A idéia de Kant sobre a faculdade do juízo ou do gostoretrocede na história do pensamento até “o olho daalma”, idéia que Platão desenvolve em A República(7527, 533d). A doutrina de Plotino converteu-se no

fundamento da teoria estética dos séculos 18 e 19,de Shaftsbury a Kant e Goethe.

3 Esse extremo é ilustrado pela colaboração de BernardBerenson com o marchand Joseph Duveen, que lheoferecia 25% sobre a venda de obras que Berensonenaltecia diante dos clientes, valendo-se de suaautoridade no mundo do gosto – assim como umpadre nas questões da alma – para elevar o preço.(Ver Simpson, C. “The Bilking of Jules Bache”,Connoisseur, outubro 1986, e “The BerensonScandal”, ibid.). Os lucros que Greenberg obtinha dasvendas de obras de artistas que ele havia projetado efeito reconhecer graças a sua posição ditatorial emmatéria de gosto é outro exemplo.

4 Para um conjunto de textos sobre esse aspecto da artemoderna, ver Tuchman, M. The Spiritual in ArtAbstract Painting 1890-1985, Nova York: AbbevillePress, 1986. Ver também McEvilley, T., “TheOpposite of Emptiness”, Artforum, março 1987, e“Heads It’s Form, Tails It’s Not Content”, Artforum,novembro 1982.

5 Ver o material recolhido em Pollock and After; The CriticalDebate, ed. Francis Frascina, Nova York: Harper andRow, 1985.

6 Assim chamava Brian O’Doherty a maneira de expor aarte moderna depois de Betty Parsons. VerO’Doherty, B., Inside the White Cube: The Ideology ofthe Gallery Space, prólogo de Thomas McEvilley,Santa Monica: Lapis Press, 1986.

7 Visto supor-se que os critérios de qualidade queinformam as obras não mudam nunca, as obras dearte que os reúnem se convertem em objetos deinvestimento transcendentes, mais estáveis do que asmoedas ou as ações, sem depender das flutuações devalor causadas pelos fenômenos sociais. Esseprocesso se concretizou, ou se converteu em umcorrelato objetivo na quebra da Bolsa de Nova Yorkde 19 de outubro de 1987, seguido da crise domercado mundial; enquanto as ações caíamdrasticamente, o valor das obras de arte aumentava.A arte se legitima de modo transcendente quandoencerra valores mais profundos e mais duradouros doque os valores do dinheiro e da realidade material emgeral. As relações tradicionais da arte e da religião,por fim imbuídas da idéia de um tipo de valor “acima”do material, evocam-se secretamente nesse conceitode mercado, como ocorria com a crítica que insistiana forma pura.

8 Para o templum Augusti em Barygaza, ver Sir Wheller, M.Rome Beyond the Imperial Frontiers, Londres: Nelle,1954: 177.

9 Há pouco se produziu um caso especialmente flagrantede semelhante usurpação: ocorreu na exposição doMuseum of Modern Art de Nova York, em 1984,Primitivism in Twentieth Century Art. Expostos comoacessórios da história da arte moderna ocidental, osobjetos usurpados da África, da Oceania e de outroslugares não ficavam somente privados de seusdesígnios e sistemas de valor de origem, mas, alémdisso, se subordinavam aos objetos que de fato sederivavam desses desígnios e sistemas de valor, frenteaos quais, por uma inversão do curso histórico, osobjetos tribais não eram mais do que acessórios.Esses objetos tribais estavam imbuídos de poderdentro de uma visão da história para a qual nãohaviam contribuído, uma visão que consistia em parteem sua subordinação. A função unificadora daexposição foi levada ao extremo da perversidade.Com a identificação superficial e sem critério dosobjetos das culturas não ocidentais, o públicoocidental os arrancava de sua identidade própria semlhes dar outra, deixando-os partirem à deriva comum lastro demasiado frouxo por um oceano demudanças de significado imprevisíveis e explosivas.

10 Para uma discussão sobre a complexa situação dadifusão, ver Thomas McEvilley, “The Common Air:Contemporany Indian Art”, Artforum, verão 1986.

T E M Á T I C A • T H O M A S M C E V I L L E Y 183

Page 8: Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre