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1 A “VIDA DE ANTÃO”: UMA PEDAGOGIA PARA A VIDA ASCÉTICA UMA PEDAGOGIA PARA A VIDA ASCÉTICA A “Vida de Antão”

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A “VidA de Antão”: umA pedAgogiA pArA A VidA AscéticA

uma pedagogia para a vida ascética

A “Vida de Antão”

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O autor: Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria (295-373) .........................4

A obra 5

O personagem .........................................6

O percurso de Antão na vida ascética .......................................6

A Vocação de Antão ..........................7

A iniciação ........................................8

As tentações ......................................9

Progresso nas mortificaçõeseavanço para o deserto ..................................11

O mestre espiritual ..........................12

Desejo de martírio ...................13

Ortodoxia de Antão .................13

Conclusão .............................................15

Bibliografia ...........................................16

Frei Sandro roberto da CoSta, professor do Instituto Teológico Franciscano (ITF), onde leciona História da Igreja, e Coordenador do Departamento de História Franciscana (DEHIF) da Família Franciscana do Brasil, é doutor em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma.

Sumário

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A “VidA de Antão”: umA pedAgogiA pArA A VidA AscéticA

A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética

Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

O presente artigo parte da constatação de que uma das bio-grafiasmaisimportantessobreahistóriadavidareligiosaédesconhecidajustamenteporumagrandepartedaquelesque optaram pela sequela Christi. Sobre a vida do monge Santo Antão, quase todos já ouviram falar. A obra literária

Vida de Antão,escritaporSantoAtanásio,poucosconhecem.Constata-seofatodequeAntãoésimconhecido,massuperficialmente.Porisso, o ob-jetivodesteartigoéofereceralgumasreflexõessobreapropostadeAtanásioaoescrever a Vida de Antão. Não pretendemos esgotar o tema. Nos daremos por satisfeitos se conseguirmos despertar o interesse nos leitores(as), sobre um texto quemereceedevesermelhorconhecido,lido,refletido,principalmenteporaque-les e aquelas que, um dia, tocados pelo Espírito, se entusiasmaram por seguir a mesma vida vivida por Antão.

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A “VidA de Antão”: umA pedAgogiA pArA A VidA AscéticA

1. O autor: Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria (295-373)

A Vida de Antão foi escrita por Atanásio, bispo de Alexandria. Pratica-mente todas as informações que temos sobre Antão, seu estilo de vida, morti-ficações, milagres, tentações, virtudes,etc,nosforamlegadasporestehomem1. Por que Atanásio se interessou pela vida de Antão? Para termos uma resposta, precisamos conhecer primeiro o autor.Na verdade Atanásio é um dos persona-gens mais importantes no longo e tra-balhosoprocessoqueculminoucomadefiniçãodadivindadedeJesus.Nasci-do por volta de 295, participou em 325 do Concílio de Niceia, como diácono assessor do Patriarca Alexandre, bispo de Alexandria, no Egito. Sucedeu a Ale-xandre em 328, tornando-se bispo com apenas 31 anos. O Concílio de Niceia, primeiro Concílio Ecumênico da Igreja,

haviadefinidoadivindadedeJesus,derrotandoassimaheresiaariana,queafirmavaqueJesuserauma criatura inferior ao Pai, negando, portanto, a sua divindade. Apesar da condenação quase unâ-nime dos bispos, o arianismo continuou vivo e atuante. Os poucos arianos derrotados conseguiram o apoio dos membros da família imperial, e aos poucos iniciou-se uma dura repressão contra os defensoresdeNiceia.Grandebispo,teólogo,asceta,amigodosmongeseincentivadordomona-quismo, Atanásio se destaca neste cenário de perseguição e luta pela defesa da fé nicena2. Quatro imperadores se empenharamem fazerAtanásio acatar as teses arianas,masnão conseguiram.Atanásioéchamado“colunadaIgreja”.Morreuem373.

1AsdúvidaslevantadaspelosestudiosossobreaexistênciahistóricadeAntãoforamsuperadas.EmborasejaquaseimpossívelsepararasideiasdeAtanásiodavidadeAntão,algunsdadoshistóricosprovamaexistênciadestepersonagem,comoofatodequedeixouumgrupodediscípulos,alémdassetecartasquelhesãoatribuídas,ealguns“apoftegmas”(sentençassábiasdosPadresdodeserto,transmitidasoralmente,ecolocadasporescritoapartirdoVséculo).UmacartadeSerapião,bispodeThmuis,aos discípulos de Antão, para consolá-los de sua morte, é anterior à Vida,oqueatestaaexistênciahistóricadeAntão,bemcomotestemunhaaextremaautoridadedequeomongegozava.

2OCredoquerezamosacadadomingonamissa,o“niceno-constantinopolitano”,porqueelaboradoemNiceia,vaiserreafirmadoe completado em 381, no Concílio de Constantinopla.

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2. A obra3

Nos 45 anos em que esteve à frente de sua diocese, Atanásio sofreu todo o tipo de perse-guiçõeseacusações,incluindoameaçasfísicas.Exiladoporcincovezes,nostrêsúltimosexíliosrefugiou-se junto aos monges do deserto. Teria escrito a Vida de Antão durante sua estadia com estesmonges,entre356-362,ouporvoltade366,apósseuúltimoexílio.Discute-seaindahojeseAtanásioteriadefatoconhecidoAntão4. De qualquer modo, ao escrever a vida de Antão, o bispoofazsobreumestilodevidaqueeleadmiraeconhece,poistinhaconstantescontatoscomos monges5. Foram estes os seus principais aliados na defesa de Niceia, e ele mesmo, embora nãofossemonge,tinhaumavidaascéticaexemplar.

A Vida de Antão é a primeira obra a relatar a vida de um monge, e vai servir de modelo paraasbiografias(ouhagiografias)posteriores6.Antãoéconhecidocomo“opaidosmonges”,emboraelenãotenhasidooprimeiroavivervidamonásticaanacorética,eAtanásiosabiadis-so7.Literariamenteaobraéinseridanacategoriadehagiografia,ondeoobjetivoprimeironãoénarrarobjetivamenteavidadeumpersonagemilustre,mas,valendo-sededadoshistóricos,passarumamensagemedificante,buscandoconvencerosleitoresatrilharemosmesmospassosdapessoaretratada.Isso,noentanto,nãosignificaqueaobranãocontenhaelementoshistóricos.AoladodefatoshistóricosenvolvendoavidadeAntão,Atanásiotambémfazsuasreflexõespessoais,sejammorais,religiosas,doutrinaisouespirituais,sobreovaloregrandezadavidamonástica e cristã em geral. A Vida de Antão contem a síntese de tudo o que um monge deveria viverparaserummonge“ideal”.OpróprioAtanásioafirma:“Vocêsmepediramumrelatoso-breavidadeSantoAntão:queremsabercomochegouàvidaascética,quefoiantesdela,comofoisuamorte,eseéverdadeoquedelesediz.Pensammodelarsuasvidassegundoozeloda

3Paraaelaboraçãodesteartigoutilizamo-nosdaediçãodacoleçãoSources Chrétiennes 400, Athanase d’Alexandrie. Vie d’Antoine. Introduccion,textecritique,traduction,notesetindexparG.J.M.Bartelink,LesÉditionsduCerf,Paris,1994.

4Atanásioescrevedeformaindireta,ouvindootestemunhodaquelesqueconviveramdiretamentecomAntão.AsdúvidassobreaautoriadaobraporAtanásioforamsuperadas,atravésdeumasériedetestemunhosdeescritoreseclesiásticosautorizados,comoGregóriodeNazianzo,porvoltade380,deJerônimo,em392,deAgostinho,entreoutros.Mastambémoestiloprópriodeescrever de Atanásio é perceptível em toda a redação.

5Utilizamosotermo“monge”aquiparanosreferirmosaosascetasqueviviamsolitários,diferentementedosqueviviamemco-munidades,os“cenobitas”,organizadosnosiníciosdoséculoIVporSãoPacômio(292-348).Outrapalavraparadesignarosquevivemsozinhosé“anacoreta”,derivadodogrego“anakorein”:retirar-se,isolar-se,recolher-se.

6 Não nos cabe, neste artigo, analisar os modelos literários empregados por Atanásio na elaboração de sua obra. Acenamos apenas aofatodequeoautorconheceeempregaelementosdaricaculturaliteráriapagãgreco-romana,aoelaboraroperfildeseuper-sonagemou“herói”cristão.

7 A Vidanãofaznenhumamençãoa“monjas”,mulheresvivendovidaascética.AúnicareferênciaaumapossívelvidareligiosafemininaéquandoAntãoconfiasuairmãaumacomunidadede“virgens”,oquenãoeraconsideradavidareligiosanosentidoexato da palavra. No entanto, em várias passagens, a Vidainsinuaqueogêneromasculinooufemininonãofaznenhumadife-rença na vivência da ascese. Provavelmente as Cartas e os escritos sobre a vida ascética, incluindo a Vida, eram lidos também pelas“Virgens”,suscitando,maistarde,algumasmulheresaviveremomesmoestilodevidadosmongesdodeserto.SãoJoãoCrisóstomo(347-407),nosinforma:“Nãosóentreoshomenstriunfaestavida,senãotambémentreasmulheres...Comumlhesécomosvarõesaguerracontraodiabo...muitasvezesasmulherestêmlutadomelhorqueoshomenseobtiverammaisbrilhan-tesvitórias...Vergonhemo-nos,pois,nóshomens,anteaconstânciaefirmezadestasmulheres”.Cfr.Colombás,GarciaM.,El Monacato Primitivo I: Hombres, Hechos, Costumbres, Instituciones,BibliotecaAutoresCristianos351(BAC),Madrid1974,p.88. Uma Amma famosa, cuja vida é comparável à Vida de Antão, é Synclética, morta por volta de 350. Cfr. http://www.peregrina.com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html (acessado dia 04 de abril de 2015).

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(vida)dele.Muitomealegroemaceitaressepedido,poistambémeutirorealproveitoeajudadasimpleslembrançadeAntão,epressintoquetambémvocês,depoisdeouvidaahistória,nãosóadmirarãoohomem,masquererãoemularsuaresolução,quantolhessejapossível.Realmente,paramonges,avidadeAntãoémodeloidealdevidaascética”(Prólogo,2-3)8.

Aobra obteve um sucesso imediato, tornando-se o que hodiernamente denominamosde“bestseller”.Escritaoriginalmenteemgrego,levadaaRomafoitraduzidaparaolatimporEvagrio de Antioquia. Dali, a Vida de Antão difundiu-se por todas as partes do Império Romano, influenciandoavidademuitoshomensemulheresdefé.Agostinho,SãoJerônimo,SãoMarti-nho,entreoutros,foraminfluenciadosporela.

3. O personagem

Quando Antão morreu, em 356, estaria com 105 anos de idade. Hoje coloca-se seu nas-cimentoentre250e260.Filhodeumafamíliarica,cedotornou-seórfão,comumairmãmaisnova. Com cerca de 18-20 anos resolveu deixar tudo para trás e dedicar-se à vida monástica. A partirdaí,suavidafoisedesenvolvendocadavezmaisemdireçãoàsantidade,comnãopoucasdificuldadesedesafios.IndoumdiaàIgreja,ejápensandoemsededicartotalmenteaoserviçodeDeus,notemploescutaoEvangelhodeMateus:“Sequeresserperfeito,vendeoquetensedá-oaospobres,depoisvem,segue-meeterásumtesouronocéu(Mt19,21)”.ParaAntão,essaé a resposta que procurava para seus questionamentos. Doou seus bens aos pobres, retendo uma pequena parte para a irmã, mas até essa parte será depois distribuída. A irmã é colocada para viver junto a algumas virgens consagradas. A partir daí, Antão inicia sua fuga mundi.

4. O percurso de Antão na vida ascética

A Vida de Antãonãonosapresentaumsantopronto,estáticoedefinido.TodaaVida nos faladedinamicidade,decrescimentogradual,decaminhoaserpercorrido.Aobraéimpostadajustamente nestes termos: um guia elaborado de forma a indicar os passos a serem dados, as etapas a serem seguidas, por quem quisesse encetar um estilo de vida igual ao de Antão. Atanásio impos-tousuaobradentrodebemdelineadascoordenadas,quesãocomoqueum“fiocondutor”,queoleitor interessado pode seguir e, se o quiser, imitar. O crescimento espiritual não acontece de modo linear:“CadaetapadavidadeAntãoécaracterizadaporumacrise,ummomentodeprovaedetentação, um equilíbrio que se rompe para deixar lugar a algo de novo, àquela nova criatura que oSenhorestáplasmandopoucoapouco.Ealutacontraomalsetornacadavezmaisinterior,atéatingiraprofundidadedocoração,asregiõesdeseuseraindanãoevangelizadas...”9.

8Naliteraturaantiganãoeranenhumproblemaumautorvaler-sedaautoridadedeumpersonagemimportanteparafazerpassarsuasprópriasconvicções,colocando,nabocadopersonagem,ideiasqueeramsuas.

9 santo atanasio, Vita di Antonio. Apoftegmi – Lettere,EdizionePaoline,Roma1984.IntroduçãoaoscuidadosdeLisaCremas-chi,p.56.Observamosque,emitaliano,onomedeAntãoétraduzidocomo“Antonio”.

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4.1 A Vocação de Antão

Um dos primeiros elementos que Atanásio destaca na Vida, é o fato de que o processo de discernimentodojovemAntãoégradual,masdecidido.Apósamortedospais,entreos18ou20anos,“jápensandoemsedoartotalmenteaoserviçodeDeus”,etendoemmenteoexemplodosapóstolos,quedeixandotudo,seguiramaCristo,eoexemplodosprimeiroscristãosnosAtos, que distribuíamosseusbensaospobres,eleouvenaIgrejaoEvangelhoqueofazdecidir-sedeumavez10.VejamosoquedizAtanásio:“Pensandoestascoisas,entrounaigreja.Aconteceuquenessemomentoseestavalendooevangelho,eouviuapassagememqueoSenhordisseaojovemrico:

‘Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um tesouronocéu’(Mt19,21)”(II,3)11.SegundoAtanásio,Antãosentiuqueapalavrahaviasidodirigidadiretamenteaele.Enãoperdeutempo:“AntãosaiuimediatamentedaIgrejaedeuapropriedadequetinhadeseusantepassados”(II,4).Deixouumpoucoparaairmã,masmesmoestapequenaparteacaboudandoaospobres,aoouvir,denovonaIgreja,oEvangelhoquediz“Nãovospreocupeiscomodiadeamanhã(Mt6,34)”(III,1).Airmãfoientregueaoscuidadosde uma comunidade de virgens.

AtanásiosublinhaalgunselementosimportantesnavocaçãodeAntão.Primeiro,adisposiçãointeriorparaseguiraDeus:jáantesdeouviroEvangelho,Antãovinha“pensandoessascoisas”.Issofazcomque,aoouviroEvangelho,ojovemsintaumchamadopessoal,direcionadoespecialmenteaele.Enãosenegaàresposta:contrariamenteaojovemricodoEvangelho,quecomoele“tinhamuitosbens”,Antãoimediatamentedeixatudo12.Atanásiosublinhaaatitudedecididaeperemptóriadojovem:nãohátempoaperder,adecisãojáestátomada,eéimediata.Comoarespostaimediatadosapóstolosao“vemesegue-me”deJesus,Antãoparteparaasequela Christi.MasaindaháumelementoqueAtanásiosublinha:adecisãodeAntãoé,detalmododefinitivaeradical,queelenãodeixaespaçoparanenhumapossibilidadederetorno.Porisso,emborativessedeixadoumapartedosbensparaosustentodairmã,comoeradedireito,quandoouveoEvangelhoquedizpara“nãonospreocuparmoscomodiadeamanhã”,atéoquehaviareservadoparaairmãédadoaospobres.Antãonãotemmaisnadaqueoprendaaestemundo.AabsolutaconfiançanaProvidênciaDivinaécondiçãoparaodiscipulado.Livre,podecorreraoencontrodoSenhorqueochamouporprimeiro.ComodizSãoJoãoCassiano,“ÉavozdeDeusqueoarrancoudestemundo”13.

10Seguindooestilotípicodahagiografia,AtanásioapresentaomeninoAntãoquasecomoummini-asceta.11 As indicações que se seguem às citações correspondem à edição da Sources Chrètiennes,jácitada.Nawebencontra-seuma

tradução em português da Vida,feitapelasmonjasBeneditinasdoMosteirodaVirgem,dePetrópolis:https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf.

12EstetrechodoEvangelhovaiinspirarmuitosfuturosfundadoresdeOrdenseCongregaçõesreligiosasaolongodahistória.Trêsmodelostornaram-setradicionaisaseremseguidos,quandoalguémqueriacomporumahagiografia:aVida de Antão, de Atanásio, a Vida de Paulo de Tebas,deJerônimo,eaVida de São Martinho, de Sulpício Severo.

13Umelementoasublinharno textosãoas“mediações”:ochamadoéEvangélico,atravésdasEscrituras, intermediadopelaIgreja,naliturgiadominical,epelosmestresmaisexperimentados,queointroduzemnavidaascética.EmtodaaobraAtanásioutiliza-seabundantementedostextosdasEscriturasparadestacaroperfeitoseguimentodeAntãodadoutrinacristã,aomesmotempoemqueoidentificacompersonagensbíblicos.

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4.2 A iniciação

Atanásio mostra o processo de iniciação de Antão à vida ascética como uma gradual afas-tar-sedoconvíviocomoshomens.Aprincípio,praticaavidaascética,“vivendoderenúnciaasimesmo,pertodesuaprópriacasa”(III,1).Porém,sabendoquenumaaldeiapróximaviviaumanciãoquedesdeajuventudelevavavidaascética,muda-seevaiviverpróximoaele.Masnãoselimitaaisso:“quandoouviaqueemalgumapartehaviaumaalmaesforçada,ia,comosábiaabelha,buscá-laenãovoltavasemhavê-lavisto;sódepoisdehaverrecebido,porassimdizer,provisõesparasuajornadadevirtude,regressava”(III,4).Ojovemviviadetrabalhosmanuais,paraoprópriosustentoeparadaresmolasaospobres,oravaincessantementeeseocupavadasEscrituras.Antãoéa“sábiaabelha”quebuscaoricopólenparaelaborarodocemeldavirtu-de. Nesse processo inicial, buscava com sede todas as informações que o pudessem ajudá-lo nocaminhoquehaviaencetado:“Observavaabondadedeum,aseriedadedeoutronaoração;estudavaaaprazívelquietudedeumeaafabilidadedeoutro;fixavasuaatençãonasvigíliasobservadasporumenoestudodeoutro;admiravaumporsuapaciência,aoutroporjejuaredormirnochão,consideravaatentamenteahumildadedeumeapacienteabstinênciadeoutro;eemunseoutrosnotavaespecialmenteadevoçãoaCristoeoamorquemutuamentesetinham.Havendo-seassimsaciado,voltavaaseulugardevidaascética”(IV,1-2).Nasuabusca,Antãorecorrea“experts”,queoajudamapercorrerosváriosgrausdeamadurecimentonoespírito.Oautoracentuaaimportânciadapráticanavidaascética,enãoapenasasteorias:“...submetia-secom toda sinceridadeaoshomenspiedososquevisitava,ese esforçava por aprender aquilo em quecadaumoavantajavaemzeloeprática ascética”(IV,1).Osexercíciosvisavamsubmetertotalmente o corpo e os sentidos, para fortalecer o vigor espiritual da alma.

AtanásionosrevelaumjovemAntãonumfrenéticoprocessodebusca,deconhecimento,sedentoporaprendercomaquelesquetinhammaisexperiência.NãoàtoaAtanásioutilizaaexpressão“Havendo-seassimsaciado”.Antãotemsededeconhecerocaminhodavirtudeedasalvação. E, segundo Atanásio, este se dá através dos modelos de vida ascética que Antão busca conhecer,cadaumcomalgumavirtudeparticular.Atanásioapresenta,nestetrecho,umcompên-diodasvirtudesquedeveteromongeideal,queAntãobuscavaincorporaremsuavida:“Entãose apropriavadoquehaviaobtidodecadaumededicavatodasassuasenergiasarealizar em si as virtudes de todos”(IV,2).AtanásiovaiapresentarAntãonasuamaturidadecomoumasíntesede todas essas virtudes.

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4.3 As tentações

Os primeiros anos de vida ascética de Antão, além dasedentabuscadeconhecimentodavirtude,sãomarca-dostambémpelastentaçõesepelapresençadodemônio14. Tais tentações vão aumentando gradativamente, à medida em Antão avança na vida ascética. As primeiras tentações estãorelacionadasàvidaqueatéhápoucotempolevava:a preocupação com a irmã, com os parentes, os bens, e a lembrançadosprazeresvividosedeixadosparatrás.Éatentaçãode,umaveztendo“colocadoasmãosnoarado”,voltara“olharparatrás”.Relacionam-setambémcomostemores relacionados à austeridade da vida assumida, às dificuldadesfuturas.Vencidaestaetapa,odemônioentãoconcentraseusataquesnasarmasqueestão“nosmúsculosdeseuventre(Jo40,16)”(V,3).Empregandosuasmaisbaixasartimanhas,odemônioatacajustamenteopontomaisdelicadonojovemasceta:suasexualidade.Estastenta-çõessãoterríveis,fazendoAntãotravarverdadeirasbatalhascontraomal:“cingiaseucorpocomsuafé,oraçõesejejuns”(V,4).Odemôniochegaadisfarçar-sedemulherparatentá-loànoite.Ojovemresiste:“MaseleencheuseuspensamentosdeCristo,refletiusobreanobrezadaalmacriadaporEle,esuaespiritualidade,eassimapagouocarvãoardentedatentação”(V,5).Odemô-nio continua suas investidas, e não desiste. Interessante notar que Atanásio emprega expressões muitohumanasparasereferiraoânimodojovemAntão:“enfadadocomrazão,eentristecido...envergonhado”(V,6).Nofinaldorelato,porcausadaresistênciadeAntão,éodemônioquesaiderrotadoeenvergonhado.Avitória,momentâneadiga-sedepassagem,éatribuídanãoaAntão,masàgraçadeDeusqueagenele:“VerdadeiramenteoSenhortrabalhavacomestehomem”(V,7).AlutaevitóriadeAntãocontraomal,atravésdorigornasmortificações,particularmentealutacontra a concupiscência e os sentidos, é apresentada como modelo para todos os que querem viver umavidaascética:“Assim,todososquecombatemseriamentepodemdizer:‘Nãoeu,masagraçadeDeuscomigo’(1Cor15,10)”(V,7)15.

14Oexageradoacentono“demônio”éumadasmaisfortescríticasàobradeAtanásio.Noentanto,sabe-sequeosdemônioseastentações eram um tema comum na religiosidade popular da época e da cultura onde a obra foi escrita. Não nos cabe aqui tratar exaustivamentedas“tentaçõesdeSantoAntão”.Sobreissoexistemlivrosinteiros.Otematambémfoiextremamenteexploradopor importantes artistas, em pinturas, mosaicos, afrescos, iluminuras de livros, etc. De todas as Vidas escritas, a de Antão é a quecontemmaisapariçõesdiabólicas.Carpenter,DwayneE.,The devil bedevil: diabolical intervention and the desert fathers, TheAmericanBenedictineReview,31:2,june1980,182-200.

15 Antão aprendeu a discernir a verdadeira ascese, por isso alertava constantemente os monges contra o falso desejo de ascese e perfeição.Jejuns,vigílias,mortificaçõesnãopodemserabsolutizados,eservemapenascomomeiosparaoexercíciodacarida-de,doamordeDeusedopróximo:“Algunsdestroemoprópriocorpocomaascese,mas,privadosdediscernimento,distan-ciam-sedeDeus”(Apoftegma8).Aessepropósito,SãoFranciscodeAssisafirmava:“Muitosháque,insistindoemoraçõeseserviços,fazemmuitasabstinênciasemaceraçõesemseuscorpos,mas,porcausadeumaúnicapalavraquelhespareceumainjúriaaseupróprioeuouporcausadealgumacoisaqueselhestirem,sempreseescandalizam(cf.Mt13,21)eseperturbam.Estesnãosãopobresdeespírito,porquequeméverdadeiramentepobredeespíritoseodeiaasimesmoeamaaquemlhebatenaface(cf.Mt5,39)”.Escritos de São Francisco,AdmoestaçõesXIV,Vozes20044, p. 40.

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A “VidA de Antão”: umA pedAgogiA pArA A VidA AscéticAas tentações de santo antão, por michelangelo

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A “VidA de Antão”: umA pedAgogiA pArA A VidA AscéticA

4.4 Progresso nas mortificações e avanço para o deserto

OsprimeiroscombatescontraastentaçõeseavitóriamomentâneanãoiludemAntão:elesabequeodemônioestáàespreita.Porisso,oúnicocaminhoéaascese:“tendoaprendidonas Escrituras quão diversos são os enganos do maligno (Ef 6,11), praticou seriamente a vida ascética,tendoemcontaque,senãopudesseseduzirseucoraçãopeloprazerdocorpo,tratariacertamentedeenganá-loporalgumoutrométodo”(VII,3).Assim,Antãomultiplicaasmortifi-cações:noitessemdormiroudormindonochão,poucoalimento,jejunsconstantes,semcarneoubebidas,ousópãoesal16.Nestaparte,Atanásiosublinhaoesforçocontínuo,cotidiano,diaapósdia,nocaminhodaperfeição.Antãonãosepreocupavacomotempopassado,comopre-senteoucomofuturo,“masdiapordia,comoseestivessecomeçandoavidaascética,faziaosmaioresesforçosrumoàperfeição”(VII,11).Ocuidadoemsempre“começardenovo”éacentuadoporAtanásio“...comoquecomeçandodenovo,trabalhavadurocadadiaparafazerde si mesmo alguém que pudesse aparecer diante de Deus: puro de coração e disposto a seguir Suavontade”(VII,12).Antão,emváriosmomentos(inclusivenosapoftegmas),vairepetiroconselhodeconsiderarcadadiacomosefosseoúltimo,edesemprerecomeçarocaminhodaascesesemolharparatrás.

Apósesteembatecomodemônioeoacentuar-sedemortificações,AtanásioafirmaqueAntãodominou-seasimesmo.Mas,apesardetodooprogresso,omongenãoestásatisfeito.Sua alma deseja mais. Por isso retira-se para viver em uma tumba abandonada, num cemitério, nodesertopróximoàaldeiaondevivia.Alitravaosmaisduroscombatescontraodemônio.NestapartedorelatoAntãojáéumhomemexperimentadonosofrimentoenas tentações,eenfrentaodemônioquase“caraacara”:“Aquiestoueu,Antão,quenãomeacovardeicomteusgolpes,eaindaquemaismedês,nadamesepararádoamordeCristo(Rm8,35)”(IX,2).ParaAtanásio,alutacontraomalnãotemtrégua.Antãoestásempreemconfrontocomodemônio,quelheaparecedetodasasformaspossíveis,causando-lhedoreseferimentos.EtaistentaçõessãopermitidasporDeus.QuandoAntãointerrogaà“visão”queovemsalvar,“porquenãoapa-recestesnocomeçoparadeterminhasdores?”,ouveaexplicaçãodequeestavasempreali,mas“esperavaver-teenquantoagias”.E,emboraAntãocontecomapenas35anos,etenhaaindaumlongocaminhoapercorrer,a“voz”afirma:“porqueaguentastesemterenderes,sereisempreteuauxílioetetornareifamosoemtodaparte”(X,3).

16 Antão, como os demais ascetas, era vegetariano. Na espiritualidade monástica a pratica ascética de dormir por terra assume uma importância tal, a ponto de se criar uma palavra para designá-la: kameonia. Cfr. bormolini, Guildalberto, l’arte spirituale di affontare la notte e il dormire,RivistadiAsceticaeMistica,AnnoXXX,n.2,aprile-giugno2005,Firenze,p.207-236.Paravencer o pecado, Antão sugere aos monges a prática diária do exame de consciência, mas também indica um meio simples, mas eficaz:anotarnumpapelospecadoscometidos,comosetivessemquesermostradosaosoutrosmonges:“podemestarsegurosdequedepuravergonhadequeistosejaconhecido,deixaremosdepecaredeprosseguircompensamentospecaminosos.Quemgostaqueovejampecando?Quem,depoisdepecar,nãoprefeririamentir,esperandoescaparassimdequeodescubram?”(LV,9-11).

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Nocaminhodebuscapelaperfeição,nadadetêmAntão.Tendovencidoodemônionastumbas,decidiuaprofundar-seaindamaisnodeserto,indovivernumapequenafortalezaaban-donada.Convidouumanciãoparaircomele.Comoesterecusou,partiusozinho.Jánocaminhoodemôniootenta,masoascetasegueemfrente.Nesterefúgio,emsolidãoabsoluta,retiradodetudoedetodos,acompanhadoapenasdeDeus,dodemônioedesuasartimanhas,durantevinteanospraticandoavidaascética,“nãosaindonuncaesendoraramentevistoporoutros”(XII,7),vaiempreendersualutaespiritualradical,aofinaldaqualsairátransformadodefinitivamentenograndemestreespiritual,noabadeAntão,o“paidosmonges”17.

4.5 O mestre espiritual

Quandosaideseulongoretiro,apósosapelosdaquelesquequeriamimitarsuavida,Ata-násiofazquestãodefrisaranaturalidadecomqueAntãoseencontracomosqueoesperavam:“Oestadodesuaalmaerapuro,poisnãoestavanemretraídopelaaflição,nemdissipadopelaalegria,nem dominado pela distração ou pelo desalento. Não se desconcertou ao ver a multidão nem se or-gulhouquandoviutantosqueorecebiam.Mantinha-secompletamentecontrolado,comohomemguiadopelarazãoecomgrandeequilíbriodecaráter”(XIV,3-4).ParaAtanásio,Antãoéexemplodehumildadeesobriedade.Olongotempoquepassouemreclusãovoluntária,asvitóriascontraomal,aadmiraçãoqueaspessoaslhetributavam,nadadissomodificaseucarátereseucomportamento.

Com a saída de seu refúgio, Atanásio dá por encerrado o processo de transformação de Antão.Apartirdaí,omongeaparececomoummestreespiritual,umabade,umsanto.Realizacurasemilagres,dáconselhossábios,temvisões,éexemplodevidaparatodososqueseapro-ximamdele,aoseuredorseformaumapequenacomunidadedeanacoretas,odeserto“seenchedemonges”:“Pormeiodeconstantesconferências,inflamavaoardordosquejáerammongeseincitavamuitosoutrosaoamoràvidaascética;elogo,namedidaemquesuamensagemarrasta-vahomensapósele,onúmerodecelasmonásticasmultiplicava-se,eeraparatodoscomopaieguia”(XV,3)18.BoapartedaobradeAtanásio,apósatransformaçãodeAntãoemmestreespiri-

17O“deserto”,maisdoqueumlugargeográfico,designaolocalondehabitamosdemônios.MasétambémnodesertoqueoSe-nhorfirmasuaaliançacomopovo,eondeJesussemostratransfiguradoaosseus.“Odeserto,antesdetudo,éumlugarinóspito,tórrido,ondeninguémpoderialevarumaexistêncianormal.Láohomemestánu,apanhadoentreaterraeocéu,entreosdiasextenuanteseasnoitesgélidas...NodesertonenhumhomempodeviversenãoforajudadoporDeusouporseusanjos,ninguémpodemoraralisemenfrentar,maiscedooumaistardeosassaltosdodiabo:temdeviveralicomosmilagreseastentações”.laCarrière,Jacques,Padres do Deserto, homens embriagados de Deus, Loyola 1996, p. 50. Os monges conservaram uma sériedeapoftegmasdeAntão.Neles,maisdoqueumheróivitoriosoquevenceosdemônios,apareceumpecadorarrependidoetentado,paraquemodesertoéumrefúgio,maisdoqueumlugardecombatereenfrentardemônios,equeinsistesobreadiscrição,aprudênciaeahumildade.

18“Suas celas solitáriasnas colinas eramassimcomo tendas cheiasde corosdivinos, cantando salmos, estudando, jejuando,orando,gozandocomaesperançadavidafutura,trabalhandoparadaresmolasepreservandooamoreaharmoniaentresi.Eemrealidade,eracomoverumpaísdiferente,umaterradepiedadeejustiça.Nãohavianemmalfeitoresnemvítimasdomal,nemacusaçõesdocobradordeimpostos,masumamultidãodeascetas,todoscomumsópropósito:avirtude”(XLIV,2-4).NumdiálogodeAntãocomSatanás,este,emtomdelamúria,vaireconhecersuaderrota:“Agoranãotenhonemlugar,nemarmas,nemcidade.Emtodapartehácristãoseatéodesertoestácheiodemonges”(XLI,4).

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tual,éocupadapelos“ditos”domestre.Masmesmonestemomentoposterioràsua“formação”definitiva,AtanásioapresentaumAntãosemprenumatentoprocessodebuscadaperfeição.

4.5.1 Desejo de martírio

Numimpérioromanoondesercristãoeraviversoboconstanteriscodeperderaprópriavida, o martírio é um ideal a ser buscado, o mais alto grau de perfeição a que um cristão possa almejar. O monge é o sucessor do mártir, ao almejar o ideal cristão autêntico. Antão também deseja o martírio. Atanásio, metaforicamente, aplica o martírio à vida de Antão. A Vida de Antão substitui os Acta Martyrum,assimcomoavidamonástica,comofimdasperseguições,substituio martírio19.Coma“PaxConstantiniana”(ano313),osgrandesascetasdodesertosetornamosnovosheróiscristãos.EsteconceitoéclaramenteexpressonaVida. Antão vai a Alexandria para confortar os cristãos condenados ao martírio, mas também ele tem o expresso desejo de derra-marosangueparatestemunharoamoraCristo.Nãoconseguindoseuobjetivo,retornaàsuacelaesetornaum“mártirdiárioemsuaconsciência”intensificandoseuascetismo20. O tempo dasperseguições,comapossibilidadeconcretadederramarosanguepelafé,jáhaviapassado,quando Atanásio está escrevendo a Vida. Assim, Antão é apresentado como alguém que vive, no seucotidiano,aespiritualidadedomartírio:“aífoimártircotidianoemsuaconsciência,lutandosempreasbatalhasdafé.Praticouumvidaascéticacheiadezeloemaisintensa.Jejuavacon-tinuamente, sua veste interior era de pelo, e de couro a exterior, e a conservou até o dia de sua morte...”(XLVII,1-3).AasceseeamortificaçãosãoosnovosmeiosdesetestemunharCristonomundo.Atanásioacentuaaespiritualidadedo“morreracadadia”atravésdaseriedadenavidaascética21.

4.5.2 Ortodoxia de Antão

Devoltaaoseuretiro,afamadeAntãofazcommuitosoprocurem,paracuras,conselhoseapoio.Ansiandoporsolidãoepaz,etemerosodecairempresunçãoporcausadosprodígiosqueDeusrealizavaporseuintermédio,decidepartirdenovo,dessafeitaparaaAltaTebaida22. No ca-minho,escutaumavozquelhediz:“...serealmentequeresestarcontigomesmo,entãovai-teaodesertointerior”.Este“desertointerior”,representadopelamontanhaondeAntãopassaráorestode

19 Acta Martyrum eram os relatos sobre os mártires, lidos pelos cristãos.20 FranCis,J.Alcuin,OSB,Pagan and Christian Philosophy in Athanasius ‘Vita Antonii’,TheAmericanBenedictineReview,

32:2 – june 1981, Aurora IL, p. 100-113.21“Sevivêssemoscomosecadanovodiafôssemosmorrer,nãopecaríamos.Istosignificaque,acadadia,quandodespertamos

deveríamospensarquenãovamosviveratéàtarde;edenovo,quandovamosdormir,deveríamospensarquenãochegaremosadespertar”(XIX,3).Veja-setambémLXXXIX,4eXCI,3.

22Localizado,segundoatradição,naatualregiãodeOuadi-al-Arab,hácercade30quilômetrosdoMarVermelho.Aliseencon-tra atualmente o mosteiro Deir-amba-Antonios, ou o Mosteiro de Antão.

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seusdias,naverdaderepresentaoaugedesuajornadaespiritual.Aquielerealizaoidealdabuscadeperfeição.Nodesertointerioreleencontra-se“emcasa”:“Daíemdianteolhouesselugarcomosehouveraencontradoseuprópriolar”(L,2).Masosdemônioseastentaçõescontinuampresentes.Namontanhacultivaaterraparaosustento,continuaareceberseusmonges,etambémsaiparadarconselhos.Alirealizaamaiorpartedeseusprodígios.Masnãoosatribuiasi:“...noentantosuplicavaqueninguémoadmirasseporessarazão,masadmirasseantesaoSenhorporqueElenosouveanós,quesomosapenashomens,afimdequepossamosconhecê-lomelhor”(LXII,2)23.

Deseurefúgio,Antãosaimuitoraramente.Saiparacombaterasheresias(arianismo)eparavisitarefortalecerosmongesnafé.Masvoltasempreàsua“montanhainterior”,daqualnãopo-diaficarmuitotempoausente,comorecomendavaaosdiscípulos:“Assimcomoumpeixemorrequandoficaalgumtempoemterraseca,assimtambémosmongesseperdemquandosetornamfolgazõesepassammuitotempo[fora].Porisso,temosquevoltaràmontanha,comoopeixeàágua.Deoutromodo,senosentretemos,podemosperderdevistaavidainterior”(LXXXV,3)24.

Nocombateàheresiaariana,Atanásioapresentaomongedefendendoastesesqueelemesmo,Atanásio,defendia:“DesceuamontanhaeentrandoemAlexandriadenunciouosaria-nos.Diziaquesuaheresiaeraapiordetodaseprecursoradoanticristo.EnsinavaaopovoqueoFilhodeDeusnãoéumacriaturanemveio‘danãoexistência’aoser,mas‘éEleaeternaPalavra e Sabedoria da substância do Pai’... Por isso, não se metam em nada com estes arianos sumamenteímpios”(LXIX,1-4).

Antãotambémrecebeavisitadefilósofos,quequeremdiscutircomeleeotentamenganar,maselevenceatodos,coma“verdadeirasabedoria”:“Foram-seadmiradosdevertalsabedorianumhomemiletrado,quenãotinhaasmaneirasgrosseirasdequemviveueenvelheceunamon-tanha,maseraumhomemsimpáticoecortês.Seufalarerasazonadocomasabedoriadivina”(LXXIII,3-4).Nesteparticular,AtanásiopraticamentetransformaAntãonumfilósofo,aocolocá--lodiscutindodemaneiralógicacomsábiospagãos,acercadanaturezadosdeuses.Defendendoa“loucuradaCruz”,aencarnaçãoeredenção,realizadosporamoràhumanidade,Antãoutiliza-sedeargumentossofisticadosparaumhomemquehaviadedicadotodaavidaàascese:“Osassimchamadosfilósofosestavamassombradoserealmenteatônitospelasagacidadedohomemepelomilagrerealizado.Disse-lhes,porém,Antão:‘Porquesemaravilhamcomisto?Nãosomosnós,mas Cristo quem age através dos que Nele creem. Creiam vocês também e verão que não é pala-vreadoesimféquepelacaridadeoperaparaCristo’(cf.Gl5,6)”(LXXX,5-6)25.

23EmváriosmomentosAtanásiofrisaquequemrealizaosmilagresésempreDeus,atravésdeAntão:“Antão,pois,curava,nãodando ordens, mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que não era ele quem atuava, mas oSenhorquemostravaseuamorpeloshomens,curandoaosquesofriam,porintermédiodeAntão.Esteocupava-seapenasdaoraçãoedapráticadaascese”(LXXXIV,1-2).

24 A mesma frase se encontra nos apoftegmas de Antão.25Empolêmicacomosfilósofospagãos,osapologetascristãosdefendiamqueaverdadeirafilosofiaéavidacristã.Atanásio,

atravésdeAntão,vaidarumpassoàfrente,aoafirmarqueaverdadeirafilosofiaéavidamonástica.

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AortodoxiadeAntão tambémésublinhadapelorespeitoqueele tempelahierarquia.Atanásio parece querer acentuar que a experiência de Antão, e a experiência monástica em ge-ral,nãosãodesvinculadasdatradiçãodaIgreja.Antãomostrava“...omaisprofundorespeitoaosministrosdaIgreja,eexigiaqueatodoclérigosedessemaiorhonradoqueaele.Nãoseenvergonhavadeinclinaracabeçadiantedebisposedesacerdotes.Sealgumdiáconochegavaaelepedindo-lheajuda,conversavacomeleoquelhefosseproveitoso,mas,chegandoaoração,pedia-lhequepresidisse,nãoseenvergonhandodeaprender”(LXVII,1-2)26.

Antão, que um dia aprendera com os mestres, agora é o mestre espiritual, o maior deles, queconsola,cura,reconforta,converte,libertadosdemônios,edificanafé:“Numapalavra,eracomoseDeushouvessedadoummédicoaoEgito”(LXXXVII,3).

Antesdemorrer,Antãorecomendouaosdoismongesqueoacompanhavamqueoenter-rassemenãorevelassemaninguémolocal:“...façam-mevocêsmesmososfuneraisesepultemmeucorponaterra,erespeitemdetalmodooquelhesdisse,queninguémsenãovocêssaibaolugar.Naressurreiçãodosmortos,oSalvadormedevolveráincorruptível.Distribuamminharoupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto onde estou deitado e que ele mesmo me deu,masquesegastouemmeupoder;aobispoSerapiãodeemaoutratúnica,evocêspodemficarcomacamisadepelo.Eagora,meusfilhos,Deusosabençoe.Antãoparteenãoestámaiscomvocês”(XCI,7-9).

Conclusão

A Vida de Antãoobteveumenormesucesso.Inspirouhomensemulheresde todasasépocas,sedentosdeseentregartotalmenteaDeusnavidaascética.Emborajáhouvessemon-ges no tempo de Antão, Atanásio, com a Vida, apresenta um modelo concreto, palpável, numa linguagem que atende ao gosto da cultura do seu tempo. O relato das tentações, que tanta crí-ticacausouàobradeAtanásio,sãoaprovadasdificuldadesqueaguardamquemoptaporestecaminho.MasacertezadapresençaedoapoioincondicionaldeDeusnestatrajetóriatambémsão acentuados. A Vidaé,sobretudo,umcaminho,indicando-nosmeiosparaseatingiroobje-tivo.Fala-nosdeseriedadedevida,defoco,deempenho,dedisciplina.Nummundoemqueasatenções são tão facilmente desviadas por tantas distrações, mesmo em ambientes onde vivem pessoasqueoptarampordedicar-setotalmente“àscoisasdoespírito”,aleituradaVida é de excepcionalatualidade,anosrecordarqueocaminhodoEspíritoexigeumaatençãoconstante,umrecomeçarsempre,emmeioàs“tentaçõesmodernas”,nãomenosassustadorasdoqueforampara Antão.

26 Antão não era sacerdote, bem como a maioria dos monges do deserto.

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BiBliografia:

1. Livros

Colombás,GarciaM.,El Monacato Primitivo I: Hombres, Hechos, Costumbres, Insti-tuciones,BibliotecaAutoresCristianos(BAC),Madrid1974.

Escritos de São Francisco,OrganizaçãoetraduçãodeFreiCelsoMárcioTeixeira,Vo-zes20044.

laCarrière,Jacques,Padres do Deserto, homens embriagados de Deus, Loyola 1996.

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2. artigos

bormolini, Guildalberto, l’arte spirituale di affontare la notte e il dormire, Rivista di AsceticaeMistica,AnnoXXX,n.2,aprile-giugno2005,Firenze,p.207-236.

Carpenter,DwayneE.,The devil bedeviled: diabolical intervention and the desert fathers,TheAmericanBenedictineReview,31:2,june1980,AuroraIL,p.182-200.

FranCis,J.Alcuin,OSB,Pagan and Christian Philosophy in Athanasius ‘Vita Antonii’, TheAmericanBenedictineReview,32:2–june1981,AuroraIL,p.100-113.

3. Arquivos eletrônicos:

https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf

http://www.peregrina.com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html