a voz de arlinda morbeck na poesia de mato grosso · 1 5 não sei quantas almas tenho não sei...

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LARISSA APARECIDA SANTOS CLARO A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS CUIABÁ-MT 2010

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LARISSA APARECIDA SANTOS CLARO

A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE

MATO GROSSO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

CUIABÁ-MT 2010

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LARISSA APARECIDA SANTOS CLARO

A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE

MATO GROSSO

Dissertação apresentada ao Programa Mestrado em

Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito final

para obtenção do título de Mestre em Estudos de

Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários.

Orientadora: Profª. Dra. Gilvone Furtado Miguel

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

CUIABÁ-MT 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

C613p

Claro, Larissa Aparecida Santos

A voz de Arlinda Morbeck na poesia de Mato grosso./ Larissa Aparecida Santos Claro – Cuiabá: o autor, 2010. 100 p. Orientadora: Prof. Dra. Gilvone Furtado Miguel . Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiabá. 1. Literatura. 2. Crítica literária. 3. Estilística literária. 4. Literatura Brasileira. 5. Literatura mato-grossense 7. Poesia mato-grossense. I. Título.

CDU 82.09(817.2)

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A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE MATO GROSO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA

EM CUIABÁ, 31 DE AGOSTO DE 2010

Profa. Dra. GILVONE FURTADO MIGUEL– UFMT (Orientadora)

Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite – UFMT

Examinadora Interna

Profa. Dra. Madalena Aparecida Machado-UNEMAT

Examinadora Externa

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Dedico este trabalho aos meus pais:

Adenil e Antonia.

A meu irmão, Junior.

A meu companheiro. Moacir.

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AGRADECIMENTOS

A meu pai, meu espelho, que sempre reflete os passos que sigo;

A minha mãe, por suas orações, apoio e carinho nesta caminhada;

A Junior, irmão amado, o maior incentivador de meus sonhos;

A Moacir, por este sonho compartilhado para cursar o Mestrado- pela espera,

carinho e força.

À professora Gilvone Furtado Miguel, sinto-me honrada por ser sua primeira

orientanda e agradecida pela confiança e pela delicadeza com que soube me

conduzir nessa escrita.

Ao professor Mario Cezar Silva Leite por suas aulas que me incentivaram e

pela leitura crítica de meu texto.

À professora Madalena Machado pelas valiosas sugestões;

Aos professores do Mestrado em Estudos da Linguagem-MeEL, que

contribuíram significativamente para minha formação enquanto pesquisador;

À CAPES, pelo financiamento concedido ao longo desta pesquisa.

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Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo : "Fui eu ?"

Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa.

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RESUMO

CLARO, L. A. S. A Voz de Arlinda Morbeck na Poesia de Mato Grosso. 2010, 100 p.

Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem), Instituto de Linguagem,

Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2010.

A presente pesquisa, que se desenvolveu no Programa de Pós- Graduação,

Mestrado em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos Literários, da

Universidade Federal de Mato Grosso, visa discutir e apresentar a poética da autora

mato-grossense, Arlinda Pessoa Morbeck (1889-1960) que, até o momento, se

encontra no anonimato. A pesquisa tem como objetivo identificar o estilo de escritura

feminina da poeta, relacionando-o com a literatura confessional- autobiografia.

Conquanto se trate de escritora mato-grossense, necessário se faz estudar,

também, o regionalismo, por ser nessa região o lugar em que a poeta escreveu a

maior parte de suas poesias. Arlinda Pessoa Morbeck viveu em Cuiabá de 1911 a

1916; seu esposo ,José Morbeck era Diretor de Terras, Minas e Colonização, motivo

que a trouxe a viver na região mato-grossense. Arlinda Morbeck deixou uma vasta

produção literária, em dezenove volumes de poesias e crônicas, tendo como

detentores os familiares. Apesar de não ter conseguido a publicação da sua obra, a

poeta escreveu para jornais em Cuiabá-MT e em Valparaíso-SP, cidade em que a

poeta teve leitores. Arlinda Morbeck teve como inspiração temática a região mato-

grossense e esteve presente no processo cultural do Estado, por isso, há a

necessidade de estudos acerca de sua poética, o que, pretende-se, muito contribuirá

para o preenchimento de lacunas existentes sobre a escrita da mulher na região. A

pesquisa toma como referencial teórico: PEREIRA (1957) VICENTINI (2005),

MAGALHÃES (2001), CANDIDO (2002), LEITE (2005), NADAF (1993), PAZ (1996),

FRIEDRICH(1991), BOSI (2000), entre outros.

Palavras-chave: Arlinda Morbeck, poesia, autobiografia.

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ABSTRACT

CLARO, L. A. S. The Voice of Poetry in Arlinda Morbeck of Mato Grosso. 2010, 100

p. Thesis (MA in Language Studies), Institute of Language, Universidade Federal de

Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2010.

This research, which developed in the Graduate Program, MA in Language

Studies, area of concentration Literary Studies, University of Mato Grosso, aims to

present and discuss the poetry of the author of Mato Grosso, Arlinda Person

Morbeck (1889 -1960) who, until now, is anonymous. The research aims to identify

the writing style of the female poet, relating it with the literature-confessional

autobiography. While the case of Mato Grosso writer, make necessary study also

regionalism in this region for being the place where the poet wrote much of his

poetry. Arlinda Person Morbeck lived in Cuiaba 1911-1916; Morbeck her husband

Joseph was the Director of Lands, Mines and Colonization, the reason that brought

her to live in the region of Mato Grosso. Arlinda Morbeck left a vast literary output, in

nineteen volumes of poetry and essays, having family members as owners. Despite

not having achieved the publication of his work, the poet wrote for newspapers in

Cuiabá-MT-SP and in Valparaiso, a city where the poet had readers. Arlinda

Morbeck theme was inspired by the region of Mato Grosso and was present in the

cultural process of the state, so there is a need for studies about his poetry, which

aims to greatly contribute to filling gaps on the writing of women in the region. The

research takes as its theoretical framework: PEREIRA (1957) VICENTINI (2005),

Magalhães (2001), CANDIDO (2002), MILK (2005), Nadaf (1993), PAZ (1996),

Friedrich (1991), BOSI (2000) among others.

Keywords: Arlinda Morbeck, poetry, autobiography.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA .......................................................................................................... IV

AGRADECIMENTOS ................................................................................................. V

RESUMO.................................................................................................................. VII

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

CAPÍTULO I .............................................................................................................. 13

I ARLINDA MORBECK: HISTÓRIA DE UM RESGATE ............................................ 13

I.1 LITERATURA E REGIONALISMO ....................................................................... 21

I.2 REGIONALISMO LITERÁRIO – BREVE PERCURSO ........................................ 24

I.3 REGIONALISMO EM MATO GROSSO ............................................................... 30

CAPÍTULO II ............................................................................................................. 37

II O QUE É POESIA .................................................................................................. 37

II.1 ESCRITA FEMININA- AUTOBIOGRAFIA ........................................................... 41

II.2 A MULHER NA ESCRITA LITERÁRIA ................................................................ 47

CAPÍTULO III ............................................................................................................ 53

III VOZES FEMININAS MATO-GROSSENSES ........................................................ 53

III.1 A VOZ DE ARLINDA MORBECK ....................................................................... 57

III.2 RUMORES, ROMEIROS, SERTÕES ................................................................ 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 96

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo a apresentação da poética de Arlinda

Morbeck, desejo surgido na graduação em Licenciatura Plena em Letras, no campus

da UFMT, em Pontal do Araguaia, concluído no ano de 2005, época em que tive o

primeiro contato com a literatura mato-grossense e com a escrita da poeta. Meu

desejo era não só realizar a pesquisa sobre as produções de Arlinda Morbeck, como

também conhecer a literatura mato-grossense, até então pouco conhecida.

Com a oportunidade de cursar a pós-graduação – no Instituto de Linguagens

da Universidade Federal de Mato Grosso-pude dar continuidade aos estudos, antes

vistos na graduação, quando tive como grande incentivo os estudos realizados pelas

professoras Dra Gilvone Furtado Miguel e Dra Hilda Gomes Dutra Magalhães, que

têm suas pesquisas voltadas para as produções mato-grossenses.

A escolha do objeto de pesquisa não foi tarefa fácil. O material da escrita

de Arlinda Morbeck para a composição do corpus foi de difícil acesso, exigindo-

nos trilhar um longo caminho que se tornou uma tarefa de responsabilidade, uma

vez que tivemos que recriar uma trajetória iniciada pela poeta pelos sertões

mato-grossenses.

Com o material de Arlinda Morbeck em mãos,correspondências, diários,

cadernos, matérias de jornais, homenagens e anotações, seguimos para o

próximo passo, buscar dentro de sua escrita a temática utilizada desenvolvida,

na escrita de suas poesias, sendo este o nosso foco de análise.

No primeiro momento, estava estabelecido analisar a poética e suas

temáticas, porém sob o olhar da discussão estabelecida na qualificação,

percebemos a necessidade de uma reconstrução a respeito do corpus da

pesquisa, tarefa que nos fez entender que Arlinda Morbeck não fornecia material

suficiente para compormos a primeira proposta, além de que o termo “Poética”

torna o estudo muito amplo.

E, nessa perspectiva de mudança, pensamos também em uma poeta que

está no anonimato, por isso, a criação de Arlinda Morbeck se faz não só na

literatura, mas sua escrita está inserida no campo da memória, e este exige a busca

pelo que foi essa mulher, em que meio estava inserida, por que escrevia e o seu

material responde e anseia por tudo isso. Assim, encontramos uma mulher que

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produziu, testemunhou e evocou o passado não só para registro próprio, mas existe

em sua escrita o desejo do reconhecimento, a tristeza da não oportunidade e o mais

importante nessa teia discursiva, Arlinda Morbeck assume o papel de imprimir a sua

versão sobre si mesma, visto que a memória autobiográfica percorre a tessitura da

sua escrita e de seus depoimentos.

E nessa rede de memórias que, são suas poesias, não podemos, por ora,

pelo material de que dispomos, confirmar que sua escrita contribui para a literatura

mato-grossense com temas voltados para essa terra, como fizeram grandes nomes

reconhecidos por leitores, porém nosso papel, neste momento, fica em posicioná-la

como mulher que viveu na região mato-grossense e que, nos cenários dos sertões,

deu voz a suas memórias, o que possibilita “luz” nesse caminho, ainda em

construção, da literatura feminina mato-grossense

Nossa pesquisa está estruturada em três capítulos. Em Arlinda Morbeck-

História de um Resgate, o nosso objetivo é apresentar sua biografia, para entrelaçar

obra e história de vida, e, assim, a instituímos como poeta, e suas poesias ganham

sentido, por se tratarem de suas memórias vivas (família, amigos, amor, solidão,

filhos).

Em Literatura e Regionalismo e em seus subtítulos “Regionalismo Literário-

Breve Percurso” e “Regionalismo em Mato Grosso”, discutimos o tema da literatura,

como uma forma de expressão da realidade e de falar sobre o mundo; é pela,

literatura que percorremos outros caminhos, permitindo que desvendemos a

escritura de um autor. Devido a busca nesse processo de reconstrução de história

de vida, há a necessidade de demarcamos em que meio a poeta se insere; visto que

a literatura é a expressão da realidade a qual se vive, o regionalismo neste momento

não servirá como matriz de análise e, sim, para delimitarmos o meio em que a poeta

viveu e inspirou-se para composição de suas poesias.

Em ,“O que é poesia”, abordamos, de forma sucinta, a arte da escrita , sua

essência, conceitos, expressão,sua ligação e o tempo. Contextualizando a poesia

como uma linguagem e suas modalidades, conseguimos estabelecer a ligação com

a escrita de Arlinda Morbeck na qual encontramos movimento, imagem, tempo,

expressão e ritmo; a poesia foi para ela não só uma forma de escrita, mas a

salvação de uma vida solitária.

Em A Mulher na Escrita Literária fazemos uma abordagem geral da critica à

literatura feminina, no século XX, para compreendermos o silêncio vivido por tantas

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mulheres, como Arlinda Morbeck, que escreveram em uma época em que o papel

da mulher era estabelecido por grades dos casamentos, uma censura estabelecida

dentro de seus próprios lares. Os Cadernos como os de Arlinda ainda estão

guardados em alguma gaveta, sendo destruídos pelo tempo, porque a escrita

feminina ainda hoje luta por espaço. Se vivemos da memória, como seres humanos,

necessitamos das lembranças para a construção do futuro, é nas leituras, de cunho

autobiográfico que podemos seguir por outros mundos e, a cada página, sabermos

que tudo foi realmente vivido.

No quarto capítulo, intitulado “Vozes Femininas Mato-Grossenses”, “A Voz de

Arlinda Morbeck” e “Rumores, Romeiros, Sertões”, seguimos para a análise das

poesias de Arlinda. Com o seu material selecionado e, depois de muitas leituras, a

indagação sobre a escrita feminina em Mato Grosso foi uma busca necessária, no

sentido de que precisávamos ter o conhecimento de mulheres que produziram na

região, e, se muitas dessas vozes não se cruzam, sejam elas reconhecidas, na

prosa ou na poesia. A teoria de Pareyson (1997) e de Lejuene nortearam essa Voz

de Arlinda Morbeck, uma mulher que escreve sua trajetória pessoal por meio de

suas memórias que deixam lacunas para nós, leitores, refletirmos sobre a dúvida

estabelecida pela autobiografia: houve priorização de sentimentos? Omissão de

fatos?

Enfim, embasados na teoria de Barthes, Fragmentos de um Discurso

Amoroso, analisamos as poesias de Arlinda Morbeck, buscando a compreensão

desse discurso amoroso que é sempre estabelecido como efêmero, como algo

estabelecido, acabado; porém, as poesias aqui apresentadas são marcadas da

imaginação que abre as portas para os que as leêm e fundamenta-os.

É conveniente destacarmos que, para compreensão do corpus desta

pesquisa, foi necessário debruçarmos sobre a leitura de outras produções mato-

grossenses, como a de Dom Aquino Correa, que deixou em sua escrita temas

relevantes, para prensarmos na identidade cultural de Mato-Grosso.

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CAPÍTULO I

ARLINDA MORBECK: HISTÓRIA DE UM RESGATE

Terminar um Livro é alcançar a vitória de nossas inspirações!

Arlinda Morbeck.

Em 2005, final da graduação em Letras, no momento de decidir o objeto

de estudo para a pesquisa final, as aulas de Literatura foram fundamentais para

a escolha do tema. As aulas da Professora Dra. Hilda Dutra Magalhães, de

Literatura Mato-Grossense, nas quais ela apresentou à turma o material

selecionado por ela e pelo historiador Valdon Varjão, intitulado Poesias,

despertaram minha atenção. Essas poesias eram de Arlinda Pessoa Morbeck.

Não há como negar que sua escrita encanta e desperta qualquer alma feminina;

sua fragilidade e seu tom confessional envolvem todos aqueles que tenham um

primeiro contato com suas poesias.

Decidido o objeto, hora de trabalhar, tarefa que não foi fácil. Apesar de

uma mulher que, como tantas outras, teve uma alma feminina repleta de alegrias

e dores, Arlinda viveu uma realidade diferente de outras. Sua escrita revela toda

uma vida envolta da historiografia mato-grossense da época, por isso, tivemos

que perpassar seus caminhos percorridos, em busca de sua história, de sua

escrita, para conseguirmos dar inicio à organização do corpus.

Inicialmente, convém relatarmos o período em que a poeta viveu. Filha de

Arquimedes Secundino Martins da Silva, desembargador da cidade de Salvador-

BA, e de dona Maria Autímia Aragão Pessoa, Arlinda Pessoa nasceu em 04 de

abril de 1889, na capital baiana.

Aos 17 anos, colou grau no Instituto Normal da Bahia, tendo sido, logo

após, nomeada para lecionar na Terceira Escola do Distrito da Penha - BA.

Arlinda frequentava a alta sociedade de sua época e era uma moça refinada, que

gostava de bailes e saraus.

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O gosto pela leitura e pela escrita surgiu em sua vida, já na mocidade. E foi

em um desses bailes, chamados na época de Saraus, em que aconteciam

declamações e boa música, que Arlinda conheceu aquele que viria a ser o motivo de

suas inspirações, para escrever, com grande esmero, poesia e prosa.

Arlinda conhece, no ano de 1905, José Morbeck, como ela nos descreve em

um de seus diversos poemas dedicados ao marido, engenheiro agrônomo que

residia na cidade de Caiapônia, em Goiás, por motivos de sua profissão. Arlinda,

durante todo o tempo de namoro, que durou seis anos, alimentava esse sentimento

de amor por meio de cartas e cartões-postais. Foi então que, no ano de 1908, ela

escreveu, numa caderneta intitulada “O Livrinho Verde”, desde o momento em que

conheceu José Morbeck até toda sua espera e saudade.

No dia 10 de junho de 1911, Arlinda e José Morbeck casam-se na cidade de

Salvador-BA de onde embarcam, em um navio, rumo à cidade de Cuiabá. Tudo

nesse momento era estranho para a dama, mas o amor falava mais alto dentro de si.

Arlinda deixa toda a família para trás e, por entre as águas do mar escreve suas

poesias nessa, então, lua-de-mel.

A viagem foi longa; muitos dias se passaram, e Arlinda, a cada poema escrito,

confirmava o amor que sentia pelo esposo. Salvador, Rio de Janeiro, Buenos Aires

e, finalmente, a cidade de Cuiabá-MT, onde o Dr. José Morbeck iria ocupar o cargo

de Diretor de Terras, Minas e Colonização. É no Estado de Mato Grosso que essa

mulher, professora e mãe, vem nos abrilhantar com suas poesias; mesmo hoje,

permanecendo no anonimato, podemos afirmar que, de tão longe, veio uma dama,

para aqui exercer o que ela considerava como o de melhor que existia em sua vida-

sua escrita. Por isso, para compreendermos sua escrita, precisamos percorrer os

caminhos trilhados na região mato-grossense.

Permaneceu na cidade de Cuiabá até o ano de 1916, quando foi nomeada

para as Escolas Urbanas da Prelazia de Registro do Araguaia, hoje, cidade de

Araguaiana, passando a lecionar nesses agrestes sertões para onde transferiu seu

domicílio, tendo sido seu marido afastado de seu cargo, por não aceitar as injustas

imposições fiscais do governo local; em detrimento dos garimpeiros, assumindo a

liderança destes.

O Estado de Mato Grosso teve sua história marcada por bandeirantes

paulistas que buscavam ouro na região; que foi descoberta por ser rica em

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mineração e sofreu todas as condições que a exploração aurífera é capaz de

causar. Cuiabá foi fundada em 1719, e foi o maior garimpo de ouro do País. E foi por

meio de um Bandeirante, Dr. Deocleciano do Canto Menezes, que José Morbeck

veio a trabalho para o Estado de Goiás e, depois, para Mato Grosso.

No ano de 1915, Cuiabá tinha como governador Dom Aquino Corrêa que

passou uma concessão de exclusividade de garimpagem no vale do rio Garças e

seus afluentes, até a sua foz no rio Araguaia, para uma Multinacional Inglesa “Cia

Indústria e Comércio”, provocando o desemprego de milhares de garimpeiros.

Morbeck, com um parecer contrário, pede demissão de seu cargo ao Governador,

que revoga, então, a concessão dada à Multinacional Inglesa, evitando, com isso,

uma revolta armada dos garimpeiros que estavam ao lado de José Morbeck.

Arlinda teve de deixar, com saudades, a cidade de Cuiabá, onde tivera muitos

amigos, dentre eles o Arcebispo e poeta Dom Aquino Corrêa que tinha o grande

desejo de prefaciar seus poemas, por ter uma admiração pela coragem dessa

mulher de deixar sua terra natal, para viver nas selvas do leste mato-grossense. No

entanto, foi o Dr. Agrícola Paz de Barros quem publicou, no Jornal de Cuiabá “A

Cruz”, um de seus poemas.

Em Valparaíso-SP, cidade para a qual Arlinda Morbeck muda-se

posteriormente com a família, dedicou sua escrita a um jornal local e, dentre muitos

de seus poemas, podemos destacar este que marca sua emoção de retornar à

cidade de Cuiabá.

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Percebemos que, apesar das dificuldades enfrentadas pela escritora nos

sertões mato-grossenses, ela carrega dentro de si um orgulho de ter vivido em Mato

Grosso e, principalmente, na cidade de Cuiabá.

O jornal “A Cruz”, órgão da Liga Católica Brasileira de Mato Grosso,

incorporou um ideário político, trazendo em suas manchetes a natureza mato-

grossense e seu espaço geográfico; a igreja em Mato Grosso divulgava as riquezas

da terra e a implantação que o movimento modernizador oferecia:

No paiz dos diamantes – as riquezas do nosso subsolo ainda pouco conhecidas e quase inexploradas, são de um valor incalculável e constituirão num futuro não muito remoto preciosa fonte de renda para o thesouro e de prosperidade para o Estado. Por agora conduziremos o leitor ao paiz dos diamantes, ao legendário rio da Garças (...) Os afluentes da margem direita do Garças são os mais importantes (...) carregam as riquezas diamantíferas, deve haver uma quinzena de anos que indivíduos vindos da Bahia ali se estabeleceram e descobriram o primeiro garimpo do Garças, esses

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indivíduos garimpeiros em seu Estado foram influenciados pelos cascalhos semelhantes aos dos rios que já haviam trabalhado. (...) realizados as suas esperanças (...). Ali foram encontrados os mais belos diamantes um deste é de propriedade do Coronel Carrige, em Mineiros, Goyaz. A esperança de riqueza rápida e fácil levou ao Garças muita gente, hoje, cerca de 1500 a 2000 pessoas ali trabalham exclusivamente do garimpo numa extensão de mais de 60 léguas, a partir da nascente do rio . ( A Cruz, órgão da Liga Católica Brasileira de Matto Grosso, n. 464, 2 maio 1920, p. 2).

Esse tipo de discurso foi insistentemente construído sobre Mato Grosso,

tanto pelas fontes da imprensa escrita, como por diversas reportagens que

funcionavam como um dos atrativos mais sedutores para as pessoas de toda a

nação, seja pelas cartas, ou, ainda, pelos movimentos políticos que se juntaram

aos discursos do governo. Morbeck esteve atento aos movimentos do

povoamento e das descobertas dos garimpos. Em pouco tempo, tornou-se líder

dos garimpeiros do Garças e região. Fixou residência em Santa Rita do Araguaia

(hoje Alto Araguaia) e, a partir de 1.920, com os seus adeptos, tornou-se o

administrador, de fato, dos garimpos do leste de Mato Grosso.

O jornal O Araguaya, órgão noticioso e defensor dos interesses dos

garimpeiros, indiretamente encarna e legitima o discurso oficial, quando destaca, em

sua matéria, várias temáticas, no sentido de que Mato Grosso se encontrava ainda

inexplorado e que estaria aberto para a exploração de suas riquezas. De qualquer

ângulo que se queira olhar a notícia, a busca é pelo envolvimento emocional da

população brasileira para as questões mato-grossenses:

Matéria: O Brasil desconhecido – O que se passa pelo coração do Brasil – Os garimpos e os Garimpeiros – uma rápida palestra com o eng. Morbeck. A historia do diamante (almejada). O conceituado vespertino Folha da Noite de são Paulo publicou a seguinte entrevista com o Dr. Morbeck, a qual data vênia transladamos para estas colunas. A terra: lá bem para a parte oriental do Brasil, ocupando a parte central, existe uma enorme faixa de terra quase inexplorada que no mapa geográfico é conhecido comoMato Grosso, conhecido como um lindo recanto da terra brasileira. Mato Grosso um estado grande pela sua extensão, não logrou ainda conquistar no seio da União o destaque a que pela sua riqueza tem feito jus. Suas riquezas naturais: a mineração como a maior fonte de riqueza do estado, esta compreendida na extensa zona do Araguaya e seus tributários. Existe, entretanto uma região a que aflui grande número de forasteiros. Da Bahia, do Pará, do Amazonas destacam ininterruptamente levas e levas degarimpeiros. Vão para o garimpo

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dos Garças onde já encontram numa atividade assustadora, o argentino, os norte-americanos e holandeses. O Araguaya, edição da gazeta mercantil (cerca de 1926), Ano I,. n. 8, p. 1.).

A nova posição do marido de Arlinda, defensor dos direitos e interesses

dos garimpeiros contra as injustas pretensões tributárias do governo do Estado

de Mato Grosso, fato que determinou o conflito armado - Revolução Morbeck X

Carvalhinho e Pedro Celestino, tornou sobremaneira agitada a vida de nossa

poeta, a qual, a despeito dos ásperos contratempos, continuou exercendo o

magistério, com dedicação e desprendimento, chegando a lecionar para mais de

3.000 alunos, dentre os quais, muitos índios bororós e carajás. A contenda

Morbeck X Carvalhinho, representou um dentre os muitos conflitos ocorridos na

região leste mato-grossense. Os grupos se desfizeram, porém os resquícios de

vingança e revide persistiram por muitos anos.

Arlinda, com sua escrita, registra momentos que viveu na região mato-

grossense , em que seu marido foi um grande líder político regional e defensor

dos garimpeiros. A escritora tem em suas produções relatos desses fatos que

comprovam todo o tom confidencial de sua vida de mãe, esposa, professora e

poeta:

Nota 2- Diante das expressões desta carta meu marido, José Morbeck tendo na fronte o selo nobre do amigo, seguiu urgente num automóvel com 3 amigos armados a fuzil, na ânsia de poder ainda salvar a vida de Ondino Rodriguês, aquele moço singelo de caráter verdadeiro, que lhe conhecera no Registro do Araguaia, dando-lhe, como pequeno auxílio, trabalhos na sua fazenda Patagônia. Eram 7 da manhã e ainda estávamos sonolentos, porque tínhamos passado a noite em animadíssimo baile, na casa de Serafim de Carvalho, onde morava Candinho e realizou o casamento de sua Pupila Joana. Com os olhos inundados de lágrimas, abracei meu Morbeck, que me beijou na face, indo até de sua filhinha Dirce, com 3 meses de idade, depositou-lhe também um beijo na cabecinha inocente. Todo empenho em vingar a causa de Ondino Rodrigues, lhe falou no meio dos seus amigos que enchiam a sala, assistindo-lhe a partida: “Nesta hora sou um homem solteiro, não tenho mulher, não tenho m filhos, serei um mostro, sacrificarei tudo, a vida por esta causa de Pombas”. Seus filhos: Walton, Newton, Milton, Circe, Nilce, Clinton, Elce, olhavam espantados. E dando um beijo na testa de um por um, entrou no auto. Calçava botas e roupa de palmebiche escura. E eu fiquei chorando, rezando ao meu glorioso S. José, sentindo na face ainda o seu beijo quente, beijo que me deu, junto ao berço da filhinha adormecida. Aquele sacrifício era feito por José

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Morbeck, o homem de tempera de aço, o homem raro entre os homens, que ia defender a causa de Ondino Rodrigues. S. Rita do Araguaia- Arlinda – Dezembro 1924.

Arlinda passa a morar na fazenda Patagônia, situada no município de

Pontal do Araguaia-MT, já com seus seis filhos. A mãe, muito dedicada, relatou

com grande orgulho o nascimento de cada um de seus filhos no livro que

denominou “Heróis das Selvas”:

Clinton primeiro ente que viu a luz do dia, nesta plaga selvagem de 40 léguas quadradas, onde o diamante habita no leito dos ribeiros e nos monchães arenosos, sob a música das araras azuis, das aves e dos passarinhos sobre as palmeiras extensas e as florestas seculares. (s/d).

Escreveu também o livro “Os Domingos da Fazenda Patagônia”, em cuja

introdução, porque era assim que a poeta escrevia, sempre seguindo as normas

de um livro: prefácio, dedicatória e sumário, ela explica o motivo por que está

escrevendo: “Este livro será o bálsamo de minhas chagas abertas por uma

cruciante saudade no meu sensível coração. Nas selvas, nas paragens enfiais do

Leste mato-grossense, o escreverei insuflada por meu pensamento. È esta a

realidade da vida!... “E foi morando tão distante que a poeta teve que se mostrar

essa mãe dedicada, situação que ela tinha que, por muitas vezes, guardar dentro

de si ou em caneta e papel, para expressar os relatos de sua alma feminina:

suas angústias, saudades, solidão... Para não demonstrar aos filhos, que

também sentiam a ausência do pai, foi capaz de proporcionar a eles momentos

inesquecíveis, mesmo vivendo longe de um convívio com o restante da família e

de uma vida melhor.

Essas produções literárias estão compostas em dezenove volumes, entre

poesias e crônicas. Apenas a coletânea denominada Poesias, foi editada

artesanalmente após a morte da poeta. Podemos notar todo o caráter

confessional que as obras de Arlinda possuem, e o grande desejo de vê-los

publicados é por ela mesma escrito, em um poema-desabafo:

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Não é vaidade, é um desejo somente,

que tenho de te ver encadernado

meu fiel companheiro, o confidente

dos meus segredos! Oh!... Meu livro amado!

Quantas vezes meus dias tristonhos

suavizastes com teu meigo encanto?

precioso relicário dos meus sonhos,

que contém os mistérios do meu pranto!

Quantas vezes chorando eu te escrevia

deixando nas tuas páginas a confissão

da amargura cruel que padecia

o deserto de minha solidão?!

Quantas vezes recordando ausente

em ti um ameno alivio eu encontrava

minha pena te escrevia lentamente

gemendo sobre ti quando eu chorava!

Não é orgulho nem também vaidade

meu desejo de te ver encadernado,

em cada letra tens uma saudade

em cada página lembras meu passado.

Nomeado seu marido Prefeito de Alto Araguaia, de 1924 a 1925 e de 1928 a

1930, passou Arlinda a lecionar nesse município, nas Escolas Reunidas,

prosseguindo infatigavelmente em prol da alfabetização e desenvolvimento da

cidade, junto à Congregação Salesiana, de padres e freiras. Nessa cidade, nasceu

sua última filha, Dirce, a quem ela escreveu alguns poemas, por ser sua filha caçula

e por ela a ter deixado, tempos depois, para ingressar no convento.

Em 1940, por motivo da educação superior de seus filhos, a poeta transferiu

sua residência para Valparaíso-SP; nomeada pelo então governador, passou a

lecionar na Terceira Escola Municipal, anexa ao grupo escolar ,onde permaneceu

até o ano de 1942, quando afastou-se do magistério, em consequência de

problemas de saúde.

Cronista ágil e poeta de grande inspiração, como percebemos, durante largos

anos de sua vida, desenvolveu intensas atividades literárias, ensinando os alunos a

produzirem poesias, motivo pelo qual surgiu-lhe o título “Àguia da Cultura”; fundou

clubes de sarau feminino e escreveu para 18 jornais nos Estados de Mato Grosso,

Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo.

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O jornal “O Valparaíso” teve o prazer de ter em suas publicações textos em

prosa e poesias de Arlinda, tendo eles sido muito apreciados pela população; então,

a escritora utilizava-se do pseudônimo de “Tesourinha”.

Apesar de ter produzido, também, em Valparaíso, uma vasta obra literária, e

ser lembrada pela população como uma grande poeta, não se pode deixar de

ressaltar o que foi para o Estado do Mato Grosso e suas cidades, a presença de

uma mulher tão culta, que soube admirar com os mesmos olhos as diferentes

pessoas que aqui encontrou; diferentes daquelas que havia deixado em sua terra

natal; e foi também onde suas maiores produções poéticas foram escritas. Não

encontramos nos textos da autora uma obsessão pela métrica e muito menos o seu

distanciamento, o que faz com que, aos nossos olhos, as emoções surjam a cada

leitura, o que a difere de outros poetas.

A poetisa diz: “Minha pena só está contente, quando escreve minhas

inspirações, que são o bálsamo de minhas chagas!”. Com reflexos de paixões,

saudades, amor e vários outros temas deles derivados ela escreve,sem distanciar-

se de sua condição de mulher, e, apesar dos preconceitos da época conservadora

em que viveu, exprimiu, sem medo, o mais íntimo da alma feminina.

Foi no dia 13 de julho de 1960, que nossa grande poeta veio a falecer na

cidade de Valparaíso-SP, após o agravamento do seu estado de saúde. O que falta

a essa poeta é apenas a sua realização, e de muitos que leem suas poesias é ver

publicado tudo aquilo que brotava do mais íntimo de seu ser. Superar o anonimato

da poeta, no campo literário, é também reconhecer o legado histórico vivenciado por

ela na região mato-grossense. A importância de se identificar Arlinda Morbeck

perante a cultura regional define o caminho crítico, para que a poética produzida

ganhe mais força e vitalidade, no contexto da história da literatura mato-grossense.

I.1 LITERATURA E REGIONALISMO

[...] a ligação entre a literatura e a sociedade é

percebida de maneira viva quando tentamos

descobrir como as sugestões e influências do

meio se incorporam à estrutura da obra – de

modo tão visceral que deixam de ser

propriamente sociais, para se tornarem a

substância do ato criador.

Antonio Candido

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Literatura é uma forma de falar sobre o mundo, contudo defini-la não é

simples assim; com o passar do tempo esse termo foi ganhando muitos

significados, sempre relacionados com os fatores socioculturais.

Na antiguidade, de acordo com a Poética de Aristóteles, que é entendida

como o primeiro tratado da teoria literária, a literatura se enquadra como imitação

(mimese) por recriar uma situação, ou seja, imitação de ações dos homens,

como diz Aristóteles. A arte poética é também colocada como o prazer de

agradar e instruir, e, assim, foi reconhecida por Horácio. É somente no século

XIX que a literatura, com o declínio dos gêneros literários, que antes eram

descritos na Poética somente como épico e dramático, reconhece o gênero lírico,

e, a partir de então, ele se legitima como romance, teatro e poesia.

Observando a evolução do termo literatura, Gustavo Bernardo (1999,

p.135) ressalta: “É necessário não apenas conceituar, mas estar sempre

conceituando, ou seja, encontrar-se sempre perguntando sobre o fundamento”.

Entre os estudos poéticos, essa necessidade se faz presente; legimitar um poeta

é, antes de tudo, afirmar a literatura como arte e como meio de expressão

humano para concretude de seus sentimentos e, assim, Candido nos adverte:

Com efeito, entendemos por literatura [...] fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência. Um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma 'expressão'. A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento - pra chegar a uma 'comunicação'. Assim, não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre tenham consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança) que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo (CANDIDO; 2000, p. 127-128).

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O ato criador que envolve a essência da literatura é assim discutido por Lima

(1992), como algo concreto que, em sua constituição, é inata; o homem nasce poeta

e é a cultura que se encarrega de desenvolver e aperfeiçoar esse dom.

A literatura perpassa esse ato criador e se estabelece como difusora da

tradição e tem o seu sentido completo quando transmite algo entre os homens.

Esse conjunto de elementos transmitidos podem ser ou não aceitos, conforme são

vivenciados e retomados.

Para Candido:

Sem essa tradição não há literatura como fenômeno de civilização. [...] do ponto de vista histórico [...] as obras podem aparecer em si, na autonomia em que manisfestam, quando abstraímos as circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado, e ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição (CANDIDO, 2000, p. 26).

A literatura adquiriu, com o passar do tempo, diversas funções, porém não

é somente o que a ela se associa, sendo muitas vezes voltada para ela mesma,

por existir na criação uma manifestação inesperada, em que não há explicação.

Paz adverte sobre o processo de criação em que para o poeta,

È indiferente que tenha plano ou não, que tenha meditado longamente sobre o que vai escrever ou que tenha consciência de que esteja vazia e em branco como o papel imaculado que ora atrai ora o repele. O ato de escrever encerra, como primeiro momento, um desligar-se do mundo, algo como lançar-se no vazio (PAZ, 1982, p. 215).

Na criação o poeta encontra-se envolto em palavras, com suas incertezas e

dificuldades de como trabalhá-las e traduzi-las do seu íntimo para a escrita. Cria-se

um novo mundo, num novo olhar, a criação e o criador.

Ainda, em torno da importância da literatura, encontramos o seu papel que

consiste no resgate e no estabelecimento de ligações com diversas culturas.

Candido considera:

Literatura propriamente dita, [...] um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas

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dominantes duma fase. Estes denominadores são além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização (CANDIDO, 1982, p. 215).

Enfim, a literatura tem acompanhado o desenrolar do caminho da

humanidade desde, o inicio dos tempos, primeiramente, através da fala e, depois

pela escrita. È feita por homens e por eles deve ser absorvida. Somente ela é capaz

de brotar no homem reflexões acerca do mundo, o desejo de mudança, as emoções

mais escondidas, a identidade de um povo, fomentando, assim, a liberdade de

expressão, de vida mais justa e humana.

I.2 REGIONALISMO LITERÁRIO – BREVE PERCURSO

Quando pensamos em regionalismo, o entendemos logo como uma produção

artística de uma determinada região, em conjunto com a sua identidade local.

Porém, ainda encontramos nessa definição muitas incertezas, que tornam

necessária a busca por outros estudos. Com o objetivo de construirmos um texto

historiográfico sobre o conceito do regionalismo literário, recorremos aos autores:

Antonio Candido, Lúcia Miguel Pereira, Afrânio Coutinho, Nelson Werneck Sodré e

Alfredo Bosi.

Na metade do século XVIII, encontramos escritores preocupados com a

formação de uma literatura brasileira, com isso, os textos literários voltam-se para a

realidade local e regional. Nos decênios de 1870, surgem polêmicas entre escritores

sobre as obras regionalistas, e, a partir daí, os escritores preocupam-se com a

divulgação do Brasil na literatura.

Antonio Candido, em sua obra Formação da Literatura Brasileira (2007),

ressalta que a literatura produzida na década de 1940 era voltada para o homem

urbano conhecer somente o que havia fora de sua cidade; a mudança só ocorre

quando outros escritores das regiões retratadas conseguem produzir obras que

desmistificavam as paisagens criadas, mostrando o homem rural e seus problemas

oriundos da virada do século, deixando de lado o homem, antes mostrado como

selvagem e desconhecido. O regionalismo ganha, a partir desse momento, não só a

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visibilidade de um movimento literário, mas, sim, o de uma tradição cultural que, ao

longo da história literária, ora reforça um determinado movimento, ora se opõe a

outro, de acordo com seus autores e temas neles envolvidos.

Ainda com base em Candido, faz-se necessário conceituarmos alguns

pontos específicos desse processo formativo nacional, que se adapta às

situações específicas locais:

a) o importante não é saber quando a nossa literatura brasileira se tornou

brasileira, mas sim quando se concretiza como conjunto de obras;

b) em meados do século XVIII forma-se como um sistema literário, com a

inter-relação entre obras e autores;

c) a função ideológica, como vontade de ser nacional e específico,

contribui no processo formativo;

d) o regionalismo aparece como uma verticalização do nacionalismo

dentro da sua própria nação.

Essas afirmações podem ser complementadas com a seguinte reflexão do

autor, contida no prefácio da 11ª edição de sua obra Formação da Literatura

Brasileira:

[...] há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura. Suponhamos que, para se configurar plenamente como sistema articulado, ela dependa da existência do triângulo “autor-obra-público”, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição. Sendo assim, a brasileira nasce, é claro, mas se configura no decorrer do século XVIII, encorpando o processo formativo, que vinha de antes e continuou depois. Foi este pressuposto geral do livro, no que toca ao problema da divisão de períodos. Procurei verifica-lo através das obras dos escritores, postas em absoluto primeiro plano, desde o meado daquele século até o momento em que a nossa literatura aparece integrada, articulada com a sociedade, pesando e fazendo sentir a sua presença, isto é, no último quartel do século XIX (CANDIDO, 2007, p.18-19).

Lúcia Miguel-Pereira, em seu livro Prosa de Ficção (1870 a 1920), define com

maior precisão qual seria a especificidade da narrativa regionalista, ao assinalar que:

Para estudar, pois, o regionalismo, é mister delimitar-lhe o alcance: só lhe pertencem de pleno direito as obras cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde hábitos e estilos de vida se diferenciem

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dos que imprimem a civilização niveladora. (...) o regionalismo se limita e se vincula ao ruralismo e ao provincialismo, tendo por principal atributo o pitoresco, o que se convencionou chamar de “cor local”. Essa definição lhe indica por si só as vantagens e as fraquezas. (MIGUEL-PEREIRA, 1957, p.179).

Para a autora, essa caracterização do regionalismo é entendida como um

desvio do caminho habitual da ficção:

[...] esta, de fato, parte em regra do particular para o geral, isto é, vê um homem em seu meio - ou contra o seu meio - mas vê também o homem, alguém que por suas razões mais profundas se irmana, por sobre a diversidade de expressão, aos outros seres; interessa-se pelos indivíduos especificamente, porém na medida em que se integra na humanidade. O regionalismo, ao contrário, entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence, e na medida em que se desintegra da humanidade; visando de preferência ao grupo, busca nas personagens, não o que encerram de pessoal e relativamente livre, mas o que as liga ao seu ambiente, isolando-as assim de todas as criaturas estranhas àquele. Sobrepõe, destarte, o particular ao geral, o local ao humano, o pitoresco ao psicológico, movido menos pelo desejo de observar costumes – porque então se confundiria com o realismo – do que pela crença o seu tanto ingênua de que divergências de hábitos significam divergências essenciais de feitio. É por isso fatalmente levado a conferir às exterioridades - à conduta social, à linguagem etc. - uma importância exclusiva, e a procurar ostensivamente o exótico, o estranho (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179-180).

Percebemos que, para a autora, a noção de regionalismo só se realiza a

partir do momento em que ela se contrapõe a uma outra, que é a da “civilização

niveladora”. O regionalismo pode ser entendido, então, como uma formação

social, na qual os espaços sociais, culturais e econômicos não estejam ligados

às formas de agir, pensar e sentir da modernidade capitalista.

Ao lado dos estudos formulados por Lúcia Miguel-Pereira, percebemos que o

conceito de literatura regionalista, de um modo geral, carrega em si, o estigma de

uma literatura artificial, menor e ingênua; mesmo que a autora tenha delimitado nos

seus estudos apenas a ficção dos séculos XIX e XX. Nessa mesma linha, é

interessante observamos que a autora vê o romance regionalista como um desvio do

“caminho habitual da ficção”; por se prender somente ao exterior do mundo, os

autores regionalistas dão ênfase somente aos traços pitorescos e exóticos do

homem e de sua relação com o meio e com os outros indivíduos; assim ela ressalta:

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Certo, toda arte condensa e deforma, mas o regionalismo, pondo nas exterioridades e nas peculiaridades o seu acento tônico, erigindo estas em aspectos habituais e aquelas em manifestações únicas de personalidade, leva tão longe essa condensação que, devendo, por sua índole, ser simples e espontâneo, cai freqüentemente num artificialismo quase teatral: a língua, os gestos, os sentimentos típicos demais emprestam às figuras aparências de atores (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 180).

A autora assemelha o romance regionalista ao turista, que na sua ânsia

por “descobrir encantos peculiares de cada lugar que visita sempre pronto a

extasiar-se ante as novidades e a exagerar-lhes o alcance” (MIGUEL-PEREIRA,

1973, p. 180). E ainda, em outro conceito de regionalismo ela considera o caráter

de semelhança existente na literatura regionalista:

[...] logicamente, deveria estar entre as primeiras manifestações literárias de um povo, marcar-lhe a tomada de consciência, exprimir-lhe as tentativas iniciais na arte escrita. Nesse sentido, o elemento pitoresco, tão importante nele, resultaria na identificação completa do escritor com o seu meio, ao qual se prenderia não só pela identidade como pela inteligência. Não é isso entretanto o que via de regra sucede; significa, ao contrário, quase sempre, antes uma volta do que uma expansão, um movimento de dentro para fora, nascendo do encontro, com formas de vida rudimentares, de espíritos que lhes sentem a sedução precisamente por conhecerem outras mais complexas. Foi o que sobretudo aconteceu no Brasil, onde a literatura não surgiu espontaneamente, não se originou da necessidade de expressão: fruto da imitação, antecedeu essa necessidade, mormente no que ela pudesse conter de genuinamente brasileiro. Não é esse, aliás, um fenômeno restrito ao nosso, mas comum a todos os países colonizados. A cultura intelectual, vinda da Europa, atuando em sentido diverso da cultura na acepção dada ao termo pela sociologia, retarda nos escritores o amadurecimento da mentalidade nacional. Daí as anomalias da nossa evolução literária, indo do universalismo clássico para o americanismo romântico, deste para o brasileirismo, e descobrindo tarde o regionalismo, quando, naturalmente, o sentido local deveria anteceder o nacional, este o continental, que, por sua vez, viria antes do universal (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 181).

Ainda, em seus estudos, Miguel-Pereira ressalta que:

Só nos fins do século passado foi que se implantou aqui o regionalismo puro, traduzindo o desejo de fixarem os escritores em todos os seus aspectos o viver da nossa gente, da parte da população livre de influências e contactos estranhos. Iniciaram-no o paulista Valdomiro Silveira, o mineiro Afonso Arinos e o cearense Manuel de Oliveira Paiva [...] A partir desse momento a vida

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brasileira desloca-se nitidamente de um pólo a outro, com a transição para a “urbanocracia” que só de então em diante se impõe completamente. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p.181-182)

Perpassando esse estudo de Lúcia Miguel-Pereira encontramos

semelhança com os estudos de Afrânio Coutinho. Em sua obra, A literatura no

Brasil (1986), ele define o regionalismo sob dois prismas. Primeiro, no sentido

amplo de que “toda a obra de arte é regional quando tem por pano de fundo

alguma região em particular ou parece germinar intimamente desse fundo”. Em

segunda definição, “mais estritamente, para ser regional, uma obra de arte não

somente tem que ser localizada numa região, senão também deve retirar sua

substância real desse local” (COUTINHO, p. 235).

De acordo com Coutinho (1986), desde o Romantismo, o Brasil regional

passa a ter mais importância, com isso, temos a narrativa regional romântica

mais independente, priorizando o seu localismo e tradição, mesmo tendo sido

influenciada pelo subjetivismo dos românticos. Temos, então, a busca de uma

identidade nacional independente da literatura portuguesa. Para Coutinho, o

regionalismo “nasceu, sem dúvida, sob o signo do Romantismo para, depois,

misturar-se às receitas naturalistas e realistas, sob a influência de Zola e Eça de

Queiroz” (COUTINHO, p. 250).

Por esse prisma, o autor defende o regionalismo, pensando nas regiões

culturais e suas produções, e não na divisão geográfica do país. Assim, estabelece

as regiões em grupos: nortista, nordestino, baiano, central, paulista e gaúcho. No

romantismo, temos: no grupo central, Bernardo Guimarães que representa o cerrado

mato-grossense e, Visconde Taunay, a região centro-leste, em Inocência (1875), no

grupo nordestino, Franklin Távora em O Cabeleira (1876) e Lourenço (1881), e,

finalmente, José de Alencar, fundador da prosa de ficção, em O Sertanejo (1875).

Esse alcance do autor, Lúcia Miguel- Pereira cita e nos adverte quando

pensamos no conceito de regionalismo, pois é latente o posicionamento de todos

aqueles que pesquisam uma arte regionalista, por sentirem necessidade de vê-la

reconhecida e afirmada, como, por exemplo, Franklin Távora, com a sua literatura do

Norte, pois, no Brasil, encontramos o Nordeste e o Rio Grande do Sul, com profunda

e coerente consciência regionalista. Percebemos, contudo, sua influência teórica nos

estudos de Coutinho:

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Para ser regional uma obra de arte não somente tem que ser localizada numa região, senão também deve retirar sua substância real deste local. Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural--clima, topografia, fauna, flora etc.-- como elementos que afetam a vida humana na região; em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que fizeram distinta de qualquer outra. Este último é o sentido do regionalismo autêntico (COUTINHO, 1986, p.202).

Nelson Werneck Sodré1, em sua obra História da literatura brasileira: seus

fundamentos econômicos (1995), reconhece o regionalismo romântico e naturalista;

o romântico, entendido como “sertanismo” e o realista como “regionalista”, defende,

então, a diferença entre ambos e afirma que o “regionalismo, a rigor, começa a

existir quando se aprofundam e se generalizam, a ponto de surgirem em zonas as

mais diversas manifestações, a que o romantismo não poderia fornecer os

elementos característicos”( SODRÉ, 1985,p.403). Outra diferença importante, citada

pelo autor, é a da transplantação da cultura europeia sobre a formação colonial, no

caso a do Brasil, provocando, assim, a sensação de exílio em nossa própria terra.

Percebemos, dessa forma, a diferença no sertanista por sua deformação e o

regionalismo que, por mais que as deformações e fraquezas aconteçam, se

encontra mais próximo do ideal romântico.

Sodré ressalta que a prosa do Romantismo também resultou em muitos

excessos, como o de colocar o ambiente acima da criatura e, também, por dar muita

importância ao exterior, ou seja, à conduta social e à linguagem, e, ainda à busca

pela ostentação e pelo exótico. Porém o autor inutiliza esses excessos, pois a ficção

regionalista enriqueceu-se com os traços que o naturalismo acolheu: “‘o

regionalismo’ revelou o Brasil aos brasileiros, apesar de seus quadros pejados de

natureza ou dos entraves da erudição verbalista que proporcionou em muitos casos.

Procurou dar à cor local um sentido mais profundo do que o trazido pelo sertanismo”

(SODRÉ, 1985,408).

Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (2006), ressalta que

a formação do Romantismo está ligada ao nacionalismo, presente em José de

Alencar, e acrescenta que: “as várias formas de “sertanismo” (romântico, naturalista,

1 Nelson Werneck foi um historiador nacional que escreveu sua obra sob a visão marxista, por isso a

busca por uma identidade nacional que, para ele está ligada ao período Naturalista. Recolheu o material para seus estudos em: Augusto Meyer, Afrânio Coutinho, Sílvio Romero, Lucia Miguel - Pereira e Alcides Maia, procurando aproximar-se do regionalista brasileiro.

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acadêmico e até modernista) que têm sulcado as nossas letras, desde os meados

do século passado, nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a

matéria bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico.” (BOSI, 2006, 155).

Portanto, segundo o historiador, o regionalismo está em segundo plano na

literatura, pelo fato de a criação literária do “sertanismo”, no século XIX, estar

subjugada ao fato de o escritor “projetar os próprios interesses ou frustrações na sua

viagem literária à roda do campo” (BOSI,2006,155). Bosi, também em seus estudos,

ressalta os três nomes mais importantes dentro da prosa de ficção, representando,

assim, o regionalismo: Franklin Távora, Visconde de Taunay e Bernardo Guimarães.

Na construção da História da Literatura Regional, percebemos a preocupação

de Bosi na concretização do fazer literário dos textos românticos e realistas, que ele

julga sem modelo ideológico e estético, o que resulta, em sua opinião, em uma

deformação mimética. Para a concretização do seu estudo, Bosi utilizou-se das

teorias de Sodré, José Aroldo de Carvalho, Hugo de Carvalho Ramos e outros.

Em suma, dos estudos e autores aqui trabalhados, tentamos compreender

o romantismo e suas variadas manifestações que levaram ao processo formativo

da literatura regional. O romantismo revelou as diferentes características de cada

região, criando um formato de descoberta do próprio país, contribuindo para o

passo seguinte desta pesquisa, a abordagem do regionalismo mato-grossense.

I.3 REGIONALISMO EM MATO GROSSO

Ao tentarmos resgatar a produção literária de Arlinda Morbeck, é necessário

pensarmos na produção artístico-literária da região mato-grossense; no primeiro

momento, a noção de regionalismo foi fundamental para se iniciar o estudo. Por se

tratar de uma poeta mato-grossense, é fundamental situarmos o local (região) de

sua escrita para compreendermos os aspectos temáticos em suas poesias.

O conceito de regionalismo tem passado por muitas interrogações, nos

estudos críticos mais recentes. O respaldo teórico dessa pesquisa se estria nos

estudos de Albertina Vicentini, e nas abordagens do regionalismo mato-grossense,

por Hilda Gomes Dutra Magalhães e por Mário Cezar Silva Leite.

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Albertina Vicentina, em seu livro O Regionalismo de Hugo de Carvalho

Ramos (1997), busca esclarecer como o escritor denomina o regionalismo, a partir

de duas figuras centrais: Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, sendo estes

criadores de imagens típicas do homem rural: o sertanejo e o caipira.

É com Euclides da Cunha (1902) que o regionalismo finissecular se inicia na

região nordestina, por meio da literatura das secas e do cangaço. Em Monteiro

Lobato, percebemos uma influência de Euclides da Cunha, que cria um sertanejo

atrasado, porém busca modificar a imagem do caipira em suas obras. Para

Vicentini, essas mesmas preocupações se encontram em Sílvio Romero, que vê no

sertanejo um problema a ser solucionado.

Este era um jogo de espelhos: entre a nação brasileira e as outras nações mundiais; entre a ausência de caráter brasileiro e o seu caráter nacional fixado; entre a cidade querendo-se civilizada e o campo visto como atrasado; entre o real e um imaginário centrado nas noções de autenticidade e modernidade (VICENTINI, 1997, p.39).

Nessa perspectiva, o texto literário privilegia aspectos que vão da identidade

do Estado à identidade de escritor regionalista:

Assim, inicia-se o escritor no imaginário típico que a oposição cidade-campo oferece à literatura e aos sentimentos, principalmente a partir de 1850: a ficção da pureza de sentimentos, principalmente autenticidade de vida, da vida mais plena e dos sentimentos mais intensos, que, aliados à situação histórica tradicional e conservadora do campo, gerou pelo menos parte da má vontade que a crítica da cidade ou dos grandes centros hegemônicos teve (tem) para com o regionalismo (numa afirmação de identidade essa, também). Dessa forma, o regionalismo é uma espécie de luta da periferia contra a hegemonia do centro ou uma espécie de afirmação do escritor da província perante o escritor da capital, contestando a hierarquia hegemônica estabelecida, tanto no sentido econômico, quanto no histórico e no literário (VICENTINI, 1997, p. 53).

Destarte, fica definida a proposta para os escritores nacionalistas, que, com

seus diversos temas, puderam fazer do Brasil um país conhecido por todos, o que

só veio a acontecer, quando se formaram grupos nacionalistas modernistas.

Podemos entender essa proposta na literatura mato-grossense que faz, em sua

produção literária, um reconhecimento da região, mostrando uma imagem positiva

do seu povo e de sua terra. Afirmamos, ainda, segundo Vicentini:

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Oscilar entre identidades, buscar espaços e tempos que mantêm relações e objetivos diferenciados resultam em oscilações de formas e estilos, num certo desnorteamento entre buscar a forma original, necessária ao tema específico, ou trabalhar com as formas disponíveis, reconhecidas pelo centro (VICENTINI, 1997, p. 69).

Hilda Magalhães, em A História da Literatura de Mato Grosso, nos apresenta

um marco definitivo na historiografia literária de Mato Grosso, realizando um

levantamento da produção literária dos anos 30 aos 90 do século XX, apresentando

autores de reconhecimento e pouco conhecidos, o que faz com que seus estudos

tragam uma contribuição fundamental para a movimentação literária regional,

estabelecendo o passado literário para conseguir o respaldo necessário à trajetória

literária do século XX. A escritora considera mato-grossenses:

Os textos escritos por autores que nasceram em Mato Grosso ou que nele residem ou tenham residido, contribuindo para o enriquecimento da cultura do Estado. Por “Mato-Grosso” entendemos o estado indiviso até a década de 1970, após o que, levamos em conta apenas a unidade do norte, por entendermos que, embora apresentem, em princípio, aspectos semelhantes, a partir da divisão os dois estados tendem a acentuar suas diferenças culturais, apresentando ritmos e traços diferenciados de desenvolvimento (MAGALHÃES, 2001, p.18).

A escritora Hilda Magalhães percorre, um caminho muito importante, a partir

dos registros de Rubens de Mendonça, em sua obra História da literatura mato-

grossense (1970). Essa obra nos situa no caminho necessário para entendermos

como e quando nasceu a literatura no Estado de Mato Grosso. Ressalta ela:

O historiador compila, desde a ata fundação de Cuiabá, lavrada por Barbosa de Sá, nos idos de 1719, até os autores contemporâneos do autor. È ele quem nos apresenta o ciclo cronístico mato-grossense no Brasil colônia. Do mesmo modo, por seu intermédio, temos acesso a um minucioso relato das obras deixadas pelas expedições cientificas enviadas por marquês de Pombal e Castro.(MAGALHAES, 2005, p.205).

Rubens de Mendonça afirma que o primeiro documento escrito em língua

portuguesa “nestes confins do Oeste da Pátria foi a ata de 08 de Abril de 1719, e

o livro foi as Crônicas de Cuiabá, escrita em 1765 de Barbosa de Sá”

(MEDONÇA, 1970, p.9). Adiante, o autor Carlos Gomes de Carvalho em seu

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livro A Poesia de Mato Grosso, tendo a obra de Rubens de Mendonça também

como esteio para sua pesquisa, nos confirma:

Se tomarmos a literatura como parte de uma expressão mais ampla da cultura, isto é como a manifestação compreensível que o homem faz através da linguagem para se tornar entendível, e não apenas o trabalho esteticamente elaborado, então poderemos considerar o nascimento da literatura em Mato Grosso como sendo a lavratura da “Ata de Fundação do Arraial do Bom Jesus de Cuiabá”, no ano da graça de 1719. Com efeito, no dia 08 de abril desse ano, Paschoal Moreira Cabral e vinte e um outros firmaram em solo do extremo oeste a certidão de batismo de novas terras para o Senhor El Rei de Portugal, embora o fizessem em domínios de Espanha. A partir de então, a característica mais marcante da “produção literária” nestas paragens foi as dos documentos informativos, em forma de atas, crônicas, cartas e relatórios de viagens. Bandeirantes, aventureiros de todas as estirpes em busca de metais preciosos, e, sobre a fauna e a flora desse novo mundo, alimentaram o imaginário e construíram o conhecimento sobre as distantes regiões a Oeste (CARVALHO, 2003 , p.19).

Mendonça enfatiza o nome de José Zeferino Monteiro de Mendonça como o

primeiro poeta local; ele deixou várias poesias escritas e, apesar de não ter deixado

nenhum livro publicado, teve uma participação cultural significativa dentro de Mato

Grosso, no século XIX. A obra de Mendonça é de extrema importância, quando

pensamos na questão regionalista mato-grossense, pois nela encontramos o

respaldo teórico fundamental para a construção da presente pesquisa.

Mato Grosso foi também marcado pelo teatro, devido à descoberta aurífera

na região pelos bandeirantes paulistas; com isso, a população urbana se torna

mesclada e superlotada, dando lugar a muitas festas e à produção teatral que

seguiu-se pelo século XVIII e XIX. Encontramos relatos que nos confirmam essa

atividade, nos estudos de Povoas, na obra História da Cultura Mato Grossense.

Tanto Hilda Magalhães quanto Carlos Gomes, em seus estudos, destacam a

importância que teve o teatro para a região, o que nos leva à conclusão de que a

região tem uma história cultural muito rica e repleta de fatos marcantes que são

necessários para entendermos o inicio da literatura mato-grossense.

Ainda, nos estudos de Hilda Magalhães, é necessário enfatizarmos, entre os

grandes nomes de escritores mato-grossenses do século XX, o de Dom Aquino que,

de acordo com a autora, sofreu influências na primeira fase (1917), das

características romântico-parnasianas.

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Dom Aquino Corrêa é o nome que mais enaltece a literatura mato-

grossense; com sua poesia patriota enriqueceu a cultura de Mato Grosso. Bispo,

governador do Estado e único poeta mato-grossense a fazer parte da academia

de Letras. O poeta é considerado parnasiano, por prezar a forma, em seus

poemas; encontraremos em sua temática o caráter religioso e a exaltação da

terra e, nela, ainda, presenciamos a poesia romântica em suas odes de

idealização da terra. Padre Raimundo Pombo definiu-o:

Os versos desse poeta mimoso ostentam um sincretismo todo original. São clássicos pela perfeição da forma e apurada correção da linguagem; são românticos pela liberdade da inspiração; são parnasianos, pela hierática solenidade escultural dos seus poemas, do ponto de vista da técnica, e finalmente são místicos, pela natureza religiosa da maior parte dos seus motivos. (POMBO Apud MAGALHAES, 2001, p.49).

Falar do regionalismo mato-grossense é lembrar sempre o nome de Dom

Aquino, não só pela sua escrita patriótica e religiosa, mas porque marcou com seu

poder a literatura e a cultura cuiabana. O poeta teve uma grande influência na vida

de Arlinda Morbeck, foi seu amigo e a incentivou para que publicasse seus poemas;

adiante, no estudo de sua temática, reconheceremos traços da escrita aquineana.

Mário Cezar Silva Leite, na obra Mapas da Mina: Estudos de Literatura em

Mato Grosso, afirma que o regionalismo em Mato Grosso se divide em dois

movimentos:

Primeiro movimento, em torno de figuras emblemáticas da região/regionalismo e em torno de temas e tratamentos, também emblemáticos, como se viu, engendrados pelas figuras emblemáticas. Muito do discurso regionalista contemporâneo na literatura, na música regional, nas propagandas da mídia ou do estado é devedor, consciente ou não, de um discurso e de um Mato Grosso elaborado pelos autores desse sistema. O segundo movimento dá-se na tentativa- efetivamente realizada- da constituição de um novo, outro, padrão literário, mas também assentado e reconhecido como legitimamente mato-grossense. De modo geral, é bom que esses movimentos não só são convergentes, no sentido em que buscam o re-conhecimento dentro do quadro literário-identitário instituído, como são criadores desse quadro e de suas variações. Não se pode perder de vista que se trata de um campo de lutas entre grupos, forças literárias, culturais e sociais que tentam não apenas se sobrepor uns aos outros, mas fundamentalmente tornarem-se hegemônicos - assumirem na totalidade o estatuto de verdadeiros, legítimos e únicos

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representantes de uma cultura local. Assim o jogo amplo entre o que inventamos que somos e o que inventamos que queremos ser está posto na essência da produção literária chamada regional e no embate das forças para sua legitimação. Trata-se, nos vários aspectos, de uma literatura que é reconhecida e se reconhece enquanto mato-grossense, ou de Mato Grosso, e se identifica como um dos elementos definidores de uma região. “O que não se pode esquecer é que a região, as identidades e a cultura estão sempre no fluxo de criação, elaboração e disputa” (LEITE, 2005, p.253).

Para o crítico, pensar em regionalismo é, antes de tudo, constituir as

produções literárias regionais, como sistema, entendendo, assim, sistema, a partir

da definição de Antonio Candido. Mário Cezar afirma que, em Mato Grosso, o

sistema organiza-se em torno do discurso regionalista e, por isso, para pensar esse

sistema, não se pode deixar de citar as figuras emblemáticas, segundo ele, os

escritores Dom Aquino e José de Mesquita, que são considerados os fundadores do

regionalismo local. Escritores, como Arlinda Morbeck, contribuíram para esse “fluxo

de criação e elaboração” das produções do século XX da região mato-grossense;

por mais que sua escrita não apresente uma identidade mato-grossense, não fale

dos rincões desta região, é necessário um reconhecimento de escrita feminina

poética autobiográfica que tratou de temas universais, como o amor, o ódio, as

angústias, a solidão.

Complementando o regionalismo mato-grossense, Hilda Magalhães

considera:

Ao analisarmos a literatura de Mato Grosso não estaremos interessados em achar um fio condutor que caracterize a produção literária rumo a uma situação literária ideal, mas sim a sua variedade no tempo e no espaço, enquanto manifestações de formas diferenciadas de percepção do universo, estética e culturalmente (MAGALHÃES, 2001, p.17).

Contudo, ao pensarmos na concretização do regionalismo mato-grossense já

organizado por seu grupo de poetas e escritores, encontramos lacunas nos estudos

literários, que esperam e necessitam de iniciativas para serem supridas. Rubens de

Mendonça antecipou essa preocupação, com o resgate das obras e registros de

autores, para que não sejam relegados ao esquecimento:

Apesar de ser fato incontestável, não podemos nada adiantar sobre essa amarga ocorrência, vez que a humanidade é inconstante mesmo em vida, quanto mais post-mortem. Há todavia um consolo para os que

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ficam e vêm depois... Os admiradores sinceros, embora que bem poucos estes nunca esquecem os seus ídolos, nunca o abandonam. Os de sua época que o leram nele viram cultura e primor de estilo, trabalharão para que os provindouros o conheça (sic) melhor e mais profundamente, prestando-lhe homenagens, das quais são merecedores e formando ao lado dos que brilharam com rara intensidade, dos que souberam viver, ofertando páginas evocadoras do mundo, reflexos da vida, vida que não passa, enfrenta o tempo e este escoa-se nos dias que ficam na poeira das estradas percorridas. Nem sempre uma valor à margem, desconhecido dos coevos, e inteiramente olvidado. Aqueles que souberam se impor, galgaram as montanhas e, no ápice delas, deixaram inscritos nomes, como santos, deuses, poetas, espíritos imortais e notáveis, estes serão, em certas épocas, por vezes abandonados pela força do tempo que corre, mas nunca esquecidos, por que eles deixaram a obra que perdura como mármore empedernido que não corrói, não se gasta, não se estraga jamais. E quando os nomes entram na penumbra do abandono, voltam à superfície as suas obras, que os tornam vivos, redivivos como outrora, Tornam-se contemporâneos, porque as sua páginas possuem vivacidade e brilho, e esses elementos que entram nessa composição são como essências finais que não perdem o aroma, ficando mais fortes e mais apreciadas, cada vez que se abre o vidro. Assim são os livros (MENDONÇA, 2005, p. 220).

A obra História da Literatura Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça, é

indispensável para os estudos de literatura e crítica mato-grossenses, pois não só

ressalta a importância de uma memória literária, para que não seja perdida no

tempo, como a apresentação de autores cujos escritos mostram a qualidade e

condições diante da literatura nacional. Rubens de Mendonça abre caminho para

que as lacunas da história e da literatura mato-grossense sejam preenchidas por

novas pesquisas.

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CAPÍTULO II

O QUE É POESIA

A poesia é uma forma especial da linguagem.

Quando o coração sente a si mesmo...

Nasce a poesia.

Octávio Paz

O presente estudo reflete sobre a poesia. Especificamente, a Poética de

Arlinda Morbeck. A principal e intrigante pergunta: O que é Poesia? Muitas são

as respostas entendidas por diversos estudiosos. Seguimos com algumas:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, dialogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero […]. Obediência ás regras; criação de outras. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. […] O poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. (PAZ, 1982, p.15).

Octavio Paz definiu Poesia como uma arte que transforma, liberta e revela

o mundo, porém cria suas regras e obediências a outras. Para Ezra Pound

(1990, p. 40), “Literatura é linguagem carregada de significado […] A Grande

Literatura é simplesmente linguagem carregada de significados até o máximo

grau possível. Começo com a poesia porque é a forma mais condensada de

expressão verbal”.

Ainda em Pound, Basil Bunting, poeta inglês, ao folhear um dicionário

alemão-italiano, descobriu que a ideia de poesia, como concentração, é quase

tão velha como a linha germânica. O verbo alemão “Dichten” corresponde ao

substantivo “Dichtung”, significando poesia, traduzido pelo verbo italiano significa

“condensar”.

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Nossa linguagem foi herdada como nossa etnia a deixou. A palavra contém

significados que “estão na pele da raça”, como se fossem “nascidas do seu bico”, de

acordo com Pound. Por isso o escritor escolhe as palavras, “como o ourives o faz ao

criar jóias”.

Encontramos três modalidades de poesia:

1- Melopeia: as palavras são concentradas de propriedades musicais (ritmo,

som), seguem seu significado sem deixar “marcas ou falhas”, como a arte

dos trovadores Homero e outros poetas provençais, em que a poesia era

composta de seis estrofes econsiderada “arte total”.

2- Fanopeia: a imagem sobre a imaginação visual; devido ao ideograma os

chineses conseguiram atingir a fanopeia.

3- Logopeia: não se manifesta na música ou plástica, e, sim, nas

manifestações verbais.

De acordo com Pound, na obra ABC da Literatura (1990), no poema, esses

três níveis poéticos entrelaçam-se. O primeiro, ligado à parte sonora do poema,

recursos melódicos que se aproximam da música e da dança (rimas, assonâncias,

metrificação). Pound cita como exemplo as poesias trovadorescas.

A fanopeia refere-se às imagens propostas pelas palavras, como verificamos

na poesia visual, em que há uma aproximação da letra e das artes plásticas. Para

Pound o “máximo” da fanopeia é alcançado pelos chineses, pelo tipo particular de

sua linguagem escrita.

Em último, a logopeia que remete à realização das associações emocionais

ou intelectuais que permanecem na “consciência do receptor em relação às palavras

ou grupos de palavras efetivamente empregados” (POUND, 1990, p.60).

Para acrescentarmos o que é poesia recorremos também aos estudos de

Hênio Tavares que afirma serem várias as definições e ressalta:

Se cada escola literária tem uma concepção de realidade estética, se cada artista também pode ter sua própria concepção, compreende-se desde logo não ser possível uniformizar um conceito para a Poesia. Etimologicamente, do grego “poíseis”, significa ato de fazer algo; portanto, implica a idéia de ação, de criação. E este é o seu sentido mais vasto. Mas fazer ou criar como, e com que objetivo? Aqui é que há divergência entre artistas e também entre os críticos. A distinção que se fazia tomando-se em consideração apenas o aspecto exterior e formal para contrastá-la com a prosa, já não

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satisfaz; serviria para diferenciar prosa de verso, pois pode haver poesia na prosa, como também haverá verso sem poesia (TAVARES,1981,.162).

O autor continua citando definições de grandes nomes da literatura e

afirma que, dentro da nossa tradição, dizemos que poesia é lírica ou emotiva, e

que poema é prosa ou prosa poética. Podemos também afirmar que a poesia é

potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da linguagem, o

artista realiza o poder mágico por meio das palavras, como mediação,

comunicação e exercício de construção de sentidos.

Além das definições de Poesia aqui abordadas, outra interrogação é

inevitável: a figura do Poeta, por ser essa a que completa o sentido de poesia.

Na obra Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define poesia como:

“amor, estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida” (1998, p. 59).

Ela é repleta de manifestação com possibilidades infinitas da indeterminação

humana. Já a criação poética tem poder sobre os conceitos analógicos e

mágicos do mundo e é capaz de despertar as forças adormecidas do espírito,

para reencontrar os mitos esquecidos.

Nessa perspectiva, a poesia não é entendida apenas como um modo de

“expressão literária”, mas um “estado segundo” vivido pelo poeta e que deriva da

participação, da exaltação, da embriaguez e, acima de tudo, “do amor, que

contém em si todas as expressões desse estado segundo. A poesia é liberada do

mito e da razão, mas contém em si sua união” (MORIN, 1998, p. 9). Essas forças

conseguem realizar uma grande transformação vital, ou seja, o amor se liga à

“poesia da vida”. Morin complementa:

A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e poesia. Podemos chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são necessárias à existência. E de poesia aquilo que nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor (MORIN, 1998, 59-60).

Em relação à figura do poeta, Morin (1998, p. 158) destaca que ele é portador

de uma competência plena, “multidimensional”, pois sua mensagem poética tem a

capacidade de reanimar a “generalidade adormecida”, ao mesmo tempo em que

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“reivindica uma harmonia profunda, nova, uma relação verdadeira entre o homem e

o mundo”.

Para Octavio Paz, poesia é a “outra voz”, por ser “ a voz das paixões e das

visões, é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade

e sem datas” (PAZ,1993, p.140). A poesia é memória e o poeta é entendido como

um “rio de tradição”, porque fala pelos seus povos por meio da memória. O poeta

tem como tarefa ser o elo entre passado e presente, entretanto, no século XX, ele

“descobre que esta ponte está suspensa entre dois abismos: o do passado que se

afasta e do futuro que se arrebenta. O poeta se sente perdido no tempo” (PAZ,

1982, p.69).

A função do tempo é vista pelo autor como uma função essencial para a

estruturação de imagens. O tempo é uma direção para o homem, pois seus atos e

palavras são feitos de tempo. Na poesia encontramos o tempo revelado, o poeta,

quando diz “o que diz tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o

transcorrer, e ainda, torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991,p.98).

A linguagem poética é diálogo social porque envolve tanto quem fala quanto

quem ouve. O poeta utiliza as palavras de “todos os dias” que fazem parte de nosso

ser, quer dizer, “são nosso próprio ser. E por fazerem parte de nós, são alheias, são

dos outros: são uma das formas de nossa ‘outridade’ constitutiva. [...] A palavra

poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na

realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele

mesmo e o outro” (PAZ, 1982, p. 217).

A poesia é uma forma especial de linguagem, mais dirigida à imaginação e à

sensibilidade. Em vez de comunicar, principalmente informações, a poesia transmite,

sobretudo, emoções. É uma das mais antigas e importantes formas literárias. Ainda

em Paz:

Conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração. Súplica ao vazio, diálogo com ausência. Oração, presença, conjura, magia. Experiência, sentimento, emoção. Arte de falar em forma superior. Loucura, êxtase, nostalgia, confissão, visão, música, símbolo. (PAZ, 1982, p. 15).

Enfim, por meio da poesia o homem é capaz de sentir seu coração exaltar-se,

dando sentido à vida, criando desventuras e alegrias. A poesia nem sempre é

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inerente ao ser humano, às vezes, é preciso trazer à tona o que há de mais poético,

transcender as fronteiras do inconsciente e atingir o estado poético. O poeta é este

ser que não se limita às coisas que podem ser vistas, ele as sente, e para expressá-

las, sugere sons, imagens, movimentos.

Octavio Paz, em sua obra Signos em Rotação (1972), ao conceituar o fazer

poético, diz que o poema pertence a um tempo e lugar (histórico) e no mesmo

instante é capaz de transcender essa condição e superá-la: “O poema é tempo

arquetípico: e por sê-lo, é tempo que se encarna na experiência concreta de um

povo, um grupo ou uma seita” (PAZ, 1972,p 54). A contradição, que é essência do

poema, ao se encarnar, mostra-se histórica; no mesmo instante em que se

apresenta, uma nova leitura atualiza-se e projeta-se como futuro.

O poeta jamais consegue fugir da história mesmo que sua escrita componha

algo diverso dela; as palavras são históricas e sociais. A poética revela e consagra a

experiência humana (PAZ, p.55), por a poesia ser imagem. A poética, quando

composta, revela uma imagem, o isto e o aquilo. Diz o indizível:

O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas ao falar-nos de todos estes sucessos, sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de nós e em nós. E mais ainda: leva-nos a repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, revela-nos o que somos. (PAZ,1972: 57).

Ao abordamos a condição histórica do poeta e o conceito de imagem na obra

de Octávio Paz, buscamos uma leitura sobre o texto poético e a questão da literatura

confessional feminina, um conceito ainda em construção. Se a poesia é a expressão

de um eu lírico que expressa a visão de uma realidade, um sujeito que fala do

mundo, tal aproximação abre a possibilidade de entendermos a necessidade da

distinção de uma produção poética que quer ser reconhecida como feminina.

II.1 ESCRITA FEMININA- AUTOBIOGRAFIA

A literatura de cunho confessional, subjetivo e intimista é aquela que mais se

aproxima do leitor, por estar centrada no sujeito que fala, no Eu que desnuda a

própria vida, e se revela, estabelecendo um elo perfeito entre autor e leitor.

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As narrativas de introspecção são compostas por diferentes gêneros:

autobiografias, biografias, diário intimo, ficção e autoficção. O melhor introspectivo

pode ser feito pelo próprio autor, de suas experiências vividas, e encontraremos que

quem narra é o mesmo que age, e pode-se narrar tanto em primeira quanto em

terceira pessoa.

O homem, desde os tempos imemoriais, tenta representar sua realidade

talvez com o intuito de perpetuar e deixar sua marca na existência. Essa

necessidade de expressão não é entendida como moderna, mas como inerente ao

ser humano. Por meio da literatura, o gênero autobiográfico torna-se mais forte e

nasce com o desejo de retratar na escrita a essência humana.

Essa busca do “eu” surge já na antiguidade, com a busca pela sabedoria

que se encontra nos textos de Platão e que podemos resumir na famosa frase de

Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. Sheila Dias Maciel (2004, p. 58) afirma “o

instituto autobiográfico é tão antigo quanto a escrita, ou melhor, é tão antigo

quanto o desejo humano de registrar suas vivências”.

Embora a literatura intimista tenha ocorrido no século XVIII, seu despontar

aconteceu no início do século XX, pelo grande número de leitores interessados

em desvendar os segredos do autor que coloca sua vida exposta pela escrita

confessional.

Na década de 70, do século XX, os primeiros anos do movimento feminista, a

história da mulher ganhou uma atenção maior dos pesquisadores cujo interesse era

a descoberta dos mistérios do universo autobiográfico. A vida dessas mulheres, que

por tempo viveram enclausuradas, afastadas da vida pública, se torna uma fonte de

informações que revelam sentimentos vividos pela frustração dessa época.

A autobiografia traz consigo experiências concretas e registros de uma

realidade pessoal. A escrita do eu está associada a fatos históricos e políticos,

por isso, trazem consigo informações muitas vezes preciosas que contribuem

para mudanças políticas e sociais.

A obra A Crítica literária no Século XX, de Jean- Yses Tadié (1992) nos

serve de respaldo para direcionarmos os passos seguintes de nosso estudo. A

escrita de Arlinda Morbeck evidencia um tom confessional de uma alma feminina

que relata, em seus poemas, de forma livre, os acontecimentos de sua vida,

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deixando aos que leem a sensação de estar diante de um diário escrito em

versos e rimas, pois segundo Tadié:

A obra autobiográfica, determina a afirmação de um sujeito, de um eu

feminino: poesia lírica, cartas, diário, romance, romance por cartas. Certos

temas, ao contrário, serão tratados de passagem:

[...] a glória, a guerra, o poder”, enquanto os domínios do imaginário, do poético, do fantástico, do gótico atraem as mulheres-e também o romance policial. A literatura feminina reconstitui, com freqüência, o mundo da infância, da mãe, no qual ela realiza seus desejos [...] O próprio estilo é mais livre, mais “oral”, mais lento, mais sensível ao tempo puro. A escrita feminina é, portanto, uma escrita do Interior: corpo, casa, segundo o ciclo do eterno retorno (TADIÉ,1992, p.270).

Ainda nos estudos de Tadié encontraremos o enfoque sobre a

autobiografia. Como sabemos, a palavra autobiografia é um composto de três

termos gregos: autos que significa “próprios”, “de si mesmo”; bíos: “vida” e

gráphein: “escrever”, ou seja , é o autor quem escreve a história de sua própria

vida. A autobiografia só é aceita como literatura, se o autor fizer uso de uma

linguagem poética, utilizando-se de fatos de sua própria vida e trabalhando

sentimentos, ideias e emoções. As obras consideradas autobiográficas

apresentam a forma de confissões, diários, memórias, espitolografia e

autobiografia propriamente dita.

Tadié ressalta Beatrice Didier, em Stendhal Autobiógrafo (1983) no qual

cita como autobiografia: “esse gênero não é, unicamente, a narrativa do passado

de uma vida. Nada impede que se conte sua vida dia a dia. Um ato

autobiográfico ao qual o leitor é solicitado a dar testemunho” (TADIÉ, 1996, p

268).

O termo “autobiografia” aparece na Inglaterra no século XVIII de onde é

importado pela França, no século XIX, e tem como sentido, “vida de um indivíduo

escrita por ele mesmo” e este mesmo sentido permanece até os dias de hoje.

Os estudos de Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (1975), o

consagram um dos melhores especialistas da poética de autobiografia, tanto pela

diversidade de problemas abordados, como pelas ideias originais que dele brotam.

Buscamos nele o respaldo teórico para definirmos a escrita de Arlinda Morbeck, que

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é marcada por uma temática recorrente, em que a escritora se utiliza de fatos de sua

vida pessoal, do mundo a sua volta, como se quisesse fixar sua história de vida em

todos aqueles que dela se apoderam.

A evolução do gênero autobiográfico, segundo Lejeune, pode ser traçada a

partir de Santo Agostinho e continuada por outro escritor africano, Wole Soyinka.

Para alguns críticos não só houve uma evolução da forma religiosa para a secular,

como, inclusive, poética, conforme observamos em T. S. Eliot, em sua

“autobiográfica poética”.

O estudo da autobiografia é complexo e foi a preocupação de muitos teóricos,

principalmente nos dias atuais, em que a autobiografia tem crescido em número

considerável. A literatura confessional define-se no século XVIII com a ascensão da

burguesia, quando o homem ocidental adquire consciência de sua existência e,

então, essa literatura alcança uma função cultural. O homem passa a se

compreender como centro do espaço em que está inserido e volta-se para si

mesmo.

Ainda Lejeune, estudou o percurso histórico da autobiografia, na França, e

analisou textos confessionais ou íntimos, alcançando a formulação de princípios

fundamentais do gênero autobiográfico; preocupou-se em estabelecer a diferença

entre romance autobiográfico e autobiografia, considerando diferentes níveis de

identidades entre autor-narrador-personagem. O autor estabelece categorias

diferentes: formas de linguagem (narração), tema (a vida individual), situação do

autor (identidade do autor como pessoal e narrador). Com essas categorias

estabelecidas Lejeune coloca em dúvida a autenticidade da pessoa gramatical, pois

para ele nem sempre a afirmação da identidade indica a autenticidade do narrado.

A delimitação de Lejeune entre romance autobiográfico e autobiografia, sendo

esta última considerada também como um ato literário, torna frágil e difícil, na

literatura confessional, delimitar as fronteiras entre autobiografia e diário íntimo,

entre memórias, poema autobiográfico e autor-retrato. O autor alerta ser difícil, mas

não impossível realizar essa diferenciação, com base em evidências textuais

internas.

Segundo Lejeune, a autobiografia pode ser definida como: “Relato

retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo

ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”

(LEJEUNE, 1975 p. 41).

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Segundo o autor, a identidade pré-textual é condição fundamental para a

autobiografia. Por isso, o leitor até pode questionar a veracidade dos fatos, mas não

a identidade do autor. A escrita confessional busca por meio dos relatos íntimos

resgatar, nos instantes da escrita um tempo perdido, portanto, convém ressaltar que

os escritos do eu não são capazes de englobar a complexidade da teia da existência

humana.

O autor da autobiografia possui a liberdade linguística e formal; cabe a ele a

decisão sobre sua escrita, se será guiada por um calendário, como um diário, ou se

irá fazer menção ao passado e usar a memória para trazer à tona fatos recorrentes

do passado. De acordo com Viana:

A autobiografia, entendida como narrativa em que o autor, narrador e personagem são figuras coincidentes, não é certamente um gênero uniforme, sujeito a regras fixas. [...] O estilo ou a forma da narrativa autobiográfica pode se definir como a maneira própria década autobiógrafo satisfazer as condições de ordem ética e relacional, que só exigem a narração verídica de uma vida. Assim, a escolha da modalidade de escrita, bem como o tom, o ritmo e a extensão, ficam sob inteiro encargo do escritor. Se o enunciado na obra autobiográfica tem como obrigatoriedade a referência ao passado, seja ele remoto (memórias) ou próximo (diários), o estilo, a forma de enunciação, em contra partida está ligado ao presente do ato da

escrita. (1995, p.14-15).

É essa liberdade lingüística que faz com que o discurso da memória

abarque algumas problematizações; ao retornar ao passado por caminhos

diversos o autor não tem consigo uma fórmula que o ajude no desencadear das

lembranças, por ser este um processo pessoal. Podemos observar que Arlinda

Morbeck recupera seu percurso existencial por um procedimento pessoal,

singular. Podemos afirmar que o autobiográfico é historiador de si mesmo, o que

pode abarcar problemas na escrita; um distanciamento temporal pode não tornar

o relato tal como ele se deu; por isso, o autor utiliza-se, muitas vezes, da

imaginação para amenizar as lacunas causadas pelo tempo (memória

fragmentada).

Outro ponto a ser considerado é a reconstrução da vida na autobiografia que

sempre se dará por uma construção discursiva; o próprio autor plasma sua figura no

papel. Não encontraremos o autor em sua totalidade, visto que no papel temos

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apenas uma face do sujeito, face esta escolhida por ele para se eternizar na escrita.

Falar de si mesmo é dar liberdade de selecionar alguns fatos e descartar outros,

construindo a imagem que deseja.

As memórias, são, portanto, a busca do passado, no momento presente.

Construída, a partir de suas necessidades, sobre fatos comprovados, mas antes

de tudo, a melhor forma de passar a limpo o passado. Interessa ressaltar que a

memória oferece uma infinita possibilidade para que o sujeito revisite sua própria

história, na fase madura, fazendo com que uma lembrança traga outra. O escritor

tem consciência da tarefa que realiza, ou seja, no seu íntimo sabe que está

escrevendo uma autobiografia, por isso, no limite do relato, ele escolhe o que

realmente deseja que perpetue em sua escrita, não registrando determinadas

lembranças que possam distorcer a imagem desejada, e, até mesmo, estende a

escrita infinitamente.

Para Philippe Lejeune a definição total de autobiografia seria um fracasso,

ele afirma: “A autobiografia se define a esse nível global: é um modo de leitura

tanto como um tipo de escritura, é um efeito contratual que varia historicamente”

(LEJEUNE, 2008, p. 60). O autor aponta para a relatividade que existe nessa

definição, e ressalta que seus estudos a respeito são apenas um documento (de

estudo) e não cientifico. Ressalta os pontos positivos que a escrita autobiográfica

traz como gênero contratual, pelo qual pode ir além das estruturas textuais

colocando em questão as posições do autor e do leitor.

O interesse que o pesquisador tem pela autobiografia feminina brasileira,

foi discutido por Maria José Mota Vianna (1995), que também aponta para a

relação que existe entre escrita e poder, ressaltando a importância de quem não

escreveu, ou não publicou o que escreveu. São livros de difícil circulação; além

de poucos; a circulação foi restrita, outros, estão perdidos com receitas de

culinárias, ladainhas, orações, poemas, cadernos de pensamento, e

permanecem abandonados em alguma gaveta. Essas escritas se aproximam de

uma realidade, do papel social, do imaginário e vivência que podem guardar

fatos históricos e políticos, além de demonstrar os sentimentos guardados de

uma mulher diante de determinadas realidades. Muitos desses escritos se

perdem pelo tempo, privando os pesquisadores.

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A matéria poética de Arlinda Morbeck está calcada na teoria

autobiográfica, como veremos no capítulo Rumores, Romeiros Sertões, cujos

ingredientes foram recolhidos do seu cotidiano, que vai se configurando no

recordar. Esse ato de rememorar é uma atitude de transcender o tempo, uma

necessidade de fixar a essência do que passou e reexperimentar as sensações,

dispondo de uma liberdade plena para manipular suas lembranças, tornando sua

poesia mais lúcida, na medida em que mais penetra nas fontes da memória

transformando os diferentes níveis de tempo em um único. Recordar é a trilha

lírica da memória; na escrita de Arlinda encontramos uma memória referenciada

do vivido.

II.2 A MULHER NA ESCRITA LITERÁRIA

[..]. um texto descoberto em um arquivo empoeirado

não será bom e interessante, só porque foi escrito por

uma mulher. É bom e interessante porque nos permite

chegar a novas conclusões sobre a tradição literária

das mulheres, saber mais sobre como as mulheres

desde sempre enfrentaram seus temores, desejos e

fantasias e também as estratégias que adotaram para

se expressarem publicamente, apesar de seu

confinamento ao pessoal e ao privado.

Sigrid Weigel

Na indagação sobre a escrita feminina, constatamos nos livros de história da

literatura sua ausência no meio literário. Virginia Woolf propõe em seus estudos uma

reflexão sobre tal escrita, mais propriamente, a reflexão sobre o que as mulheres

escrevem, e a possibilidade de semelhança entre as suas produções. Como

sabemos, foi por volta do século XVIII que as mulheres entraram em cena no mundo

literário; antes, já existia uma escrita, não com tanta visibilidade, como nessa época,

uma mudança tão brusca que, segundo Virginia Woolf, foi mais importante que as

Cruzadas e ainda ressalta:

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As mulheres começam a respeitar seu próprio sentido dos valores. E por esta razão que a substância de seus romances começa a mostrar certas mudanças. Parece que as mulheres que escrevem estão menos interessadas por si próprias e mais pelas outras mulheres. No inicio do século XIX os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Uma das razões que as impulsionava era o desejo de descrever seu próprio sofrimento, de defender uma causa própria. Agora que este desejo não é mais tão imperioso, as mulheres começam a explorar o mundo das mulheres, a escrever sobre as mulheres como nunca se escreveu antes; pois, até época recente, as mulheres na literatura eram, certamente, uma criação dos homens (WOLLF, 1996,p.43).

Não só tivemos, com a presença das mulheres, uma produção literária,

como também essa presença provocou consequências de ordem política, cultural

e econômica. Então, passamos a não só ter mulheres que liam e compravam

romances, como também as que os produziam, e esse comércio intensificou-se a

partir do século XX; se, antes, tínhamos produções literárias, de cunho

masculino, agora, a literatura estava em um novo processo de “feminização”.

Torna-se, então, a literatura o principal lugar em que se manifestam as

mais diversas interpretações de mundo feitas pelas mulheres, e, de acordo com

Nelly Novaes Coelho (2004), percebemos o crescente amadurecimento da

consciência crítica: de uma literatura lírico-sentimental, cujos valores se

pautavam nos padrões impostos pela sociedade cristã/patriarcal, vistos como

únicos e absolutos (ingenuidade, submissão, castidade e descrição); a mulher

chega a uma literatura ético-existencial que expressa o rompimento de sua

imagem padrão (esposa/cortesã, anjo/demônio etc.). A mulher não opta por um

apenas desses comportamentos, mas, sim, assume ambos e revela a

ambiguidade,que é inerente ao ser humano. Encontramos uma mulher em busca

de uma nova imagem o que lhe permite identificar-se com segurança.

Perpassando o silêncio a que a mulher havia sido condenada, ela passa a

fazer presença no mundo literário; é pela escrita de poesias que ela se liberta e

se torna digna de respeito e faz dessa escrita uma profissão e, quando não,

como uma superação da sujeição no espaço em que somente o homem era o

dominador. Encontramos textos construídos, a partir de suas experiências, em

contextualização com o universo; a mulher passa a ser sujeito de sua

experiência, ou seja, de sua palavra, uma vez que essa mesma palavra esteve

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relegada à autoria masculina; “a sociedade não reconhecia na mulher outras

aptidões a não ser a maternidade e a da senhora do lar” (STEIN,1984,p.22).

Ainda em Virgínia Woolf, encontramos: “Vocês ganharam seu próprio

espaço na casa até agora possuída exclusivamente por homens” (WOOLF, 1996,

p.50). A autora se dirigia às mulheres que se preparavam para o mercado de

trabalho, pois surge uma preocupação com o trabalho de mulheres escritoras;

em relação a isso, a própria autora diz: “Minha profissão é a literatura, e nessa

profissão há menos experiências de mulheres do que em qualquer outra, com

exceção da arte dramática - menos quero dizer que são peculiares às mulheres”

(WOOLF,1996,p.41). Assim, a autora deixa clara a dificuldade do mercado de

trabalho feminino, que, apesar de muito ter se evoluído, ainda havia muito para

ser conquistado.

Norma Telles, em seu artigo Escritoras, escritas e escrituras, afirma que:

As mulheres excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos, de assegurarem dignamente sua própria sobrevivência, e até mesmo impedidas do acesso a educação superior, as mulheres no seculo XIX ficavam trancadas, fechadas dentro de casa ou sobrados, mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos e senhores. Além disso, estavam enredadas e constritas pelos enredos da arte e ficção masculina. Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a autora. As representações literárias não são neutras, são encarnações “textuais” da cultura que as gera (TELLES, 2008, p.408).

Trancadas, as mulheres permanecem em seus casulos. A literatura

feminina do século XIX retrata não a questão de nação, mas a condição

vivenciada pela mulher, e foi por todo o contexto histórico dessa época que a

mulher brasileira não acompanhou as transformações sociais e culturais,

principalmente no âmbito educacional.

Lygia Fagundes Telles apresenta uma visão sobre a escrita feminina, a partir

de suas condições femininas e culturais. A autora cita entre as características

predominantes na sua escrita, o seu tom confessional, na maioria das escritoras, em

que o dia a dia, os anseios, a realidade e os desejos são universo particular de suas

vidas e de suas obras; encontramos, portanto, uma mulher de escrita sobre mulher e

para mulher. Por isso, cartas, diários, crônicas são o espaço de manifestação único

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dessas mulheres, que vão, assim, rompendo com a sociedade em que estão

inseridas e, antes de tudo, consigo mesmas. A mulher reaprende a viver, pois,

“excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas a

autoridade masculina” (TELLES, 2008, p.408).

A autora cita a condição da mulher brasileira e não sua escrita, reforçando

sempre a questão da educação feminina muito precária. No início do século XIX, a

maioria das mulheres eram iletradas, o que comprova o silêncio e a ausência de

vozes femininas na literatura. Quando encontramos essa mulher escritora, temos o

reconhecimento do predomínio de uma voz masculina, e isso ocorreu pelo fato de

que a temática feminina ainda estava voltada para questões íntimas e não para

temas políticos e históricos, como era esperado, o que fez da produção feminina

pouco relevante. Adverte Telles:

O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em ações políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações das mulheres armadas, em geral, denunciam incapacidade feminina para a luta, física ou mental, donde concluem que as mulheres são incapazes para a política, ou que esse tipo de idéia é apenas diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair (TELLES, 2008,p.406).

Nelly Novaes Coelho ressalta a questão de toda a diferença na escrita

feminina em relação à masculina:

A primeira, sendo de estrutura forte, criativa e agressiva, evidentemente construiria uma arte idêntica à sua natureza viril; enquanto a segunda, sendo sensível, frágil, psicologicamente sutil, efetiva, ingênua, etc., criaria também uma arte delicada e frágil (...) Não é possível pensarmos em criação artística e literária em sua verdade maior sem pensarmos na cultura em que ela está imersa. È através desta perspctiva que, sem dúvida, podemos falar em uma literatura feminina e em uma literatura masculina, pois as coordenadas do sistema sociocultural ainda vigente estabelecem profundas diferenças entre o ser-homem e o ser-mulher. (COELHO, 1993, p.14-15).

Podemos entender, nas palavras de Coelho, esta divisão existente entre a

escrita feminina e a masculina, que se tornou uma questão de ordem cultural e

social estabelecida desde a sociedade patriarcal. Sabemos da existência de uma

linha crítica que não estabelece essa divisão na escrita, ou seja, para a escrita não

existe sexo.

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E é na escrita feminina do século XIX que percebemos a posição crítica em

relação à posição delas mesmas, como mulheres, no meio social e cultural em que

estão inseridas. Mesmo tendo uma restrição no ambiente em que vivem, de uma

forma estratégica, apontam seus trabalhos, os desejos e anseios de suas vidas. A

literatura feminina vai ganhando força em salões literários onde encontramos as

mulheres declamadoras de seus textos, e, aos poucos, essa escrita deixa as

paredes dos salões, para o momento íntimo da criação, possibilitando-nos o

encontro com o teor confessional e de autorreferência.

Apesar de as mulheres escritoras dessa época saberem de suas posições,

como tal, havia ainda a questão do cânone, que, para ser alcançado, era necessário

que se adequassem aos preceitos masculinos, e estes estavam ligados aos modelos

europeus. Por isso, encontraremos na escrita confessional dessas escritoras uma

insatisfação por existir essa dependência . Embora tivessem consciência da situação

do meio literário em que viviam, raramente conseguiam alcançar a própria definição.

O século XIX é historicamente entendido como o da mulher leitora, pois a

mulher consegue ter acesso à escola e, com isso, passa a ler romances e refletir

sobre sua posição na sociedade. E é nesse processo de reflexão que a mulher, em

seus trabalhos, revela sua realidade e desejos, identificando-se, assim, com suas

leitoras, que veem seus anseios e necessidades não só revelados, mas com

possibilidades de ser mudados. A mulher, então, pode revelar-se e buscar sua

própria identidade na sua escrita literária.

A produção literária do século XIX e início do XX não era reconhecida e, sim,

tolerada; as mulheres não eram vistas capazes de escrever, por isso, encontraremos

nas críticas literárias da época um comedimento às escritoras, sendo tratadas com

muito respeito, e quanto aos seus textos, não eram nem mesmo citados como

literários, e sobre eles eram feitos comentários superficiais.

A maior dificuldade que encontramos nesse tipo de resgate documental, é

exatamente pela condição vivida por essas escritoras que não conseguiram o

devido reconhecimento no contexto histórico-literário da época. Não podemos

nos esquecer de que educação feminina foi um dos grandes motivos de não

termos uma construção literária feminina, e isso se refletiu no estético-literário, ou

seja, as mulheres não tinham uma linguagem literária adequada.

Por fim, a escrita feminina era considerada vazia, indiferente, em relação às

obras masculinas, porém venceram todas as críticas, e, hoje, essas mulheres são

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objeto de estudos em todo o país e, a cada resgate dessas escritoras, percebemos

que elas superaram as críticas e conquistaram seu próprio espaço. É necessário

pensarmos que é justamente no momento desse resgate que se faz o

reconhecimento, e é esse reconhecimento que leva à legitimação da sua escrita.

Percebemos que, ao longo da história, a mulher sempre vem se impondo e

ganhando seu espaço, seja por ela mesma, ou por meio de seus pesquisadores.

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CAPÍTULO III

VOZES FEMININAS MATO-GROSSENSES

No tear da memória, encontramos: histórias, amor e poesia, em muitas

vozes femininas, que se cruzam em palavras, tornando-se um só fio condutor,

contemplado na literatura feminina brasileira. Dentro desse enorme tear,

podemos pensar no encantamento das palavras femininas mato-grossenses,

palavras estas estudadas pela autora Yasmin Jamil Nadaf em seus livros: Sob O

Signo de Uma Flor (1993) e Presença Feminina (2004).

A citada autora contribui para a divulgação das poetas mato-grossenses,

facilitando, com isso, o caminho das pesquisas em torno dessas escritoras e

privilegiando as mulheres mato-grossenses e, principalmente, aquelas que se

encontram esquecidas em papéis empoeirados.

Em sua obra Sob o Signo de Uma Flor (1993), a autora faz um

levantamento pelas bibliotecas, jornais e revistas, e, entre eles, encontrou a

revista intitulada “A Violeta”, escrita por um grêmio literário feminino mato-

grossense; surge, então, diante dela, o corpus de sua pesquisa que traz também

consigo um número abrangente de mulheres escritoras.

A autora faz uma classificação da coleta de “A Violeta” em duas partes. A

primeira parte desse estudo relata o surgimento da revista, que se dá a partir do

surgimento do Grêmio Júlia Lopes (1916-1950); podemos com isso compreender

que assuntos eram tematizados por essas mulheres mato-grossenses, em se

tratando da primeira metade do século XX.

A idéia de seu aparecimento surgiu de um grupo de jovens normalistas, da “Escola Normal de Mato Grosso”, ligado a algumas senhoras e senhoritas simpatizantes da cultura, que desejava a instalação de uma agremiação onde pudessem cultivar as “letras femininas e patrícias”, criando para divulgação uma revista bimensal. A agremiação foi fundada em 26 de novembro de 1916 com o nome de Grêmio Literário “Júlia Lopes” e no mês subseqüente `a instalação fez circular o primeiro exemplar de sua revista, A Violeta. (NADAF, 1993, p.23).

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O aparecimento da revista foi reconhecido e divulgado pela imprensa,

inclusive pelo escritor e um dos fundadores da Academia de Letras Mato-

grossense, José de Mesquita. A Violeta tinha um status próprio e, com isso,

conseguiu desencadear muitas lutas para melhorias dentro da capital, Cuiabá-

MT. As conquistas alcançadas surgiram com ajuda financeira de sócias de

diversas profissões. Percebemos a organização que cercava esse grêmio que

visou não só à publicação bimensal da revista, como a atuação feminina na vida

política e social do meio mato-grossense.

A pesquisa da autora evidenciou também que outros grêmios surgiram, a

partir do “Júlia Lopes”, como é ressaltado por ela mesma:

Para ilustrarmos citamos a fundação, em 1925, do Grêmio “Castro Alves”; em 1936, do Grêmio “José de Mesquita”; em 1937, do Grêmio “Álvares de Azevedo”;e, em 1940, do Grêmio “Machado de Assis” e do Grêmio “D. Aquino Corrêa”. Essas entidades se diferenciaram do Grêmio Literário “Júlia Lopes” apenas pela constituição do sexo que as compunha, restrigindo-se a homens e não a mulheres matogrossenses. O grêmio feminino antecedeu, também, a instalação do Instituto Histórico, fundado em Mato Grosso em 08 de abril de 1919 e o Centro de Letras, hoje Academia, cja instalação em Cuiabá data de 07 de setembro de 1921. (NADAF, 1993, p.28).

O estudo da revista perpassa o Nascimento, a Descrição (estrutura-

periodicidade- formato- capa- assinatura –direção –impressão –paginação -seções

publicidade-ilustração), Conteúdo e Colaboração. Entre esses elementos não

podemos deixar de destacar o estilo da revista, pelos temas diversos encontrados

que são marcados pelo movimento literário romântico presente na época.

A começar pelos temas, alguns mais detalhamente descritos no item seguinte, relacionamos: o amor, a pátria, a natureza expressiva, a religião, como fé e valor espiritual, a morte, a noite, o luar, as flores, o desejo de evasão, a valorização da história, do passado nacional e da vida simples, em natureza, o anseio do progresso e a preocupação social. Tudo isso aliado ainda a um estado de espírito ora melancólico e pessimista, ora terno e singelo, e ora ufanista e ousado. Sentimentos idênticos àqueles experimentados pelos nossos expressivos escritores do Romantismo (NADAF, 1993, p.36).

A revista surpreende-nos pelos muitos assuntos tratados; as mulheres, por

estarem presentes em épocas da sociedade mato-grossense em que tudo acontecia

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tardiamente, assim mesmo, conseguiram manter a circulação da revista com maior

durabilidade que qualquer outra.

A segunda parte é composta por um índice temático, ou seja, as divisões

que compunham a revista, entre elas: Educação, Música, Política, Medicina e

Saúde, Sociologia e Femininos e outros.

Essas mulheres romperam com a figura feminina imposta no Brasil,

composto por uma sociedade misógina que, por sua vez, via a figura feminina

apenas como ornamento do lar, seres inferiores, a classe do imbecilitus sexus –

sexo imbecil, pois a produção intelectual era reservada apenas para os homens.

No livro Presença de Mulher (2004), Yasmin apresenta-nos um estudo sobre

as escritoras do século XIX, novamente mulheres mato-grossenses. Yasmin

consegue com esse estudo trazer à luz novas escritoras, novas para o público-leitor

porque, na maioria, são possuidoras de uma vasta produção poética, que muito

enriquece as lacunas de um modo geral da literatura mato-grossense. As produções

poéticas perpassam o século XIX, indo até a segunda metade do século XX.

Nos estudos de Yasmim Jamil Nadaf aqui apresentados, encontramos uma

sustentação indispensável para nossos estudos, portanto, a partir deles, podemos

reafirmar a literatura feminina mato-grossense do séc XIX até a metade do séc XX.

Tivemos contato com nomes já reconhecidos como poetas, e outros ainda à espera

de sua legitimação, o que só ocorrerá com futuras pesquisas, para que, assim, cada

mulher seja colocada diante de um público-leitor, que muito admira a poética

feminina anseia por ela. As palavras da própria autora, antes de qualquer pesquisa,

demonstram a dimensão da importância da literatura feminina:

Ao deixarem de lado a inércia, o tédio e a solidão, adjetivos comumente presentes no cotidiano das mulheres burguesas do Brasil (período colonial até a primeira metade do século XX), e derrubando as barreiras do isolamento geográfico regional, essas mulheres foram úteis a si e à sociedade. Mulheres cujo nome fizemos questão de frisar, mesmo correndo o risco de apresentarmos uma escrita aparentemente reiterativa e monótona, para grava-las de modo justo na história da mulher, e feita por ela. Integrando-se umas às outras, cujo desempenho em grupo até então desconhecemos, criaram, permutaram e praticaram ideologias diversas que certamente abriram caminhos para uma melhor ou mais ampla qualidade e possibilidade de vida pública `a mulher da atualidade (NADAF, 2004 ,p.22).

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Se pensarmos a partir dos estudos da autora, publicados em seu livro

Presença de Mulher, constataremos a significância da presença feminina no meio

poético mato-grossense, ressaltando, assim, a poeta Arlinda Morbeck:

Dentro do contexto literário de Mato Grosso desse período, há que se ressaltar a presença de Arlinda Morbeck. A autora nos deixou centenas de poemas e sonetos, alguns ainda inéditos e outros publicados na imprensa mato-grossense e paulista. O tema preferencial de sua poesia não fugiu à regra adotada pelas demais autoras aqui citadas: apresentou um lirismo amoroso intenso ora realizado e, portanto, feliz, ora angustiado pela ausência temporária do amado ou pelo receio de seu abandono (NADAF, 2004, p.104).

Yasmim Nadaf nos oferece um excelente trabalho em seu livro. Em breves

considerações deixa registrado, junto a outros nomes, o de Arlinda Morbeck, e

ressalta suas produções e sua temática predominante, contribuindo para a nossa

pesquisa que necessita desse tipo de respaldo teórico. Yasmim com essa pesquisa,

registra a literatura feminina de Mato Grosso, deixando em suas entrelinhas

caminhos a serem percorridos por pesquisas futuras.

III.1 A VOZ DE ARLINDA MORBECK

A obra informa sobre a vida e a vida ilumina a obra.

Pareyson.

Pensar na poética da escritora Arlinda Morbeck é, antes de tudo,

reconstruir o campo de suas produções. As buscas pelos poemas, por caminhos

tortuosos, deixaram a certeza de que ainda existe muito para ser apresentado e

discutido. O que buscamos, após a apresentação do material aqui selecionado, é o

reconhecimento e a permanência de Arlinda dentro da literatura mato-grossense.

Numerosas são as autoras que, como Arlinda Morbeck, necessitam que suas

produções sejam reconhecidas na literatura, seja ela brasileira, ou regional. Quando

falamos na exclusão dessas poetas, o termo “cânone” traz em si essa política de

exclusão.

Cânone, do grego Kánon, tem como principal o significado de regra. Com o

passar do tempo, ganhou outros sentidos, como o de textos autorizados e exatos,

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quase sempre escritos por autores, considerados e reconhecidos como tais. Se

buscarmos o significado de cânone, pela origem religiosa, entenderemos que são

textos de caráter espiritual e que são legitimados como imortais.

È importante que pensemos no cânone literário e, principalmente, no nosso

local, para não deixarmos relegadas as vozes que já foram legitimadas, pois, a partir

dessas vozes, outras podem deixar o silêncio e ser reconhecidas, por serem elas

mesmas as responsáveis pela sustentação na edificação do cânone.

Dentre essas vozes silenciadas estão as de mulheres marcadas por uma

negação no universo da escrita, ou seja, viveram e vivem o obscurecimento de suas

produções escritas. Nessa perspectiva, faz-se necessário o estudo de textos não

canônicos para a reconstrução das produções literárias dessas mulheres.

A obra Problemas da Estética, de Luigi Pareyson norteou e sustentou os

rumos da seleção do material poético de Arlinda Morbeck. O autor explora a questão

dos problemas ligados ao conteúdo artístico, e o divide, segundo a filosofia crociana,

em duas direções: “O problema do sentimento na arte e o problema das relações

entre biografia e poesia” (PAREYSON,1997, p. 83) e ainda acrescenta que:

[...] não se pode enfrentar o problema do sentimento na arte sem distinguir, em primeiro lugar, várias espécies de sentimentos: aqueles vividos pelo artista antes da obra, aqueles expressos na obra, aqueles vividos pelo artista ao fazer a obra e aqueles despertados pela obra no leitor: em suma, os sentimentos precedentes, contidos, concomitantes e subseqüentes com relação à obra de arte. (PAREYSON,1997, p.84).

Seguimos a discussão dos sentimentos na arte. Duas posições contraditórias

são colocadas em relevância; de um lado, a paixão como necessária à arte e, de

outro lado, a arte controlada e distante de qualquer sentimento. Croce faz uma

mediação entre as duas posições, reconhecendo que, para a construção da arte,

pode-se admitir “uma dúplice presença de sentimento na arte”, ou seja, sentimentos

contidos que não são vividos, mas são criados no devaneio poético, e, finalmente, o

concomitante que, a partir de sentimentos vividos, teremos a paixão pela arte, a

alegria no ato da criação.

Como mesmo adverte Pareyson:

É difícil não acolher uma doutrina tão precisa e equilibrada no que respeita à presença do sentimento na arte. Que os sentimentos presentes na arte possam ser contidos ou concumitantes, que é

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necessário distinguir entre a efusão sentimental e a atividade artística, isto é, entre os sentimentos reais e os cantados pelo artista, que os sentimentos transfigurados da arte tenham um significado universal: eis outros tantos princípios que podem ser considerados definitivos. (PAREYSON,1997,p. 85)

Esses princípios da arte, defendidos por Croce, na obra de Pareyson, são

destinados somente ao lirismo, dando respaldo à nossa pesquisa em que

percebemos o sentimento vivido e contemplado por Arlinda Morbeck. Não

podemos deixar de enfatizar a questão do conteúdo, que está ligada à

“espiritualidade do autor”, e o mundo que está a sua volta, criando o que

chamamos de estilo.

Pareyson conclui que, para os crocianos, os diversos sentimentos podem

ser artísticos, como também “as idéias, as crenças e aspirações dos artistas”,

que podem dar às suas obras intensidades, sem a necessidade de serem

liricamente provenientes dos sentimentos.

Além dos sentimentos que penetram a realidade da arte, existem os

sentimentos causados por obras de arte, considerados sentimentos

subsequentes, também divididos em duas posições; temos: a arte suscitando

sentimentos e, por outro lado, que esses mesmos sentimentos não têm nada a

ver com a arte.

Em “Biografia e Poesia”, subtítulo discutido por Pareyson, que completa o

nosso caminho para a apresentação da escrita de Arlinda Morbeck, o autor coloca

dois problemas encontrados: “pode o conhecimento da vida de uma artista aumentar

a compreensão da sua arte? Pode a obra de um artista contribuir para o

conhecimento de sua vida?” (PAREYSON, 1997, p. 90).

Para obter as respostas uma relação é estabelecida entre a arte e a vida e, a

fim de compreendermos determinadas obras, como a de nossa poeta, é necessário

reconhecer fatos de vida, o que contribui diretamente para o entendimento da arte.

As alusões a certos fatos, o uso e o significado de certas palavras, certas reminiscências literárias, a afinidade com outros artistas, o significado de certos símbolos e de certas convenções, eis tantos elementos que são perspectivados no seu justo valor e no seu exato alcance quando se conhece, averiguável e documentável também por outra via, a vida do artista, isto é, a sua formação, a sua cultura, o seu tirocínio, os seus contatos com os outros artistas, o ambiente cultural por ele freqüentado, e assim por diante (PAREYSON,1997, p. 90).

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A biografia é necessária para a compreensão da arte e, ao mesmo tempo,

as obras para a biografia. No entanto, Croce faz uma separação entre arte e vida;

para ele existe uma personalidade artística diferente da personalidade humana. E,

ainda, se a obra fica e a vida passa, o que deve ser contemplado é a obra de arte e

não a vida do artista.

Porém, é no tópico biografia e arte, que, ao contrário do que Croce afirmou

anteriormente sobre vida do artista, vem a biografia como um meio de compreensão

da poesia. A biografia de Arlinda Morbeck contribuiu para a avaliação de sua

poética, uma vez que o ambiente em que ela escreveu serviu a inspiração em sua

escrita, por isso “não se trata de afirmar que a biografia, de per si, está em

condições de fazer compreender a arte, mas de iluminar as obras através da

biografia, já que por sua vez iluminada pelas próprias obras.” (PAREYSON,

1997,p.96).

Tanto a biografia de Arlinda Morbeck ajuda a “iluminar” seus poemas,

quanto seus poemas contribuem para entendermos as lacunas existentes na história

de sua vida. A personalidade artística e a humana surgem com um novo conceito, o

da inseparabilidade:

Qualquer corte demasiado nítido entre personalidade artística e personalidade humana dissolveria aquele nexo entre vida e arte, pessoa e poesia, humanidade e estilo, que constitui o dinamismo essencial da arte, a sua gênese interior, a sua natureza íntima. A compreensão do significado humano do estilo, que é a coisa mais difícil na leitura das obras de arte, fica singularmente aumentada quando se consegue colher o estilo no seu estado germinal, isto é, quando se consegue ver o conteúdo no ato de buscar a própria forma, a personalidade do artista no ato de precisar a própria vocação formal, a sua espiritualidade no ato de fazer-se energia formante e gesto formativo: em suma, a humanidade no ato de fazer estilo, a vida no ato de fazer-se arte, a pessoa no ato de fazer-se obra. Ora, pôr a biografia sob o signo da arte e aplica-la, assim fecunda, a explicar a poesia, significa, precisamente, olhar para aquele ponto germinal da arte, em que a personalidade humana se prolonga na personalidade artística e a vida transpassa a arte. Onde este método genético for possível, isto não pode deixar de favorecer o pleno êxito da interpretação e contribuir, egregiamente, para a compreensão da arte. (PAREYSON,1997,p.97).

Selecionar a produção poética de Arlinda Morbeck é deparar-se com

surpresas. Em cada poesia, palavra, página encontramos um desafio. Ao primeiro

contato, pensamos estar diante de singelas temáticas, porém, a cada leitura uma

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reconstrução é necessária para sua compreensão. Uma seleção já foi antes

realizada pela autora Hilda Magalhães, em sua obra História da Literatura de Mato

Grosso, em que ela afirma:

O que se sobressai na poética de Arlinda Morbeck é o caráter confessional da sua obra, que, assumindo, em algumas vezes o estatuto de memória e, em outras, o de diário, nos relata os dramas de uma alma feminina ás voltas com problemas conjugais(…) destilando um sumo amargo que nos possibilita caracterizar muitos de seus poemas como existencialistas. (MAGALHAES, 2001, p.82).

Enfocaremos não só a temática abordada por Hilda Magalhães, como

apresentaremos poemas inéditos que trazem outras características e,

principalmente, as de condições históricas e sociais que influenciaram, em grande

parte, a sua escrita. O contato com os originais contribui para a compreensão das

imagens construídas pela poeta.

O fato de ter vivido a maior parte de sua vida na região mato-grossense

não possibilitou a publicação de seus poemas, porém trouxe de importante o

registro do tempo, contribuindo com a nossa memória coletiva. Essa memória

coletiva e individual é perceptível na sua poesia confessional, por exemplo,

quando exprime o seu desejo de ver sua obra publicada, quando se sente

colocada na escória literária, ou quando ela fala de uma história viva (garimpo),

ou de seus sentimentos íntimos.

Arlinda fala por uma minoria, por uma classe que está excluída da vida social;

com sua poética e lirismo essas pessoas podem ter uma memória viva. Sua poética

consta de 19 cadernos, diários, cartas e jornais. A maior parte deles foi escrita no

Estado de Mato Grosso. A leitura desse material nos faz perceber o cuidado que a

poeta teve em produzi-los, isto é, escrevê-los como se tivesse a certeza da sua

publicação e, ao mesmo tempo, sua escrita é livre, não se preocupa com uma

temática especifica, ou mesmo, um distanciamento do seu eu poético; o diálogo de

suas lembranças também é livre, não há distanciamento físico ou temporal.

Em todos os seus cadernos, encontramos sempre uma ressalva em que

confidencia todas as dificuldades encontradas para a publicação e o pedido aos

filhos que o façam por ela, como se sua realização pessoal de vida dependesse de

sua escrita publicada e reconhecida. Apesar de ter dedicado sua vida como

professora e ter encontrado na profissão dificuldades, pois conviveu com uma

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realidade difícil para uma mulher que viveu na alta sociedade baiana; a poeta não

deixou que essas dificuldades transparecessem em sua escrita, revelando com isso

o seu lado de mulher delicada, sábia e pura.

O tempo, em sua poética, não se prende, é livre; quando fazemos a

recuperação de suas memórias, não temos a sensação de valores irreais, sentimos

a leveza de toda sua sensibilidade feminina presente. Os problemas enfrentados por

ela são colocados em seu lirismo, de uma forma “generosa”de beleza, apesar da

verdade transmitida.

Encontramos, por vezes, em seus cadernos, mensagens, orações, recados,

lembranças, o que explica que sua escrita foi também única companhia nos sertões

mato-grossenses. É nessas pequenas narrativas, ou mesmo, em algumas de suas

prosas que, além de presenciar o ambiente em que viveu, percebemos o lado

submisso, feminino, vivido por ela, lado este de que ela tem total consciência e

encontra na escrita um meio de fuga e desabafo. A poeta não só descreve cenários

da região mato-grossense, como também de Valparaíso-SP. Sua poética perpassa

vários contextos sociais, políticos, e várias figuras humanas, homens, mulheres,

garimpeiros e famílias tradicionais. Por ter escrito para colunas de jornais, utilizava o

pseudônimo de “Tesourinha” e teve que seguir por outras temáticas, contrárias à de

sua escrita, antes, livre.

O pseudônimo, segundo Lejeune “ é um nome de autor. Não exatamente um

nome falso, senão um nome de escrita, um segundo nome (...) tão autêntico quanto

o primeiro, e indica somente este segundo nascimento constituído pelos escritos

publicados” (LEJEUNE, 1996, p.24). Para Arlinda Morbeck o pseudônimo era uma

forma de proteção diante da sociedade em que vivia, por muitas vezes escrever em

jornais sobre a sociedade e a política local.

III.2 RUMORES, ROMEIROS, SERTÕES

A poesia é a vibração de nossos sentimentos.

Arlinda Morbeck.

De acordo com os estudos até aqui discutidos, percebemos o silêncio, o vazio

e a ausência da mulher na vida cultural literária. Na história da literatura brasileira,

até o inicio do século XX, encontramos não só a ausência de escritoras, como

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também de personagens femininas autênticas e fortes; as raras vezes em que

apareciam nos discursos masculinos eram reduzidas à condição de objeto de

desejo, reduzidas à ideologia romântica.

A imagem da mulher era de mãe – esposa - dona de casa, quando ao homem

cabia o espaço público, o poder e as grandes decisões. A mulher vivia restrita ao

domínio da casa e ao mundo privado doméstico, no entanto, encontraremos alguns

nomes femininos na história da literatura, porém poucas são aceitas no cânone

literário brasileiro. Essa escrita feminina era contida, para que as mulheres não

pudessem ter determinadas propriedades, conferidas somente à escrita masculina,

sendo que muitas das escritoras escondiam-se atrás de pseudônimos e de

produções em segredo. Muitas dessas vozes femininas permanecem excluídas ou

desconhecidas na história da literatura, com isso, muitos de seus textos perderam-

se no tempo, devido a esse descaso e por não terem tido nenhuma importância

como mulheres criadoras.

Arlinda Morbeck encontra-se entre esses nomes femininos que não tiveram a

oportunidade de publicação de sua escrita, não só pela época em que viveu, mas

pelos caminhos que teve que percorrer durante sua vida: a falta de acesso aos

grandes centros, a situação vivida pelo marido, e, por fim, os problemas de saúde.

Entretanto, boa parte de sua produção continua intacta pelo tempo, à espera de uma

apresentação que possa reconhecê-la como a poeta que, apesar de ter vivido nas

selvas mato-grossenses não deixou que sua inspiração poética se acabasse.

Diante do material poético de Arlinda Morbeck, que se encontra em poder dos

familiares, após várias leituras, ocorreu-nos a necessidade de, neste momento,

apresentá-los, a partir de suas temáticas, que estão, a todo o momento, interligadas

à vida da poeta. Apesar de a autora ter tido todo o cuidado nas suas produções,

escrevendo em cadernos, intitulados e prefaciados, teve o descuido em não datá-

los.

A escrita de Arlinda Morbeck tem predominância da estética romântica e

parnasiana, e, segundo Hilda Dutra Magalhães (1997), após a fase documental

caracterizada pelas crônicas e relatos geográficos, a literatura mato-grossense opta

pela poesia, poesia esta que se sobressai com a produção do soneto e de temáticas

voltadas para a terra, clima, vegetação, religiosidade.

Hilda Dutra Magalhães divide a literatura mato-grossense, em relação à

poesia, em três fases: a primeira apresenta-se com poemas de características

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romântico-parnasianas que seguem uma poética comportada, predominando a

poesia laudatória; a segunda fase é marcada por uma poética rebelde que se utiliza

de uma inovação estrutural, atribuindo uma nova visão aos elementos regionais e,

por último, a terceira fase abre-se ao diálogo com pós-modernos, e, apesar de o

elemento regional se fazer presente, encontraremos a presença de um forte

misticismo. A autora abre a possibilidade de estruturação da poética mato-

grossense: homem/terra, homem/cultura e homem/homem.

A poesia de Arlinda Morbeck é repleta de um tom lírico sentimentalista que

transforma as descrições do meio natural (fauna e flora), as quais são marcantes

nas poesias mato-grossenses dos séculos XIX e XX. Não encontraremos sua

linguagem marcada de neologismos, como os poemas de Marilza Ribeiro e Silva

Freire, porém sua escrita aproxima-se da linguagem utilizada por Dom Aquino que,

de forma contemplativa, exaltava as grandiosidades da natureza. Ainda que não

tenha escrito tantas poesias voltadas para o meio natural não podemos deixar

passar desapercebidos esse fatores, visto que o contato que a autora teve com Dom

Aquino fez com que suas leituras da produção poética dele a influenciassem, talvez

até sem intenção.

Os poetas, como Arlinda Morbeck, com suas produções e cujos temas são

voltados para a exaltação da natureza são relevantes para se pensar na formação

de identidade cultural do Estado de Mato Grosso. A produção contemporânea, tanto

de Arlinda Morbeck ,como a de Marilza Ribeiro e Silva Freire, entre outros, segue um

caminho percorrido por outros, cada um a seu modo, mas todos em defesa da

natureza e da região.

Encontramos na obra de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso

Amoroso, que tem por finalidade dar sustentação a tal discurso, que é limitado e,

portanto, ignorado pelas linguagens existentes. Essa teoria é necessária para

analisarmos a escrita poética de Arlinda Morbeck, visto que Barthes devolve ao “eu”

do discurso a voz, voz esta que fala do ser amado (o outro). E assim define o autor:

Dis-cursus é, originalmente, ação de correr de cá para lá; são idas e vindas, “caminhos”, “intrigas”. O amante não pára, com efeito, de correr dentro da própria cabeça, de encetar novos caminhos e de intrigar contra si mesmo. Seu discurso existe unicamente por ondas de linguagem, que lhe vêm ao sabor de circunstâncias ínfimas, aleatórias. (BARTHES, 2007,p.18).

E adiante ressalta que:

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Pouco importa, no fundo, que a dispersão do texto seja rica ali e pobre acolá; existem tempos mortos, muitas figuras tem fôlego curto; algumas, sendo hipóstases de todo o discurso amoroso, têm a raridade mesma a pobreza- das essências: que dizer do Langor, da Imagem, da Carta de amor, pois que é todo o discurso amoroso tecido de desejo, de imaginário e de declarações? Mas aquele que sustenta esse Discurso e recorta-lhe os episódios não sabe que ele será transformado em livro; ainda não sabe que, como um bom sujeito cultural, não deve se repetir, nem se contradizer, nem tomar o todo pela parte; sabe apenas que o que lhe passa pela cabeça em dado momento é marcado, como os traços de um código (antigamente, teria sido o código do amor cortês, ou o mapa de Ternura). (BARTHES, 2007, p.19).

Alicerçados nessa teoria e outras que surgiram depois das releituras das

poesias, seguimos com a apresentação da Poética de Arlinda Morbeck. Estamos

cientes de que apenas uma parte de sua produção será apresentada nesse corpus,

pela dificuldade encontrada para o acesso ao material, no entanto, o que é

apresentado na pesquisa fundamenta o nosso objetivo de ver a escrita de Arlinda

Morbeck ganhando seu espaço nas linhas de pesquisa.

Diante da teoria autobiográfica, podemos estabelecer que a escrita de Arlinda

Morbeck está inserida na literatura confessional, por voltar ao passado,

simplesmente para trazer à vida suas memórias. Nas apresentações de suas

poesias que se seguem, a cada leitura, percebemos os fatos de sua vida: a primeira

poesia, os primeiros dias de professora, o primeiro encontro com seu marido, José

Morbeck, e, a partir desse momento, sua poesia ganha uma única temática, a do

amor e todos os sentimentos que provêm dele.

Arlinda vive uma época em que o papel da literatura começa a tomar forma,

os escritores começam a escrever sobre seus anseios, alguns preocupados em

externar suas emoções, não procurando agradar leitores. Esses escritores, como

ela, cantavam em verso e em prosa a vida da sociedade urbana, e neles

encontramos o contato com a natureza que surge como o espaço que abriga e

acolhe o sujeito que sofre, muitas vezes dando expressão concreta ao seu estado

de espírito.

Encontramos nas produções poéticas de Arlinda Morbeck, a primeira poesia

feita por ela, o que nos confirma que o seu contato com a poesia já existiu desde

muito jovem. Arlinda Morbeck alimentava o desejo, desde muito cedo, de ser poeta

e, acima de tudo, de ver sua escrita publicada.

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1° poesia feita por mim, que recitei ao público, perante o Governadôr do

Estado, outras autoridades, o Diretor do Instituto Normal e Professores, em

Salvador, Capital do Estado da Bahia, na manifestação feita no dia do aniversário

natalício da Professora Dona Maria Luiza de Sousa Alves, talentosa Diretora da

Escola Complementar Feminina do Instituto Normal da Bahia e inspirada Poetisa.

Contava eu, apenas, 12 anos de idade, quando compus e recitei esta poesia,

sendo, entusiasticamente, aplaudida com o retumbar de demorada salva de

palmas!... (Arlinda Morbeck. s/d)2

Mestra Querida!

Venho louvar-vos!... Oh!... Mestra!

bem sabeis que nada sei

mas, contudo, hoje tentei

cheia de amor vos louvar

é fraca esta inspiração

mas, frases do coração

eu procurei arrancar

Sob a vossa inteligência,

aqui eu venho aprender

eu sei muito vos querer,

sei também, apreciar

vosso talento sem igual!

Oh!.. Minha Mestra querida!

protegei-me nesta vida

a Escola é meu fana!!

(Salvador-BA)

Encontramos em suas poesias a voz de um eu-lírico já marcado pelo novo

amor, pelo saudosismo que tem por sua terra natal, retratando as paisagens

naturais, fazendo brotar aos que leem imagens de sua terra. O amor é inerente ao

homem, é o que sempre inspira e instiga sua vida até a sua morte. Encontramos

muitos que viveram por amor e morreram por ele; essa combinação de amor e morte

inspira, há tempos, romances e poemas, principalmente no romantismo.

2 Escrita retirada de um dos cadernos de Arlinda Morbeck. A poeta intercalava em sua escrita

observações acerca de suas poesias.

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Alfredo Bosi, em sua obra História Concisa da Literatura Brasileira, ressalta as

tematizações utilizadas pelos escritores românticos:

A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela. […] O mundo natural encarna as pressões anímicas. E na poesia ecoam tumulto do mar e a placidez do lago, o fragor da tempestade e o silêncio do acaso, o ímpeto do vento e a fixidez do céu, o terror do abismo e a serenidade do monte. (BOSI, 2006, p.94).

Arlinda Morbeck, como o romântico, experimentou a confidência, por meio da

escrita, deixou que seus sentimentos ganhassem forma, a partir da imaginação rica

de sensações. A natureza passa a ser o confidente, por isso, encontramos os

elementos naturais sentimentalizados, de acordo com os da poeta. A natureza

acolhe, inspira, transformando e revelando mundos desconhecidos:

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Lembrança do Passado!...

Límpida manhã, o mar era azulado

de velas cravejado!

o sol pálido surgia

na bruma do passado!

Sobre a praia formosa as ondas se

espalham

gaivotas revoavam,

redes de pescadores

na areia descansavam.

Cheguei à Escola, no salão arejado

sorriram-me as crianças

qual bando de esperanças

num céu límpido, estrelado!

Oh! Que dias felizes gosei naquele ninho

de amor e de carinho,

aspirando a fragrância

do perfume da infância

Como era ditosa, quando um pedir

vinha beijar minha a mão!

que momento feliz!

tinha o amor dentro do coração!

Um dia o Destino cruel roubou-me deste

ninho

enfeitado de arminho!

qual triste peregrina,

mostrou-me minha estrada,

longe da terra amada!

E eu parti!,,, Na curva do horizonte

vi meu ninho sumir-se

na bruma diluir-se,

da distância sem par!...

a tarde era tristonha,

era revolto o mar!

As ondas se encresparam, o mar ficou

bravio,

o vento zuniu frio,

as praias se enrugaram,

o sabiá trinou gemendo

sob a folhagem se escondendo

E nunca mais voltei!... A arvore

reflorada,

a verde sentinela,

de coma aveludada,

de resplandente umbela,

a porta da Escola enraizada

O verde tamarindeiro, florido à beira-

mar,

do sabiá o quente lar,

que muito conheci,

também chorou,

se desfolhou,

no dia em que parti!

(Salvador-BA, s/d).

O tom confessional é a primeira característica de sua poética; no título

“Lembranças do Passado”, Arlinda esboça um momento marcante de sua vida, sua

atuação como professora demonstra toda a sua alegria e entusiasmo ao seu redor a

natureza aparece favorável, conivente com sua felicidade, “o mar era azulado”,

“praia formosa”, “céu límpido, estrelado”; o “Destino cruel” a fez deixar sua terra e

uma tristeza toma conta do seu eu, deixa sua terra natal para um lugar longe, e a

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natureza responde a todo seu clamor de dor “a tarde era tristonha”, “era revolto o

mar”, “As ondas se encresparam”, “o mar ficou bravio”, “o vento zuniu frio”, “as

praias se enrugaram”, “o sabiá trinou gemendo”, “sob a folhagem escondendo”, “O

verde tamarindeiro”, “florido à beira-mar”, “do sabiá o quente lar”, “que muito

conheci”, “também chorou”, “se desfolhou, no dia em que parti!”.

Vejamos outra de suas produções:

A Primeira Página O mar é muito azul parece uma turquesa De um manto real da cor do céu imenso, Amanheceu, o Sol não está suspenso Ainda se esconde no véu da Natureza! Os leques da palmeira deliram com nobreza Vendo o mar afastar o nevoeiro denso, Que tenta cobrir das águas o panorama extenso E ela delira e cresce, sobre as algas viceja! A barca com as velas abertas Passou, a noite ao relento nas regiões desertas E vem para o porto se chegando! E se escondendo debaixo das cobertas O pescador sossegado faz as sestas, No delírio da ambição, sorri, sonhando!... (Salvador-BA)

A poesia e a natureza identificam-se. “A primeira página” abre um dos

cadernos da poeta. A natureza aqui, como sua escrita, está desabrochando: o

“Sol está suspenso”, “Ainda se esconde no véu da Natureza!”. Aos poucos, o dia

vai rompendo, o lugar é tranquilo, ganha cor e vida; por meio da natureza a poeta

revela uma sinceridade poética, a liberação de seu “eu”.

A poética autobiográfica nunca se amarra, por mais que busquemos uma

seleção da escrita de Arlinda Morbeck em que ela escreve os fatos transcorridos

durante sua vida, essa lógica não acontece nos Cadernos, nos quais temos

cortes bruscos dos fatos. Por não ter tido público, a escrita ficou sem uma

classificação de estilo, temos uma trilha particular; sem exigências de público ou

mercado.

A poeta mais revela de si e revela a sua poética confessional:

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O Presente Precioso

Naquela tarde de abril,

me deleito a recordar

o céu era cor de anil

também de azul era o mar!

Sobre as montanhas surgia

a luz do sol desmaiando,

deixando o findar do dia

na praia branca sonhando!

As ondas claras contentes

corriam dentro do mar,

em arrepios frementes

sob a luz crepuscular!

Nuvens rubras desiguais

vinham garbosas pintar,

as três janelas ovais

abertas de par em par!

Eis que recebo um presente

dentro de caixa formosa,

atado, cuidadosamente,

com um fita cor de rosa!

Trêmula deixei a janela

por onde a lua já entrava,

argêntea, serena e bela,

que o verde mar contemplava!

Senti convulso meu ser

tentando a caixinha abrir,

meu coração a tremer

quis chorar e quis sorrir!

Que segredo traduzia,

naquela tarde de abril,

o mimo que eu recebia

dado por mão varonil?

Rasguei o papel nervosa,

meu presente remirei

que relíquia preciosa

no seu recinto encontrei

Era a caixa envernizada

um tabernáculo de Fé

Edícula santificada,

do Santíssimo São José!

Fitei a Imagem sorrindo,

seu casto olhar contemplando

e uma prece proferindo,

beijei seus pés soluçando!

Depois, cheguei a janela

senti das flores o odor

te achei ainda mais bela

Cidade do Salvador!

O mar um hino entoava

na pujança da maré

a lua o mar prateava,

festejando São José!

(Salvador-BA s/d)

Arlinda Morbeck era uma mulher muito religiosa e na sua escrita deixou

poesias e prosas em que relata sua fé; era católica e tinha devoção a Nossa

Senhora. Nessa poesia relata “o presente precioso”, enviado pelo noivo, José

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Morbeck. Apaixonada, o mundo ao ser redor parece ser complacente, o final do dia

marcado pelas horas do crepúsculo “Sobre as montanhas surgia a luz do sol

desmaiando”, “deixando o findar do dia”, “na praia branca sonhando”, a tarde era de

abril e a lua foi testemunha e, quando o presente chega a suas mãos, é: ‘argêntea,

serena e bela”, “que o verde mar contemplava!”, O presente era uma imagem de

São José que trouxe à poeta um sentimento de satisfação, o amor já fazia parte do

seu ser e novamente a natureza responde: “senti das flores o odor”, “ O mar um hino

entoava”,“na pujança da maré”, “a lua o mar prateava”, “festejando São José!”.

Arlinda Morbeck em sua escrita fala muito do mar (azul, anil, azulado) uma

característica a que Barthes se refere como:

Encontro. A figura [mar, o azul] refere-se à época feliz imediatamente subseqüente à primeira sedução, antes que surjam as dificuldades da relação amorosa. A trajetória amorosa parece então seguir três etapas (ou três atos): inicialmente, instantânea, a captura (sou seduzido por uma imagem); seguem-se então uma série de contatos (encontros, cartas, pequenas viagens), durante os quais “exploro” com embriaguez a perfeição do ser amado, quer dizer, a adequação inesperada de um objeto a meu desejo: é a doçura do começo, tempo próprio do idílio.” (BARTHES, 2007, p. 136).

Percebemos que a sedução faz com que o ser amado descubra no outro o

seu próprio “eu”. Os encontros, ou até mesmo os presentes, vão completando o

quebra-cabeça do amor; as descobertas são progressivas, o ser que ama volta-se

inteiramente para o “outro” e pela escrita sacia o desejo de falar sobre o outro.

Também, de outras formas, Arlinda confessa o Amor:

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A Cigana

Era a cigana mulher meiga e formosa

cabelos negros, olhar muito sereno,

eu contemplava sua tez mimosa

sublime adorno de um rosto moreno

Fitando-me comovida admirava

o meu lânguido olhar cheio de dor

e sorrindo, assim, pronunciava,

compadecida do meu grande Amor:

---- Te aproximes de mim, escuta assim,

ele virá, ouviste?

Teu noivo amando chegará rosado!

Ele virá dizia-me, ele virá,

fitando-me com a ternura do sorriso,

porém, em tua casa encontrará

tristeza e lágrimas, eu te profetizo!

Receberás o premio aventurado

quando chegar o Anjo dos Amores

festejando o teu dia de noivado,

luzes… risos… flores!

O mar banhará com suas ondas

brancas qual uma noite de luar,

o costado imenso do Navio,

que para longe te há de levar!

E eu mirava aquele rosto angélico,

onde a tristeza pouco se demora!

lenço encarnado é emoldurando a fronte

muitas medalhas pela trança a fora.

--- Viajarás por azulados mares

os teus parentes ficarão chorando,

terás carícias e terás pezares

na solidão dos prados se enflorando!

Longe daqui nas selvas brasileiras,

verás a abelha fabricar o mel,

em grandes rios tu verás mil pedras

mais radiante do que teu anel!

E eu olhava esta mulher formosa

linda cigana de corpo delgado!

que trazia minha mão dentro das suas

em um aconchego terno e delicado!

---- Terás amigos, eles serão tantos

qual as baninas que no prado crescem

qual as estrelas cheias de encantos

que no azul do firmamento resplendem!

Porém, cuidado com as visões

pomposas

pois, as baninas morrem no Verão

e as estrelas nas noites tenebrosas

não aparecerão!..

E saiu pela porta que se abria,

a Cigana formosa e apressada!

“Até logo”- me disse com alegria,

e seus passos rangeram pela escada!

Hoje recordo a curiosa história,

que da cigana ouvi com facearia

a Profetisa ganhou a vitória

pois, foi verdade o que a cigana disse!

Salvador-BA

“A Cigana” é uma das poesias mais intrigantes de Arlinda Morbeck; foi

publicada, tempos depois, no Jornal Valparaíso- SP. A poeta deixou escrita a

seguinte frase abaixo da poesia “Eu era muito jovem, quando a Cigana leu nas

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linhas de minha mão, a sorte que Deus me deu!, Apesar da sua religiosidade ser

outra, reconhece que as palavras da cigana cumpriram-se. A ausência do noivo a

deixou por muitas vezes sem esperanças, o namoro foi somente por meio de

cartões-postais nos quais José Morbeck, como um homem apaixonado, também,

por vezes, arriscou-se em pequenos poemas, porém nunca relatava os sertões em

que vivia, o que fez com Arlinda não acreditasse com veemência nas palavras da

cigana. No entanto, foi exatamente assim a história de sua vida: deixou sua terra a

bordo de um navio, viveu na Capital do Mato Grosso, cercada de amigos, em

grandes festas, e, depois, foi obrigada a deixar a cidade, indo morar nos sertões

mato-grossenses, isolada da civilização, de sua família e, por muitas vezes, até

mesmo do próprio marido. Teve em sua vida: “mil pedras”, “luzes… risos… flores!”,

“amigos,”…

A trajetória de sua vida se expõe:

O Primeiro Encontro

Naquela noite fresca o baile era arrojado,

lindos vestidos róseos no salão deslizavam

os cavalheiros seus pares abraçavam,

o salão estava, fartamente, iluminado!

Festejava-se da Loura Normalista a vitória,

um prêmio sobre o busto se ostentava,

uma medalha de ouro que brilhava

qual um áureo troféu de lauréis e de glória!!

E, também, ali estava. Era ainda bem criança,

um moço veio pedir-me o obséquio de uma contra-dança,

a orquestra vibrava no salão esplendoroso!

Aceitei, tímida e desconfiada,

ele era moreno de olhos negros, tês aveludada,

oito anos depois, este jovem doutor era meu querido esposo!!

(Jornal Valparaíso S/d).

“O Primeiro Encontro”, uma poesia que já ganha forma, utilizando da estrutura

do soneto, característica da escrita romântica. O estatuto da memória sempre está

envolto em suas escritas; definimos nessa poesia o surgimento do amor na vida de

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Arlinda Morbeck. No seu diário, a poeta relata, com detalhes, esse encontro, que,

mais tarde, ela resume em forma de poesia. Esta é uma das poesias que

comprovam que a poeta vivia envolta em uma vida da sociedade baiana e teve,

como primeiro amor, José Morbeck.

Tua Carta!

Devolvi tua carta, eu não acreditava

do segredo de tua confissão,

tua firmeza tu me confirmava

mas, a duvida supliciava-me o coração!

Dizes que te amava era bastante,

mas, não percebias minha revelação,

não tinhas pelo amor tanta ambição

e o meu pranto era martisante!...

Porém, tua insistência aprisionou

meu ideal e a Ventura me forçou

a querer-te e a amar-te com energia!

Aquela carta apaixonada me roubou

a calma que a Descrença me ofertou,

só pensava no teu nome noite e dia!...

(Salvador-BA s/d).

Arlinda Morbeck tinha o amor como o grande impulsionador de sua pena; ela

tinha necessidade de confissão e, com isso, não esconde os sentimentos que

brotam a cada poesia. Com sua alma aberta e o coração repleto da paixão dos

primeiros encantos do namoro, a poeta consegue prender a atenção dos que a

leem, fazendo com que pensemos numa segunda poesia, ou em outro momento de

sua história:

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Meus Desejos! (respostas)

-A meu noivo-

Ahí, por essas plagas sertanejas, onde a planta selvagem se enfloresce, quizéra ser o solo em tu pisas, o arvoredo que a sombra te oferece, o pássaro que escuta tua falas, o sol, que te ilumina e que te aquece!

Quizéra acompanhar-te nos caminhos, seguir-te a todo instante e a qualquer hora, ouvirmos ao surgir a luz da aurora, o melífluo trinar dos passarinhos, vagarmos pela estrada da Ventura, sem máguas, sem martírios, sem espinhos!

Quízera enxugar de tua fronte, o suor do trabalho ao descampado, e contigo lutar sempre ao teu lado, até o sol sumir-se no horizonte, e depois contemplarmos enlaçados, o despontar da lua atraz do monte!

Quizéra sob o toldo improvisado, da barraca que te servir de abrigo, cuidar de tudo eu, sorrir contigo, cercar-te de afeição e de cuidado, ser o arrimo da Paz com o meu carinho, festejar nosso amor abençoado!

Quizéra nas florestas seculares, afrontar o gentio, astuto, esperto… mostra-lhe a tua frente o peito aberto, sacrificar a vida por teus males, sorrir ante o furor de sua seta animar-me ao clarão dos teus olhares!...

E, a noite, quando o céu fosse estrelado, sentados ao ar livre conversarmos e do berço distante nos lembrarmos evocando as imagens do passado e a brisa desferirmos brandamente, um canto de saudade armonisado!

Mas, distante de ti sofro e padeço o terrível suplício da saudade, no sorriso eu oculto a crueldade de um viver tão atrós que não mereço! e dizem que não te amo!... Oh! Loucura se em tudo eu te estou vendo e não te esqueço!

(Salvador-BA sd).

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Arlinda Morbeck responde à carta de seu noivo, José Morbeck, e consegue

colocar em sua poesia as características de uma terra que ela ainda não conhecia;

apenas pelos relatos do noivo a poeta imagina e escreve o desejo que sentia de

estar lado a lado “nas plagas sertanejas” e “nas florestas seculares afrontar o

gentio”. Apresenta um eu lírico romântico que observa o mundo por uma lente

transformadora, que sofre de angústia e de medo “ distante de ti sofro e padeço” , “o

terrível suplício da saudade” ; o amor ainda não realizado faz com a poeta viva num

mundo de ilusão e perfeição, utilizando-se da natureza, símbolo do romantismo.

A poesia torna-se o espaço do desabafo sentimental:

Meu Amor!

Deixei minha terra soluçando,

parti chorando do meu lar materno

para bem longe de tu ias levando

meu jovem coração pulsando terno

Atravessei os mares contemplando

as ondas que brincavam sobre a praia

e a saudade me martirizando

mostrava-me a tarde que desmaia!

O Amor, o antigo traiçoeiro,

me levava nas asas da Esperança,

audacioso, tirano, lisonjeiro!

Entreguei-me ao seu capricho brejeiro,

que zombava do ardor de minha crença

no amor maternal - único verdadeiro.

(Salvador-BA sd).

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O Canto da Noiva!

Horas serenas desta quadra bela,

brisas da tarde que passais ouvi,

cerca-me a fronte a virginal capela

o véu de noiva o branco véu cingi!

Não mais os sonhos virginais de outrora

não mais, as crenças que o Ideal criou

mas, véras laços vão prender-me agora

santos deveres a cumprir eu vou!

Sou Noiva!.. O pranto que me invade os cio

não é causado pela Dor Oh!... Não!

do noivo ao lado se feliz me creio,

que mágoa é esta que me ateia, então?

Sofro saudades deste Lar querido,

onde tranqüila me senti viver,

choro esta quadra de sonhar florido

não mais minha alma a poderá rever!

Mãe!.. Que da vida o desvelado manto,

dos teus carinhos desdobrastes em mim,

da filha aceita agradecido canto

sou de outro agora, Deus o quer assim!

Pai extremoso!.. O teu dever sagrado

junto da filha soubeste cumprir,

aceita o beijo filial, amado,

abençoai-me, pois, eu vou partir!

Adeus!.. Amigas que gosais ainda

desta existência folgazã, feliz!...

adeus! Desta alma a confidencia e finda

outros cuidados dar-me a sorte quis!

Hora serena desta quadra bela,

brisas da tarde que passais! Adeus

cinge-me a fronte a virginal capela

o véu de noiva confiou-me Deus!

(Salvador-BA)

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Sulcando o Atlântico

Naquela noite, a terceira de repouso,

eu sentia-me feliz junto de ti,

e o calor do teu corpo era cheiroso

e dentro de teus braços adormeci!

O atlântico cantava mavioso

um hino que nas vagas percebi,

chegavas para mim mais carinhoso

e sonhando nos teus braços adormeci!

Já a aurora irradiava-se no Oriente

e as estrelas se apagavam, lentamente,

deixando no infinito leves traços…!

Despertei, fitei teu olhar atraente,

e o amor me dominava veemente

e, outra vez, adormeci entre teus braços!

(Viajando de Salvador ao Rio de Janeiro).

Arlinda ao falar de si mesma, dos acontecimentos, ao longo de sua vida nos

deixa claro que não se trata de fatos acidentais,mas existe um trabalho da memória

em que se busca uma determinada versão a respeito da própria vida, percebemos

que ela vive o momento e, depois, o rememora para imprimi-lo na versão da

construção de si mesma. Ela busca uma trajetória linear, etapas da vida com

começo, meio e fim. Essa ilusão biográfica é defendida por Bourdieu (1996) em sua

obra A ilusão biográfica como “ de que a vida constitui um todo, um conjunto

coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de

uma “intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto” (p.184).

Os poemas de Arlinda combinam, em linguagem romântica, os fatos da sua

vida bem como o amadurecimento dos sentimentos:

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Saudosa Canção!

O comandante cantava mavioso,

lá na proa uma saudosa canção

e o Vapor se extremia orgulhoso

ancorado no Porto de Assunção!

A lua cheia clareava as águas frias,

do Paraguay que corria magestoso,

estavam enroladas as vigias,

silêncio era ordernado, imperioso!

A canção do intrépido Comandante

era inspirada em um bandolim vibrante,

que geme e délira ao clarão do luar!

Na cabina sonhando, neste instante,

sobre um leito macio há um idílio palpitante,

e o jovem Comandante continuava a cantar!

(Assunção- Paraguay)

Recordação

Quantas vezes ficamos olhando o leme

sulcando a face do travesso do mar!...

o piloto audaz segue e não teme

a grande roda que ele faz girar!

Nas mãos calosas o aparelho freme,

como é intrépido seu sereno olhar,

o Timanciro altivo ante o furor não treme

do violento tufão que as nuvens vem rasgando

Como eu admirava!... O gorro sobre a testa

na bravura do perigo, a frada era modesta

grosseira, de um trançado muito antigo!

O “Mercídes” sua ufania manifesta,

e o piloto o perigo não protesta,

agarra-se com o leme seu predileto amigo.

(Nas águas de “Lá Plata”).

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Lua de Mel...

O barulho das ancoras nos desperta,

sentimos a sensação da despedida

de “La Plata” sentiremos a partida

o intrépido marujo já esta alerta!

Um apito estrondoso fere os ares!

a bandeira da proa esta erguida,

o gigante do mar avisa a despedida

as ondas se erguem para os mares!

Olhamos o Levante pelas nuvens da iradas

o Piloto vai no mar a onda abrindo

e nos traz uma lembrança dolente!

Contemplamos o sol que vem surgindo

somente nossos beijos nos consolam,

nos unimos em um abraço longo, ardente!

(La Plata-Uruguay)

Arlinda Morbeck casa-se com José Morbeck: “Horas serenas desta quadra

bela”,“brisas da tarde que passais ouvi”, “cerca-me a fronte a virginal capela” “ o véu

de noiva o branco véu cingi”, tem de seguir sua nova vida, está feliz por se casar,

mas triste por ter de deixar para trás a família e os amigos. Parte de navio e, em sua

viagem para outras terras, ela vai descrevendo e tendo como companhia não só o

marido, como a natureza que a cercava. Conforme os dias passavam, a poeta

mostra uma confiança maior na vida, está feliz e sente no ser amado o consolo

necessário: “Naquela noite, a terceira de repouso”, “eu sentia-me feliz junto de ti”, “e

o calor do teu corpo era cheiroso”, “e dentro de teus braços adormeci!”

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Gosto de ti!!! Gosto de ti risonho e prazenteiro, com os reflexos de teu sonho no olhar, qual rouxinol trinando alvissareiro quando a aurora começa a despertar! Gosto de ouvir tua voz harmoniosa, que ordena um sentimento de afeição, que traduz a verdade caprichosa, que vive no castelo da ilusão! Pronuncio o teu nome esperançosa do teu desprezo sinto-me orgulhosa o teu silêncio ainda não reclamo Sei que gostas de mim e sinto-me venturosa e embora eu tenha a vida desditosa, gosto de ti porque crês que eu te amo! (Cuiabá-MT sd)

A poeta chega à cidade de Cuiabá, onde fixa residência e onde uma nova

fase inicia-se em sua vida; terá de viver tão longe da família, porém não é disso que

reclama e, sim, da ausência do marido que, por seu cargo junto ao governo, não

poderá estar presente diariamente em sua vida. O amor fala mais alto, ele está

longe, mas as alegrias dos primeiros dias não permitem que sua esperança se

acabe. O ser amado é personificado: “Gosto de ouvir tua voz harmoniosa”, “que

ordena um sentimento de afeição” , “que traduz a verdade caprichosa”, “que vive no

castelo da ilusão!”

Aos poucos, a temática se volta para a natureza circunstancial da nova fase

de sua vida:

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A Procura das Minas de Araés!...

(ao me esposo Engº José Morbeck)

Quando voltares, traze-me uma lembrança

na palma verde de minha Esperança,

que contigo se vai nas asas da Bonança

aljófrada das lagrimas que verti

ao separar-me de ti!...

Não ínvia plaga esmeraldina, imensa,

onde a planície deve ser extensa

e o solo aurífero de camada densa,

faiscando ao fulgor da luz solar,

será, também, brilhante o teu olhar!!

Sinto tanta saudade que desmaio!

traze-me do sol que te aquecer um raio

de ouro prismático em alvorecer de Maio,

traze-me o odor das selvas matizadas

de agrestes ramos e flores delicadas!...

(Mato-Grosso s/d).

A flora e a fauna são elementos presentes na temática de Arlinda Morbeck. A

natureza é exaltada como algo intocável, cúmplice de seus sentimentos. Afrânio

Coutinho, em sua obra, Introdução da Literatura no Brasil, apontou as seguintes

qualidades que caracterizam o espírito romântico:

Individualismo e subjetivismo. A atitude romântica é pessoal e íntima. È o mundo visto através da personalidade do artista. O que revela é a atitude pessoal, o mundo interior, o estado de alma provocado pela realidade exterior. Romantismo é subjetivismo, é a libertação do mundo interior, do inconsciente; é o primado exuberante da emoção, imaginação, paixão, intuição, liberdade pessoal e interior. Romantismo é liberdade do individuo. Culto à natureza. Supervalorizada pelo Romantismo, a Natureza era um lugar de refugio, puro, não contaminado pela sociedade, lugar de cura física e espiritual. A natureza era a fonte de inspiração, guia, proteção amiga. [...] Sonho. Também é responsável o desejo de um mundo novo pelo aspecto sonhador do temperamento romântico. Em lugar do mundo conhecido, a terra incógnita do sonho, muitas vezes representada em símbolos e mitos. Pitoresco. Não somente a remotição no tempo, mas também no espço atraía o romântico. É o gosto das florestas, das longes terras, selvagens, orientais, ricas de pitoresco, ou simplesmente de diferentes fisionomias e costumes. È a melancolia comunicada pelos

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lugares estranhos, gerada da saudade da dor de ausência, tão características do Romantismo. O pitoresco e a cor local tornaram-se um meio de expressão lírica e sentimental, e, por fim, de excitação de sensações. (COUTINHO,146-147).

À medida que o tempo transcorre, o relato poético confessional é intercalado

com os elementos da natureza regional. Esse processo deixa transparecer como

Arlinda incorpora a nova realidade, em sua trajetória sustentada pelo sentimento do

amor.

O Diamante!

O Diamante é o Fantasma da ambição

no pélago profundo

dos cristalinos rios

seduz a multidão!

E o garimpeiro lépido e audaz,

guiado pela luz de uma esperança

trazendo as ilusões da mocidade,

caminha, não descansa!

No dorso das serras peregrina

na aridez dos ínvios caminhos,

exposto ao Sol, ao furor da ventania

aos arranhões dos espinhos!

Dentro da choca rústica e humilde

passa as noites sonhando sobre a areia,

è luz a lua fulgorosa,

è seu travesseiro as bordas da “Bateia”!

Passa o dia pensativo escutando

a musica da torrente do ribeiro

e o parlar do verde papagaio

seu fiel e gaiato companheiro!

Enquanto o bruto diamante dorme

sobre os leitos macios,

sob a música divina

dos cristalinos rios!

Depois de muitos anos

tendo na face o estigma da agonia,

vendo a Garça ruflar as brancas asas,

ele “bamburra” um dia!

E o fantasma austero lhe aparece

brilhando qual o Sol,

qual o orvalho de linda madrugada

no findar de uma noite enluarada!

Já escravo da fome e do tormento,

vendo o tesouro sobre a mão crispada,

o Garimpeiro morre enlanguescido,

amortalhado nas cores da Alvorada!

(Currutela da Atoladeira- MT)

As memórias de Arlinda Morbeck têm uma importância muito grande para o

cenário da historiografia mato-grossense; ela viveu uma época muito importante da

região, que foi a da descoberta das minas de Araés, em que seu marido esteve

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presente e ela teve que acompanhá-lo, a cada nova mudança que ocorria resultado

de toda uma luta por intrépidos garimpeiros. Garimpeiros sofridos, que tiveram na

poesia de Arlinda Morbeck o nome exaltado como “Heróis das Selvas”, pela

coragem que tinham, apesar de todo o sofrimento em que viviam pela busca do

diamante. Diamante este que ela denomina como “E o fantasma austero”, que, por

ser objeto de uma busca tão dolorosa, somente alguns chegavam a vê-lo; outros

apenas sabiam que existe, mas se torna com o tempo um fantasma: os que veem

não resistem pelos anos de sofrimento a sua espera:

O Garimpeiro

Na solidão claustral da serrania

vagueia o intrépido Garimpeiro

e procura as águas do ribeiro

onde irá trabalhar naquele dia.

Não teme da árida estrada os espinhos

carrega ambos as vasilhas da cozinha

e sobre as costas a “Bateia” enroladinha

cheio de coragem, esperança e energia.

Sua roupa esta suja e remendada,

tem os cabelos negros sobre a fronte descora

mas, não desanima, não baqueia!

Contempla a planície as verdes relvas

é o audaz e destemido Herói das Selvas

vendo reluzir o diamante no fundo da “Bateia.

(Mato Grosso S/d).

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A Estrada Passam cantando sob a ponte tosca do ribeirão as águas marmurantes as marmeleiras bambas pelo orvalho sobre as margens se curvam tiritantes

Os passarinhos gritam nas ramagens a velha gameleira enverdeida, erguem o vôo e fogem para os prados, a procura da vida.

A estrada sinuosa é muito branca qual as asas da Garça pelo ar, qual lençol estendido sobre a grama em noites de luar!

Meu cavalo, também, é muito branco qual a estrada deserta, acidentada vem revolvendo a areia arrefecida, sua marcha afamada!

Ao longe sobre o auteiro esverdinhado que domina a planície de esmeralda semi-oculta nos ramos do arvoredo esta a casa isolada!

Uma saudade imensa me flagela, percorro meu olhar sobre a colina, o Sol tem revérberos multicores a magua me domina!

E distante, serena se retrata no lindo outeiro a casa esbranquiçada eu sinto minhas lágrimas, lentamente caírem pela estrada Meu cavalo formoso se entristece, sacode a crina e deixa de marchar, vê na estrada o reflexo do meu pranto começa a relinchar!

Suas grandes narinas se dilatam baixa a cabeça e fica a refugar, sacode a crina farta e muito branca continua a marchar! A estrada esta deserta, avermelhada, esta úmida das gotas do relento, e a cozinha se esconde no pomar ao perpassar do vento!

E os passarinhos gritam nas ramagens da velha gameleira reflorida, erguem o vôo e fogem para os campos, A procura da vida!... (Alto Araguaia-MT).

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O garimpo é o meio de sobrevivência de milhares de homens. A busca pela

riqueza leva os agrupamentos de pessoas em torno de uma jazida. A natureza está

intocada, intacta, o que causa aos homens um sentimento ainda maior de

esperança. Homens estes como os que a poeta cita, debilitados, cansados,

castigados pelo tempo, mas sempre cheios de coragem para desbravar as planícies

e ver aflorar o diamante. Dom Aquino também, em seus poemas, tem suas

temáticas sustentadas por características românticas, “um comprimento com a Pátria

e com a terra mato-grossense” (MAGALHÃES,2001,p.41). Descreve em seus

poemas não só as riquezas minerais, as águas, as terras férteis, os campos a serem

explorados pela pecuária e pela agricultura, também fala do garimpo, quando relata

as conquistas do território pelos bandeirantes atraídos pelos garimpos.

Reportamo-nos à escrita aquineana pelo fato de relatar as abundâncias

existentes nos vários garimpos, e, como Arlinda Morbeck não faz nenhuma denúncia

da degradação sofrida pelo meio ambiente ou denúncia social, o que demonstra a

posição vivida por eles: Dom Aquino, governador do Estado e Arlinda, esposa de um

diretor da mineração.

Arlinda Morbeck da voz a história da região mato-grossense, através de suas

poesias podemos construir um passado marcado pela busca incessante do

diamante, de novas terras. A escrita de Arlinda traz aos que lêem a construção de

imagens vividas por ela nos sertões, sendo este o maior papel desempenhado pelo

escritor, fazer com que seus leitores diante de suas produções recriem e revivam

experiências do real.

No conjunto de suas poesias, porém, a poeta não perde o foco do seu Eu

sentimental:

O Trinado do Sabiá Escutávamos o cantar melodioso Do louro sabiá no arvoredo, Do rumor do ribeiro vaporoso O sabiá não demonstrava medo! O sabiá trinava e repetia Sua amena canção muito saudosa, Depois, para o palmeiral fugia Olhando o brilhar da luz esplendorosa! Sentados no banquinho de madeira Debaixo do jambeiro, entrelaçados

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Contemplávamos a planície tão fagueira Nos beijávamos, brandamente, apaixonados! A música dos nossos beijos escutava O sabiá parando de cantar, Nós esquecíamos de cantar, Nós esquecíamos que o sabiá ali estava Escutando nós dois a nos beijar!

Arlinda Morbeck percorre um novo caminho, deixa a cidade de Cuiabá para

morar nos sertões mato-grossenses; entre eles, na Fazenda Patagônia, vive uma

situação bem diferente da que vimos anteriormente, não é mais um navio e tão

pouco tem o azul do mar, com gaivotas para contemplar. A natureza aqui sofre junto

com ela, sente sua própria dor, não quer habitar o novo lugar em que a escritora terá

de viver. A poesia “A Estrada” relata sua dor, montada em seu cavalo, chora e vê a

sua volta uma estrada: “esta deserta, avermelhada”, “esta úmida das gotas do

relento; o seu cavalo sente suas lágrimas e se entristece, os passarinhos gritam e

seguem para outros caminhos, mais ao longe “serena” está sua casa

“esbranquiçada”.

O amor novamente cura as dores da poeta, já em sua nova residência, ao

lado de seu marido; o sabiá vem e lhe faz companhia “O sabiá trinava e repetia” “

Sua amena canção muito saudosa” e para de cantar para ouvir o som dos beijos

apaixonados; havia luz, ou seja, a vida ressurgia e mais uma vez sua alma feminina

guarda a dor da despedida dos amigos que ficaram, e com sua submissão e sua

pena segue com a nova vida.

Da perspectiva da voz feminina, o amor sobrepõe-se a todas as dificuldades e

sustenta a mulher na função que lhe é reservada:

Arlinda!... Ele me chamava com carinho, com afeto, sua voz era maviosa, cheia de alegria!... Nas frondes da mangueira o cantar da cotovia repercutia-se no outeiro deserto1 Pegando minhas mão me sentava sobre as areias do terreiro que desenhavam a sombra do rústico casarão ao meu lado sentia pular seu coração e me remirava com um olhar feiticeiro! Multicores borboletas beijavam as flores do prado, o pardal melodioso nas ramagens cantava,

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ele invejoso as débeis borboletas contemplava e vinha arfante e temeroso sentar-se ao meu lado1 Arlinda, minha Arlinda, ansioso me chamava és minha vida, és minha alegria, és meu amor! Junto a ti, fogem a mágoa, o dissabor e nos meus lábios vermelhos com efusão um beijo depositava! (S/d) Despedida Naquela tarde fria de novembro Tu me apertaste ao teu coração, Eu soluçava em extrema comoção Não choravas também, eu bem lembro! Caí nos teus braços soluçando, Era imensa tua lívida emoção, Afagavas meus cabelos e me dizias: Não Chore mais, vou e voltarei te amando Beijei tua mão que estava quente, Beijei teus lábios com o coração fremente Minhas lágrimas me traíram, enfim! -Oh!... Dizias, não te entregas ao teu pranto, Não crês como eu te adoro e amo tanto? -Sim, vai, mas não te esqueças de mim!? (s/d).

Barthes, a respeito da ausência, adverte que quaisquer que forem as causas

e duração, elas tendem a transformar a “ausência em provação de abandono”. A

ausência faz com que o sujeito e o outro não possam permutar, ou seja, o sujeito se

sente menos amado do que ama: “Historicamente, o discurso da ausência é

sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante, a

Mulher é fiel (ela espera), o homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos-

de-saia).” (BARTHES, 2007, p.36). O momento da despedida traz a ausência,

Arlinda Morbeck cai nos braços de seu amado; esse gesto realiza nesse momento o

sonho dos que amam, a união total com o ser amado. E é na fala de Arlinda e José

Morbeck-“Oh!... Dizias, não te entregas ao teu pranto, Não crês como eu te adoro e

amo tanto?-Sim, vai, mas não te esqueças de mim!?/ Arlinda, minha Arlinda, ansioso

me chamava és minha vida, és minha alegria, és meu amor!” que o autor intitula

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como A Conversa- Declaração, o sujeito amoroso com sua emoção contida faz sua

confissão ao ser amado:

A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras. Minha linguagem treme de desejo. A comoção vem de duplo contato: de um lado, toda uma atividade de discurso vem realçar discretamente, indiretamente, um significado único, que é “eu te desejo”, e libera-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem goza ao tocar a si mesma); de outro lado, envolvo o outro em minhas palavras, acaricio-o, roço-o, cultivo este roçar, nada pouco para fazer durar o comentário ao qual submeto a relação. (BARTHES,2007,99)

A linguagem contida na poesia é uma forma de transcender os limites da

própria linguagem, a transcendência de ir além, abrir horizontes simbólicos, ampliar

as possibilidades de comunicação, criando imagens poéticas. O poder que a palavra

exerce no mundo romântico das produções poéticas de Arlinda Morbeck é este, ela

ultrapassa o limite de sua linguagem e pereniza seus sentimentos.

Uma nova fase inicia-se na vida da poeta, a dúvida e o desalento tomam

lugar em sua vida. A espera do marido já traz a ela muitas interrogações, o amor é

colocado à prova dentro de si mesma. E o sentimento que a dúvida traz consigo, de

ausência e de dor, impede que a poeta escreva qualquer outra coisa que não sejam

os múltiplos sentimentos decorrentes da solidão:

Dúvida

Tens saudades de mim quando te

ausentas

Para distante ou qualquer lugar?

Não acreditas que fico a suspirar

Nestas angústias que me definham

lentas?

A dúvida me acompanha o pensamento,

Que foge de mim e vai te procurar

Na incerteza de contigo se encontrar

Porque deves estar feliz nesse

momento!

Tens saudade de mim que, aqui,

lamento

A alguém que me contempla com

desdém,

Sinto meu infeliz coração padecer no

pranto

Da desventura de um amor que tortura-

me minha alma vem!

Perdoai este meu grande pecado,

Que suplicia minh’alma amargurada!

Perdoai!... Eu vos peço contrita,

ajoelhada,

Deixai-me cumprir os rigores do meu

Fado!

Um sigilo me atordoa o pensamento,

Na sensação do meu padecimento,

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Tua ausência que me tortura o coração

Escondido no meu castelo de Ilusão?

A vida é uma quimera, os dias passam,

O coração que ama geme aflito!...

Tens saudades de mim?... Não acredito!

Desalento

Se é pecado, meu Deus, eu amar tanto

No delírio de minha comoção!...

Perdoai, meu Deus!... Se amo tanto!...

E não posso conter o martírio de meu

pranto

Que traz a Dúvida no meu isolado

coração!!

Não Sei! Não sei quando chegares quer dizer-te, Fitando teu misterioso olhar! Não sei se digo que não sei mais querer-te Não sei se devo o Passado recordar! O silêncio será meu conselheiro, Meu coração pulsará com languidez Pois meu triste e pobre companheiro Vive comigo a soluçar. Não crês? Vem! Estou ansiosa te esperando, Não sei dizer-te o que estou pensando A Ingratidão roubou minha alegria! Não sei dizer-te o que estou passando Não te direi se ainda estou te amando, Levaste o meu amor naquele dia!!...

Uma nova fase é relatada por Arlinda Morbeck, (Despedida, Desalento,

Duvida e Não sei), marca a dor que a despedida lhe traz, é deixada em uma tarde

fria de novembro; o sofrimento aqui evidenciado é marcante por, nesse momento, a

poeta já ser mãe e ter e ficar longe do marido, na solidão, com seus filhos, o que a

deixava ainda mais insegura. O amor dá lugar à dúvida, ela interroga a si mesma

sobre o sentimento de seu amado, e passa a não mais acreditar que realmente o

marido sinta sua falta. A vida amorosa se torna um desalento; a poeta implora por

Deus, sente-se rejeitada, com pecados por amar tanto e, finalmente, na poesia “Não

Sei”, a solidão e toda a angústia de sua alma não permitem que encontremos as

imagens criadas por sua pena; relatos que contagiavam os olhos, agora são

somente dor, e nem mesmo a poeta consegue definir o que sente, não sabe o que

vai dizer.

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Não Me Amas!... Não queres me amar, não te obrigo O amor é espontâneo, nasce no coração Floresce no jardim de uma ilusão Onde o Zéfiro é seu sincero amigo! Não quero que sejas meu inimigo Porque te amo e sofro com emoção Sentindo do teu olhar a recordação Pois teu vulto atraente está sempre comigo! O meu Segredo a ninguém eu digo Por minha senda escabrosa eu prossigo Ele é meu vigoroso companheiro Ele me traz a doce Ilusão de viver contigo Embora não me queira, não te obrigo O Amor que nasce no coração é o único verdadeiro. Tudo Passa Quando fico muito tempo a meditar Nos momentos felizes que gozei Quando teus olhares contemplei Sentindo meu coração a palpitar! Quero esquecer-te, não quero recordar, Essas horas agradáveis que passei Das quais jamais me esquecerei, E esta lembrança vem me atormentar! Se fui feliz eu não posso acreditar Os meus ideais vieram me acordar No reagir de minhas comoções! Minha Musa quis meu sonho acalentar No meu sonho procurou me afirmar Que tudo passa- a vida é uma ilusão!!...

Barthes, a partir de duas interrogações: “Como acaba um amor? Como, então

ele acaba?” ressalta esse sentimento vivido pelos que amam. Denomina o fim de um

amor uma espécie de inocência que, por vezes, mascara o fim de uma união vivida.

O amor que acaba retira-se “para outro mundo”; é algo repentino e nunca esperado

por quem ama. Esse “eu” nunca pode construir sua história final; ele apenas a inicia,

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como identificamos na escrita de Arlinda Morbeck, que viveu todos os dias de muito

amor e toda sublimação que dele brotam e, ao final, não sabemos se realmente

esse amor acabou: “o fim da história, assim como minha própria morte, pertence aos

outros; a eles cabe escrever esse romance, narrativa exterior, mítica”. (BARTHES,

2007,144).

Sem nome Nunca pensei que no mundo, Pudesse amar outra vez, Pois meu coração está coberto Com o manto da viuvez, Mas um dia, escutei palmas, Bateram no meu portão Fui receber quem chegava Era o amor e a Ilusão! -Porque vieste aqui, Eu nunca te convidei? Disse zangada e aflita És ousado, eu bem sei! -Venho rasgar este manto Que cobre o teu coração Pois sei que estás ocultando Um amor, uma Afeição!...

Arlinda Morbeck, já em plena consciência do amor de sua relação, já não era

mais correspondida; viveu a indiferença de seu amado, que, nos momentos de

ausência teve um outro amor, e, mesmo sabendo, ela foi capaz de esperar e de

suplicar. Guarda com ela o olhar do amado e o perdoa. Um novo olhar a faz

perceber, trazendo para a escrita uma temática existencialista do século XX, que

como no poema “Tudo Passa”, já não sofre e também com um tom pessimista não

acredita que foi feliz. Apesar de todo sofrimento, Arlinda mostra que o amor é capaz

de renascer, para isso, não precisa de idade, e, na poesia “Sem nome”, fala sobre

um coração que, apesar da viuvez que carregava, ocultava um novo Amor.

Percebemos o fechamento do relato lírico que a poeta deixa fluir em sua

escrita, termina uma fase de sua vida confessada sob a ótica do amor. Porém, um

suposto novo amor surge e novamente a poeta tenta relutar: “Porque vieste aqui, Eu

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nunca te convidei? A poeta já conhecia o homem ao seu portão , no entanto, uma

nova possibilidade de amar a deixa aflita. Não encontramos em sua escrita outros

poemas que deêm continuidade a essa nova fase de sua vida, esse mistério parece

necessário para nós que diante dos olhos acompanhamos uma alma feminina que

ama e luta diante dos problemas de sua vida amorosa.

As composições poéticas de Arlinda Morbeck entretecem, num mesmo

movimento, autobiografia e memória, configurando enredos, cenários, histórias

todos ligados em sua trajetória de vida. Percebemos em seu material poético um

trabalho artesanal de quem escreve e reescreve, à procura de uma expressão que

se revele pelas rasuras e correções, em determinados momentos cuidadosamente

copiadas e corrigidas, numa caligrafia firme e, em outras, com as mãos trêmulas e

insistentes.

O seu retorno para a cidade de Valparaíso-SP faz com que o retorno de uma

memória ressurja ainda mais forte, com sua publicação em jornais; separada do

marido, longe dos filhos, uma liberdade surge em sua vida e ela a imprime no papel,

reconstruindo novamente suas memórias já marcadas por outros sentimentos, já

não a dor de um dia anterior pela viagem do marido, nem por um filho que reclama a

ausência do pai, agora é uma mulher que revive esse mesmo passado, porém, ele

recorta outros caminhos do coração. O casamento, a maternidade mostram uma

mulher cheia de limitações, a velhice traz a paz, a tranquilidade,a alegria e a

coragem no entanto, ainda encontramos um passado não resolvido, ele pertence

àqueles dias que, como vimos, foram de abandono, não houve respostas, a

separação forçada acontece e Arlinda Morbeck, viúva, não sabe se o coração deve

ou não seguir um novo amor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse término da dissertação, não sendo o da pesquisa, pois os estudos aqui

realizados nos mostram outros caminhos para serem percorridos,buscamos nessas

considerações uma reflexão sobre o trajeto dessa pesquisa, as dificuldades

encontradas, vencidas e os resultados a que chegamos.

Nossas dificuldades estiveram voltadas nesse percurso da pesquisa pelo

acesso ao material da poeta Arlinda Morbeck, por eles estarem em detenção dos

familiares, e por se tratar de um primeiro estudo sobre a autora e suas produções,

nos deparamos com barreiras impostas dentro dos estudos literários, que, por vezes

privilegiam somente autores que tiveram e tem público.

Apesar das dificuldades a necessidade de apresentar esse material poético,

sempre falou mais alto, por entendermos que a literatura sempre esta em

construção, e por ser a realização da escrita, dos desejos, dos sonhos sejam eles de

homens ou mulheres, acreditamos em nosso projeto inicial e embasados

teoricamente apresentamos Arlinda Morbeck e suas poesias.

O presente trabalho esta dividido em três capítulos, sendo o primeiro uma

apresentação da vida da poeta pelo fato de não termos outros estudos que tenham a

apresentado, buscamos também uma reflexão do regionalismo para que

pudéssemos localizar o estudo de Arlinda Morbeck, por sua escrita ter sido realizada

nos sertões mato-grossenses, e diante de acontecimentos históricos vividos por ela

e seu marido, por este possuir um cargo na política da época.

No segundo capítulo discorremos sobre a poesia como um tipo de escrita, a

escrita feminina no século XX e a autobiografia. A escrita feminina em sua maioria

sempre para o tom confessional, buscando sempre na memória os fatos das vidas

de suas autoras, muitas vezes aqueles que ficaram sem solução, sem respostas,

escondidos, sendo, pois, é na escrita que a revelação é realizada, é lida por aqueles

que as encontram, muitas vezes, esquecidas, por serem tidas como uma escrita

apenas de cunho intimista.

Durante a elaboração no terceiro capitulo em que fizemos a seleção das

poesias e as leituras necessárias para que as teorias apresentadas se

entrelaçassem com a voz de Arlinda Morbeck, percebemos o quanto esses estudos

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autobiográficos são discutidos pela crítica atual, por se tratar de uma leitura hoje

muito procurada pelo público, muitas vezes, pela identificação que sentem diante

das obras lidas.

Na leitura das poesias de Arlinda Morbeck, mergulhamos em seu passado e,

a cada linha lida, um fio de sua vida foi revelado e, por ser tratar de uma escrita

memorialística questões, como: quem nos fala, como e o que nos fala, ficam

evidentes e se tornam aos olhos dos que leem o desejo de leitura e, por que não, de

pesquisa.

Sem dúvida, a literatura feminina já criou seu próprio espaço dentro do

universo da literatura mundial. A mulher do final do século XIX e, principalmente, do

século XX, conquista seu espaço, sua liberdade; muda-se, então, a posição de

feminina para feminista. O não reconhecimento da escrita feminina trouxe grandes

perdas para os estudos das várias autoras; na historiografia literária, encontramos a

repetição dos estudos realizados no século XIX por teóricos do século XX. Esse

quadro tem tentado ser revertido por novos estudos do século XXI, como os de

Constância Lima Duarte (1997) que, no texto O cânone literário e a autoria feminina,

ressalta:

Por tudo isso, compreende-se por que raramente encontramos um nome feminino antes dos anos 40, quando examinamos manuais de Literatura e antologias mais conhecidas. E é precisamente porque temos consciência de tal situação e pretendemos rever a participação da mulher nas letras nacionais, que realizamos todo esse trabalho de recuperação de autoras, reexaminando seus textos e questionando o cânone literário nacional (DUARTE, 1997, p. 93).

A crítica Elódia Xavier (1991) apontará para uma questão latente dentro dos

estudos de autoria feminina, afirmando que essa não aceitação esta ligada a certa

apropriação de operadores necessários para a leitura de textos femininos.

Operadores esses que são ferramentas necessárias para a compreensão dos textos

e que ajudam na identificação da linguagem, da sociedade, da época, do tema. Essa

não observação fez com que muitos críticos desqualificassem a escrita feminina,

sendo considerada sem valor estético.

Quando pensamos na literatura feminina que ainda se encontra em

construção, torna-se necessário ressaltarmos a nossa literatura feminina mato-

grossense que, apesar de ter nomes reconhecidos e estudos realizados, necessita

de novas pesquisas para realizar também um trabalho de recuperação de escritoras

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que, como Arlinda, estão relegadas ao silêncio. Trazer novos nomes, ou enriquecer

os já existentes são de grande importância para a literatura regional, que todos os

dias precisa ser construída e sustentada por novas pesquisas e, por que não, novos

nomes.

A análise da escrita de Arlinda Morbeck teve como apoio teórico os estudos

de Leujeune que considera autobiográfica a restrospectiva que o narrador faz de

partes marcantes de sua vida, por isso, o narrador precisa ser uma pessoa normal

porque o leitor busca uma verdade que seja pertinente:

É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. (...) É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. (LEJEUNE, 2008, p. 23).

Ainda os estudos de Lejeune mencionam que o escritor autobiográfico

encontra nesse tipo de escrita o seu meio de sobrevivência, desabafo,

autoconhecimento, resistência aos problemas da vida, ou mesmo, a situação-limite.

Arlinda não só se enquadra nessas considerações como também demonstra o

simples prazer de escrever.n

Esperamos que esse estudo possa abrir novos caminhos para futuras

pesquisas não só de Arlinda Morbeck, assim como de outras vozes femininas que

não tiveram sua escrita publicada ou reconhecida, e que essas vozes possam ser

mato-grossenses, para que, dessa forma, nossa literatura de Mato Grosso ganhe

mais força e reconhecimento.

Acreditamos que o material poético de Arlinda Morbeck deva ser publicado

para que assim ela possa ser reconhecida dentro do cenário literário e cultural mato-

grossense, o que fortalecerá novos estudos acerca de sua escrita. De tudo isso, o

importante é que o lirismo como arte, possa ser sempre o ponto de partida para

novas pesquisas e atinja o leitor, emocionando-o e levando-o a novos caminhos.

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