a vida de quem não vê j. espinola veiga

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Livro de J. Espindola Veiga. trata da temática de pessoas com deficiência visual

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A VIDA DE QUEM NO V J. Espinola Veiga 371.911 - V426 O romance da vida Memrias de um cego Psicologia da educao Vida de vrios cegos Confisses e relatos desassombrados do que o autor e outros cegos sentem, sofreme gozam por no verem. 1946 Livraria Jos Olympio Editora O drama das trevas contado por um cego. A verdade sobre os cegos e a cegueira. O que os cegos pensam contado por quem vive no meio deles pela identidade deprivao, e vive no nosso meio por sua ao nos negcios. Desassombrada confisso de sentimentos e impresses, de atos e recursos, de quemlogrou ser professor e negociante, embora no tendo a vista desde os dois anos. A histria edificante de muitos cegos brasileiros.-- Pgina 9 SUMRIO Prefcio .. 13 Explicao do autor .. 19 Bero nas trevas Cegueira de Nascena - Limitao dos movimentos e da alegria - Incio daacomodao - Tristeza da me - A experincia do chocalho - Reconhecimento pelavoz - incio da diferenciao social .. 23 Os primeiros passos Ampliao do mundo - Mundo mesquinho - Crebro estiolado - Primeiras reaes- Minha lembrana mais antiga .. 29 O meu caso Origens - Nascimento - Pobreza - Causas de xito - causas de insucesso .. 34 Primeira infncia A idade pr-escolar - A falta de mmica - Regras Prticas da primeira educao - Minhas experincias nessas regras - As fantasias dessa idade .. 40 Primeiros conceitos do desconhecido Minhas primeiras idias do cu, sol e das nuvens - A valia dos conceitos, mesmos falsos - O mal da diferena dos conceitos - O tacto na formao de idias - Diferenas entre as idias adquiridas com a vista e a recebida pelo tato - Persistncia das imagens tteis -- Pgina 10 - A formao dos meus conceitos - Precariedades das minhas idias das coisas comuns - Conceitos sugeridos pela realidade e criados pela imaginao - Minha primeira ternura pelo outro sexo.- 55 Deserdado da escola Isolamento crescente - Incio da introverso perigosa - Falta de aplicao das foras interiores - Concentrao doentia - Prodgios do aprendizado - Vida de fantasia - Deformaes somticas - Desequilbrio Nervoso - 62 Idade escolar A tortura da me - Incio da tragdia social do cego - O divrcio dos irmos - O prazer da criana cega nos brinquedos dos irmos - Iniciativas de minha me - Meus primeiros complexos pelas marcas da varola - Minha participao num bloco carnavalesco de crianas - Botes crestados antes da florao - Males sociais da criana cega - 70 Minha primeira escola O professor Mamede - A tabuada - O esqueleto- Vrias lembranas - O prazer das recordaes pobres - 76 A vida nos internatos Colgios brasileiros - Programas - Abandono das famlias - Socializao - Sopro renovador - 81 Reminiscncias esparsas O nascimento de meus irmos - Os tiros do teatro - Meu martelinho - O maribondo - O zango e as abelhas - A cachorrada dos cajus - Cousa feia - O vidro do bexiga - 100 Minha adolescncia Meus treze anos - Gosto pelo estudo - O exame de Portugus e o sacrifcio de Natal - Fora do internato - O conflito de esprito com a Expresso social - Minha santa me - 109-- Pgina 11 Falsos conceitos sobre os cegos Smbolo do mal - Desconfiados - Nos jornais - Na literatura - Capacidade musical - Super-homem ou incapaz - Semi-Deus ou bicho ruim .- 121 Dos meus quinze aos dezoito anos Adolescncia Fisiolgica - Minhas leituras - Meu desejo de fazer amigos - Primeiro amor - Namoricos - 131 Como os cegos amam Conceito da beleza feminina - Mentiras de reao - Amor platnico - Amor edificante - Algumas histrias de amor - 140 A luta pela vida Fim de curso - O estgio para o ensino no instituto - O liceu popular - Salrio mensal - Professor e propagandista - Estudando para ensinar - Como usava o quadro negro - Como corrigia as escritas - A confiana dos alunos - 153 No mundo dos cegos brasileiros A massa - Mendigos domsticos - O clssico mendigo - Os alfabetizados - Tendncias literrias - Trevas ao meio-dia - Associaes protetoras - 167 Continuando a minha luta A Eletro-difusora - Importador mambembe - Agiota - Construindo minha casa - O instituto dos cegos na Bahia - 179 Os cegos na vida prtica Conhecer dinheiro - As cores - O andar s - A compreenso do mundo .. 188 Um pouco do meu dirio - 203 Atividades de um cego Laboratrio de lnguas - Correspondncia comercial - A carta falada - Importao - Carnes verdes - 218-- Pgina 12 Vidas edificantes Caixeiro viajante - Irmos de negcios - Tmpera que se perdeu - Lder batalhador - Lutador impenitente - Homem de arte e fibra - Casal feliz - Intelectual s direitas - 225.-- Pgina 13 Prefcio Aos 37 anos , o professor Espinola Veiga, abalizado tcnico em assuntos ligados aos cego e cegueira, deliberou publicar, em forma de confisses e reminiscncias, o livro " A vida de quem no v". Seu livro baseia-se em experincias prprias ou alheias. So confisses pessoais e narrativas do acontecido com outros cegos da intimidade do autor. Serve a escopo educativo. Espinola Veiga o diz rasgadamente: "Escrevo norteado pela idia de bem definir o que um cego, para torn-lo mais compreendido e melhorar a sorte dos que ho de vir depois de mim, malgrado meu". O livro patenteia o fundamental dessa exata conceituao. O A. profliga mitos e preconceitos. Contradiz a idia corrente que transforma o cego em criatura extraordinria, que excede na bondade ou inteligncia. Nem perdoa aos que na melhor das intenes freqentemente, consideram um incapaz ou um "bicho ruim", partindo deliberada ou despercebidamente, da preponderncia que assume a viso na fixao dos conceitos, como na direo da conduta. A Espinola Veiga importa, acima de tudo, a verdade, por mais que doa. A pena da cegueira est menos na carncia da viso que nas suas conseqncias, fruto da incompreenso por parte do vidente. "Para levar a felicidade vida de que no v, escreve"precisamos comear por interpretar as atitudes e os verdadeiros estados da alma determinados pela cegueira".Para inculcar essas noes exatas, Espinola Veiga poderia ter escrito um ensaio de psicologia aplicada. Preferiu, porm, comunicar, com fidelidade, as reminiscncias do que tem acontecido e os fatos relativos vida de outros cegos. A agudeza da observao psicolgica reponta com o valioso documentrio.-- Pgina 14 Para confessar-se, sem rebuos, teve de afrontar o "ridculo e o menosprezo". Sem dvida, preciso muita coragem para escrever um livro assim. Mas a sinceridade comunica-lhe o calor e a palpitao da humanidade. O impressionante efeito esttico do autor no procurado, nem dirigido. Eis o segredo de sua fora. Verdadeiramente, o que move o o esprito pblico, na sua mais elevada manifestao - o desejo de ser til aos outros -. Reiteradamente o acentua para no deixar dvidas a respeito. Em certo ponto assevera: "Estou convencido de que a fidelidade do meu depoimento depender uma melhor compreenso da situao de quem no v e, por conseguinte, um pouco mais de felicidade para os cegos da minha terra". No parece pretensiosa, como acredita o A , a sua f inabalvel. Tal h de ser o fruto do livro. Lanado por um editor prestigioso e capaz, alcanar, com toda a certeza, a repercusso merecida. O livro no uma preceptiva pedaggica. O educador, porm, reponta nas devidas oportunidades. Espinola Veiga indica, com justificado amargor, os erros da educao ministrada aos cegos. Para isso, serve-se de tristes exemplos reais, franjados de incisivo comentrio. O grande mal, parece, o regime de internato. Conhecem-se os seus malefcios, nos casos comuns. Recrudescem, no referente ao cego. Segrega aqueles que j se sentem isolados pela prpria condio de cegueira. "No internato estava fora da sociedade; dentro dela, achava-me isolado". a confisso do A. Precisam ser postas em prtica quanto antes as idias do antigo tcnico de educao do Instituto "Benjamim Constant". sua competncia e experincia se deve a orientao que o governo ultimamente imprimiu ao ensino desse educandrio de cegos. Para exemplificar o alcance dessas lcidas idias, que o desenvolveu em outras oportunidades, basta anotar a necessidade de orientar adequadamente as famlias de cegos, como transparece desses conselhos prticos.-- Pgina 15"Fazer o filho tatear tudo quanto possvel e falar-lhe muito do que v, para estimular-lhe o crebro, parece-me a primeira regra prtica para qualquer me de cegos". O autor leva-nos ao mistrio da Vida de quem no v. Afugenta idias errneas, sem deixar de explic-las. Tal o caso da balela de que o cego conhece, pelo tato, as cores dos objetos e o valor das cdulas. Delimita, com exatido, as deficincias reais e as imaginrias quanto aos conceitos sobre o mundo interior. No perdoa nenhuma iluso. Pode assim prevalecer-se da prpria autoridade para afirmar: "Onde o tato pode chegar direito, apanha mais elementos que a vista para a formao do conceito". Explica-se. Na rapidez do olhar, basta a viso sumria dos aspectos. O comum das pessoas contenta-se em olhar, no lhes importa ver, nem preciso. A inspeo do tato, na minudente anlise necessria composio laboriosa, pode alcanar elementos que escapam vista. Todavia, a superioridade relativa meramente circunstancial. A natureza custa-lhe acomodar-se condio da cegueira. Ainda mais doloroso para o cego o adaptar-se a este mundo, naturalmente organizado para os que podem ver. "O dito Deus tira os dentes e alarga a goela", adverte Espinola Veiga, no tem aplicao ao cego. A goela se alarga "a fora de engolir os bocados duros que a privao da vista lhe oferece constantemente. Ou alarga ou o esprito se definha de fome - fome de sensaes, de alegrias, de amor, de vida..." O memoralista descortina sensibilidade do leitor as vicissitudes dessa dificultosa adaptao. As reminiscncias alcanam os primeiros tempos da infncia. Vemos nessa parte, em passagens de comover, a ternura da me do menino cego, e tambm como a sua intuio educativa soube formar o futuro homem de rara tmpera. Mas alm da reao dos pais, mostra o A. o seu prprio comportamento, quando adquiriu evidncia do seu mal. E esclarece:" Tenho conscincia de nunca ter sofrido, em criana, por no poder ver". Desde ento, o -- Pgina 16 que lhe di no a cegueira diretamente, mas o sentir-se diferente dos outros, e a comum falta de tato dos que aludiam a cada passo enfermidade. Desde cedo aborrece ao cego o tratamento especial, inspirado na piedade. Veja-se a recordao de uma surra por certa travessura em comum com o irmo, notadamente o comentrio que suscitou: "Mos abenoadas que faziam assim desabrochar em mim o senso da responsabilidade, no mesmo p de igualdade dos meus irmos de vista." Vem depois o internato. Bem elucidativa a impresso de sentir-se vontade, entre os seus, experimentada pelo aluno novato, que logo se acostuma ao colgio. Ainda bem que a pontualidade das sadas para casa atenuou a perniciosa tendncia para a segregao em grupos apertados, desde cedo, agravando-se assim a condio do marginal, a que o cego dificilmente se esquiva. O drama da adolescncia, vivamente apresentado torna-se ainda mais intenso na sua complexidade: "O cego tem sempre uma vida de fantasia mais intensa que a de outras pessoas em igualdade de condies". Com isso a adolescncia se prolonga, permanece o exagerado gosto para o devaneio, principalmente nas pessoas de rica sensibilidade, como o nosso autor. Interessantssimas as observaes obre as conseqnciasDessa propenso para o sonho. Verdadeiramente pattico, por outro lado, o que experimenta o rapazinho de rara inteligncia, vido de aprender, diante do livro, escrito no sistema comum. "Passei ento a afirmar que seria muito feliz, que no me importaria com a cegueira se meus olhos se iluminassem diante das pginas dos livros que eu desejasse ler. "Nem deixa o autor de mostrar as dificuldades com que se atirou, conscientemente, luta para fazer amigos, para se infiltrar na sociedade das pessoas de vista, referta de hostilidade, principalmente no acolhimento piedoso." Ressaltam entre as passagens mais sugestivas, a percuciente anlise da produo potica de cegos, o valor esttico e social da voz, as idias sobre a cegueira arquivadas na linguagem, tudo no tom do livro, cativante como o melhor romance.-- Pgina 17 O captulo sobre o amor dos melhores. Mostra o pendor dos cegos para sentimentos platnicos, menos em razo de particularidades psicolgicas do que em conseqncia da educao de que so vtimas, tantas vezes. A se contam casos surpreendentes, no isentos de comicidade, como o de um noivo branco, que s no dia do casamento ficou sabendo que ia unir-se a uma pessoa de cor. Ningum pensa, tambm, nos pequeninos problemas que a vida prtica oferece a quem no enxerga direito. Deles fala Espinola Veiga com esprito de humor, o que aumenta ainda mais o encanto de seu livro. So coisas da vida. H imensas fadigas ignoradas, mas tambm h triunfos reconfortantes. O livro termina com uma srie de "Vidas edificantes". So retratos morais de cegos que alcanaram vitria na luta da vida vencendo a si e aos outros. O drama do cego todo se resume nessa confisso: "Fao sempre por onde ser, quanto possvel, menos diferente dos outros, menos por vaidade que por obter que me compreendam, esquecendo-se do que me falta em comum com outros homens". Da procede, parece, a constante preocupao de que os videntes nunca deixam de Ter em mente a circunstncia de tratarem com um cego. H nisso certo exagero. preciso considerar que tambm o cego nutre preconceitos acerca do que dele pensam as pessoas de vista. No livro de E. Veiga as conseqncias desse estado de esprito manifestam-se em atribuir, s vezes, carter especfico a impresses tanto de cegos como de videntes. De outra parte a vigilante autocrtica mantm sempre tenso o esprito de luta. No encarniado esforo por superar a rmora, o cego bem dotado acaba por dar mais do que fora justo exigir. Bem o exemplifica o caso de Espinola Veiga. Eis o seu lema:" Fazei-me por mim mesmo, sem pesar a ningum, pensando, trabalhando, agindo, como toda gente, sem me valer da cegueira para encostar-me tutela alheia." Assim resume a sua movimentada existncia:-- Pgina 18 "J dirigi um aougue e j lancei trs atividades novas no Brasil; dirijo colgio e j trabalhei no D. A. S. P. ; j acumulei e perdi muito dinheiro, j criei galinhas e j trabalhei para jornais; j estive em posio de relevo e j fui absolvido de processo em que me quiseram envolver." Escrevendo esse livro pensa o A. haver sufocado recalques e complexos de inferioridade. Exibe-os corajosamente: o da cegueira, o das marcas de varola, o da origem humilde. Confessando-os, deve sentir-se aliviado. No entanto, a confisso no tem apenas o efeito catrtico. Pode proporcionar o encontro da verdadeira vocao, porque certamente Espinola da Veiga h de sentir-se escritor. Eis, em suma, a explicao do livro. Espinola Veiga uma alma solitria, que sentiu a imperiosa necessidade de expandir os seus prprios recursos, a sua prpria riqueza. e serviu-se do meio adequado - a expresso literria. Da esse grande livro, que h de constituir autntico acontecimento literrio, pela novidade do assunto, pela adequada realizao, pela variedade dos temas e das sugestes, pela pattica beleza que vibra em suas pginas. Aires da Mata Machado Filho Belo Horizonte.-- Pgina 19 Explicao do autor Este livro no relatrio de milagres, nem apelo ao sentimentalismo, nem estudo sistemtico. todo ele vazado nas minhas experincias de cego desde os dois anos de idade, e na intimidade que desfruto no meio dos que no vm. Fugi ao estudo sistemtico e s doutrinas de assunto, evitando, propositadamente, pautar-me pelas obras obre Psicologia de cegos, para poder confessar-me ao leitor sem peias. Achar-me-o ridculo e rude nalguns pontos, menos moral em outros, no importa: Meu escopo foi dizer a verdade sobre os cegos e a cegueira, num relato desassombrado sobre o que eu e os outros cegos sentimos, gozamos e sofremos por sermos cegos. No hesitei por isso em mostrar-me ao pblico tal qual sou como cego, ora mesquinho, ora elevado, mais aquilo do que isso, j que o meu barro no dos melhores. Desde j, previno ao leitor de que aqui no h nada de especialmente dito para agradar-lhe, fora da verdade. Nada de cego de "Alma pura, porque no v as desgraas do mundo", nada de "Tristeza da escurido eterna". Se isso que o leitor procura, feche o livro. Com as minhas experincias e os relatos dos outros cegos, apresento aqui a criana, a mulher e o homem sem vista, sofrendo, gozando, vivendo, enfim, a sua verdadeira vida, mal conhecida de toda gente. Busquei apontar as grandes alegrias e os dramas ntimos da vida -- Pgina 20 de quem no v. Mostro ao vivo, causas de tortura e razes de prazer dos cegos. Procurei responder, com lealdade, s interrogaes correntes sobre os cegos e a cegueira. Doutores a analfabetos fazem-nos essas interrogaes a cada passo. Nossas respostas costumam ser evasivas, vaidosas ou desconcertantes; leais, quase nunca. Os nossos recalques no nos permitem d-las de improviso com acerto. Escrevi o livro, principalmente para responder a elas com probidade. No silncio dos meus cantinhos de trabalho, arranquei de dentro de mim tudo o que sei e sinto por ser cego. Tenho conscincia de haver logrado sufocar todos os meus recalques e complexos de inferioridade, para dizer a verdade nua e crua. Nisso, somente, est o pequenino valor desse trabalho. Todo o livro ficou assim perpassado da minha vida. Como no bastou s ela, - pequena demais para o programa em mira - depus tambm sobre o que sei da vida de outros cegos. No devo saber pouco, porque estou perto deles pela identidade da privao e a constncia do contato. Falando aos companheiros de sorte, os cegos no tm recalques: Falam do defeito, referem seus xitos e insucessos, expandindo abertamente a alma sem melindres. Por isso, ningum melhor que um cego para sondar a alma de quem no v, o que me acresce a obrigao de ser exato. O certo que a vida de quem no v precisa ser compreendida luz dos fatos, sejam quais forem, para que, de futuro, venham a Ter mais felicidades aqueles em quem recai a desdita de no ver. Com essa convico, afrontei o ridculo e o menosprezo, e mergulhei bem no fundo de mim mesmo, trazendo, l de dentro, as minhas lembranas e as minhas impresses de cego, fossem elas lama ou areia clara, carvo ou diamante.-- Pgina 21 Nos altos e baixos de minha vida, nos obscuros setores de minhas atividades, no posso deixar de Ter acumulado idias e colhido experincias que me habilitem a escrever este livro, em que pese a escassez de meu saber. J dirigi um aougue e j lancei trs atividades novas no Brasil; dirijo colgio e j trabalhei para o D. A. S. P.; j acumulei e j perdi muito dinheiro; j criei galinhas e j trabalhei para jornais; j estive em posio de relevo e j fui absolvido de processo em que me quiseram envolver. Nessa minha eterna luta contra a obscuridade a que o destino me condenou, no instante amargo em que a varola me crestou os olhos, tenho assim multiplicado as minhas atividades e, consequentemente, os meus contatos sociais e as minhas experincias neste mundo. Da o nimo para escrever o livro. Minha gratido perene a Antenor Nascentes e Aires da Mata Machado filho - preclaros mestres - pelo generoso estmulo que me deram para escrever; e a Eva Serra - colaboradora inteligente - pela luz dos olhos que me cedeu para a feitura material do livro.-- Pgina 23 Bero nas trevas Cegueira de nascena - Limitao dos movimentos e da alegria - Incio da acomodao -Tristeza da me - A experincia do chocalho - Reconhecimento pela voz - Incio da diferenciao social. "Cegos de nascena". assim que os "cegos do bero" geralmente so chamados. Mas no: Poucos so os que nascem realmente cegos. A maioria deles tem os olhos perfeitamente sos ao desabrochar da corola inviolvel onde foram gerados. No curto percurso que fazem da at a luz do sol, que certos grmens lhes invadem os olhos, num cruel assalto ao mais precioso de todos os seus sentidos. Nascer sem vista, ou perd-la nos primeiros dias de vida, parece ser a mesma cousa para a futura formao mental do indivduo. O bero nas trevas desde logo cerceia as primeiras experincias da existncia na vida da criancinha. Para ela, o mundo limita-se ao prprio espao que ela ocupa. preciso esperar o desenvolvimento do ouvido, para ela comear a aperceber-se de que h qualquer cousa alm desse espao. Como o ouvido no se inicia logo, ela -- Pgina 24 perde de sada, um tempo precioso na sua formao. Os movimentos, to necessrios evoluo do pequenino ser, sofrem, por seu turno, numa grande limitao. Parece que a luz que mais concorre para excit-los. As mes sabem, de experincia, que pendurar papis de cores vivas sobre os beros dos bebs o bastante para que eles comecem a bater com as perninhas, em sinal de alegria. Como obter esses movimentos da criancinha cega? E, pior que isso, talvez, como dar-lhe essa alegria?... Felizmente, a natureza , de todos, a de maior capacidade de adaptao. Assim como vive sob todos os climas desse mundo, assim o homem se acomoda a qualquer circunstncia que a vida lhe oferea. Nisso reside, alis, o eixo da explicao da vida de quem no v. Suprima-se a um co de vista, o ouvido e o olfato, e ele morrer por certo. Sem a vista, sem o ouvido e sem o olfato, viveu Laura Bridgman, logrando assimilar uma boa parcela de conhecimentos. Num bero onde falta a luz, o movimento escasseia. No vendo as coisas que a rodeiam, a criancinha no estende as mos para apanh-las. A me no lhe mostra nada, porque sabe que intil. No lhe chega os objetos, para v-la estender a mozinha. No enfeita o bero, porque o filhinho no bate com os ps e nem sacode as mos ante os estmulos da cor. Pobre me... Pouco lhe fala mesmo, para fugir tristeza de ver que ele no volve para ela os olhos. Assim, o cego de nascena vive quase petrificado nos cinco primeiros meses. A uma das razes da falta de plasticidade nos gestos, nos movimentos e no andar de muitos cegos.-- Pgina 25 S do quinto ms em diante, comea a criancinha associar suas experincias auditivas com as sensomotoras. S da por diante, comea a estender as mos na direo de onde lhe parece vir o som. Mas, como vagaroso esse desabrochar dos movimentos! Precipit-lo, seria aplicao de princpios de Psicologia especializada desconhecidos do comum das mes. Embora, lenta, e talvez, penosamente, o cego de bero vai-se acomodando ao mundo tirando dele os elementos acessveis aos sentidos que lhe restam. Tomemos, para anlise, o mais comum dos brinquedos de bero: - o chocalho. Enquanto que a criana normal se interessa primeiro pela cor, depois pelo rudo e, at certo ponto, pela forma, a cega s se aproveita do rudo. Aos primeiros movimentos com o brinquedo, a criana tentada a prosseguir, pela variedade de reflexos que os coloridos lhe levam aos olhos, pelo rudo que lhe toca os ouvidos, e pela forma que lhe afeta a retina. " tentada" e prossegue nos movimentos que lhe enriquecem a experincia e lhe adestram as mos. A cega s tem o estmulo do rudo. Prosseguir com o mesmo af da outra? Claro que no. Em igualdade de condies, perder o interesse pela experincia bem antes da outra. Perder sim: Seu estmulo muito menor, bem menor. Para aumentar o seu interesse pelo brinquedo, e, -- Pgina 26 em conseqncia enriquecer suas experincias, teremos de tresdobrar artificialmente o estmulo, sacudindo o chocalho muito e muito mais vezes do que fazemos para a criana normal. S ento obteremos que a criana se dedique a sacudir o chocalho com os resultados sabidos para a sua educao. A lio que tiramos do chocalho vai ser a linha mestra de toda a educao dos cegos. Para infundir numa criana cega o interesse que lhe plasma a educao o corpo e o esprito, temos que proporcionar-lhe muito mais dosagem de estmulo que s outras. Cumpre promover em maior quantidade e melhor qualidade, estmulos aos sentidos que lhe restam, de modo que se compensem os que as suas companheiras normais recebem ordinariamente, do mundo exterior. justamente nessa promoo abundante de estmulos artificiais que assenta toda a base da educao de quem no v. Chegaremos l, no captulo adequado. Por ora, voltemos ao nosso nascido cego. Isolado da amplido e da alegria das cores, o pequerrucho cego prossegue na sua adaptao ao mundo. Aos poucos, vai estendendo as mozinhas e agarra-se ao que o rodeia, na conquista da sua primeira noo de espao. De h muito, a criancinha da sua idade entrou nessa noo pelos olhos; ela, porm, tudo faz com muito atraso. Continua a mover-se. Como ningum lhe promove a percepo das coisas, faz as suas descobertas ao acaso: ouvindo sempre a mesma voz, quando se aleita ao seio materno, acaba por identificar aquela voz com a satisfao do seu instinto primacial - a nutrio. -- Pgina 27 Da o reconhecer a me quando fala. A meiguice do riso e a doura do olhar no caro nessa alminha destinada a ficar na orfandade de tanta coisa bela desse mundo! ...S a voz... Mas a natureza humana prodigiosa na sua fora de adaptao: s a voz, mas a criancinha far dela a sua ligao com o mundo que a rodeia. Antes de seis meses conhecer a me por ela, e, aos dez, o pai. o depoimento de todas as mes de recm-nascidos cegos... Os atos instintivos e as expresses espontneas - suco, mastigao, riso e choro - aparecem normalmente na nossa criancinha. As diferenciaes viro mais tarde. Ela igual s outras na suco do seio, mas vai diferir na suco do canudo de refresco quando homem. Mastiga bem no bero, mas talvez chame a ateno dos outros, ao comer em banquetes. No colo da me, ri como os outros bebs, mas no se rir como as companheiras na idade escolar. Esses atos e expresses entram a diferenciar-se com as influncias do meio social. E tais influncias fazem-se sentir nas crianas antes mesmo do primeiro ano de vida. nessa altura que as criancinhas entram na fase de imitao, quase inacessvel s que no vm. me do cego, vedada a alegria de ver o dedinho do filho apontando o objeto desejado, nem a mozinha idolatrada lhe acenando adeus. No: O filho no lhe imitar as mmicas - esse grande motivo de prazer no lar - primeira ginstica dos futuros gestos, da expresso do rosto, enfim, do aspecto externo de sua personalidade.-- Pgina 28 O filho de sua amiga, da mesma idade do seu, j faz tantas gracinhas, e o dela no!... A me sofre; e o corao de me adivinha: A comea realmente o maior dos tormentos de seu filho pela vida afora; - a diferenciao dos outros, pela impossibilidade de aprender a imit-los, atravs dos olhos. A isso voltaremos de outras vezes, que essa uma das tnicas do nosso estudo. A observao nos mostra que os cegos aprendem a andar na mesma idade dos outros. Andar toda a vida diferente dos outros, mas anda desde cedo. Mesmo que se desembarace, que logre locomover-se s, sem guia e sem bengala, ter contra si o ser reconhecido como cego, ao longe, pelo andar. duro, mas assim.-- Pgina 29 Os primeiros passos Ampliao do mundo - Mundo mesquinho - Crebro estiolado - Primeiras reaes - Minha lembrana mais antiga. Contra o que fora de esperar, a criana comea a andar no mesmo tempo que as outras. Essa a primeira demonstrao palpvel de sua adaptao s suas condies. Que a vista faz falta ao equilbrio do andar, penso, no deve restar dvida; mas ao chegar idade de caminhar, a nossa criana no sente mais essa carncia, to adiantada vai j a sua acomodao. Os primeiros passos alargam-lhe o mundo. Com as mozinhas ela vai pela primeira vez encontrar os mveis, as paredes e os objetos h meses observados, se no lhe faltasse a vista. Mveis pela metade, paredes s por baixo, objetos poucos e em poucas faces. Mundo limitado, idias deficientes, arriscando a conduzir a conceitos falsos. Mundo precrio e mesquinho, ainda mais amesquinhado pela pobre me aterrorizada com a idia do filho machucar-se. "Tira a mo, meu filho; no mexe a, isso faz dodi". Na idade em que os meninos vm os pssaros, olham as flores, apontam a luz e procuram os avies no cu, o cego, constrangido, mal toca com as mos os primeiros 80 cm de altura de sua casa.-- Pgina 30 Enquanto o crebro dos outros de contnuo se povoa de imagens, o dele se estiola na aridez que o h de atormentar por toda a vida. Fustigado interiormente pela necessidade de estmulos ele no se deixa paralisar: Move-se continuamente no seu mundo estreito, em busca de novas sensaes. Tudo apalpa, tudo pega, tudo aperta, tudo bate, tudo fora no desejo insolpitvel de encontrar novas imagens. Suas mos entram a ser o "instrumento d'alma" por excelncia, como j dizia Aristteles. Ele incontido, irrequieto, no raro chamado "mexilo", "bulioso". Mas, pouqussimas vezes o ambiente facita-lhe o desenvolvimento dessas atividades indagadoras. As arrumaes da casa, os receios da me, a compaixo do que o cercam, manietam-no desde logo. Assim cerceado, deve sofrer. No esqueamos que sua natureza tem as mesmas necessidades das outras, pelo menos, enquanto no se acomoda. As acomodaes custam sacrifcios. Esta especialmente, - a privao da liberdade de movimentos, - to apreciada de todas as crianas, quanto lhe custar? Custe o que custar, ele tem de sofr-lo; o meio que lhe impe. No h resistir. Por mais irrequieto que seja acabar por ficar sentadinho a um canto, batendo numa latinha, ou cousa que o valha. Essa estreiteza de mundo, essa falta de variedade nos brinquedos, essa repetio contnua das mesmas atividades, acaba por criar no cego o defeito mental que o acompanhar pela vida toda. Refiro-me permanncia de uma s idia no consciente, numa fixao incomoda, num remoer sem vantagens para o raciocnio, numa predominncia sobre outras que ficam sem anlise, em detrimento de novos conceitos. Aquela mesmice dos excitantes, parece que afaz o crebro dos cegos ao jogo fixo de uma s idia. -- Pgina 31 Mesmo os mais evoludos se ressentem disso. Tm a mulher amada mais presente na memria, do que se tivesse vista; mas tambm tm desafetos e desejos concentrados e permanentes. Deixemos esse comportamento mental para ser escalpelado mais adiante, quando estivermos com o cego adulto. Contudo o crebro tem necessidade de novos estmulos, a herana psicolgica como que indica a existncia de coisas variadas, que ele busca sem saber. Picada por esta necessidade de excitantes esse fator hereditrio, a criana reagir sempre contra a coao de seus movimentos. Quando seja muito forte e dotada de extraordinrio poder de vontade, achar na compulso do meio, uma brecha para escapar-se. Sair desse crculo de ferro, a explorar o ambiente fora dele. Mesmo esta, porm, sair contundida. Tais e tantas foram as restries e as negativas que recebeu, que da luta para venc-las saiu acabrunhada. Os outros por l ficaram, apticos, estarrecidos, espera de que uma mudana de vida pouco provvel os venha arrancar quela imobilidade to comum aos cegos. Os maios audaciosos, sero mais tarde, as excees, os "Cegos extraordinrios, mas sero sempre nervosos e alguns tanto psicatnicos pelo esforo empregado em sobrepujar o seu defeito e a incompreenso dos outros. Para logo se vai compreendendo que o cego sofre, no tanto pela cegueira, como pelos prejuzos que os outros tm a seu respeito.-- Pgina 32 "Olha l, filhinho". a mezinha com o nen no colo, dando-lhe a primeira lio da natureza. - "Olha l a lua!"... O filhinho olha, daqui h pouco est apontando e depois dizendo tambm "l u a". Vem o beijo da me radiante. O nosso nen, nada... Nem a doce imagem luminosa, nem o aprendizado da palavra nova, nem o beijo carinhoso da me satisfeita. Talvez que diante da lua a me o beije e acarinhe, mas com beijos trespassados de amargura e carinhos de piedade pela situao do filho. Quem nos vem lendo at aqui h de achar que pintamos por demais dorida essa primeira infncia. Mas no: da tristeza desse quadro, do testemunho as minhas primeiras reminiscncias da cegueira. Aos 20 meses, contra a varola que me levou a vista. Da violncia da enfermidade do prova as marcas abundantes e fundas que me estigmatizam por toda a vida. Talvez a doena me houvesse raspado da memria alguma recordao a acumulada. O certo que no tenho nem mais vaga reminiscncia de antes da molstia. Arremexendo bem nos restos de lembranas da minha primeira idade, l vou surpreender no fundo, remota mas bem ntida, a que me parece ser a mais antiga: minha me, comigo ao colo, fazia-me apalpar no alto uns canos, espcies de condutos, que deviam ser os condutores de gs acetileno com que iluminava a casa. A pouca luz que tenho nos meus olhos, quase nunca est ligada s minhas recordaes. Desta feita porm, um lusco-fusco que apavorava era o trao dominante. Eu devia estar tendo a primeira sensao de cegueira. A semi-escurido deve ter aderido lembrana pelo contraste com a situao anterior. Apalpar parecia-me tambm coisa estranha. As imagens tteis esto quase apagadas. -- Pgina 33 To persistente porm como a escurido, a voz de minha me que chorava. No sei o que me dizia, mas sei que chorava. No quadro no h o menor vislumbre de minha tristeza pela perda da viso.-- Pgina 34 O meu caso Origens - Nascimento - Pobreza - Causas de xito - Causas de Insucesso. Como tenho que por no livro muito de minha experincia, pareceu-me bem dar logo a conhecer ao leitor, os traos largos da minha vida humilde. Assim poder ele melhor situar as minhas experincias e aquilatar dos meus depoimentos. Ia o meu ser no quinto ms de gestao, quando minha me perdeu abrutamente a primeira filha. Aquela que elaborava o meu ser no mago do seu, vira morrer em trs dias, estrangulada pelo crupe, a sua primeira e nica filha. A filha nica, a "filhinha", como lhe chamavam, a alegria da casa, foi brutalmente arrancada pobreza dos fundos de aougue, onde o casal punha toda a sua vida aps o trabalho. Era a perda irreparvel, o martrio de ficarem os pais acorrentados mesma casa lancinados pela lembrana dos primeiros passinhos, do primeiro balbuciar da filha... Esse fato no pode deixar de Ter influenciado fundo a minha personalidade. Foi nesse lar vazio, nesse ambiente de dor, que a parteira Dolores me exibiu luz do sol. "Dolores"... Nunca vi profissional com melhor nome: Que fazia ela seno assistir dores? Vim gordo, e gordo me fui criando: onze quilos e muitas gramas com oito. Meus pais davam-me carinhos redobrados: os meus e os da morta. Por no me deixarem dar dois arranhezinhos num brao, contra varola e perdi a vista com dois anos.-- Pgina 35 Era a condenao para trabalhar em dobro e dar a metade; o eterno suplcio de querer e no poder, de sentir a vida e no poder viv-la em sua plenitude, de Ter bem no esprito o que os gestos no exprimem. De ver o esforo do crebro inutilizado na incapacidade fsica. Nos primeiros passos de cego no tive ambiente que remediasse a minha privao. O excessivo zelo que no consentiu na minha vacina, certo manietou-me as primeiras tentativas de adaptao nova vida. O "coitadinho" deve ter sido o adubo de todas as minhas ms tendncias. O "pobrezinho", a teia que inutilizava todos os meus movimentos de conquista do mundo onde vivia. Assim deve Ter sido meu primeiro ano de cegueira. Meu pai, aoriano atirado lavoura aos oito anos, fugido para o Brasil com dezessete, empregado nas docas entre escravos, depois vaqueiro, depois aougueiro, s aos trinta anos, quando casado, aprendeu a ler, por conta prpria. Minha me, filha de um imigrante portugus, abandonara a escola primria na cartilha. Que podiam saber de educao estas santas almas? Era banho, comida, beijos, vara e correia. "Coitadinho de meu filho". "Deixa comer o pequeno"..."S se perdem as varadas que caem no cho"... "De pequenino que se torce o pepino". "De pequeno vereis o boi que tereis". Eis a filosofia da educao que me coube por meus pais. Nos fundos do aougue, sem irmo mais velho, privado do convvio das outras crianas, to pobres tive os primeiros anos, que pouqussimas lembranas me ficaram deles.-- Pgina 36 Quando fiz cinco anos, comecei a abrir minha estrada na vida. Puseram-me na escola. Estrada torturosa, escura e obscura, com alegrias modestas e fundos dissabores, mas, "estrada". Muito melhor que a cova onde eu ficaria se, perdido a vista, no recebesse instruo. Um casal de cegos foi instalar-se com externato quase defronte do aougue. Ela ensinava piano,. E ele lecionava tudo. Ensinava o "be-a-ba" a guris, preparava rapazes para bancos e dava explicaes a candidatos Escola de Guerra. Prottipo do laborioso professor paralelo ao mdico da ria. Mamede Freire. Toda a redondeza o conheceu. Mestre "as direitas, porque fascinava pela palavra e convencia pelo exemplo. Caiu-me a sopa no mel. Eu que fazia barulho para me ver na escola onde andava meu irmo, encontrei um professor que me quis receber entre os seus alunos. Aos oito anos, fazia as quatro operaes e lia correntemente com os dedos. Mamede Freire, porm, sentia que eu no ia bem em casa. Observador arguto, e caprichoso investigador das coisas do cego e da cegueira, percebia que os carinhos dos meus me amolentavam. Lutava contra o excesso de zelo dos meus pais. Conseguia muito, mas no quanto entendia que eu precisava. "O menino tem de ir para o Instituto. Mais tarde ser bom para ele, ser bom para todos". Tanto martelou, que minha me foi ver o Instituto Benjamin Constant na Praia Vermelha, e eu l dei entrada numa Quinta-feira, 8 de abril de 1915.-- Pgina 37 Fui estudando. No sabia bem para qu, mas estudava para poder sair aos sbados. O que exigiam de mim, fazia. Um minguado curso primrio de trs anos, sem nenhum adestramento especial dos sentidos que deviam suprir a viso, sem nenhum recurso para povoar o crebro das imagens que a vista no lhe dava. Verbalismo a estourar a cabea. Os bazares de Constantinopla, os templos da china, as armas dos esquimaus, o arco-ris, a tecelagem de l, a extrao do cobre, tudo nas palavras de Hilrio Ribeiro, sem uma s miniatura, sem nenhum objeto para ser apalpado como longinqua comparao que fosse. No terceiro ano de estudos decorava o nome de ossos e mais ossos, sem nunca ter tocado num. Esqueleto. Talvez da, uma vaga averso que me ficou na Histria Natural. Nem a freqncia do Instituto Anatmico de Santa Luzia, onde estudei, j homem, apalpando vsceras e peas formalizadas, no impediram que o exame de Biologia fosse o mais fraco dos que prestei no vestibular da Faculdade de Filosofia. Nenhum adestramento de maneiras, nenhuma formao de gestos e atitudes, nenhum ensinamento adequado que visasse dar-me aparncia normal, transmitindo-me essa compostura exterior que os outros aprendem espontaneamente atravs dos olhos. Nada... Eu e os Outros cegos do internato criamo-nos sem nenhum daqueles ensinamentos. Por isso, ou temos a fisionomia imvel, ou fazemos caretas. Ou somos parados quando falamos, ou temos gesticulao nervosa. Ou temos cacoetes, ou somos esttuas. Na aparncia, somos criaturas diferentes, em desarmonia com as outras. Na face, nas mos, nos braos, nos ombros, ou somos mudos ou dizemos cousas que no sentimos, ou no ajudamos a exprimir o que diz a boca como fazem todos.-- Pgina 38 Assim me fui criando: sentindo muita coisa, mas dizendo pouco, porque s falo com a boca. A compreenso da palavra pura ainda privilgio dos seres superiores. O grosso da Humanidade entende-se mais por gestos e atitudes que pela palavra oral. No meio em que eu vivia fora do internato, rudes comerciantes, aougueiros e vaqueiros, amigos de meu pai, o que eu sentia no encontrava ressonncia. Temperado de boa mmica, o meu verbalismo trazido do Instituto, talvez maravilhasse aquela gente. Duro e seco, no me valia nada. Eu continuei a ser o "ceguinho", o "menino que perdeu as vistas com as bexigas". No internato, estava fora da sociedade; dentro dela, achava-me isolado. O colgio enchia-me de idealismo. Aprimorava-me o esprito, mas subtraa-me muito realidade da vida. Porm, era nele que eu me sentia bem. Ali estava entre os meus e no experimentava nenhum sentimento de inferioridade. Veio a adolescncia e eu comecei a reagir; como tocava piano e entendia francs lido por brasileiros, fiz camaradagem com mocinhas e rapazes estudantes. Nesse meio, ia melhor; os rapazes liam e as meninas tocavam para mim. Eu tocava tambm. Comecei a fazer meu ambiente. Comecei tarde. Tinha 16 anos e ia muito devagar. Mas ia. Entendia que devia ter amigos entre os videntes, e iniciei a tremenda luta contra o maldito complexo de inferioridade. No cheguei a tempo; o mal vinha-me arruinando desde os dois anos e deitara fundo as razes no meu ser.-- Pgina 39 Com toda esta sobrecarga, parti para a vida, procurando fazer-me por mim mesmo, sem pesar a ningum, pensando, trabalhando, agindo, como toda a gente, sem me valer da cegueira para encostar-me tutela alheia.-- Pgina 40 PRIMEIRA INFNCIA A Idade Pr-Escolar - A falta de Mmica - Regras Prticas da Primeira Educao - Minhas Experincias Nessas Regras - As Fantasias Dessa Idade. Nossa criana j entra no terceiro ano retardada: passou a primeira fase da imitao sem nada poder aprender alm da linguagem. Mesmo est, dizem psiclogos americanos que a aprendem devagar. No temos observaes generalizadas e abundantes para contrapor. Com a minha introspeco, porm, penso poder afirmar que a linguagem, de incio, prejudicada pela falta de imagens visuais que correspondem s palavras aprendidas. A imaginao da criana cega, muito mais frtil do que se pensa, vai criando as figuras relativas aos vocbulos aprendidos. Como as figuras no so as das realidade, a compreenso do que os outros dizem torna-se difcil, o que deve estorvar o desenvolvimento da linguagem. Isso, enquanto a inteligncia no vem em socorro da nossa criana. De mim, dou o testemunho que pode estarrecer os outros, pode provocar o riso ou a comiserao, mas so a pura realidade. Meu pai, de formao religiosa, falava muito na mo da providncia, referindo-se a Deus. Essa linguagem devia ter sido muito freqente quando eu perdi a-- Pgina 41 vista: "Foi a mo da providncia... Que se h de fazer?"... Nessa altura, havia uma cocheira ao fundo do quintal da nossa casa, para abrigo de seus cavalos. No me lembro dos cavalos: talvez se houvesse desfeito deles, com o desgosto do meu mal. Lembro-se, sim, da cocheira vazia, entre as minhas reminiscncias mais antigas. Paus a pique, calamento de pedras como metades de paraleleppedes, abauladas e assentas no muito juntas. Uma tbua transversal, de um pau a outro, de vinte centmetros de largura, l estava ao alcance da minha mo. Deixava, fora da escora, uma ponta de uns quinze centmetros que ficara por serrar, extremidade podre, acabada em vrias pontas, maneira de mo aberta, para minha imaginao pobre. "Mo de Providncia" muito tempo foi, para mim, a ponta podre do pau da cachoeira. A palavra "piedade", na minha primeira infncia, andou ligada imagem de um prisma quadrangular pequenino, de uns cinco centmetros de base por dez de altura, muito liso, tendo em cima uma ponta em sacarrolha, do seu tamanho. Essa "piedade" era a estao prxima do lugar onde nasci, ainda hoje fazendo d a quem sabe de tanto brasileiro ilustre digno de ali ser perpetuado. A imagem aparecia-me sempre suspensa, fora de alcance da minha mo. No sei se era a transposio de alguma imagem visual para os processos do tacto. Consegui apurar que havia um mdico da famlia, Dr. Paulino, residente em Piedade. Minha me levava-me a ele ao colo, quando eu ainda via. Tambm a dos meus trs aos quatro anos, o "cu" era, para mim, uma escada de pedreiro, feita com tbuas de soalho em cutelo. No sei de onde me vem a imagem. Talvez de alguma escada assim que eu tentasse-- Pgina 42 trepar, e algum me dissesse que eu ia ao "cu". Quem sabe?... a minha hiptese. ridculo, triste, triste, mas assim. No sei que idia deixarei de mim depois do livro, mas sei que estarei contente comigo mesmo, prestando esses depoimentos. Enquanto as outras crianas pelos olhos, apossaram-se de uma grande variedade de movimentos para exprimir sentimentos e desejos, a nossa criana aos dois anos, h de sufocar desejos e sentimentos sem poder exprimi-los seno pela palavra ainda escassa. Alm do mais os msculos que comandam tais movimentos especialmente os da face, j comeam a enrijar-se, por falta de exerccio, em prejuzo da plasticidade da expresso fisionmica. Certo, o riso, o pranto e talvez a clera so formas de expresso espontnea comandada diretamente de dentro para fora, atravs de secretos mecanismos. Mesmo estes, contudo, esto submetidos presso do ambiente social em que vive o indivduo. O homem simples do campo no ri como o refinado das cidades; O seu riso ser mais natural, de mais beleza talvez, mais um vnculo a menos a prend-los ao ambiente citadino, uma razo a mais para que os grandes centros custem a assimil-los. Exagero? Sutil demais a diferena? Por que que se conhece logo primeira vista quando os indivduos so de fora? Tudo sim, desde o riso at mais complicada forma de manifestao exterior da individualidade, tudo est sob a presso da atmosfera do meio em que se vive. Os homens dos trpicos tm gestos largos, abundantes e abrangentes, como para apanhar a vastido do horizonte que lhe anda-- Pgina 43 em torno. Os de perto dos plos so sbrios na mmica, como que oprimidos pela natureza que vm. O homem da cidade anda firme e reto; o dos campos, aos bamboleios e s gingas. Em tudo, o ambiente, a imitao. Quem no v o ambiente e no pode fazer imitao no ser o homem dos trpicos, nem o granfino das cidades, nem o simplrio dos campos: ser o "cego", "o pobre cego", e at "o ceguinho" como o chamam, mesmo quando tenha um metro e oitenta de altura e de peso oitenta e tantos quilos. Mas estamos na idade pr-escolar - aos dois anos. A me inteligente far alguma cousa pelo filho. Se a cegueira vem do bero ela j se habituou ao estado da criancinha e procura ensin-la pelos meios aos seu alcance. Os meios so poucos, e ainda menos as mes capazes de aplic-los. Contudo existem, e eu sei de mes que ensinaram com vantagem. Fazer o filho tatear tudo que possvel, e falar-lhe, falar-lhe muito do que v para estimular-lhe o crebro, parece-me a primeira regra prtica para qualquer me de cegos. Faz-la tatear, mas um tatear ativo, em que ela prpria explore o objeto de seu agrado. No passar-lhe as mos nas cousas, como ns achamos que deve ser. No: ela que sabe das suas necessidades, que sabe conduzir a satisfao de seus interesses. Quando esse interesse falha, ento sim: estimul-la, chamar-lhe a ateno para esse e aquele detalhe, para aquela nuance em que vimos seus dedos prenderem-se em o momento de maior interesse. Tudo serve para tatear: no apenas o belo, mas o feio, que a vida bela e feia. No apenas o agradvel, mas o repugnante.-- Pgina 44 At porque, o belo e o agradvel para a vista, nem sempre o so para o tacto. Laura Bridgman - notvel surda-muda-cega americana - declara que o que mais gostava de apalpar na primeira idade era a bota velha do pai. Os patinhos de um dia, to feios para ver, so agradabilssimos para a mo. Sua penugem d a impresso ttil do arminho e sua forma oval permite o prazer de abrang-la na concha da mo. Objetos speros, em pedra lavrada ou madeira tosca, quer utenslios, quer obra de arte no so agradveis de pegar. "Quer obras de arte" sim: mesmo obras de arte. O tacto no compreende a beleza plstica. Chegaremos a mais adiante. O tacto prefere as superfcies polidas, se bem que a rugosidade, quando simtrica, no lhe muito chocante. Em suma, poucas vezes esto de paralelo o tacto e a viso. O sapo repugna o tacto, no pelos olhos esbugalhados mas pela viscosidade e a frira. Assim, um sapo quando de massa, d tanto prazer ao tacto como um leo. claro que isso muito alterado pela lembrana que cada qual desperta. Mas aquela impresso do feio, que o prprio sapo de massa d aos olhos, o cego, mesmo adulto, no a tem. J disse que adiante esplanaremos a questo. Por agora, s para fazer compreender que as mezinhas no devem pensar que agradam seus filhos cegos com os mesmos brinquedos que aos outros. No se fiem s na vista para a escolha do que dar a apalpar a seus filhos cegos. Por outro lado, temos que levar em conta que a sensao de repugnncia uma funo da idade e do conceito que se tem das cousas. Enquanto que em criana pegamos numa barata pelas barbelas e andamos com-- Pgina 45 ela pela casa, fazendo correr os grandes, depois de adultos nem queremos olhar para o inseto. O mesmo se passa com os cegos; nem podia ser de outro modo. Lembra-me bem, que, a pelos meus 4 anos, tinha numa cobra mansa de um amigo da famlia uma das delcias do meu tacto. Gostava de meter as mos por entre as roscas do ofdio e deixar-me apertar por ele. Achava-o macio e liso. No me lembro de que me repugnasse de algum modo, nem mesmo achava fria aquela cobra do Afonso. Bem mais tarde, adolescente, no internato, eu j lera e ouvira muito sobre cobras, quando curioso como sempre, ensaiei botar a mo numa jararaca que o chacareiro matara. Retirei a mo, horrorizado, ao primeiro contato do bicho nas polpas dos dedos. H poucos anos, repeti a experincia: abarquei com a mo uma cobra viva segura no pescoo pelo dono, no mercado da Bahia, mas desisti logo, impressionado pelas tores do animal gelado. Como se v, foi bom que eu brincasse com aquela cobra aos 4 anos. De outro modo, nenhuma noo teria desse bicho to vulgar e smbolo do mal. bom, portanto, que os cegos, na primeira idade, pequem, examinem e manipulem tudo o que puderem, o belo e o feio, o til e o intil, o agradvel e o repugnante, para no lhes faltar mais tarde, a idia do bem, nem a idia do mal. O modo de pegar, o processo de examinar devem ir sendo modificados com a idade. No h regras a tal respeito, seno as que decorrem das experincias dos prprios cegos. No entanto, pouco podem os professores de vista, porque "ningum ensina o que est fora das prprias experincias". No sei de ningum que tenha sido capaz de usar por muito tempo o tacto em substituio-- Pgina 46 viso, a ponto de t-lo educado como o dos cegos. Assim, a no ser cegos, no h quem tenha experincia tcteis para transmiti-las a discpulos sem vista, e, muito menos para condens-las em regras pedaggicas. Poucos so os cegos curiosos da psicologia, pouqussimos os que tm a coragem de intentar a introspeo, ainda menos os que se comportam com relaxamento interior para surpreenderem seus fenmenos ntimos, e rarssimos os que tm a coragem de trazer a lume as observaes sobre si mesmos. Da, o atraso da pedagogia dos que no vm; atraso to grande, que s dois ou trs institutos no mundo tentam o adestramento sistemtico dos sentidos, cuja necessidade, no entanto, ressalta aos olhos de qualquer observador. Mas voltemos l aos nossos ceguinhos de 2 a 4 anos. Vamos ver se tiramos da nossa experincia de cego abelhudo, da sagrada recordao da nossa querida me, alguma cousa que possa ser til s mezinhas desses seres. O que dissemos atrs, j foi baseado nessa experincia e nessas lies. Mas queremos acrescentar que preciso, mais que tudo, "coragem". Coragem para assistir o filhinho "ver" as cousas de modo to diverso dos outros irmozinhos!... Coragem para ver-lhe os olhos fechados ou abertos mas parados, ou agitados em desordem, diante de objetos que fazem arregalar e brilhar de alegria os olhos de outros seres. Coragem, mes; que o hbito vir substituir a dor! assim que os filhinhos cegos devem ver; assim que eles devem ser estimulados a observar as cousas. Ponham-lhe o objeto na mo. No lhe mostrem nenhum detalhe. Deixem que ele tome a iniciativa do exame. Desde crianas que "ns" gostamos mais assim. Deixem-nos apalpar tudo vontade,-- Pgina 47 ir e vir os dedos, apertar, tomar temperaturas, tomar peso, tomar o cheiro, ouvir o som, mesmo sem encontrar os pontos mais preciosos ao aprendizado. Deixem: s isso nos d prazer ; e s a esse prazer pode seguir-me um bom aprendizado. Quando comearmos a perguntar, expliquem. Quando estivermos fartos do exame, entrem com os ensinamentos; chamem a ateno - dos nossos sentidos para os pontos que nos escaparam. E escapam mesmo, porque o tacto "v" parte por parte, analtico e s tem a noo do conjunto por composio. Depois, o mundo foi mesmo feito para ver com os olhos. Poucas cousas h que meream mais pegadas - que olhadas. Mostrem sempre, e mostrem muito, porque o tacto quase no se fadiga. Minhas experincias no Instituto de Cegos da Bahia convenceram-me de que a criana cega incansvel no apalpar e no ouvir. O olfato sim, cansa-lhe logo. Ela perde, com a idade, esses hbitos to proveitosos educao, especialmente o de apalpar, por causa de compulso do meio. Apalpar de pblico " feio", - denuncia a cegueira que os parentes querem encobrir; suja as mos, suja as cousas, suja as cousas, suja os outros, estraga os objetos, indiscreto, enfim, encabula quem est vendo, quem acompanha a pobre criana que precisa apalpar para tomar conhecimento do mundo. "Tira a mo, menino". E o cego vai perdendo o contato com as cousas e a vida. Quando rapazinho, d pela necessidade de conhecer a vida, j perdeu o hbito de usar as mos, j adquiriu o vexame de apalpar diante dos outros. Entra para dentro de si mesmo, constri o mundo a seu modo, e sofre, sofre muito, quando o seu interior no encontra ressonncia na realidade ambiente. Vitima da educao...-- Pgina 48 Vitima da famlia que no soube tomar as providncias para evitar-lhe a cegueira, e no teve depois o desprendimento necessrio para apresent-lo sociedade como cego, e para suportar a crtica dos outros. Vejam, Senhoras mes, que preciso coragem e resignao para reparar o mal, o "grande mal" da cegueira de meus filhos. Apalpar , em suma, o maior meio de aquisio para os cegos. Helena Keler conta que foi apalpando o rosto da me conversando com visitas, que teve a grande revelao de que as criaturas se comunicavam pelo movimento dos lbios. Porm ela era um gnio acorrentado, e sua me, mulher de vasta intuio. A ningum agrada Ter o rosto apalpado pelas mos quase sempre sujas das crianas. Alm disso, o rosto aquela parte considerada nobre e intangvel, to sagrada que a tradio situou nela a vergonha. Como consentir que o apalpem os meninos cegos? Permite-se-lhes pegar nas mos, nos braos, nas costas dos outros; no rosto, nunca. Por isso, ficamos, por toda a vida, completamente desinteressados por essa parte to expressiva do ser humano. Quando um amigo encontra um cego e quer ver se reconhecido sem falar, este apalpa-lhe as mos, os braos, as costas. Notem que nem o peito... talvez porque disso fosse impedido de criana, para no se aproximar do rosto, no sujar a camisa, no torcer a gravata do examinado, ou no encabular a pesquisada. O fato que o cego, depois de adulto, quase no se interessa pelo peito, e nunca liga ao rosto das pessoas de suas relaes, mesmo as mais ntimas. De mim sei que namorei trs anos a mulher com quem me casei, sem nunca Ter tido a curiosidade de lhe-- Pgina 49 apalpar o rosto, - nem mesmo quando a beijei, pela primeira vez, na testa, 15 dias antes de casar. Se mais tarde adquiri o hbito de examinar o rosto - das pessoas de minha intimidade, foi das do outro seco e menos para agradar a mim que a elas, e para lisonjear-lhe a vaidade. ridculo? triste, engraado? Mas assim. para dizer a verdade - do que sei sobre os cegos e a cegueira, que estou escrevendo o livro. Entretanto, se me tivessem permitido, e mesmo estimulado o exame do rosto alheio a ponto de eu me interessar hoje pelo dos meus melhores amigos, no estaria a um elo mais seguro para fortalecer as minhas amizades? Depois do apalpar, est o ouvir. Depois, sim, porque o ouvido , por excelncia, o sentido que favorece o desenvolvimento da inteligncia. Quando no esteja apalpando, a criana cega deve estar ouvindo. Deix-la muito tempo quieta, entregue a si mesma, como no raro, ela gosta de ficar, permitir-lhe estar elaborando idias falsas, e comear a ingressar nessa "vida de fantasia" que lhe ser a amargura da existncia. fato: - Por mais que trabalhe, por mais realista que seja, por mais que viva de mistura no mundo dos normais, o cego tem sempre uma "vida de fantasia" mais intensa que a de outras pessoas em igualdade de condies. Disse-me isso em palestra, Merle Frampton da Universidade de Colmbia, e eu passei a observar em mim mesmo e vi que era verdade. No possvel que homem que tenham negcios ou as preocupaes que eu costumo ter, faam tantas fantasias como eu e pensem tantas bobagens como as que penso. Sei que so tolices, mas agrada-me pensar nelas para aliviar-me das preocupaes,-- Pgina 50 assim como quem fuma ou bebe. Se andasse com potes de leite na cabea, havia de entorn-los muitas vezes, como a Pedrina de Lafontaine. Que fantasia far ele, em que bobagem pensar esse homem que me est tomando o tempo com este livro? Perguntar o leitor: talvez tenha coragem de cont-las adiante. Por agora, vou reportar-me apenas s da idade pr-escolar de que estamos tratando. Nessa idade, talvez um pouco mais, a com uns 5 anos, lembra-me bem que eu era perseguido por um pssaro esquisito: era uma ave de corpo alongado como um peixe, pescoo muito fino e cabea pequenina, asas compridas, sempre fechadas. Delicada e meiga, falava como uma menina. Conversava comigo, e eu com ela, j no me lembra o qu, mas sei que era muita cousa bonita, bastante do meu agrado. Conversava muito, muitssimo; andava sempre na minha cabea. At sonhava com ela. Chamava-a "Lirila" e foi minha companheira por bom tempo. Depois, no sei por qu, passou a desagradar-me a insistncia com que este ser vivia na minha cabea. No podia ser autocrtica; certamente, meus pais passaram a censurar-me porque eu devia falar muito sozinho conversando com ela . O certo que passei a querer ver-me livre dessa criatura. E mesmo nesse esforo para libertar-me dela, ainda era a vida de fantasia que atuava; um dia, vim porta do aougue com ela na cabea, e como ouvi que passava um carrinho de mo, fiz gesto como quem a atirasse ao carro para que a levasse. Certo, se me tivessem falado continuamente do que prende as outras crianas pelos olhos, a fora da minha imaginao no se teria derivado para to estapafrdia fantasia . Por mais imaginoso que fosse, poderia fantasiar,-- Pgina 51 mas a prpria realidade da vida, e a idia no seria assim to fixa, doentia. Enquanto que o crebro das crianas vive num oceano de imagens que turbilhonam incessantemente pelos olhos a dentro, o dos cegos no. Essa falta do banho de luz deve secar e estarrecer o crebro de quem no v. Verdade que a uns seca e a outros faz crescer em direo contrria da realidade da vida, numa introverso sempre dolorosa para o indivduo, e no raro prejudicial coletividade. Como quer que seja, cumpre trazer o cego sempre em contato com a realidade, e a palavra bem dirigida dos melhores instrumentos para isso. A palavra da me, inspirada no santo amor materno, inspirada pelo desejo de remediar o mal do filho, quase sempre basta. Falar-lhe dos bichos, das plantas e das coisas que ele no pode pegar; falar-lhe do sol, das estrelas, da lua, do cu, do mar... No tenham medo de fazer a criana sofrer: se perdeu a vista cedo, ela no se incomoda. Tenho conscincia de nunca Ter sofrido em criana por no poder ver. No sei de nenhum cego de infncia que diga ao contrrio. Se algum h que se refere triste falta da viso, para copiar as lamentaes que fazem em torno dele pessoas menos avisadas. A no ser por conquista da inteligncia, ningum lamenta a falta do que nunca teve. Por igual, no temam que eles se aborream ou se desinteressem por no poder ver essas coisas. Talvez por atavismo, as imagens visuais continuam deliciando os cegos, desde que bem descritas. Nem de outro modo se explica que, depois de homens, eles possam vir a gostar tanto de literatura.-- Pgina 52 O fichrio da correspondncia da Revista Brasileira para cegos do Instituto Benjamin Constant, prova que os nossos leitores preferem a literatura, em especial a poesia. No entanto, para mal da criana que no v, por esses e outros impecilhos, ningum lhe fala das coisas da viso, justamente nessa idade, onde se devia plasmar a embrio de suas futuras tendncias. Haja embora o risco de infiltrar no cego o "verbalismo", o uso da palavra deve ser exabundante na formao de sua mente. No se conhece at agora outro meio de lhe povoar o crebro das imagens inacessveis ao tato. verdade que eles ficam mesmo um tanto verbalistas depois de receberem essa instruo nas escolas especializadas, mas o mal bem compensado pelas outras vantagens. Diro ainda os educadores e psiclogos que as imagens visuais transmitidas pela palavra, chegam ao crebro deles completamente deformadas - que eles tero das coisas uma noo bem diversa do real. Pode ser que sim, mas mesmo a noo falsa lhe ser instrumento de felicidade, se no entre em conflito com o meio, se basta apara que o compreendam e ele compreenda os outros. Que importa a idia errada da imagem do sol e do cu, se o sol for para ele a fonte da vida, e o cu, a origem do amor... Por si mesma, no raro a criana costuma arrancar-se limitao da cadeira ou do quarto onde a queriam ter. Conquistou a casa, conquistou o quintal, sobe e desce, trepa e cai, abre e fecha portas e gavetas, -- Pgina 53 dono de tudo em casa, quase na mesma idade dos outros irmos. Minhas conversas com as mes de cegos me convencem de que, quando bem dotados, eles aprendem essas coisas to depressa como os outros. No h diferenas sensveis. Por mim sei que me movia, desde cedo, vontade pelo quintal de minha casa, bem grande e um tanto acidentado. Filho mais velho, nem tinha irmo que me ajudasse nos primeiros cinco anos. Ganhei o ambiente da casa, seno lhe cedi a primazia aos irmos que foram vindo. Imaginei e dirigi sempre as travessuras maiores, como chefe acostumado a ser obedecido. S fui perdendo essa primazia, quando chegamos idade de fazer relaes com outros rapazinhos: eles se me avantajaram, principalmente depois que fui fechado no internato. Mas o exemplo da criana cega quase nunca convence os pais, to grande a pena que a cegueira inspira, to irremedivel parece o mal dela decorrente. O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. "Coitadinho, deixa!..." Mexam-lhe o caf, picam-lhe o po, pem-lhe a comida na boca, descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mo no prato. "Coitadinho! J basta o que ele sofre!..." E a criana no sofre nada com a falta da vista, como j dissemos. Sofrer, sim, mais tarde, a conseqncia dessa educao mal dirigida. Egocntrica como as outras, vai-se tornando desptica no lar, irascvel e turbulenta, acorrentando aos seus caprichosos pais, desta sorte cada vez mais sofredores.-- Pgina 54 a tragdia do filho cego em toda a sua plenitude. E o cego vai crescendo. Se ainda tem fora, vai quebrando essas grilhetas. Pede a colher para mexer o caf, morde o po por si mesmo, leva a comida boca e descasca a banana. Quantos h que fazem tudo isso antes dos quatro anos. Mas, oh! Fatalidade, so justamente os menos vlidos da fortuna. Nossas experincias nas coletividades de meninos cegos, no Rio, na Bahia e em Belo Horizonte, mostram-nos justamente que as crianas de meios mais pobres so as que se revelam mais capazes. que os pais no tm tempo para impor aos filhos a limitao que desejariam, e estes se desenvolvem ao sabor de sua natureza. Talvez seja tambm que o afortunado tem pudor de mostrar um filho cego, e o traz, por isso, o mais preso que pode. No exagero no. Eu e outros educadores de cegos sabemos de homens de bens e posio, que escondem o filho cego, a ponto de o no mandar aos colgios especiais, nem lhe dar professor em casa. Eles tm razo: a cegueira quase sempre um mal to fcil de evitar que um homem de posse e situao tem por que se envergonhar dela num filho. Pela ignorncia ou pelo desleixo do pai que no preveniu a cegueira, pelo excesso de amor da me atormentada incapaz de educar o filho cego, pela incompreenso da verdade situao que a ausncia da luz promove, por isso ou por aquilo, o certo que h de amargurar de algum modo a vida, aquele que em criana teve a m sorte de perder os olhos.-- Pgina 55 PRIMEIROS CONCEITOS DO DESCONHECIDO Minhas Primeiras Idias do Cu, do Sol e das Nuvens - A Valia dos Conceitos, Mesmo Falsos - O Mal da Diferena dos Conceitos - O Tato na Formao das Idias - Diferenas Entre as Idias Adquiridas com a Vista e as Recebidas pela tato - Persistncia das Imagens Tcteis - A Formao dos Meus Conceitos - Precariedade das Minhas Idias das Coisas Comuns - Conceitos Sugeridos pela Realidade e Criados pela Imaginao - Minha Primeira Ternura pelo Outro Sexo. Por desconhecido, aqui vamos entender aquilo que s acessvel vista. Que idia far o cego do sol, das nuvens, da cor, da luz, do cu? Eis a pergunta que toda gente se faz ao pensar na privao da vista. uma questo de conceito: cada cego tem o seu individual como todo o conceito. Todos vm o sol, mas, cada qual, faz um conceito dele. "Ver" no fazer idia; Ter elementos para formular um conceito, varivel de um indivduo para outro. Assim o cego formula o seu conceito, no do que v, mas do que ouve, e do que apalpe a respeito daquelas coisas.-- Pgina 56 claro que, com esses processos de aquisio imensamente indiretos, seu conceito afasta-se muito dos tidos como realidade. Em suma, so conceitos quase puramente intelectuais. Evoluem, profundamente, medida que aumentam o conhecimento do cego. Por isso, o mais interessante, surpreend-los na origem, na primeira infncia. Muitos h, que por pouco falados, no chegam a nascer nessa idade. Dependem do interesse que a criana ponha no meio que a circunda. De mim, garanto que, at meus sete anos, s o cu, o sol e as nuvens me despertaram conceitos. Nem cor, nem luz, nem estrelas. Aquela estapafrdia imagem da escada de tbuas de soalho, foi, como as outras e que me referi, sugerida pela sua coincidncia com a primeira vez em que as palavras me impressionaram. Datam de antes dos meus 4 anos. Antes dos sete, "cu" passou a ser para mim aquele pedao em que eu mergulhava as mos acima da minha cabea subindo sempre e sempre. Quando ouvia dizer que estava bonito, dava-me a impresso de que eu havia de gostar de meter a mo por ele a dentro, como fazia no mar, sem nunca encontrar o fundo. No tinha a impresso da abbada, do limite visual. "O sol", - tambm fiz o meu conceito dele antes dos sete anos. No meu bairro, os operrios da IV Diviso da E. F. C. B. lanara, num carnaval, uns carros alegricos pequeninos, puxados por cabritos. Passaram na minha porta, e minha me fez-me apalpar tudo. Chefiava o bando um rapaz que freqentava a escola dirigida por um cego onde eu estava, e o exame foi fcil. Pararam tudo, e a me do menino cego arrostou os comentrios -- Pgina 57 e as caras de piedade pelo filho, para eu apalpar. De tudo em que peguei, ficou-me o sol: um semi-globo de massa onde tinham, a espaos, espetado uns paus que faziam os raios. Lembro-me de que os paus eram quadrangulares. Da por diante, quando sentia em mim um raio do astro-rei, tinha logo a idia de uma coisa comprida que vinha l de longe, de m globo, de uma bola, para esquentar a gente. A Luz, no a ligava a essa coisa: tinha-a nos olhos, mas no me preocupava saber de onde vinha. "Nuvem", - no sei por qu, trouxe-me sempre para lembrana, um grande floco. Floco muito leve, solto no espao, fofo como o algodo, mas no sedoso. Esse floco me aparecia com a esperteza de gaze. Era como se fosse um algodo de fios speros. Qualquer cego me compreender se eu disser que um floco como os de algodo de acar que esses carrinhos vendem na rua, sem a viscosidade daquele. Nenhuma noo de cor aliada ao conjunto. Nem neste, nem nos outros. Minha crnea opacificada pela varola s me deixava perceber as cores muito vivas e fixadas bem de perto. Parece que no descobri essa possibilidade na primeira infncia. Ou no a tinha, ou no sabia dela, porque no me exercitavam os olhos. mais certa a Segunda hiptese, porque, nessa poca, na rua com meu pai, um dia, indo a um oculista, chamei-lhe a ateno para um reflexo que me feria os olhos, vindo da calada. Era uma lata de graxa, refletindo o sol de perto do meio-dia. Certo, evitam puxar pelos meus olhos para no me entristecer. Falsos embora e bem diversos dos de toda gente, aqueles conceitos iam servindo s necessidades do meu-- Pgina 58 esprito. Eles eram a ressonncia do cu, do sol e das nuvens na minha cabea, e o quanto bastavam para que eu me interessasse quando falavam nessas coisas. O mal no estava na falsidade deles, mas no que tinham de profundamente diverso dos outros. No naquela idade; mas, mais tarde, a diferena do meu conceito das coisas para os dos outros veio a formar entre as amarguras da minha vida. O conceito dos artistas de cinema, dos futebolistas, da moda feminina. Muito me custou achar prazer nas palestras sobre tais assuntos. Consegui. Como, direi a seu tempo. Insisto: "O mal nem sempre est na falsidade do conceito". Aquele meu conceito do cu - espao existindo infinitamente para cima, que acha o leitor quando o compara ao cu da vista - abbada azulada? Qual estar mais perto da realidade? Ah! isto sim; mais belo o da vista . Imensamente mais belos, so quase todos os conceitos sugeridos pela viso. Talvez principalmente por isto que os cegos, em geral, no so alegres. Tenha eu, porm, a coragem de dizer, que, onde o tato pode chegar direito, apanha mais elementos que a vista para a formao do conceito. Um coelho visto, por exemplo, um animal branquinho, adornado pelos olhinhos vermelhos e as orelhas em p, limpinho, de aspecto vivaz. Para o cego, o animal agradvel de pegar, pelo macio, orelhas em p, ossinhos finos ali logo sob a pele, tremendo sempre, barriga quente, focinho frio, patas que arranham, irrequietas, forando por escapar-se das mos. Dos poucos coelhos em que tenho pegado, tudo isso me ficou para formao do meu conceito. Depois, as aquisies do tato so mais duradouras; parece que o torvelinho de coisas que desfilam todos-- Pgina 59 os dias diante dos olhos, impede que a grande maioria delas chegue verdadeira anlise da inteligncia. No sou eu quem o diz: Carrel, no seu, no seu famoso livro. S essa persistncia das aquisies do tato explica que os cegos logrem formar tantos conhecimentos. Qualquer brinquedo lhe fixa na mente a idia do objeto que ele nunca poder apalpar. Uma locomotiva e um barco a vela que tive antes dos 8 anos, fixaram-se em mim, para sempre como smbolos daqueles veculos. O barco - muito simples - tem sido modificado por outros que venho apalpando, ficando embora sempre bem vivo, como base do conhecimento. Com a locomotiva, porm, no sucedeu o mesmo: ficou aquela e aquela s. Para mim, esses majestosos tratores de ao continuam sendo um cilindro, paralelo aos trilhos, deitado em quatro rodas, com um ou dois tubos para cima, e uma plataforma lateral guisa de estribo de bonde Pela teoria das mquinas a vapor, sei que h os pistes, algum j me falou que so vistos mover de fora, mas no tenho idia de onde ficam. Isso no me impediu de aprender as leis que regem aquela mquina e transmit-las a alunos que hoje excelem como mecnicos na aeronutica. Se quisesse, pedia que me descrevessem essa to conhecida inveno de Stephenson, e dizia aqui que completei o meu brinquedo com as lies da vida. Para qu? Eu quero que saibam o que sou, e no o que gostaria de ser. Escrevo norteado pela idia de bem definir o que um "cego", para torn-lo mais compreendido e melhorar a sorte dos que ho de vir depois de mim, mau grado meu. Olhem que o meu falso conceito da locomotiva aliada ao barulho dela, pode bem despertar-me um sentimento de entusiasmo, uma noo de fora e de imponncia-- Pgina 60 quando um desses monstros de ao passa junto a mim. A realidade pode sugerir o mais exato, mas no o melhor conceito. Nesse particular a imaginao pode muito. Penso que Oscar Wild quem sintetiza isto muito bem num aplogo assim: Um pescador emrito, toda vez que voltava do alto-mar, contava aos companheiros que vira a sereia. De uma vez, chegara a tocar-lhe os cabelos, to sedosos que quase no os sentira. De outra, ouvira-lhe a voz, branda como a luz da lua. De outra feita, enfim, vira-a fora d'gua, rendilhada de espuma, balouando-se pendurada num raio de luar. Tudo patranhas com que o pescador entretinha os crdulos companheiros. Um dia, porm o pescador loquaz chegou terra mudo. Acostumados s suas histrias embaladoras, os companheiros rodearam-no para ouvi-lo, mas no lhe arrancaram uma s palavra. Ele vinha atnito, estarrecido. Tanto fantasiara para os amigos que, naquele dia, teve uma alucinao no alto-mar, e viu, de fato, uma sereia. De quantas sereias assim, na realidade, estaro livres os cegos!... Pouco importa: a tambm pode muito a sua imaginao. Tambm os elementos de seduo no sexo oposto costumam ser tidos por desconhecidos pelos cegos. "Que conhecer o cego a seduo de uma mulher?", pensar o leitor. Meu depoimento franco sobre a minha primeira ternura pelo outro sexo, ser o incio da resposta a essa indagao. Se no disse, fica dito que, dos cinco aos oito anos, freqentei uma escola particular onde os nicos cegos ramos eu e o professor. Havia meninos e meninas, todos-- Pgina 61 interessados por mim. Gostavam de ir buscar-me em casa e trazer-me de volta ao fim das aulas. Tive, entre as meninas, a minha eleita. Nada me agradava mais que andar pela mo dela, sentir-lhe o perfume e ouvir-lhe a fala rpida, sempre avivada de um riso que lhe saa na voz. Outras privavam comigo mais de perto, eram minhas vizinhas e companheiras de rua, mas foi ela que escolhi. Por qu?... Resposta difcil. Ningum, seno um cego, compreender como, sem os olhos, pode algum eleger para si a pessoa do outro sexo. Nunca lhe toquei no rosto nem no corpo, nunca desejei saber se era bonita. Queria-a pelo que dela me vinha atravs dos meus sentidos restantes. A presso, o calor, o nervosismo do aperto de mo, a meiguice com que me falava, o modo como brincava, a dedicao com que me fazia apalpar as coisas, o cuidado quando me guiava, o perfume, foram os elementos de que tenho conscincia para a minha seduo nesse primeiro afeto de antes dos meus oito anos... Outros intervieram tambm para as mulheres de quem vim a gostar mais tarde. No me faltar coragem para confess-los ao leitor, no capitulo adequado.-- Pgina 62 DESERDADO DA ESCOLA Isolamento Crescente - Incio da Introverso Perigosa - Falta de Aplicao da Foras Interiores - Concentrao Doentia - Prodgios do Aprendizado - Vida de Fantasia - Deformao Somticas - Desequilbrio Nervoso. L ficou o nosso heri fora da escola: vive em casa, j tem 8 anos, comea a sentir-se inferior aos outros meninos, a rua no lhe apetece. O colgio de cegos, longe, muito longe, - l no Rio, a me no quer que ele v - "Qual, comadre!... Depois para voltar?... Eu, me apartar de meu filho? Ele no pode viver sem mim!... Ele no se veste direito. Coitado! Andar por mos de estranhos... Dizem que l ele estuda, mas estudar para qu?... - Deus quis tirar as vistas dele... agora, deixa ficar. Deus sabe o que faz..." E o isolamento do menino cresce. S h alguns irmos menores, quase da idade dele, ainda sem ir escola, enfim... Sua idade mental j comeou a retardar-se e ele sente prazer na companhia dos irmos de 6 e 5 anos. Mas sempre um isolamento. Sua atividade cerebral comea a crescer em desarmonia com suas relaes-- Pgina 63 com o mundo. O crebro espera, retarda-se mas no muito: em pouco, ele comea pensar em coisas incapaz de executar, e essa atividade mental no saciada, entra a rumar por caminhos falsos. - "Eu queria ir l no morro, naquele p de goiabeira... O Tonico trouxe tanta goiaba... Ele s vem de noite da escola... Mame no deixa eu ir sozinho... Eu era capaz de passar naquela vala. Eu deitava na pinguela e ia-me arrastando. Mame no deixa. Mas eu queria. Eu queria. Eu queria... Se eu fosse... Se eu fosse... Mame no deixa!... Ela saiu agora mas volta j. Eu queira... Eu queria... Goiaba... Goiabeira... O morro... E aquele dinheiro que a mame no quer que eu mexa?... Vou rasgar todo..." A me s encontra fagulhas do dinheiro. Grita, desespera-se com o prejuzo mas no sabe que aquilo foi o morro, as goiabas, a goiabeira. "Perverso"... O mal, tu sabes fazer. Soubeste bem onde estava o dinheiro... mas os sapatos, tu no sabes. Deus quando te cegou no foi toa!... "O cego revolta-se mais. Sofre mais que os outros meninos ralhados, porque a repreenso lhe fica rodopiando na cabea dias a fio. De outra vez, talvez no rasgue o dinheiro, nem faa coisas de que a me d conta. Ser pior: revolta-se intimamente contra o irmo que vai goiabeira quando quer. Recalca uma raiva surda que no exprime, mas que lhe sai insensivelmente, sob vrias formas, nas relaes com Tnico. claro que ele no se conforma com a proibio. Acha que podia ir, deitava-se na pinguela, mas a me no deixa. A idia continua a persegu-lo. Ningum lhe sabe descobrir distraes para esquec-la. O rseo da alvorada, o azul do meio dia, o vermelho do poente, nada chega at ele. Tem uns brinquedinhos de-- Pgina 64 casam nas cansou-se deles. Descobriu tudo. Se as outras crianas gostam de quebrar brinquedo, ele ento, que s tem as mos para exprimir-se... quebra, quebra muito mais que os outros, brinquedos e objetos da casa. Sabem disso todos os que vivem com crianas cegas, principalmente os inspetores dos internatos. Um internato de colgio de cegos, de uns 10 anos, arrancou, um por um, todos os martelos de um piano e atirou-os pela janela. Criana perversa? No: criana que tem, nas mos, quase que o nico instrumento de expresso da sua atividade mental, no raro incendiada de recalques. De mim, sei que cheguei at s crueldades no uso das mos. Quando um de meus irmos me trazia um gafanhoto vivo, distraa-me algum tempo a tatear os movimentos do bicho e depois, querendo fazer que ele me impressionasse tambm o ouvido, encostava-o na chapa quente do fogo. O pobrezinho chiava, e eu gostava muito. De uma feita, aprisionei uma galinha. Eu estava, s no galinheiro, um dos meus lugares preferidos. Estive com o bicho na mo, muito tempo, apalpei-o por todos os lados, examinei-o bem e lembrei-me do seu bebedouro - uma panela de ferro bem menor que ela. "Se a metesse l dentro?" "Se a metesse l dentro?" Meti-a, vi que no cabia bem, e decidi-me faz-la caber. Novo Procusto de galinhas. Passei-lhe as asas para dentro, depois a cauda, mas o papo e o pescoo ficavam muito fora. Peguei na cabea, meti num vo, e subi em cima do desgraado bichinho para revel-la com mo bordo do bebedouro. Um grito de minha me arrancou-me tarefa. Tirei o bicho s pressas e p-la no cho na esperana de que andasse. Empurrei-a com o p, mas j ia longe a vida. No me recordo de que me desse pena. O-- Pgina 65 aspecto da ave imvel, cabea retorcida, enlameada, massacrada, comparado com as outras soltas, alegres, branquinhas, mariscando no terreiro, talvez confrangesse outra criana: a mim no. Pelo que observo em mim e nos outros, a ausncia do aspecto visual da desgraa deixa-nos, muitas vezes, indiferentes a ela. Tambm, j nos chega a tristeza nossa. Mas assim: um fregus do aougue que morreu, uma senhora cheia de filhos, que passava por ali todos os dias, para ir comprar leite, com as crianas pela mo. Todos se entristeciam, meus irmos comentavam, o enterro passava e ia tudo pra a porta ver. Eu no: era como se nada tivesse havido. No via a mulher, nem os filhos... Nunca falaram comigo... Para mim era como se tivesse morrido ma chinesa em Nanquim. Esse detalhe, porm, como tantos outros, era mais uma causa de me sentir diferente no meio dos meus. Retomemos l o recalque da goiabeira: se o recalque no se exterioriza no irmozinho, ainda pode ser pior. Um ratinho branco que a criana tivera uma vez na mo e desejara muito possuir, vem e mistura-se com a histria da goiabeira. O ratinho comea a falar-lhe ao ouvido: - "Eu te levo na goiabeira... Eu te levo". uma voz suave. De repente, o bichinho cresce, cresce, fica assim mais alto que um cachorro dos que o cego pegou. "Eu te levo... Eu te levo". O corpo fica muito esguio, l em cima de umas patinhas finas, finas como-- Pgina 66 as do ratinho que tivera na mo. J pode montar no rato e ir. No se apercebe do corpo frgil, nem das pernas finas. A idia o persegue; o rato leva-o onde a me no quer que ele v. A bobagem no lhe sai da cabea, entra noite e sai dia. Agora, o rato pisa forte: o barulho do vizinho pisando duro, na casa ao lado, de soalho antigo, j lhe parece a cavalgada do rato. A idia no o deixa. O vizinho era o meu e a perseguio to minha, que pude aqui pint-la facilmente. Era a manifestao da "vida de fantasia", to funesta minha formao mental, de si j to difcil. O tempo e os fatos esbatiam a obsesso. Mas, novamente, os fatos e o tempo davam lugar a outra. Gostava muito de passarinhos, mais ou menos por aquela poca. O guarda-livros de meu pai tinha muitos e prometera-me um, mas quando o pegasse no alapo. O alapo do Senhor Guilherme no me saiu mais da cabea. "Cai, cai passarinho no alapo do seu Guilherme". No sei quanto, mas tenho a conscincia de que durou muito a obsesso. Durou o necessrio para eu me lembrar dela at hoje. Recordo-me bem de uma noite em que passei na calada do meu quarteiro, abaixo e acima, com a mo no ombro do meu irmo Antnio, e falei, falei muito no alapo do Senhor Guilherme. O passarinho no caa e a fantasia ia aumentando. Devaneios de toda sorte. Essa atividade fantasiosa acaba, parece, por tornar-se num vcio mental. Hoje, aos 37 anos, quando sei surpreend-la, conheo-lhe a origem e posso domin-la, ainda me distraio muito formando os meus castelos. Quando dou por mim, l estou fora do mundo pensando... direi mais adiante.-- Pgina 67 Estamos vendo que a concentrao mental no cego chega a ser doentia. Se bem orientada, contudo, muito pode ajud-lo a superar a privao. Com efeito, por vezes, fatores casuais isso determinam: o caso do menino cego que faz isso e faz aquilo. Paulo, filho de comerciantes pobres, estabelecidos num subrbio do Rio, prendeu a ateno nos aparelhos de iluminao. Deve Ter cismado tanto naquilo, que, aos 11 anos, instalou tomadas e lmpadas com bastante acerto. Essa concentrao vizinha ou parente daquela vida de fantasia. Tambm ela acaba por se erigir em vcio, ou antes em defeito do crebro de quem no v. Dou o meu testemunho de que, at hoje, me concentro demais nas coisas que desejo executar. Penso nelas em demasia, amasso-as por demais no crebro, mo e remo o prazer, no antegozo de realiz-las. A pior conseqncia que, saturado, no mais experimento grande satisfao ao execut-las. H outras: atormento-me com as perspectivas do insucesso, e dano-me quando vou dar algum passo que falha. No s: no mecanismo centrpeto da mente, projeto um xito retumbante e no tenho foras para atingi-lo. Na concentrao excessiva, esqueo os ouros passos da vida. Vivo assim constantemente espicassado pelo aborrecimento de me esquecer de certos afazeres, o que retarda o andamento dos trabalhos que tenho em mo. O leitor, que sempre ouviu dizer que "o cego tem boa memria", estar intrigado com a minha afirmao. Tem memria decorrente daquela concentrao que estudamos. Memria para os obstculos, porque se exercita no andar sozinho. Memria para nmeros de telefone -- Pgina 68 porque no pode consultar catlogo. Enfim, memria hipertrofiada numa direo e atrofiada noutra. A vista , por si mesma, dos melhores auxiliares da memria. A memria visual, para quem a tem, das mais retentivas e abrangentes. Deixem-me aproveitar o ensejo para dizer, com a minha experincia e observao que a falta da vista no d privilgios a ningum. Traz, sim, custa de enormes sacrifcios, desenvolvimento de aptides com que os outros no mexem porque no precisam. Quando no sucumbe ao esforo para desenvolv-las; l surge o cego com elas luz do sol. Quantos cegos brasileiros, notveis conhece o meu leitor, dos nossos... 60.000 ou das centenas que passaram pelas escolas??... O dito "Deus tira os dentes mas alarga a guela" - no tem a aplicao. No cego, a goela se alarga fora de engolir os bocados duros que a privao da vista lhe oferece constantemente. Ou alarga, ou o esprito se lhe definha de fome - fome de sensaes, de alegria, de amor, de vida... Na infeliz criana que ficou fora da escola, temos ainda mais desditas a apontar. No sou pessimista: tenho que dizer a verdade. A coisa triste, no posso faz-la alegre. Aquela falta de movimento que surpreendemos desde o bero, com a ausncia de luz, veio sempre perturbando a sade do nosso pequeno. A o temos, com oito anos, minguado, raqutico, enfezadinho. Por melhor que haja sido o seu meio, por mais bem compreendido no seu estado, ele se movimentou, pulou, retouou-- Pgina 69 e correu menos que as outras crianas do seu ambiente, pelo que viemos vendo. Alm do mais, no vendo as atitudes corretas para imitar, adquire vcios de postura. Se anda, no tem o tronco ereto nem balana os braos. Senta-se e derreia-se todo para a frente, abaulando o dorso, com graves danos para o trax. Como no precisa encarar os outros, a cabea cai-lhe pesada sobre o peito. Toda a sade se lhe altera. Embora limitados os desgastos da mocidade, pelas prprias condies de cegueira, elevada a percentagem de vtimas da tuberculose, entre os cegos de meu conhecimento essas causas danosas para a sade, junte-se ainda o desequilbrio nervoso que deve resultar da luta mental referida no captulo. A ausncia de expresso para o trabalho da mente, no pode deixar de ser ruinosa para a sade. Comeam a os tiques, os cacoetes e as manifestaes nervosas de toda ordem. No me permito acabar este captulo sombrio, sem avisar o leitor de que h confortadoras excees a essas crianas. Sei de uma meia dzia delas que tiveram a fortuna de encontrar quem as soubesse conduzir. Pouqussimo para "os deserdados da escola" no Brasil, mas o suficiente para assegurar o xito da tarefa de recobro pela educao mesmo em casa e para animar o pai dos cegos a encet-la com denodo.-- Pgina 70 IDADE ESCOLAR A Tortura da Me - Incio da Tragdia Social do Cego - O Divrcio dos Irmos - O Prazer da Criana Cega nos Brinquedos dos Irmos - Iniciativas de Minha Me - Meus Primeiros Complexos pelas marcas da Varola - Minha Participao num Bloco Carnavalesco de Crianas - Botes Crestados Antes da Florao - Males Sociais da Criana Cega. Chega a idade, mas a vida escolar no comea. Os irmos vo para o colgio, mas a criana cega fica. Fica e chora, desejosa de acompanhar os outros, mas no vai. - "Voc no pode ir, meu filho: voc no enxerga. A professora no te aceita. Deixa que mame vai comprar um trenzinho para voc: No Chora! Cala a boca!..." A me talvez chora mais que o filho que acalenta. O fruto de suas entranhas no pode ir ao colgio; no vir a "ser gente" como os outros. E aquele doutor lhe disse que se ela tivesse pingado o tal nitrato nos olhos do menino no tinha vindo aquela purgao e o filho no tinha ficado cego logo com quinze dias de nascido. Agora no pode ir para a escola!... Qual vai ser dele quando ela e o Pai faltar?...-- Pgina 71 o incio da tragdia social da criana cega. Pela primeira vez, ela tem perfeita conscincia de que diferente das outras. Helena Keller diz que o trato com os visitantes de sua casa, muito cedo a convenceram de que ela era diferente dos outros. No diz quando, mas afirma que foi anteriormente vinda de sua professora. Percebeu que os outros moviam os lbios para comunicar-se, e comeou a mover tambm os seus desordenadamente. de comover a sua descrio da angstia que isso lhe causou. A entre a nossa criana a dissociar-se dos irmos: eles vo passar parte do dia com ouras crianas, vo viver em ambiente novo. Chegam em casa, e o irmo cego no os entende. Eles fala de coisas e meninos que ele no conhece e a separao vai-se cavando. A famlia no sabe acudir ao mal. Como fazer que se entendam os meninos? A me tem pena de falar ao filho cego naquilo que os irmos aprendem. Ele no pode aprender; coitado!... Ele vai ficar triste; no se fala nisso. E a atividade escolar dos irmos passa at a ser segredo para o pequeno. E deixem que, na sua ignorncia, essas pobres mes tm l sua razo: elas me contam cenas de esfrangalhar um corao. "Quando ele escuta o irmo ler, vai para ele, apalpa o livro com os dedinhos e vai repetindo a mesma coisa como se estivesse lendo tambm". dura de suportar a situao da criana cega no lar. Se a me animosa, inteligente e cheia de vontade, procura vencer: "Vai, meu filho; leva teu irmo-- Pgina 72 contigo". - "Mame, ele no sabe soltar papagaio". - "No faz mal, passeia com ele, e deixa o papagaio para depois". Mas o filho quer ir ao papagaio com o colega de escola que o irmo cego no conhece. A me tem vontade mas no sabe: lembra-se do papagaio colorido, a cabriolar na limpidez dos ares, e pensa que o filho no vai gostar daquilo. Me, ele gosta sim. Quem te diz quem foi cego desde os primeiros anos, e teve os momentos mais felizes da infncia, solto na rua, correndo com os irmos, a mo esquerda sobre o ombro direito de um, fazendo tudo que eles faziam, diabruras, fossem quais fossem. Lembra-se bem o prazer enorme que me dava, segurar na linha tesa do papagaio, ora mais frouxa, ora repuxando, guinando de um lado para outro, abaixo e acima. Pelo ngulo que a linha me fazia na mo, eu dava conta de tudo, e providenciava, como os outros, para manter o papagaio no alto. No lhe via as cores nem as cabriolas mas tinha prazer naquilo. Porque fossem limitados os meus entretimentos, quem sabe se eu tinha at maior prazer que os outros? Me, que amarguras como a minha amargurou a desventura de Ter um filho que no v; no penses nuca na falta de vista de teu filho, quando quiseres saber se ele vai gostar disso ou daquilo. Tu, mesmo tu, que s me no o compreenders na sua situao: faze-o participar da sociedade de teus outros filhos, sem te importar com a cegueira dele, nem com a cegueira espiritual do teu vizinho que te censura. Faze como esta me: Um dia, as famlias de sua vizinhana resolveram lanar um bloco infantil para o carnaval. Convidaram-lhe os filho sos e ela disse que sim, contando que o cego fosse tambm. Houve arrepios, cochichos e at-- Pgina 73 censura cara--cara. Que ia fazer o pobre ceguinho no carnaval? Que o deixasse em casa que era melhor. A me fez que no ouviu e o filho foi, fantasiado como os outros, pintado como os outros. Quando o pintaram, os folies maiores, encarregados de arrumar o bloco, disseram, sem saber o que faziam: - !Ele fica at melhor que os outros, com esses buraquinhos na cara!"... Falavam das marcas da varola. Magoaram a criana: tinha ela seis anos s, mas j aprendera que trazia no rosto umas marcas que no saam, to comentadas pelos outros. "Coitadinho, ficou to marcado!..." Ele apalpava o rosto e encontrava os furinhos. O nariz, ento, havia quem dissesse que era casa de marimbondo. J aos seis anos, ningum lhe falasse naquilo: cocava-se at o fundo. Mesmo dizendo que "ele ficava melho que os ouros", magoaram-no. Mas ningum soube; foi um momento s. Da a pouco, sa