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PAULO CÉSAR PINHEIRO Um baú de 2 mil canções, histórias e parcerias nº 52 outubro/2010 www.redebrasilatual.com.br ASSÉDIO MORTAL Pressões e humilhações no trabalho que tiram a vontade de viver O país está bem perto de seguir mudando para melhor R$ 5,00 A VEZ DE DILMA 9 771981 428008 52 I SSN 1981-4283

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paulo césar pinheiro Um baú de 2 mil canções, histórias e parcerias

nº 52 outubro/2010 www.redebrasilatual.com.br

assédio mortal Pressões e humilhações no trabalho que tiram a vontade de viver

o país está bem perto de seguir mudando para melhor R$ 5,00

a vez de dilma

977

1981

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52IS

SN 1

981-

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oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 3

A chamada “guerra ao narcotráfico” no México já produziu mais de 28 mil mor-tos nos últimos quatro anos. Em todos os níveis, autoridades são corrompidas pelas organizações criminosas, ameaçadas, assassinadas. O país sofre influência direta dos Estados Unidos em sua política de defesa nacional. De acordo com o respeitado sociólogo mexicano Héctor Díaz-Polanco, o país está perdido, não

tem projeto nacional e a sociedade está tomada por uma sensação de desalento. O México foi um dos mais engajados no neoliberalismo desde os anos 1990. Hoje, enfrenta sem forças um inimigo recente, poderoso e torpe, que abastece de drogas o assombroso mercado con-sumidor americano. O país não é pobre e poderia exercer liderança semelhante à do Brasil na América do Sul. Mas o Estado está debilitado. O assunto será objeto de reportagem de um dos próximos números da Revista do Brasil. Mas por que abordar, neste espaço, temas de uma edição que ainda está por vir?

Trata-se de dar uma vaga ideia do que poderíamos ter virado caso o Brasil não tivesse co-meçado, há oito anos, a virar o jogo do neoliberalismo conduzido pelo PSDB/DEM. Sabe-se que a eficiência e a inteligência policial são essenciais no enfrentamento ao crime, mas essa ação será inócua se não forem combatidas a concentração de renda e a miséria, raízes mais profundas das sociedades violentas. No Brasil, foi nos presídios do estado mais rico que nas-ceu a principal organização criminosa do país, que mesmo de dentro das celas comandam suas operações. No sistema de segurança desse estado estão os piores salários de policiais do país, e nas escolas desse mesmo estado os profissionais de educação estão entre os mais desprezados. E as mesmas forças políticas e cabeças econômicas comandam esse mesmo estado há mais de 16 anos. E depois de se comportar como amigos da onça enquanto o Bra-sil reagia à crise econômica, agora ainda tentam retomar o poder central, perdido em 2002.

Diferentemente do que costumam alardear as cabeças tucanas e seus porta-vozes na imprensa, o sucesso da economia brasileira não está na “continuidade” da política da era PSDB/DEM. Está na ruptura iniciada há oito anos, que adotou o estímulo ao crescimento econômico em vez da estagnação. E que tem como resultado, ao contrário daquela época, o crescimento do emprego, da massa salarial, a inclusão social e a distribuição de renda. É esse o ponto de partida para se chegar a uma sociedade sem violência, a um país que seja grande economicamente e também justo com seu povo. Que o Brasil siga nessa tri-lha, sem dar chance ao retrocesso.

O caminho a ser seguido

Eleições 8Com apenas Dilma e Serra no páreo,tucano não resistirá a comparações

Saúde 14Consumidores de remédios sãoreféns da indústria farmacêutica

Trabalho 18Pressão por produtividade à base dehumilhação pode levar ao suicídio

História 24Sobreviventes da bomba atômicasó encontraram a paz no Brasil

Ambiente 28Ano da Biodiversidade: hora de conter o prejuízo e reverter a destruição

Entrevista 32Paulo César Pinheiro conta que suas canções brotam como nascentes

Mídia 38Por que o governo de São Paulomaltrata tanto a TV Cultura?

Cultura 42Três décadas depois, rap nacional rediscute os seus caminhos

Viagem 46Colonização alemã ainda influenciao cotidiano de Pomerode, em SC

Cartas 4

Ponto de Vista 5

Na Rede 6

Atitude 37

Curta Essa Dica 48

Crônica 50

SEçõES

Estudantes de Monterrey, México, em marcha silenciosa contra a violência ligada ao tráfico

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Índice editorial

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Arquitetura alemã em Pomerode

Paulo César Pinheiro

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4 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 5

A vida no moinhoGostei muito da reportagem so-bre a Favela do Moinho (“A vida no moinho”, ed. 51). Apresentei a reportagem nos grupos de que

participo como educador de rua e pales-trante para pessoas usuárias e dependen-tes de drogas. Esse é mais um tormento que tem afligido nossa juventude no mundo. Precisamos cobrar dos nossos governan-tes mais ação e uma política autêntica para que possamos levar aos nossos filhos uma orientação e cura para esse grande flagelo que está destruindo nossa humanidade. Pa-rabéns, Revista do Brasil. Essa reportagem vale mais que ouro.José Aguiar, São Paulo (SP).

Bela e feraExcelente reportagem com uma bela mu-lher (“A Bela é fera”, ed. 51). Adorei essa edi-ção. Não que das outras não tenha gostado, mas isso é mais um incentivo para as mu-lheres que têm vontade de fazer um espor-te que antes era predominantemente feito por homens. Adriana Calixta de Sousa, Mauá (SP)

Serra é do DEMLi no Viomundo, do Azenha (www.vio-mundo.com.br), uma análise brilhante apontando para a incapacidade das lide-ranças de esquerda em detectar, neutralizar e/ou responder boatos. Aponto para outra: a incapacidade de veicular na net argumen-tos que os adversários oferecem de bande-ja. Um está embutido na própria campanha de Serra, de demonização de Dilma. Não, não falo do aborto, mas sim o jingle que diz “Serra é do bem”, que quer dizer “... Dilma é do mal”. Pegue o mote e grite: “Serra é do DEM!” O DEM que é responsável por tan-tas e tantas mazelas na história deste país.Túlio Muniz, Fortaleza (CE )

FutebolLamentável o comentário sobre futebol desse jornalista, parece que o cidadão não é do ramo (Paulo Ganso e a Cidadania, de Renato Pompeu, ed. 48). Robinson Zamora, São Paulo (SP)

Privatizações em SPA reportagem “Apagão de Memória” (ed. 51) foi oportuna, porém acho que foi um grande erro não ter descrito a situação em que ficou a Emae com a cisão da Eletropau-lo. É a maior prova da falta de respeito que o PSDB/DEM demonstrou com o bem pú-blico. Sugiro uma matéria específica sobre o estrago que o episódio com a Emae foi para o patrimônio público.Gothardo Garcez Vilete

Violência contra mulherEstou escrevendo um artigo acadêmico que será publicado e pretendo utilizar trechos da reportagem Triste Espetáculo (sobre vio-lência contra a mulher), publicada na edi-ção 50, de agosto deste ano. Aliás, quero elogiar a revista pelas reportagens bem ela-boradas e dizer que sempre as utilizo nos trabalhos em sala de aula, com meus alunos de ensino médio. Nanci Moreira Branco, Pres. Prudente (SP)

Falência totalÉ difícil constatar que o que está prevale-cendo nesta eleição são os bolsa-votos e cotas demagogas. A dívida interna, assim como educação, saúde e segurança estão um caos. Até quando a nação suportará antes de sua falência total moral, ética e cívica?Lucio Costa, São Paulo (SP)

CorreçãoA informação publicada da página 17 da edi-ção 51, em “Presente para banqueiro”, de que o Bradesco teria adquirido o Bemge, está incor-reta. Segue trecho corrigido, por colaboração do leitor José Joaquim Veiga, de São Paulo: o BC gastou R$ 62 bilhões com o Proer, e arrecadou R$ 11,6 bilhões. O Banerj foi o primeiro a ser vendido, ao Itaú, em junho de 1997. Em setem-bro do ano seguinte, o Itaú (e não o Bradesco) absorveu também o Bemge. Outro mineiro, o Credireal, foi comprado pelo ex-BCN, banco de-pois incorporado pelo Bradesco.

cartas

[email protected]

As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

Escrevemos estas notas no dia 5 de outubro, logo depois de contados os votos do primeiro turno e antes que se iniciasse a campanha para o segundo. Tudo começa de novo. Jornalismo não é profecia, embora possa reunir indícios,

comparar fatos e apontar tendências. Preferimos, no entanto, fazer algumas considerações sobre o governo que termina. Qualquer que venha a ser o futuro político do presidente Lula, que deixa a chefia do Estado com os mais altos índices de reconhecimento nacional e internacional, a sua trajetória de vida e de liderança política garante-lhe lugar na História entre os mais importantes brasileiros de todos os tempos. Não é gê-nio intelectual, nem santo. Como seus inimigos gostam de dizer, é um apedeuta, ou seja, um homem do povo – que gosta de futebol, de se reunir com amigos para almoços descontraídos, de tomar sua cer-vejinha e torcer pelo seu time.

Exatamente assim tornou-se um dos homens mais importantes da História, e com ele o povo se sentiu protagonista. As elites contam com outros bens, com que se apegar, mas os pobres só têm a pátria, e só dela podem desfrutar nas cores da bandei-ra, na visão de sua paisagem, no orgulho das riquezas naturais, das quais nunca se aproveitam. “A pátria dos pobres está sem-pre no futuro, sempre na esperança”, resu-mia Tancredo Neves, para quem o Brasil só avança pela luta reivindicatória de seus pobres e a eles, queiram ou não os elitistas, cabe a van-guarda da História.

Os êxitos dos últimos oito anos não foram obtidos pelos economistas. Esses êxitos se devem à classe ope-rária – que, com seus sindicatos, criou dirigentes ca-pazes de lutar pelas melhores condições de vida nas fábricas e em seus lares, e lutar decididamente pela evo-lução política do Brasil. Sempre que essa consciência esmaece, o povo sofre com a perda da liberdade. Ou com o retrocesso econômico.

A grande importância do operário Luiz Inácio foi a de confrontar-se com a ditadura, ao romper as algemas a que estava submetido o movimento sindical, e liderar a primeira greve depois de muitos anos de arrocho e de silêncio. Era o povo que, na pessoa de um metalúrgico, só conhecido entre seus companheiros, se levantava para chamar outros brasileiros ao brio. É claro que, quando isso ocorreu, muitos outros brasileiros já haviam lutado, sofrido a ignomínia das prisões políticas e das torturas,

e morrido em pleno martírio. Mas, com Lula, essa resistência saía da clandestinida-de e das casas parlamentares, para voltar à luz do dia. Por isso, e de repente, o rapaz se torna a referência da Igreja e dos intelec-tuais, como porta-bandeira da plena rede-mocratização do país.

Ao chegar finalmente ao poder, Lula não foi o governante perfeito. Cometeu erros políticos, e em certos momentos deixou-se levar pela vaidade, diante do reconhecimen-to quase universal de suas virtudes. Como poucos de seus predecessores, soube falar de igual para igual com os governantes estran-geiros, e defender os povos historicamen-te marginalizados nas reuniões internacio-nais. Não se deixou embasbacar diante dos grandes do mundo, como fizera seu anteces-sor imediato, deslumbrado com as luzes de Buckingham e com as alamedas de Harvard.

Lula praticou, nos encontros com os di-rigentes dos grandes países, a filosofia de outro homem do povo, Garrincha, para

quem qualquer adversário era João. Sabe que represen-ta um dos maiores países do mundo e um povo não é maior ou melhor do que os outros, tampouco é menor ou pior. Assim, não tinha por que se curvar.

O povo brasileiro se resumiu e se integrou na pessoa de seu presidente – com seus pecados, seus defeitos, mas, mais do que isso, com sua vontade de ser plena-mente senhor do próprio destino. Completa-se o so-nho de Vargas em sua carta testamento: “Este povo, do qual fui escravo, não será mais escravo de ninguém”.

O povo e seu líderOs êxitos dos últimos oito anos não foram obra de economistas, mas da classe trabalhadora, que criou dirigentes capazes de governar e de lutar pelas melhores condições de vida nas fábricas e em seus lares

o povo brasileiro se resumiu e se integrou na pessoa de seu presidente, com seus pecados e defeitos, mas, mais do que isso, com sua vontade de ser plenamente senhor do próprio destino

Por Mauro SantayanapontodevistaInformação que transforma

Núcleo de planejamento editorial Cláudia motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza,

Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda OliveiraEditores

Paulo Donizetti de SouzaVander Fornazieri

Assistente editorialXandra Stefanel

RedaçãoAnselmo massad, Cida de Oliveira,

Fábio m. michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi

e Júlia Lima (arte)Revisão

márcia meloCapa

Foto de Gilberto TaddaySede

Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100

Tel. (11) 3241-0008 Comercial

Sucesso mídia (61) 3328-8046Suporte, divulgação e adesões

(11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani

e Paulo Rogério Cavalcante AlvesImpressão

Bangraf (11) 2940-6400Simetal (11) 4341-5810

DistribuiçãoGratuita aos associados

das entidades participantes.Bancas: Fernando Chinaglia

Tiragem360 mil exemplares

Conselho diretivoAdi dos Santos Lima, Admirson medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur henrique

da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza mello,

Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco

Alano, Francisco Jr. maciel da Silva, Genivaldo marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas,

hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco

Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa,

José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, marcos Aurélio Saraiva holanda, marcos Frederico Dias Breda, maria Izabel Azevedo Noronha, maria Rita Serrano,

Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto

Salvador, Raul heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis

Carlos da Cunha, Sonia maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de moraes, Valmir marques da

Silva, Wilian Vagner moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis

Juvandia moreira Sérgio Nobre

Diretores financeirosIvone maria da Silva

Teonílio monteiro da Costa

www.redebrasilatual.com.br

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6 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 7

www.redebrasilatual.com.brnarede

Coligados na eleição presidencial, PMDB, com 19 representantes, e PT, com 15, passam a ter as duas maiores bancadas do Senado a partir do ano que vem, segundo o Diap. O PSDB enco-lhe e fica com dez parlamentares, enquanto o DEM também diminui a sua representação, fi-cando com oito. Foram eleitos 35 novos senado-res, um índice de renovação de 64,81%, enquan-to 19 foram reeleitos. “Dos senadores que faziam oposição ostensiva ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que tentaram a reeleição, apenas José Agripino (DEM-RN) e Demóstenes Tor-res (DEM-GO) foram reeleitos”, diz o Diap. Dos 81 atuais senadores, 27 têm mandato até 2014. http://migre.me/1uPyI

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A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

Depois de governar três vezes o Ceará e exercer o mandato de senador desde 2002, Tasso Jereissati (PSDB-CE) perdeu a sua pri-meira eleição, ficando atrás de Eunício (PMDB) e José Pimentel (PT). Líder histórico dos tucanos no Nordeste, Jereissati também foi presidente nacional do PSDB. Ele já adiantou que abandona-rá a vida política.

As eleições fizeram um número expressivo de “vítimas” entre no-mes consagrados da política – sobretudo de oposição ao governo Lula. Pelo menos 12 lideranças ficaram de fora. Em Pernambuco, Marco Maciel (DEM). No Amazonas, Arthur Virgílio (PSDB). Figura fre-quente nos microfones de ataque ao governo, Virgílio chegou a falar em dar literalmente uma surra no presidente Lula.

Na Bahia, César Borges (PR) e José Carlos Aleluia (DEM), her-deiros de ACM, terminaram respectivamente em terceiro e quin-to lugares na disputa do Senado. No Piauí, Heráclito Fortes (DEM) ficou em quarto, atrás do também derrotado Mão Santa (PSC). O DEM perdeu ainda o senador Efraim Morais, da Paraíba.

No Rio de Janeiro, a principal liderança do DEM, Cesar Maia, também foi reprovado nas urnas. Assim como a tucana Rita Cama-ta (ES), vice de José Serra em 2002, perdeu a disputa para o Senado.

No Paraná, a eleição em primeiro turno de Beto Richa (PSDB) não ajudou seu colega de partido Gustavo Fruet, que ficou atrás de Glei-si Hoffmann (PT) e do ex-governador Roberto Requião (PMDB). http://migre.me/1uPxM

Durante o final de semana do 1º tur-no, a Rede Brasil Atual produziu cer-ca de 100 notícias sobre as eleições e milhares de comentários no Twitter. Também foram feitas parcerias que podem render bons frutos em termos de produção de informação e de mul-tiplicação de audiência. O site mante-ve acessos ao canal TVT e ao blog 48h de Democracia, ação colaborativa que reuniu, antes e depois da eleição, deze-nas de jornalistas e blogueiros, em sin-tonia com milhares de visitantes numa “vigília democrática” virtual.

Uma senhora cobertura

O Senado a partir de 2011

A Câmara em 2011

Maioria no Senado Maioria na CâmaraO PT terá a maior bancada da Câmara dos Deputados na próxima legisla-

tura, ocupando 88 cadeiras. Na posse, em 2007, o partido tinha 83 represen-tantes. O PMDB, em seguida, virá com 79 parlamentares (11 a menos que há três anos). O PSDB ocupará 53 vagas (eram 64 na posse de 2007). Depois virá o DEM, com 43 cadeiras. Em 2007, ainda como PFL, eram 64. Segundo o site Congresso em Foco, a base aliada de um possível governo Dilma será 13% maior que a eleita quatro anos atrás. Os governistas teriam 402 deputados federais, ante os 380 atuais e os 357 eleitos em 2006. Já a bancada de oposi-ção deve encolher 29%. Em outubro de 2006, PSDB, DEM (ainda como PFL), PPS e PSOL somavam 156 deputados, hoje são 133 e no ano que vem serão 111. Os números ainda podem sofrer modificações. Muitos nomes estão sub judice devido ao impasse com a Lei da Ficha Limpa. http://migre.me/1uPzt e http://migre.me/1uPA9

Lula, o Filho do Brasil foi escolhido como o representante brasileiro na disputa por uma indicação ao Oscar 2011 na categoria de melhor filme estrangeiro. A escolha foi unanimidade no Comitê de Seleção Oficial e anunciada no mês passado pelo presidente da Academia Brasileira de Cinema, Roberto Fa-ria. O filme dirigido por Fábio Barreto conta a trajetória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desde a infância pobre em Pernambuco, até a morte de sua mãe, dona Lindu, em 1980, mesmo ano de fundação do PT. Os cinco fil-mes concorrentes ao Oscar de melhor filme estrangeiro serão anunciados em 25 de janei-ro de 2011. A cerimônia acontece em 27 de fevereiro. http://migre.me/1uPAG

Lula na academia

BATEU, NãO LEVOURepresentantes da velha-guarda do Congresso se deram mal como oposição

Arthur Virgílio (PSDB)

Tasso Jereissati (PSDB)

Efraim Morais (DEM)

Gustavo Fruet (PSDB)

Heráclito Fortes (DEM)

Marco Maciel (DEM)

Mão Santa (PSC)

O ator Ruy Ricardo Dias

como Lula

PMDb 19 Pt 14 PSDb 10 DEM 8 Ptb 6 PP 5 PDt 4 Pr 4

PSb 3 PCdob 2 PSoL 2 Prb 1 PSC 1 PMN 1 PPS 1

Pt 88 PMDb 79 PSDb 53 DEM 43 Pr 41 PP 41

PSb 34 PDt 28 Ptb 20 PSC 17 PV 16 PCdob 15

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8 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 9

eleiçõespanha deve ser centrada na comparação en-tre os governos FHC e Lula.

Essa também é a visão de Marco Auré-lio Garcia, assessor especial da Presidência e coordenador da campanha petista. “Ma-rina (Silva, candidata do PV) obteve êxito quando jogou pelo caminho da terceira via. Mas agora só há duas, que o povo conhece bem”, afirma.

A cientista política Maria Victoria Benevides, professora da Faculdade de Educação da USP, acredita que a votação surpreen dente alcançada por Marina Sil-va deve se dividir no segundo turno. Bene-vides considera, no entanto, que a candida-ta do PV teria “politicamente e moralmente” obrigação de se manifestar a favor da petista. “Ela (Marina) não pode dar as costas para a esquerda da qual sempre fez parte”, sustenta Maria Victoria. Ela observa que as duas can-didatas tiveram “um passado conflituoso no governo”, mas Marina teria uma proximidade muito maior com uma coligação de esquerda do que com uma que abranja o DEM”.

Dilma ficou com 47% dos votos válidos do primeiro turno. Precisa, portanto, do apoio de apenas um quarto dos eleitores de Marina para suceder Lula a partir de 2011.

MelhoriasNúmeros não faltam. De janeiro de 2003

até o final deste ano, com base nos dados do Cadastro Geral de Empregados e De-sempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, estima-se que o país terá criado aproximadamente 12 milhões de empre-gos com carteira assinada. Em seus oito anos, o saldo do governo FHC é inferior a 800 mil. A taxa média de desemprego atingiu em agosto o seu menor nível na sé-rie histórica, segundo o IBGE. Os índices de pobreza e miséria caíram consideravel-mente. O atual governo tomou posse, em janeiro de 2003, com US$ 30 bilhões em reservas internacionais. Fechou setembro deste ano com US$ 275 bilhões. O cresci-mento médio do PIB aumentou nesse pe-ríodo, e a previsão é de que supere 7% em 2010, com inflação sob controle.

O governo espera expansão da atividade industrial de 10% este ano e 5,5% ao ano de 2011 a 2014. Luiz Guilherme Schymura, di-retor do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), des-taca como aspectos positivos a recupera-ção da agricultura, a plataforma energética com diversas fontes (etanol, reservas de gás,

Candidatos, eleitores e imprensa aguardaram até quase o último minuto do domingo, 3 de outu-bro, para ter certeza se haveria ou não segundo turno na dispu-

ta para a Presidência da República. Confir-mada a segunda rodada, os petistas tentaram disfarçar a decepção, enquanto os tucanos, de quase derrotados, surfaram na onda da eufo-ria. Passada a ressaca, este segundo turno é momento de debater de fato quem fez o quê, comparar gestões e evitar a boataria que con-taminou boa parte da campanha.

O bispo de Jales (SP), dom Demétrio Va-lentini, presidente da Cáritas Brasileira, de-tecta uma mudança de comportamento da população, que já não se guia pelos cha-mados formadores de opinião ou por re-comendações de viés autoritário. “Gran-des camadas da população brasileira se dão conta das transformações em curso, e co-meçam a perceber que elas dependem de opções políticas. A grande popularidade de Lula não é fruto somente do seu carisma político. Lula é símbolo da mudança acon-tecida. Se esta não existisse, o povo deixaria Lula de lado, e não apoiaria Dilma”, afirma. Mas o bispo considera importante também dar “consistência” a essa nova postura po-lítica. “Nesse sentido, acho que será bom o povo perceber que Lula não será mais o presidente. Para perceber que a política está segura só quando está nas mãos do povo.”

Ganhar no primeiro turno não era obri-gação, observou o professor Paul Singer, se-cretário nacional de Economia Solidária, para quem o resultado, na verdade, mos-trou o êxito do atual governo. “O grande prestígio do presidente Lula, a meu ver me-recido, mostra que este governo fez muita coisa pelo país.” Singer disse esperar ainda que o segundo turno seja marcado por efe-tivo debate dos problemas nacionais e não por denúncias de escândalos.

No pós-eleição, políticos da base aliada detectaram problemas de comunicação. O governador eleito do Espírito Santo, Rena-to Casagrande (PSB), falou em “mal-estar” com os cristãos e disse que a situação exi-giria uma resposta rápida e clara. Por sua vez, o governador reeleito de Pernambuco (com 83% dos votos), Eduardo Campos, do mesmo partido, defendeu que a campanha desfaça a onda de contra-informação mo-vida pelos adversários.

O deputado Ciro Gomes (PSB-CE) diz que os boatos têm importância “periférica ”

Ficou para o segundo tempoos 3,1 pontos percentuais de votos válidos que faltaram a Dilma no primeiro turno frustraram petistas e causaram euforia entre tucanos. Agora, chegou o momento de comparar gestõesPor Vitor Nuzzi

na campanha. “Boato só prospera onde há perplexidades, vácuos, vazios. Quando você tem um vácuo e não tem clareza, o boato acaba prosperando mais do que devia.”

A própria Dilma falou sobre a necessidade de esclarecer a população sobre boatos lan-çados durante a campanha. “Considero que foi feita uma campanha perversa sobre o que eu penso e acredito. E foi uma campa-nha mais difícil porque quem me acusava não aparecia de forma muito clara. É aque-la campanha que lança inverdades e nunca permite que a gente discuta.”

Já eleito para o governo do Rio Grande do Sul com 54% dos votos, Tarso Genro (PT) destaca que, mesmo não tendo sido ainda

eleita, Dilma recebeu votação “espetacular” mesmo depois de passar mais de 60 dias sob um bombardeio absoluto da mídia. “Fez 47% dos votos, praticamente o que o Lula fez em sua última eleição”, observou. No dia seguinte ao da eleição, ele afirmou que to-dos os governadores eleitos da base aliada estavam prontos “para uma grande ofensiva política de natureza programática”.Ou seja, comparar gestões e resultados.

O sociólogo Emir Sader considera fun-damental esse debate. “Não soubemos (no primeiro turno) colocar como agenda cen-tral o fato de que o Brasil se tornou menos injusto, menos desigual com Lula, e que é o caminho central a seguir”. Para ele, a cam-

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passado comum Para a cientista política Maria Victoria Benevides, a história de Marina Silva a coloca ao lado de Dilma e na obrigação política de orientar o voto para a petista

A votação por estadon Dilman Serran Marina

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oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 11 10 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010

pré-sal) e o desenvolvimento da indústria. “Isso nos permitiu uma pauta exportado-ra muito diversificada”, afirma, defendendo uma “gestão cuidadosa para nos aproveitar dessa situação (favorável)”.

Certezas e pedrasDepois que passar o furacão eleitoral, co-

meçará a fase de montagem de governos e suas equipes, com as tradicionais especula-ções. Se na economia as perspectivas conti-nuam positivas, no campo político espera--se turbulência nas relações entre governo e oposição. Afinal, as últimas semanas de campanha eleitoral foram tensas e incluí-ram golpes baixos.

Para a professora Roseli Coelho, da Fun-dação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o diálogo já está irremediavelmente prejudicado. No caso de um governo Dil-ma, diz ela, o Congresso poderá ser “um lugar de faca nas costas, de sangue, meta-foricamente falando”. Com Dilma eleita, al-guns “fios soltos” poderão ser retomados pelos oposicionistas, avalia a professora. O que também seria uma oportunidade de apurar se, por trás da enxurrada de denún-cias, existem tentativas sinceras de apura-ção ou se tratava-se de oportunismo puro e simples. “Para a imprensa, o denuncismo é mais fácil, sempre”, comenta. Segundo ela, a gestão Lula levou a um novo paradigma, a um patamar mais elevado de exigência. “É uma herança bendita para o conjunto do país”, afirma.

Na nova configuração do Congresso, PT e PMDB saíram em vantagem, formando as maiores bancadas tanto na Câmara como no Senado. Na oposição, PSDB, DEM e PPS perderam cadeiras. Dos 18 governa-dores eleitos no primeiro turno, PMDB, PSDB e PT fizeram quatro cada, enquanto o PSB elegeu três, o DEM ficou com dois e o PMN, com um.

Dom Demétrio Valentini, da Cáritas, não vê risco de crise institucional, mas cobra um posicionamento dos políticos. “E espero que o novo governo garanta um clima de respeito e de confiança, que possa envolver a responsabilidade da oposição.” Mas o bispo vislumbra uma “tarefa hercúlea” para o pró-ximo governo. “Na educação, foram dados passos importantes, criadas escolas técni-cas e facilitado o acesso ao ensino superior. Mas um perigo ronda o processo educacio-nal brasileiro, a sua falta de qualidade, em boa parte consequência da mercantilização

imutável nesse debate, que é o lucro. E não é imutável.” O lucro líquido da Companhia Siderúrgica Nacional foi de R$ 1,4 bilhão no primeiro semestre, crescimento de 95,5% sobre igual período de 2009.

O presidente da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base (Abdib), Paulo Godoy, lembra que os investimentos em infra-estrutura passaram de R$ 58 bilhões em 2003 para R$ 122 bilhões no ano passado, sendo metade no setor de petróleo e gás. “En-tretanto, o Brasil precisa de algo como R$ 160 milhões por ano”, diz o executivo.

O diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, inclui pelo menos duas gran-des questões na agenda a partir de 2011: as reformas política e tributária. “Tem tam-bém algumas minirreformas, como o Ca-dastro Positivo, que dariam capacidade ao governo para baixar a taxa básica (de ju-ros)”, acrescenta. Uma preocupação mais imediata é com a questão cambial. “É um problema que está posto hoje em todo o mundo. É uma questão para preservar nos-sa estratégia de exportação.”

Ao mesmo tempo em que declarou à re-vista britânica The Economist que pretende se recolher após o final do mandato, Lula ga-rantiu que continuará fazendo política. Para ele, por sinal, a reforma política tem de ser vista como prioridade. “Agora estou me com-prometendo, quando eu não for mais presi-dente, a começar a convencer o meu próprio partido, porque acho que essa é a principal reforma que temos de fazer no Brasil, para que possamos (depois) fazer as demais.” Se-gundo Lula, esse é um motivo de frustração em seu mandato.

Colaborou João Peres

Em entrevista conjunta ao site Carta maior, ao jornal Página 12 (Argentina) e La Jornada (méxi-co), Lula rebateu os que costu-mam dizer que seu governo se-guiu a política econômica do an-tecessor: “Se eu tivesse seguido a política do Fernando henrique, o Brasil tinha quebrado”, disse o presidente.

“Quando cheguei aqui no go-verno a palavra de ordem era que o governo não poderia gastar, não poderia fazer investimentos porque tudo tinha que garantir

o superávit primário. E era pre-ciso cuidar do déficit. Ora, o que aconteceu, o que aconteceu, meu filho? Nós que ficávamos subordinados ao FmI, nos livra-mos do FmI. Nós, que não tínha-mos nenhuma reserva, vamos chegar ao final do ano a US$ 300 bilhões em reservas. Nós, que éramos devedores, viramos cre-dores do FmI. Nós éramos um país de economia capitalista sem capital, sem crédito, sem investi-mento”, acrescentou Lula.

“Cada país tem as suas par-

ticularidades. Eu acho que os kirchner , tanto o Néstor quanto a Cristina, têm o seu estilo de go-vernar. O dado concreto é que a Argentina está melhorando. Nos-so querido Pepe mujica tem seu modelo de governar; o fato con-creto é que o Uruguai está me-lhorando. Eu tenho o meu tipo; o fato concreto é que o Brasil está melhorando. O Evo tem seu tipo; o fato concreto é que o Peru es-tá melhorando, e assim vale para todo mundo. É isso que me inte-ressa. “

O presidente lembrou ain-da que democracia precisa ser entendida como uma palavra inteira e não meia palavra. “É não apenas o direito de gritar que se tem fome , mas o direito de comer. Não apenas o direito de protestar, mas o de conquistar.”

Conquistas do governo à parte, na entrevista à The Economist, ao responder a uma pergunta sobre o próximo presidente, Lula foi sim-ples: “Fazer política com o coração, cuidar dos mais pobres e praticar a democracia até o fim absoluto”.

“Se eu tivesse seguido a política do FHC, o Brasil tinha quebrado”

Boato só prospera onde há perplexidades, vácuos, vaziosCiro Gomes (PSB-CE)

Hoje somos independentes do ponto de vista econômico-financeiro. Temos de preservar isso Benjamin Steinbruch, controlador da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN)

Lula é símbolo da mudança acontecida. Se esta não existisse, o povo deixaria Lula de lado e não apoiaria DilmaDom Demétrio Valentini, presidente da Cáritas Brasileira

da educação, que requer uma presença fis-calizadora muito mais rigorosa.”

Na opinião do empresário Benja-min Steinbruch, controlador da Compa-nhia Siderúrgica Nacional (CSN) e até 4 de outubro presidente em exercício da Federa-ção das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a maior conquista do governo Lula foi a inserção de 50 milhões de consumidores no mercado, além dos sistemas produtivo e fi-nanceiro organizados. “Nunca vi o Brasil nes-sa situação”, diz Steinbruch, para quem este deixou de ser o país do futuro para ser o do presente. “Hoje somos libertos e independen-tes do ponto de vista econômico-financeiro. Temos de preservar isso. Estamos a um passo

de nos tornar uma potência”, afirma. No final de setembro, o empresário criticou a conces-são de reajustes na faixa de 10%. “É um cer-to exagero, considerando o que acontece no resto do mundo.” Com poucas correções de rota, ele vê pelo menos mais dez anos de cres-cimento contínuo sustentado.

A observação do empresário sobre os sa-lários foi contestada pelo economista Sérgio Mendonça, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Os salários no Brasil são baixos, a participação do salário na renda nacio-nal ainda é pequena. Há espaço para cres-cer”, afirma. Ele defende uma mudança de foco na discussão. “Parece que há uma coisa

Vamos partir para uma grande ofensiva política de natureza programáticaTarso Genro, governador eleito do Rio Grande do Sul pelo PT

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oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 13 12 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010

internet

Em agosto, mês em que comemo-rou 27 anos de existência, a Cen-tral Única dos Trabalhadores lançou novo portal na internet. O site, reformulado, traz ainda

duas novas ferramenta, rádio-web e TV--web. O objetivo, além de oferecer serviço noticioso ao público do movimento sindi-cal representado pela central, é manter um canal de acesso direto por toda a sociedade, tornando-a mais independente da cober-tura tradicional da imprensa comercial. A ação, intitulada Rede CUT, expõe uma vi-são crescente na central e entre entidades que a compõem, de que os tempos de ape-nas reclamar dos defeitos da grande mídia acabaram. A democratização do acesso à informação passa também pela produção de conteúdo diferenciado.

Para o presidente da CUT, Artur Henri-que da Silva Santos, a parte mais difícil vem a seguir: fazer com que as notícias ultrapas-sem os limites do ambiente sindical. “Nosso papel é levar o pensamento dos trabalhado-res para todo o país, ampliando o canal de debate. A seguir, devemos buscar a susten-tabilidade desse projeto”, aponta. A secre-tária de Comunicação da central, Rosane Bertotti, afirma que a ideia é integrar diver-sos parceiros na iniciativa: “Tudo acontece-rá a partir da articulação dos sindicatos e dos movimentos sociais. A proposta é agre-gar a essa iniciativa, por exemplo, rádios e TVs comunitárias espalhadas pelo Brasil”.

A dirigente lembrou ainda a importância de a ação não ser um passo isolado, mas parte de um movimento que inclui outros veículos, como o programa de rádio Jornal Brasil Atual, a Revista do Brasil – reunidos na Rede Brasil Atual –, além da TV dos Tra-balhadores (TVT).

O secretário de Administração e Finan-ças da CUT, Vagner Freitas, acredita que a forma como a grande imprensa atuou no período que antecedeu as eleições de 2010 mostra que é neces-sário discutir o aces-so à produção da infor-mação. “Trata-se de um espaço estratégico de disputa de poder. Não podemos falar de nós para nós mesmos enquanto lidamos com canais de criminalização em massa dos movimentos sociais. Com a internet, o papel de formador de opinião deixou de ser restrito aos articulistas dos grandes jor-nais, inclui todos os trabalhadores”, afirma.

A reação da grande mídia a um ato po-lítico realizado no Sindicato dos Jornalis-tas de São Paulo em 23 de setembro, por jornalistas, blogueiros independentes e re-presentantes dos movimentos sociais, mos-trou como uma atuação articulada pode in-comodar. Os veículos da velha imprensa, que costumam simplesmente ignorar ações como essa, dessa vez pautaram o tema e de-ram a suas coberturas um discurso unifi-cado, como que escrito pelo mesmo autor.

Classificaram a mobilização – convocada para denunciar o abandono de regras bási-cas do jornalismo com objetivo de alterar o rumo das eleições – como manobra “contra a liberdade de expressão”, como fazem com toda crítica objetiva à conduta da imprensa, como se só esta tivesse o direito de crítica.

Artur Henrique lembra de um fato ocor-rido recentemente que não causou revol-ta aos supostos defensores da democracia.

“Há quatro anos, os par-tidos DEM e PSDB en-traram com uma ação judicial para impedir a circulação do primeiro número da Revista do

Brasil simplesmente por trazer uma repor-tagem de capa explicando por que o pre-sidente mantinha elevado índice de apro-vação, apesar de apanhar sistematicamente da mídia durante todo o primeiro mandato. “Interessante, nesse caso a imprensa não se comoveu nem protestou. Deve ser porque o excesso de transparência incomodou”, iro-nizou o presidente da CUT.

Durante o debate de lançamento da Rede CUT, o diretor do canal Telesur Beto Almeida afirmou que a TV, a rádio e o site da CUT podem ser uma experiência viva e dinâmica para a difusão dos temas que estão sempre distantes dos grandes meios de comunicação, mas que também são cruciais para tornar o Brasil um país mais justo.

Novo canal de informação

Com novo portal, que inclui TV e rádio-web, CUT sinaliza nova era de investimentos em comunicação Por Isaias Dalle

www.cut.org.br

economia

A cena de fato parecia insólita: um ex-sindicalista – que disputou sua primeira eleição em 1982 dizendo “vote 3 que o resto é burguês” – fazendo festa na Bolsa de Valores. Ele próprio fez questão de lembrar – “dez anos atrás eu passava aqui na porta da Bolsa, as pes-

soas tremiam de medo: ‘Onde é que vai esse comedor de capita-lismo?’” – ao bater o martelo na maior oferta pública de ações já vista no mercado, iniciada em 24 de setembro. Para o presidente da BM&F Bovespa, Edemir Pinto, a economia passou a se divi-dir “em antes e depois da operação de capitalização da Petrobras”.

A oferta incluiu mais de 2,1 milhões de ações ordinárias (com direito a voto em assembleias) e quase 1,6 milhão de preferen-ciais (cujos titulares recebem antes os lucros), por meio de um aumento de capital da Petrobras. Durante a cerimônia, o pre-sidente da estatal, José Sergio Gabrielli, informou que a oferta alcançou R$ 115,05 bilhões (ou US$ 66,9 bilhões). Parte dos re-cursos ajudará a financiar o plano de negócios da companhia de 2010 a 2014, que totaliza US$ 224 bilhões.

Para “um comedor de capitalismo”, Lula ajudou a dar um bom impulso, já que na véspera da operação a Bolsa paulista se tor-nou a segunda maior do mundo em valor de mercado, atingindo

R$ 30,4 bilhões, ou US$ 17,7 bilhões, atrás apenas da de Hong Kong (US$ 19,8 bilhões). “O valor da nossa bolsa está ligado ao potencial de crescimento do país e das empresas brasileiras e fruto da operação que comemoramos nesta data”, afirmou Edemir Pinto.

Lula também enfatizou a importância da operação para a eco-nomia brasileira, em possível referência à época em que a Petro-bras foi cotada para entrar na lista de privatizações e até mudar o nome para Petrobrax. “Ao contrário do passado, não estamos aqui para debilitar o Estado ou alienar o patrimônio público. Um Esta-do fraco nunca foi sinônimo de iniciativa privada forte”, afirmou. “A capitalização é uma das salvaguardas criadas pelo governo para evitar que essa riqueza se perca num labirinto de desperdícios e interesses equivocados.” Segundo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a União aumentou de 40% para 49% a sua participação no capital total (64% das ordinárias) da Petrobras.

Como em toda operação dessa natureza, a capitalização mexeu com o mercado de câmbio, que ainda causa preocupação ao go-verno, por causa do real valorizado, o que prejudica as exporta-ções brasileiras. Durante evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mantega disse que o mundo vive uma “guerra cambial”.

Donos da petrobrasEmpresa, agora com 64% sob controle da União, garante financiamento de negócios até 2014, agiganta a Bovespa e protagoniza um dos maiores lances da história do capitalismo

Lula, Mantega, Gabrielli e representantes da Bolsa: capitalização é salvaguarda

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14 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 15

saúdeLPI estão sendo contestados. Em novem-bro de 2007, a Federação Nacional de Far-macêuticos (Fenafar), em nome da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Re-brip), pediu ao procurador-geral da Repú-blica, Antônio Fernando Barros e Silva e Souza, a propositura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4234), pro-tocolada quase dois anos depois no Supre-mo Tribunal Federal (STF).

Por que a pressa?“Os artigos protegem invenções que, por

estarem registradas em outros países antes de 1995, deixaram de ser novidade, e não atendiam mais o principal requisito de pa-tenteabilidade”, explica a advogada Renata Reis, coordenadora do grupo de trabalho sobre propriedade intelectual da Rebrip. “Queremos que essas patentes caiam e vol-tem ao domínio público, que permite a fa-bricação de suas versões genéricas. Assim corrigiremos esse erro histórico.” Segundo a advogada, se a decisão do Supremo for favo-rável, é possível que se decida pela inconsti-tucionalidade de maneira retroativa, abrin-do caminho para ações indenizatórias, ou com validade apenas após a sentença.

Renata, que integra também a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, do Rio de Janeiro, conta que a ação nasceu da consta-

Entre 2001 e 2007, um reconhe-cido programa brasileiro pode-ria ter gasto US$ 519 milhões a menos só com a compra de cinco medicamentos do coque-

tel de combate aos efeitos da aids e assim atender mais portadores do HIV. O preju-ízo, calculado por pesquisadores da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, teria sido evitado não fossem dois artigos da Lei 9.279, de 1996, conhecida como Lei Brasi-leira de Propriedade Industrial (LPI), ela-borada e aprovada a toque de caixa no go-verno Fernando Henrique Cardoso. Esses artigos – 230 e 231 – instituíram as chama-das patentes pipeline, proibiram o acesso do sistema de saúde aos genéricos, então disponíveis para tratar todas as doenças, e causaram danos ainda a calcular à saúde e ao bolso do brasileiro, aos cofres públicos e à indústria farmacêutica nacional.

Os artigos permitiram a aprovação au-tomática, sem avaliação prévia, dos pedi-dos ou de patenteamento feitos ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) até um ano após a entrada da lei em vigor. Bastava ao requerente comprovar o registro original de patente em outro país para obter aqui o direito de exclusividade. A corrida foi grande. Entre maio de 1996 e de 1997 foram depositados 1.182 pedidos, dos quais mais de 700 eram de fármacos.

A lista inclui itens caríssimos e essenciais no tratamento das mais variadas doenças, como o Imatinib (marca comercial Glivec), usado contra leucemia. O preço ao consu-midor de uma caixa com 30 comprimidos chega a custar R$ 12 mil. Por isso, muitos deles são alvo de batalhas entre o governo, entidades que defendem o acesso aos tra-tamentos, fabricantes de genéricos e os de-tentores das patentes.

Em maio de 2007, pela primeira vez, o Brasil decretou a quebra de patente do Efa-virenz, produzido pelo laboratório norte-ameri cano Merck para terapia antiaids, de-clarado de interesse público. O fabricante chegou a oferecer desconto de 30% sobre o preço de US$ 1,59 por comprimido, mas o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, considerou insuficiente. Com o licencia-mento, foi possível importar versões gené-ricas de laboratórios qualificados pela Or-ganização Mundial da Saúde (OMS).

Cheque em branco assinado e entregue por FHC às indústrias, especialmente as bi-lionárias farmacêuticas, os dois artigos da D

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única saÍdaClaudia Damarindo recorreu ao serviço de distribuição gratuita

de remédios para conseguir retardar as complicações do Alzheimer de sua mãe, Cecy

Não acredite em amostra grátisIndústria farmacêutica ainda dita preços de remédios cujas patentes não deviam nem existir Por Cida de Oliveira

tação de que as drogas contra HIV estavam na lista do pipeline. A partir de então seu grupo começou a publicar artigos alertando para o problema, e costumeiramente criti-cados “por olhar muito para o passado”. Até que um evento realizado em São Paulo, em 2007, teve forte presença de representantes das farmacêuticas. “Foi um termômetro do alto interesse pelo tema”, diz. O grupo se de-bruçou então a escrever ADI.

Desconhecido fora dos laboratórios e das ONGs ligadas ao setor, o assunto já suscita pressões para influenciar a decisão do Su-premo. Segundo o site do STF, a Anvisa, a Associação Brasileira da Indústria Quí-mica Fina, a Fundação Oswaldo Cruz e representantes da área farmacêutica e de produtores de sementes apresentaram ar-gumentos. Por enquanto, foram acolhidos apenas o da Associação da Indústria Far-macêutica de Pesquisa (Interfarma), que reúne 28 laboratórios que abastecem 54% do mercado brasileiro. A entidade quer a improcedência da ação.

Outra aberração da lei é a pressa com que ela foi elaborada e aprovada. Em 1994, países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) assinaram o Acordo Trips, que obriga o reconhecimento, por 20 anos, de patente para todas as áreas tecno-lógicas. Até então, era opcional patentear algumas áreas, como o setor farmacêutico. Como as novas regras trariam mudanças, a OMC deu prazo até 2005 para os países em desenvolvimento se adequarem.

Nações pobres, como Moçambique e Bangladesh, têm até 2016. “Em vez de usar o tempo que tinha, o Brasil correu”, afirma a farmacêutica Gabriela Costa Chaves, in-tegrante da Campanha de Acesso aos Me-dicamentos Essenciais da organização hu-manitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Como ela diz, sobram desconfianças de que o governo cedeu a pressões da indústria. A Índia, por exemplo, só mudou sua legisla-ção em 2005. “Com isso, sem desobedecer ao acordo, os indianos tiveram tempo para desenvolver versões genéricas mais baratas e se transformaram na grande farmácia ge-nérica do mundo”, diz Gabriela.

Como antes da LPI o Brasil não reconhe-cia patentes de medicamentos, o Far-Man-guinhos, laboratório vinculado à Funda-ção Oswaldo Cruz, já fabricava, no começo dos anos 90, sete dos medicamentos do co-quetel antiaids. A produção e a comerciali-zação foram interrompidas com a nova lei.

domÍnio público Renata (no alto) e Gabriela: ação pela quebra de patentes

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16 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 17

Começavam então o sucateamento do par-que industrial nacional e a luta das organi-zações de saúde para mitigar o impacto das novas regras.

Consultora do Ministério da Saúde e ex--diretora de Far-Manguinhos, a química-far-macêutica Eloan Pinheiro avalia a concessão das patentes pipeline como a maior derrota que a saúde pública poderia ter. “As grandes farmacêuticas foram beneficiadas em detri-mento da indústria nacional, que teve mui-tas fábricas desativadas ou vendidas. Ficamos dependentes de matéria-prima para medica-mentos, tendo que importar quase tudo”, diz. “Lembro que no dia da votação da lei, vi no aeroporto um rapaz da Interfarma dizer ao telefone, em inglês, ‘conseguimos muito mais do que queríamos’”.

Eloan, na época dirigente do Sindicato dos Químicos e Engenheiros Químicos do Esta-do do Rio de Janeiro, conta que foram feitas várias reuniões. “Eram poucos os que com-preendiam o estrago que estava para ser fei-to. O discurso de que caminhávamos para a modernidade era forte, embora, na verdade, estivéssemos reféns de uma política de im-portação, sem estímulo à indústria farmoquí-mica nacional.”

Célia Chaves, presidente da Fenafar, acres-centa que a LPI é consequência do projeto apresentado pelo governo Collor em abril de 1991, sob o argumento de criar um cli-ma favorável aos investimentos externos. O projeto se arrastou na Câmara e no Sena-do, onde, sob pressão explícita do governo brasileiro, da embaixada dos Estados Uni-dos e do lobby da indústria, especialmente a farmacêutica americana, foi sucessivamen-te modificado até a sua aprovação, ainda no primeiro mandato de FHC. A dirigente diz não ter dúvida de que a decisão do STF será pela inconstitucionalidade.

As patentes causam impacto no preço dos remédios. Dá ao detentor o direito de exclu-sividade de venda, ou de designar quem vai vender, por 20 anos, além de impor o preço que quiser. E não só a substância ativa é pa-tenteada. Há patentes da substância e da ma-nipulação que vai transformá-la em medica-mento e até das combinações que poderão ser feitas no futuro. Isso gera confusão jurí-dica e os laboratórios aproveitam. É o caso do Seroquel, contra distúrbios como esqui-zofrenia. “Na lista pipeline com vigência até 2006, o fabricante Astrazeneca entrou com liminar para prolongar a vigência do direi-to de exclusividade”, explica Odnir Finotti,

“Quando ela teve o diagnóstico, há cerca de dois anos, fomos orientados a procu-rar o serviço de distribuição gratuita”, con-ta Claudia. “Se não fosse isso, como farí-amos? A aposentadoria dela mal dá para uma caixa do remédio”.

PerversidadeEstá aí a perversidade da questão. Se-

gundo a consultora Eloan Pinheiro, nos primeiros cinco anos de venda é possível recuperar o que foi investido no desenvol-vimento. A partir de então, o que entrar é lucro. Quando a patente expira e os fabri-cantes de genéricos começam a produzir suas versões, a competição derruba os preços. Hoje, em muitas farmácias, é possível comprar o Viagra, cuja pa-tente expirou recentemente, mais barato que o genérico. “Por que antes o fabricante mantinha o preço lá em cima se acabou mostrando depois que pode vender por muito menos?”, critica Eloan. Ela coloca em questão também os principais argumentos em defesa das patentes: o es-tímulo à inovação e a busca de novas moléculas.

O investimento em pesquisa e desenvol-vimento, aliás, tem sido menor do que em marketing. Estudos mostram que em 2002, nos Estados Unidos, as companhias gasta-ram para “estreitar o relacionamento com os médicos” o dobro do que investiram em busca de novas formulações.

Nos últimos 30 anos, as estratégias co-merciais ficaram mais intensas e agressivas, com o patrocínio de congressos médicos e shows de artistas famosos para o lançamen-to de medicamentos que nem sempre são inovadores. Sem contar as viagens nacio-nais e internacionais, os presentes e brin-des a médicos. “Embora os grandes labora-tórios neguem, é claro que todo esse gasto está embutido no preço”, diz o médico in-tensivista Guilherme Barcellos, diretor do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. Recentemente, a entidade lançou a cam-panha “Alerta – Amostra nunca é grátis”, que por meio de atividades, aulas e pales-tras voltadas principalmente aos médicos residentes pretende reduzir a influência das indústrias sobre a escolha do medicamento a ser receitado.

Pressionado pela crescente demanda por medicamentos para pacientes infec-tados pelo HIV – os gastos com aquisi-ção saltaram de US$ 35 milhões em 1996 para US$ 305 milhões em 1998 – o governo que concedeu as patentes pipeline não viu outro jeito senão criar, três anos depois, o programa de medicamentos genéricos. Se-gundo a Pró Genéricos, em dez anos fo-ram investidos mais de US$ 170 milhões na construção e modernização de plantas in-dustriais. Pela lei, os genéricos são, no míni-mo, 35% mais baratos que os de referência.

Esses medicamentos podem ser ain-da mais em conta por meio de programas

como a Farmácia Popular do Brasil, do Ministério da Saúde, com unidades espa-lhadas em várias cidades. O artista plástico Luiz Lombar-di, 59 anos, da capital pau-lista, recorre a esses ende-reços sempre que precisa. Com um problema derma-tológico, Luiz deve tomar uma cápsula de Fluconazol a cada sete dias, durante 20 se-manas. Nas farmácias, cada uma custa entre R$ 8 e R$ 45. “Aqui pago R$ 0,95”, diz.

A cada 100 remédios ven-didos, 20 são genéricos. Há estimativas de crescimento com a entrada no mercado das versões do Viagra e do Lipitor (atorvastati-na), que por muitos anos foram beneficia-dos pelas pipelines. Em setembro, a Anvisa aprovou o genérico da atorvastatina – fár-maco da Pfizer para baixar o colesterol que custa entre R$ 44 e R$ 656.

Os genéricos também são bom negócio. A Medley, grande empresa nacional do se-tor, foi comprada no ano passado pela Sa-nofi, uma das maiores do mundo. Essa con-corrência é bem-vinda porque derruba os preços. Gabriela Chaves, do Médicos Sem Fronteiras, lembra que a terapia antirretro-viral de primeira linha – usada no come-ço do tratamento para pacientes com resis-tência ao coquetel anti-HIV – custava, nos anos 1990, US$ 10 mil/paciente/ano. Hoje está por volta de US$ 87.

mais no siteEm www.redebrasilatual.com.br, saiba sobre outros fatores que influenciam o custo dos remédios e programas que beneficiam pacientes cuja renda não dá conta do preço dos remédios.bom senso Luiz paga R$ 0,95 por uma cápsula que pode custar R$ 45 numa drogaria comercial

alternativa inteligenteMárcia recorreu ao Banco de

Remédios, uma ONG de Porto Alegre, e conseguiu os caros

comprimidos que precisa para tratar uma doença que

ataca os rins

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presidente da Associação Brasileira das In-dústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos). Os preços variam entre R$ 40 e R$ 763, conforme a dosagem do princípio ativo e o número de comprimidos.

Há quase dois anos, a auxiliar adminis-trativa Márcia Greff Demétrio descobriu que tem lúpus, uma doença autoimune que ataca os rins. O remédio indicado – mais eficaz e com menos efeitos colaterais – é o micofenato mofetil. O preço varia en-tre R$ 537 e R$ 1.972, conforme dosagem e quantidade. Sem poder pagar, Márcia recorreu ao programa de medicamentos de alto custo, do Sistema Único de Saú-de (SUS), mas, por questões burocráticas, não conseguiu. Recorreu ao Banco de Re-médios, uma ONG estabelecida em Porto Alegre, e conseguiu os comprimidos. “Há mais de um ano recebo os remédios e vol-tei a trabalhar e a viver normalmente”, diz.

A bancária Claudia Damarindo teve mais facilidade de acesso ao Reminyl (Galanta-mina) que sua mãe, Cecy, toma para retar-dar o avanço e complicações do Alzheimer.

Empresas são protegidas por lei feita às pressas nos anos 90, que concedeu mais de 700 patentes a medicamentos que não poderiam mais ser patenteados

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trabalho

Para o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, co-autor da cartilha, um dos moti-vos para que a relação entre suicídio e tra-balho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros trans-tornos psíquicos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo. “Ou se diz que essas patologias ocorrem por fal-ta de algum neurotransmissor, de alguma substância que faz com que a pessoa se de-prima, ou que surgem do próprio psiquis-mo, considerando que ela se deprimiu por-que não conseguiu se adaptar às relações sociais e pessoais. Essas correntes não le-vam em conta o trabalho como uma catego-ria fundamental na constituição do homem nem, portanto, a relação entre trabalho, de-pressão e suicídio”, diz Netto.

Pressão fatalAlguns modelos de gestão movidos a competitividade nociva e a exploração do trabalho sob assédio moral, pressões por desempenho e humilhações podem estar por trás de um ato extremo: o suicídioPor João Correia

Cláudio debruçou-se sobre o pa-rapeito de uma das passarelas da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Só tinha em mente pular e terminar com todo o so-

frimento. Foi impedido por um companhei-ro de trabalho que passava. Maria tomou mais de 20 comprimidos, mas a dose não foi suficiente para que ela acabasse com a pró-pria vida. Gislaine também tentou o suicí-dio tomando comprimidos. Depois, jogou--se de uma das escadas de sua casa e sofreu traumas no corpo. Essas pessoas têm mais em comum do que o fato de ainda estarem vivas após frustradas tentativas de suicídio.

A primeira semelhança, o diagnóstico de depressão profunda, os insere numa esta-tística silenciosa e alarmante: estima-se que

cerca de 15 milhões de pessoas sofram dessa doença no Brasil. O segundo elo está nos motivos que os levaram à decisão de se ma-tar: problemas no trabalho. “Nos três casos ficaram claros fatores como assédio moral, perseguições, humilhações e sobrecargas, que desestruturaram e destruíram a vida dessas pessoas”, afirma Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalha-dor, pioneira no estudo do assédio moral.

Margarida é uma das autoras da cartilha Suicídio e Trabalho – Manual de Promoção à Vida para Trabalhadores e Trabalhadoras, lançada em maio pelo Sindicato dos Traba-lhadores nas Indústrias Químicas, Farma-cêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo. Há uma década, sua pesquisa estarrecedora sobre assédio moral, intitulada Jornada de

Humilhações, revelou que de 2.072 entrevis-tados 42% sofriam de humilhações constan-tes em seus ambientes laborais – 16% desse grupo já havia pensado em se matar.

No ano passado, a médica organizou ou-tra pesquisa, Suicídio e Trabalho: Homicídio Culposo Corporativo?, ouvindo 400 traba-lhadores, 84 homens e 316 mulheres. Mais de um quarto desse grupo teve ideias suici-das ligadas ao trabalho – tendência propor-cionalmente mais presente entre os homens (37%, ante 24% das mulheres). “Os resulta-dos da pesquisa e as histórias colhidas em meu consultório chamaram a atenção para uma realidade que coloca o suicídio como resultado da exploração constante que os trabalhadores têm sofrido, como um grito de socorro que ainda não foi ouvido.”

Quebrei o vidro do meu carro com o pulso, quase morri. Não tenho os movimentos da mão ainda. Minha vida é no hospital. Tomo seis tipos de remédios, calmantes, antidepressivos, fico descaracterizado

Wellington, bancário

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Na França, empresa é condenadaPara casos de suicídio ainda não há

jurisprudência no Brasil e, mesmo em termos mundiais, o cenário avança lentamente. Na Espanha, por exemplo, há jurisprudência desde 2003, quando um tribunal superior considerou como acidente de trabalho o suicídio de um funcionário que caiu em depressão decorrente de várias situações de humilhação.

Na França, um episódio chamou a atenção da mídia por envolver uma gigante do setor automobilístico. Depois de um longo processo, envolvendo o suicídio de vários engenheiros, a Renault foi condenada pela morte de um dos trabalhadores envolvidos e a pagar indenização à viúva. Agora em agosto, a France Telecom

reconheceu como acidente de trabalho o suicídio de um de seus empregados, em sua casa, em julho de 2009. Em 18 meses foram registrados 24 casos de suicídio na empresa, atribuídos às mudanças de gestão ocorridas nesse período.

Tais casos reforçam os dados obtidos por pesquisas como as feitas no Sindicato dos Químicos de São Paulo. E a urgência de mudanças drásticas na organização do trabalho, para que histórias como as de Gislaine, Cláudio e maria não sejam vistas como casos isolados de depressão e descontentamento pessoal, mas como denúncia de que a pressão no trabalho como ferramenta de autoridade ou de desempenho pode ser uma arma mortal.

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Fora do Brasil, um caso que tem chama-do a atenção da imprensa mundial é o da empresa chinesa Foxconn. Foram 13 sui-cídios de funcionários nos últimos oito meses. A Foxconn, fornecedora de equi-pamentos eletrônicos para gigantes como Dell, Sony, HP e Apple, é acusada de sub-meter funcionários a uma disciplina militar e constante assédio moral.

Segundo a Organização Mundial de Saú-de, 3 mil pessoas suicidam-se todos os dias no mundo. A média aumentou 60% nos úl-timos 50 anos. Porém, a maioria dos órgãos ligados ao assunto, incluída a OMS, distan-cia-se de ver danos decorrentes de relações inadequadas de trabalho. Embora assuma o suicídio como problema de saúde pública, o órgão liga os casos a transtornos mentais, depressão, drogas. E quando os relaciona ao trabalho o faz de maneira discreta, atribuin-do-os a vulnerabilidade individual.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a taxa de 4,5 casos de suicídio em cada 100 mil mortes é considerada baixa, embora seu crescimento seja preocupante. Mais de 90% deles são atribuídos a transtornos mentais e ao abuso de substâncias psicoativas, sem rela-ção direta com o universo do trabalho.

Margarida Barreto vê nesse cenário uma tentativa de responsabilizar o indivíduo pelo suicídio, deixando de lado fatores so-ciais marcantes. “É preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande de-núncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas, baseada no assédio moral e numa verda-deira gestão por injúria”, reforça a médica.

Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Quí-micos de São Paulo, questiona a quem inte-ressa o silêncio diante dessa problemática. “As empresas não têm intenção de assumir esse ônus, pois é comum tratar o trabalha-dor como uma peça descartável”, afirma.

A costureira Gislaine vê seu caso como exemplo. Entre 2003 e 2004, depois de in-gressar numa multinacional do setor de plásticos, passou a sofrer humilhações cons-tantes de uma das gerentes. “Eu trabalhava das 7h às 17h e, quando acabava meu servi-ço, ela descosturava tudo e dizia que estava malfeito para me humilhar. Dizia ter carta branca pra fazer o que quisesse”, conta Gis-laine. “Cheguei a ter um enfarte e tive de ser afastada. Quando voltei, 20 dias depois, reto-maram as humilhações. Perdi peso, adoeci e fui ficando sem noção das coisas. Comecei a bater nas minhas filhas, deixei de ser uma pessoa alegre e me desestruturei completa-mente, profissionalmente e com minha fa-mília.” A situação culminou numa depressão profunda e em duas tentativas de suicídio. “Não tinha força nem para sair da cama. Só pensava em acabar com a vida”. Aos 51 anos, ela ainda vive à base de antidepressivos.

Pouco avançoPerseguições e descaso também fazem

parte da tragédia de Cláudio. Funcionário do setor de estoque de uma multinacional do ramo de tintas, ele começou a perceber que as regras de segurança não eram cum-pridas. “Como eu questionava, começaram a me perseguir, dar trabalhos mais pesados.

Setor bancário: depressão epidêmicaEmbora haja muitas estatís-

ticas referentes ao adoecimento e à depressão de trabalhadores, poucas pesquisas relacionam tais doenças ao suicídio. Uma das pioneiras foi apresentada na década passada pelo profes-sor Ernani Xavier, mestre em Administração pela Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul. Xavier identificou 76 ban-cários que se suicidaram entre

1993 e 1995, época em que es-tavam em alta temas como reor-ganização do trabalho, acelera-ção tecnológica, privatizações, fusões, programas de demissão voluntária e demissões em mas-sa – no período, foram demiti-dos mais de 430 mil trabalha-dores no setor em todo o Brasil.

Em 2009, o trabalho Pato-logia da Solidão: O Suicídio de Bancários no Contexto da Nova

Organização do Trabalho, tese de mestrado em Administração de Empresas de Marcelo Au-gusto Finazzi Santos, na Uni-versidade de Brasília (UnB), apurou que 181 bancários ter-minaram com a própria vida de 1996 a 2005 – em média, um a cada 20 dias. Entre as principais causas, assédio moral, pressões por metas, excesso de tarefas e medo do desemprego.

Em 2007, cansada das humi-lhações no ambiente de traba-lho, a bancária Mônica, de 25 anos, tentou acabar com o so-frimento tomando uma over-dose de remédios. Ela mesma relata: “Olhei pra cima e falei: ‘Me leva porque eu não aguento mais as humilhações, os xinga-mentos’. Minha mãe me socor-reu. Em 2009, eu tentei de novo com 40 ou 50 comprimidos de

medicamentos controlados. Fui levada para o hospital. Não aguentava mais, o gerente me ignorava, não falava comigo, passava meus clientes para os outros. Eu simplesmente não existia. O médico me afastou, mas meu gerente me forçou a trabalhar mesmo com atestado. Aí, pediu minha demissão”.

Mônica não suportava mais ouvir insultos dos superiores. “Um dia eu estava almoçan-do, eram mais de 16h, e a mi-nha gerente geral começou a gritar: ‘Não pode comer!’. Eles

nos humilhavam na frente de todo mundo. ‘Que porcaria de produção é essa? Vocês querem que eu enfie um Sonrisal no c* de vocês para andarem que nem jet ski?’ E eu não conseguia es-quecer essas coisas. Ia ficando cada vez pior.”

Em novembro de 2009, ela foi pressionada a abrir em uma se-mana 100 contas de renda aci-ma de R$ 4 mil. “A meta geral era abrir dez contas dessas em um mês. Em uma semana era impossível. Diziam ‘se vira!’ E eu pensei: ‘Vou acabar com

tudo, com a minha vida, com essa dor de cabeça, eles vão pa-rar de me humilhar’. Assim não teria mais de ir trabalhar com essas pessoas. Por isso, se mi-nha vida acabasse hoje, tudo bem. Eles acabaram com a mi-nha vontade de viver.”

Wellington também sofre de depressão. Contratado em 2000 para trabalhar no anti-go Banespa como operador de Controle de Qualidade, ele começou a ter crises nervosas. “Eu não era reconhecido. Co-mecei a ter convulsões, crises

nervosas dormindo. Quan-do isso acontece, eu não con-sigo me lembrar como e o que acontece. Passei por neu-rologista, psiquiatra e estou em grupos de apoio”, relata.

“Depois de seis anos, con-tratavam para ser meu supe-rior uma pessoa que não sabia o trabalho, eu tinha de ensinar e era muito cobrado. Na práti-ca, o que eu falava era ordem, mas não tinha cargo nem salá-rio para essa responsabilidade, tinha que ter o controle de tudo porque era uma gráfica de

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Um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo

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segurança máxima. Para eu ir ao banheiro tinha de passar por revista, tirar o sapato. Os outros não precisavam.”

Segundo ele, as humilhações o levaram a quase acabar com a própria vida: “Aconteceu numa semana que eu estava de ates-tado médico. A maioria das pessoas da minha equipe foi demitida e acabei indo numa reunião. Teve uma desavença muito grande, fui menospreza-do, discriminado, rotulado. Fi-quei muito mal. Quebrei o vi-dro do meu carro com o pulso,

quase morri. Não tenho os mo-vimentos da mão ainda. Minha vida é no hospital. Tomo seis tipos de remédios, calmantes, antidepressivos, fico descarac-terizado. Caí na escada e que-brei os pés. Estou de licença mé-dica. No banco me chamam de Gardenal”.

Para a médica Maria Maeno, coordenadora do grupo temá-tico Organização do Trabalho e Adoecimento, da Fundacen-tro (órgão do Ministério do Trabalho que atua em questões de saúde), o suicídio ligado ao

trabalho é pouco estudado no Brasil por dificuldades metodo-lógicas. A depressão, alerta ela, tornou-se epidêmica no mun-do inteiro, mas é pior nessa cate-goria. “O ramo financeiro talvez seja o que tenha sofrido a maior reengenharia na organização do trabalho. Com a automa-ção, a velocidade da informa-ção e das transações, a deman-da ficou mais rápida e eles têm de responder mais rapidamente também. Todos têm de vender produtos – que não são de pri-meira necessidade – e cumprir

metas, independentemente de onde estejam. Quando você é pressionado, os comportamen-tos são os mais diversos”, explica Maria Maeno.

“É preciso haver acordo en-tre trabalhadores e bancos. Os bancários estão vulneráveis e não reagem quando passam por essas situações. Isso não é culpa do gerente geral ou do superintendente, são as che-fias imediatas as que aparecem, mas sobre elas há a pressão que vem da forma como o sistema bancário funciona”, adverte.

Pesquisa feita com bancários de todo o Brasil sobre as prio-ridades da campanha nacional deste ano mostra que para qua-se 80% da categoria o comba-te ao assédio moral e às metas abusivas são os principais pro-blemas nos locais de trabalho.

Para a presidenta do Sindi-cato dos Bancários de São Pau-lo, Osasco e Região, Juvandia Moreira Leite, o assédio tem a origem no sistema de orga-nização do trabalho imposto pelos bancos.“Nós temos vá-rias reclamações de gerentes-

-gerais de agência dizendo: ‘Eu não aguento, meu diretor fica ligando todo dia, tenho de me controlar muito para não re-passar essa pressão para o meu quadro de funcionários’”, diz.

Juvandia admite que há pro-blema com o comportamen-to individual das chefias, mas considera que a organização do trabalho do banco induz a esse comportamento. “Eles querem resultados, indepen-dentemente de como a cobran-ça é feita. E isso até hoje ficou sem punição.”

Para ela, é importante criar instrumentos para que o ban-co condene formalmente essa conduta. “Ele tem que garantir que não admitirá isso. Tem de ter prazo para apurar denúncias e tomar providências. Há casos em que se demora seis meses ou mais para apurar. Tem muitos bancários afastados por causa de depressão, mas também os que não estão afastados, mas tomam remédios. Em agências, acho que no mínimo uma pes-soa tem esse problema ou de-senvolve sintomas.”

Só no primeiro semestre deste ano, 18 mil funcioná-rios saíram dos bancos, me-tade deles pediu demissão. “O trabalho bancário hoje é mui-to caracterizado pela pressão, pela cobrança. É fundamental que a gente encerre a campa-nha salarial com algum avanço no combate ao assédio porque realmente é um grave proble-ma em todos os bancos, públi-cos e privados”, afirma a presi-denta do sindicato.

Por Xandra Stefanel

Pensei: ‘Vou acabar com tudo, com a minha vida, com essa dor de cabeça, eles vão parar de me humilhar’. Assim não teria mais de ir trabalhar com essas pessoas. Por isso, se minha vida acabasse hoje, tudo bem. Eles acabaram com a minha vontade de viver

Mônica, bancária

Havia funcionários que, por medo de repre-sálias dos encarregados, nem sentavam mais ao meu lado. Me deram duas advertências só para que eu me calasse diante dos problemas e me colocaram para trabalhar numa área isolada. Comecei a entrar em pânico, a ter crises de choro, me descontrolar. A tentativa de suicídio foi pensando que assim a polícia veria o que estava acontecendo lá dentro”, conta o jovem de 29 anos.

Dois anos de perseguições provocaram em Cláudio um quadro de esquizofrenia que o obrigou a ficar internado numa clíni-ca psiquiátrica por 20 dias. “Não conseguia mais sair na rua e comecei a achar que to-dos estavam me perseguindo, inclusive gente da família. Eu não entendia quem mentia e quem falava a verdade. Perdi o rumo da mi-nha vida”, lamenta Cláudio, que há um ano trabalha em outra empresa e ainda precisa de medicamentos para depressão.

Para Lourival, do Sindicato dos Químicos, outro indício desse descaso está nos índices de adoecimento e de acidentes de trabalho, que engordam as estatísticas negativas do atual modelo de gestão empresarial. “Essas duas situações costumam gerar demissão e perseguição. O funcionário hoje só serve se está muito bem. Doente, incomoda, aí vêm as perseguições, numa tentativa de que eles se demitam sem direito a nada”, diz.

O caso de Maria é emblemático. Depois de 20 anos trabalhando na mesma empresa, multinacional do ramo de cosméticos, co-meçou a sentir dores crônicas e teve de pas-sar por cirurgias. “Foram cinco nos últimos cinco anos, nas mãos, no ombro esquerdo e

no braço direito. Tive tendinite, rompimen-to nos dois ombros, e ainda não estou bem. Perdi o movimento e fiquei com deforma-ções no braço. Dediquei toda minha vida a essa profissão e fui largada de lado”, lamenta. Maria recupera-se da última cirurgia e espe-ra por decisões da Justiça do Trabalho e do INSS, que podem lhe render uma indeniza-ção ou a aposentadoria. Ou nada.

Dependendo do resultado, ela entrará para um seleto grupo de trabalhadores que ganharam ações na Justiça por assédio mo-ral, o que começa a ocorrer no Brasil. Exis-tem mais de 80 projetos de lei em diferen-tes municípios e vários no âmbito federal à espera de votação. Na esfera estadual, desde maio de 2002, o Rio de Janeiro condena a prática. Também há projetos em tramitação em São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernam-buco, Paraná e Bahia.

Gislaine entrou na Justiça contra sua al-goz e ganhou a causa por assédio moral. A perseguidora foi condenada a pagar 250 cestas básicas à comunidade, “entregues por mim, em locais muito pobres, algo que me lavou a alma”, diz Gislaine. Cláudio tam-bém ganhou a causa na Justiça do Trabalho e a empresa foi obrigada a pagar um ano de plano de saúde e R$ 8 mil de indeniza-ção, o suficiente para que o rapaz pagasse as contas que se acumularam enquanto es-teve afastado. Muito pouco para pagar as despesas que tem com os antidepressivos.

*Os nomes de algumas pessoas e empresas foram alterados ou omitidos a pedido dos entrevistados

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história

Yoshitaka nasceu em Bauru e vive em um sítio em Suzano. Chegou a servir ao orgulhoso exército imperial japonês. Esta-va dentro de um navio militar em Nagasaki quando, em 9 de agosto de 1945, a bomba explodiu na cidade portuária de 240 mil ha-bitantes – 80 mil morreram imediatamente. Em Hiroshima, estima-se em pelo menos 100 mil os mortos logo após a explosão. Os efeitos da radiação matariam ainda outros milhares de pessoas nos anos seguintes.

“Lembro que o navio balançou. Saímos e estava tudo escuro. A cidade inteira estava destruída”, conta. Na sequência, os soldados saíram para socorrer as vítimas da explosão da fat man (homem gordo), nome dado à segunda bomba – a little boy (menininho) havia sido jogada antes do avião Enola Gay sobre Hiroshima. Yoshitaka ficou com man-chas brancas nos braços. “Após a explosão, às 11 horas, o dia virou noite. O cheiro de morte nas ruas era difícil de aguentar. De-moramos para entrar em Nagasaki. Quando chegamos, havia sobreviventes em abrigos. O resto, até as árvores, estava tudo queima-do.” O brasileiro, cujos pais chegaram ao país em 1909, voltou para São Paulo em 1960.

Haruko trabalhava na zona rural de Hi-roshima, a 16 quilômetros do epicentro da explosão. Mesmo assim, as consequên-cias foram catastróficas. “A casa desabou em cima de todo mundo, espalhando ca-cos de vidro para todo lado. Eu vivia com mais quatro irmãos na cidade de onde meus pais saíram para vir ao Brasil”, conta. Um irmão morreu pouco após a bomba, vítima de uma febre que não passava.

Pouco tempo depois, numerosos grupos de vítimas que conseguiram sair da cidade fo-ram para a zona rural em busca de ajuda para escapar do horror. Não era possível, entretan-to, encontrar muita coisa. “Era muita gente, que alojamos numa escola, um dos poucos lugares que ficou em pé, já que tudo estava queimado e destruído. Faltava de tudo.”

Pela segunda vez, a família de Haruko to-mava parte de um fato histórico. Seu pai, Fu-sakishi Nishimura, havia sido um dos 781 pioneiros da imigração japonesa ao Brasil, onde chegaram em 1909 a bordo do navio Kasato Maru. Somente um de seus oito filhos havia nascido em Hiroshima, todos demais eram brasileiros, ocidentalizados demais para o gosto do tradicionalista Fusakishi.

Crueldade atômicaCaía uma chuva negra. A população pensava ser óleo jogado pelos americanos, mas era uma chuva ácida, resultante da explosão com força de 21 toneladas de dinamite Por Moacir Assunção

Haruko Yoshiga, de 88 anos, Yasuko Nishimura, de 79, e Yoshitaka Samedima, de 82, têm em comum a lembrança viva do maior horror jamais

criado pelo homem: a bomba atômica. Lançada há 65 anos por aviões america-nos, ela arrasou as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Os descendentes de japoneses viram nascer a maior arma de destruição em massa, cuja criação marcou um novo paradigma na história do homem, ao estabelecer que a própria raça poderia ser extinta.

Yasuko, a única natural de Hiroshi-ma, chegou ao Brasil em 1952. Haruko e Yoshitaka, de pais japoneses, são brasi-leiros nascidos no estado de São Paulo, que voltaram à terra de seus ancestrais no final da década de 1930 para apren-der o idioma e retomar o contato com sua cultura.

Com a guerra, não puderam voltar e se tornaram protagonistas de uma história curiosa e pouco conhecida de brasileiros, a dos hibakushas – pessoas afetadas pela bomba, das quais 130 vivem no Brasil. memória Mesmo a 16 quilômetros do centro da explosão, Haruko viu sua casa desabar

terror A decisão final sobre

o uso das bombas foi do presidente dos Estados Unidos, Harry

Truman. Em Hiroshima foi lançada uma bomba de urânio. Em Nagasaki,

de plutônio. Muitos historiadores afirmam

que detonar as bombas foi um recado à então União Soviética, pois a

guerra contra o Japão já estava ganha

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Enquanto seus conterrâneos rumaram para o interior, Fusakishi ficou na capital. Vendia brinquedos de madeira feitos à mão. Alguns anos depois, conseguiu montar uma peque-na fábrica no bairro da Mooca. Em de 1939, mandou os filhos de volta ao Japão. Um de-les, Kenzo Nishimura, casou-se com Yasuko na cidade natal do pai. Depois da guerra, de-cidiram voltar. “Não tem lugar como o Bra-sil”, diz ela.

Saúde de ferroA Associação dos Sobreviventes da Bom-

ba Atômica no Brasil foi surpreendida com a existência de brasileiros natos entre as ví-timas. Imaginava-se que os hibakushas eram somente japoneses e coreanos. “Como todo mundo tem traços e nomes orientais, pen-sávamos que não havia brasileiros. Eles são muito reservados e muitas vezes nem a fa-mília sabia o que tinha acontecido”, conta a diretora da entidade Yasuko Saito. Somente depois de um encontro há pouco mais de um ano os sobreviventes foram estimulados a falar mais de sua origem. “A história é ab-solutamente surpreendente porque sempre se achou que os sobreviventes eram somente japoneses e, talvez, alguns coreanos”, afirma o professor de História André Lopes Loula, diretor cultural da entidade.

Em 2003, Yoshitaka Samedima conheceu Takashi Morita, de 86 anos, presidente da associação e também sobrevivente de Hi-roshima, que perguntou sobre as manchas nos braços. Até então, nem a família sabia o que ele tinha vivido naquele agosto de 1945. A razão do segredo era o preconcei-to. “Nenhuma moça queria se casar com hibakushas. Achavam que os filhos nasce-riam com deficiências”, explica. Por causa disso, muitas histórias ficaram escondidas.

A Associação das Vítimas da Bomba Atô-mica no Brasil foi fundada em 1984, com o objetivo de congregar os sobreviventes e conseguir alguma ajuda do governo japo-nês para os hibakushas que viviam em ou-tros países. Na rígida cultura nipônica, os que saíram do país passaram a ser vistos como ingratos com sua pátria. Morita, que começou a organizar o movimento, foi for-çado a entrar com ações judiciais contra o Japão para ver reconhecidos os direitos dos conterrâneos. Hoje os 130 sobreviventes no Brasil recebem uma ajuda de aproximada-mente R$ 500 por mês e assistência médi-ca – antes o governo japonês só atendia as pessoas do país.

Duas vezes por ano, médicos japoneses especialistas em sequelas de bombas atô-micas vêm ao Brasil para consultar os hi-bakushas. A maior parte, entretanto, tem saúde de ferro, apesar da idade. E ao con-trário da crença popular, os filhos também nasceram saudáveis.

Uma luz silenciosaApesar de estar no Brasil desde a déca-

da de 1950, Morita ainda fala português com dificuldade, e atribui sua longevida-de ao clima tropical. Policial militar em Hiroshima, estava a pouco mais de um quilômetro do epicentro da explosão. En-quanto muitos fugiam, ele voltou à cidade para tentar socorrer vítimas. “Nunca es-queci nem vou esquecer o que vi. Milha-res de corpos queimados dentro dos bon-des, crianças mortas sob os escombros, o fogo avançando sobre pessoas que pediam ajuda para não morrer dentro das casas destruídas. Era um cenário de horror, pa-

recia o fim do mundo”, descreve Morita, ainda emocionado. Na hora da explosão, ele não ouviu barulho algum, foi projeta-do dez metros à frente e sofreu queima-duras nas costas e nuca. O então policial atribui sua sobrevivência ao fato de estar com roupas grossas, bem alimentado e de costas para o epicentro.

Só viu uma luz silenciosa, uma espécie de flash, que percorreu rapidamente todo o seu corpo. Ao conseguir se levantar, estava tudo escuro, embora fossem 8h15. Caía uma chu-va negra, que a população pensava ser óleo jogado pelos americanos para provocar in-cêndios, como tinha acontecido em Tóquio. Não era, tratava-se de uma chuva ácida, re-sultante da explosão e da radiação provoca-da pelo artefato nuclear com potência de 21 toneladas de dinamite. Até aquele momen-to, ninguém imaginava que a bomba lança-da era muitas vezes mais letal que as temidas ogivas incendiárias que devastaram a capi-tal japonesa.

Uma cena que Morita jamais esqueceu foi a de uma jovem mãe, morrendo ao lado do seu filho, que pediu ao vê-lo fardado: “Soldado, mate americanos”. No Brasil, onde chegou em 1956 ao lado da mulher, a enfermeira Ayako e os filhos Yasuko (a diretora da associação) e Tetsuji, foi relo-joeiro na Rua Augusta e, depois abriu uma mercearia de produtos japoneses no bairro da Saúde, onde também funciona a sede da associação e da entidade-irmã Associação Hikabusha-Brasil pela Paz.

“Meu Deus, o que fizemos?”A frase de espanto com as consequências

do ataque a Hiroshima teria sido pronun-ciada pelo co-piloto Robert Lewis. Ele es-tava a bordo do B-29, batizado como Enola Gay, comandado pelo coronel Paul Tibbets, de onde partiu a bomba que formou o enor-me “cogumelo”, fotografado pelo sargento Bob Caron. A decisão havia sido tomada no dia 25 de julho pelo presidente dos Es-tados Unidos, Harry Truman. Em um gabi-nete improvisado no cruzador USS Augus-ta, no meio do Atlântico, foi Truman quem ordenou o ataque nuclear contra o inimigo que havia impingido um enorme número de baixas de americanos no ataque a Okina-wa. Antes, entretanto, o Japão já analisava a sua rendição, pela primeira vez na história militar do país.

O presidente americano tinha em mãos uma lista de cidades-alvo feita pelo secretá-rio de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Nokura, Niigata e Nagasaki. Hiroshi-ma passou a ser um alvo prioritário por ter 40 mil soldados em sua área. No navio, Tru-

man escreveu em seu diário: “A arma final-mente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível jamais descoberta”.

A decisão foi mais do que uma vingança contra a operação japonesa na base norte--americana de Pearl Harbor, localizada na ilha de Ohau (Havaí), na qual foram mor-tos 2.400 americanos. O ataque causou terrí-veis repercussões na opinião pública do país. Os Estados Unidos alegavam que sofreriam muitas baixas – até 200 mil – em um eventual ataque convencional ao Japão. Mas o que moveu mesmo o governo de Truman a em-pregar a bomba foi, segundo a maior parte dos especialistas, a intenção de dar um reca-do a União Soviética. Afinal, o Exército Ver-melho havia destruído a máquina de guerra de Adolf Hitler – era preciso demonstrar ter em mãos uma arma mais poderosa.

Hiroshima e Nagasaki teriam sido esco-lhidas por se situar entre vales, o que permi-tiria observar os efeitos da bomba em alvos reais, sem condições de a radiação se dissi-par totalmente antes de cessarem seus efei-tos. Seriam as primeiras (e até hoje únicas) vezes em que a poderosa arma foi usada con-tra alvos humanos.

Era o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era nuclear e da Guerra Fria, conflito não declarado entre as grandes po-tências, EUA e URSS, que se estenderia por todo o século 20. O embate com as extin-tas potências comunistas já não existe mais. Mas os interesses econômicos do bloco de nações ricas – inclusive os da indústria ar-mamentista – ainda são um legado das po-tências capitalistas a ser desarmado pela humanidade no século 21.

lembranças Yasuko nasceu em Hiroshima, sobreviveu à bomba e veio para o Brasil em 1952

cheiro de morte Yoshitaka estava em um navio em Nagasaki quando a bomba explodiu. “O dia virou noite”

HibakusHas Duas vezes por ano, médicos japoneses especialistas em sequelas de bombas atômicas vêm ao Brasil para consultar os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki

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ambienteBanco genético

Ao mesmo tempo em que parece um nú-mero grande, pode também parecer irrele-vante. “Hoje, conhecemos cerca de 2 mi-lhões de espécies. Mas a estimativa é de que sejam de 15 a 30 milhões”, diz Luiz Eduardo Corrêa Lima, professor titular de Biologia da Faculdades Integradas Tereza D’Ávila, de Lorena (SP).

Nessas espécies encontram-se um vasto e generoso banco genético, cuja exploração ainda engatinha, capaz de prover os mais diferentes tipos de soluções para questões humanas eminentes. Por exemplo, o desen-volvimento de uma medicação para tratar a leucemia, recentemente extraída de plantas da Floresta de Masoala, em Madagascar, na África. Ou os sistemas de refrigeração dos cupinzeiros copiados para projetar prédios com baixo consumo de energia. E até mesmo um tipo de tinta impermeável que se inspira na flor de lótus, cuja superfície não absorve água. Esses são exemplos do que a biodiver-sidade já está fazendo para a humanidade.

Mas há casos também daquilo que já per-demos. Como uma rã típica da floresta tro-pical australiana (gastric-brooding frog) que guardava no estômago os ovos fertilizados pelo macho. Durante o período de desen-volvimento dos girinos, a produção de suco digestivo interrompia-se e os pesquisado-res acreditam que o estudo dessa espécie poderia produzir medicamentos eficientes contra úlceras. Mas a rã está considerada extinta desde 1981.

Fatos como esse poderiam constituir ar-gumentos convincentes para a preservação das espécies e das áreas em que elas se en-contram. Mas não são. Assim, o raciocínio conservacionista tem sido puramente con-tábil: quanto vale a biodiversidade, qual é o prejuízo que representa sua diminuição e que investimento é necessário fazer para mantê-la. Não é a forma ideal para evocar um princípio ético da única espécie capaz de pensar na preservação de todas as espé-cies. Mas talvez seja a saída.

Segundo o documento A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, produ-zido pelo Programa Ambiental das Na-ções Unidas (Pnuma), os desmatamentos na Amazônia, por exemplo, são responsá-veis por um prejuízo de até US$ 44 trilhões ao ano. Já o relatório Global Biodiversi-ty Outlook (GBO), também da ONU, por exemplo, estima que a perda anual de flo-restas tenha custado entre US$ 2 trilhões

O Brasil será destaque neste outubro, no Japão, em mais uma conferência que põe a temática ecológica na agenda do planeta. Desta vez, enfrentando o olho gordo de interesses nem sempre ambientais em nossos biomasPor roberto Amado

Até alguns anos atrás, a palavra “biodiversidade” era quase in-compreensível para a maioria das pessoas. Hoje, se ainda não chega a ser um tema que

se discuta nos bares, vem se incorporando cada vez mais na sociedade em geral. Tudo indica que a variedade de espécies de plan-tas, animais e insetos de uma determinada área começa a ser uma preocupação geral – a ponto de a ONU considerar 2010 o Ano Internacional da Biodiversidade.

Mas ainda que seja um assunto cada vez mais popular, convencer governos e socie-dades de que a biodiversidade tem impor-tância fundamental para a espécie humana e para o próprio planeta é uma perspecti-va remota. Afinal, a quantidade de espécies aparentemente não influencia na vida pro-fissional, social e econômica de quem está mergulhado nas decisões mais prosaicas do dia a dia. No entanto, essa vai ser, mais uma vez, a missão de boa parte das 8 mil pes-soas – técnicos, consultores, especialistas e cientistas – que irão se reunir em Nagoya, no Japão, entre 11 e 29 de outubro, para a 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Além deles, estarão lá líderes políticos de cerca de 190 países incumbidos de dis-cutir um variado cardápio de questões que envolvem o uso e a preservação da biodi-versidade em todo o globo. Ou, como diz Ahmed Djoghlaf, secretário-executivo da Convenção, “desenvolver um novo plano estratégico para as próximas décadas, in-cluindo uma visão para 2050 e uma missão para a biodiversidade em 2020”.

Talvez seja um discurso um pouco vago devido à urgência dos fatos: nunca, na his-tória do planeta, registrou-se um número tão grande de espécies ameaçadas. Diaria-mente, 100 espécies entram em processo de extinção e calcula-se que nos próximos 20 anos mais de 500 mil espécies serão var-ridas definitivamente do globo. Tudo isso é, na maior parte, “obra” do ser humano: segundo a Fauna e Flora International, uma das organizações não-governamen-tais mais antigas dedicadas ao estudo da biodiversidade, cerca de 80% das florestas que originalmente cobriam o planeta foram destruídas ou degradadas nos últimos 150 anos e estima-se que, graças à intervenção humana, as espécies estão desaparecendo a uma taxa 10 mil vezes maior do que se-ria natural.

A biodiversidade é nossa

sem teto Lar de inúmeras espécies, a Mata Atlântica já perdeu 93% de sua área natural. O mico-leão-dourado (página ao lado) é raríssimo. A arara-vermelha já desapareceu desse bioma costeiro e está criticamente ameaçada no estado de São Paulo

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Hotspots da vida na TerraOs “pontos quentes” do planeta, onde a variedade de espécies encontradas é maior do que em qualquer outro lugar, mas que já tiveram pelo menos 70% de sua área original destruída. Marcados com a bola preta, as áreas que se tornaram hotspots recentemente

1. mata Atlântica (Brasil, Paraguai, Argentina)

2. Província Florística da Califórnia3. Província Florística do Cabo (África

do Sul)4. Ilhas do Caribe5. Cáucaso6. Cerrado7. Florestas Valdívias (Chile Central)8. montanhas do Arco Oriental9. Ilhas da melanésia Oriental

10. Florestas de Afromontane (África do Sul, Namíbia)

11. Florestas da Guiné (África Ocidental)12. himalaia13. Chifre da África14. Regiões da Indo-Birmânia15. Região Irano-Anatólica16. Japão17. madagascar e Ilhas do Oceano Índico18. Floresta de Pinho-Encino de Sierra

madre (méxico, EUA)

19. maputaland-Pondoland, Albany (África do Sul, Swazilândia, moçambique)

20. Bacia do mediterrâneo21. mesoamérica (Costa Rica, Nicarágua,

honduras, El Salvador, Guatemala, Belize, méxico)

22. montanhas da Ásia Central23. montanhas do Centro-Sul da China24. Nova Caledônia25. Nova zelândia

26. Filipinas27. Ilhas da Polinésia e micronésia

(incluindo hawaí)28. Sudoeste da Austrália29. karoo das Plantas Suculentas (África)30. Sunda (Indonésia, malásia e Brunei)31. Andes Tropicais32. Tumbes-Chocó-magdalena

(Panamá, Colômbia, Equador, Peru)33. Wallacea (Indonésia)34. Ghats Ocidentais (Índia, Sri Lanka)

e US$ 5 trilhões. A pesquisa mostra, por outro lado, que a preservação desses bio-mas requer investimentos anuais de ape-nas US$ 45 bilhões.

Nessa contabilidade, o que entra é um va-lor atribuído aos “serviços” ambientais que os biomas oferecem – como a purificação do ar e da água, o fornecimento de água doce e de madeira, a regulação climática, a proteção a desastres naturais, o controle da erosão e até a recreação. E a ONU avisa: mais de 60% desses serviços estão sofrendo degradação ou sendo consumidos mais depressa do que podem ser recuperados. Mas não é só isso. Segundo Luiz Eduardo Corrêa Lima, a im-portância da diversidade biológica está além do que ela pode nos oferecer como “servi-ços” – afinal, “é o registro genético de tudo o que aconteceu na evolução das espécies, um histórico biológico e evolutivo”.

Marcar territórioSeja como for, o Brasil tem enorme inte-

resse nessa conta: é a região do planeta que apresenta maior diversidade biológica. Por-tanto, somos donos de um enorme tesouro, liderando o restrito grupo dos megadiver-sificados, compostos por outros 16 países.

Em 2002, quando foi realizada a 6º Confe-rência das Partes sobre Diversidade Biológi-ca, em Haia (Holanda), os países signatários definiram metas a serem alcançadas agora, em 2010, que, aparentemente, não pareciam tão distantes. Por exemplo, a redução da per-da e degradação de habitats e proteção de pelo menos 10% das regiões mais biodiver-sificadas do planeta. Agora é hora de prestar contas e encarar a dura realidade: nenhum país conseguiu alcançar os objetivos.

Segundo a secretária de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Maria Cecília Wey de Brito, o Brasil atingiu 75% da meta mundial de criação de áreas protegidas permanentemente, o que inclui parques e áreas reservadas.

Embora as instituições governamentais do planeta façam pouco pela conservação da biodiversidade, algumas ONGs têm um trabalho efetivo nessa área, produzindo e reunindo informações. Uma delas é a Con-servation International (CI), que tem inclu-sive sede no Brasil. A CI tem trabalhado no conceito dos hotspots, criado pelo ecó-logo inglês Normam Myers, em 1988, para definir as áreas prioritárias de preservação da biodiversidade. Ou seja, áreas que apre-sentam grande diversidade biológica, com

pelo menos 1.500 espécies endêmicas (que só ocorrem em uma determinada área) e que tenham perdido mais de 75% de sua vegetação original.

Myers a princípio identificou apenas dez hotspots no planeta. A partir desse trabalho, a CI elaborou estudos que levaram a uma ampliação crescente do número de área crí-ticas e estabeleceu a existência de 34 regiões (mapa ao lado) que constituem o habitat de 75% dos mamíferos, aves e anfíbios mais ameaçados do planeta. Ainda que a soma total dos hotspots represente apenas 2,3% da superfície terrestre, é neles que se en-

contram 50% das plantas e 42% dos verte-brados conhecidos.

No Brasil, há dois deles: a Mata Atlântica e o Cerrado – a Amazônia, apesar de apre-sentar a maior biodiversidade do planeta, ainda não foi destruída a ponto de ser con-siderada crítica. Apesar de ter pouca visibi-lidade, por não se tratar de uma região com árvores exuberantes e grandes animais, o Cerrado é o segundo maior bioma do país, localizado no Brasil Central, e apresenta uma fauna e flora extremamente rica – se-gundo a CI, há mais de 10 mil espécies de vegetais na região.

Mas dados do IBGE confirmam que a co-bertura vegetal desse bioma foi, apenas nos últimos anos, reduzida à quase metade. O Cerrado corre o risco de desaparecer até 2030 se o desmatamento prosseguir à ve-locidade de 3 milhões de hectares por ano. Junto com a cobertura vegetal estão sumin-do espécies típicas, como a onça-pintada, o tatu-canastra, o lobo-guará, a águia-cin-zenta e o cachorro-do-mato-vinagre.

Já a Mata Atlântica, nosso segundo hotspot, tem histórico igualmente contun-dente. Originalmente, estendia-se ao longo da costa, do Rio Grande do Sul ao Piauí, su-perando diferentes formas de relevo e até cli-mas. Segundo a ONG SOS Mata Atlântica, é considerada o bioma mais rico em biodi-versidade do planeta. Mas cerca de 93% de sua área já foi devastada, principalmente de-vido ao fato de estar em regiões em que se concentram 62% da população do país, cer-ca de 110 milhões de pessoas, incluindo as maiores cidades e capitais. Nela, sobrevivem

às duras custas algumas espécies endêmicas, como o mico-leão-dourado, a onça-pintada, o bicho-preguiça e a cobra jararaca. Calcu-la-se que na Mata Atlântica ainda existam 1.020 espécies de pássaros, 197 de répteis, 340 de anfíbios e 350 de peixes.

Ao Brasil resta, mais uma vez, tomar a frente das negociações e se envolver nesse movimento que procura dar valor mone-tário aos biomas e sua diversidade. Mas no âmbito da política internacional, não basta fazer isso. Afinal, por trás dessas discussões financeiras relacionadas à biodiversidade, repousa, ainda latente, uma outra, de im-portância fundamental para nós: a proprie-dade sobre as espécies. Não faltam movi-mentos e gestões globais que procuram dar posse internacional a esse tesouro natural – afinal, a perda dele, segundo argumentam, gera danos a toda humanidade e não ape-nas ao país “proprietário”. Mais uma vez, o Brasil terá de brigar por aquilo que é seu – e ter competência de saber preservá-lo.

savana brasileira Segundo maior bioma do país, o Cerrado sofre com os frequentes incêndios e avanço da agricultura e pecuária. Corre o risco de desaparecer até 2030

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Você está numa cidade imaginária. Siga pela Avenida Baden Powell e entre na Travessa Elis Regina. No fim da viela, descanse na Praça João Nogueira, junto ao Monumento à Clara Nunes, bem no Cantinho do Sabiá, em frente ao conservatório musical Dorival Caymmi. Passe para a outra quadra, e na esquina da Rua Eduardo Gudin com a Maurício

Tapajós tome alguma coisa no Bar Pixinguinha, onde não entra quem não tem ca-ráter. É possível que Vinicius e Tom estejam por lá. Depois, caminhe pelo Bulevar Aldir Blanc. Você verá o Museu de Arte Mauro Bolacha Duarte e o Grupo Escolar Radamés Gnatalli – talvez no jardim espie a professora Luciana pastorando Lenine, Diogo, Marcel, Bena, Alice e outras crianças, observada de longe pela diretora Suely Costa. Pare no caixa automático do Banco Sivuca e saque algumas notas musicais, a moeda corrente nessa cidade, com população de mais de 2 mil composições, cha-mada Paulo César Pinheiro. Trata-se de um lugar sem pragas nem ervas daninhas, sem armas nem homens de mal, espécies extintas pelas cinzas de um carnaval.

Nesta entrevista, concedida numa tarde de setembro no Bar Getúlio, em Copabacana, PC Pinheiro fala um pouco dessa cidade da criação, e da inex-plicável inspiração que o torna o compositor da música popular de mais vasta obra de todos os tempos. Levam sua assinatura obras tramadas com parceiros de cinco gerações, de Pixinguinha, que hoje teria 113 anos, a Alice, 20, filha

A música me ama

Paulo César Pinheiro não tem controle sobre o que cria. As canções brotam, como que de uma nascente. Elas já renderam parcerias com gente de cinco gerações e um baú pronto para servir a outras tantasPor Paulo Donizetti de Souza

entrevista

de Dori Caymmi. Uma pequena amostra desse acervo o poe-ta, de 61 anos, descreve no saboroso livro Histórias das Minhas Canções , lançado recentemente pela Editora Leya. E como ele não consegue nem faz questão de explicar direito, em prosa, de onde vem seu poder da criação, os versos a seguir, que não es-tão no livro, talvez o faça:

“A música me ama, ela me deixa fazê-la. A música é uma estrela , deitada na minha cama. Ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber . Quando me dou conta e vou ver, ela já entrou no meu peito. No que ela entra a alma sai, fica meu corpo sem vida. Volta depois comovida, e eu nunca soube onde vai. Meu olho dana a brilhar. Meu dedo corre o papel, e a voz repete o cordel que se derrama do olhar. Fico algum tempo perdido até me recuperar, quase sem acreditar se tudo teve sentido. A música parte e eu desperto pro mundo cruel que aí está. Com medo de ela não mais voltar. Mas ela está sempre por perto. Nada que existe é mais forte, e eu quero aprender-lhe a medida de como compõe minha vida, que é para eu compor minha morte.” (Do disco Parceria, gravad o em 1994, com João Nogueira.)

Em meio a uma obra tão vasta, como conseguiu eleger as can-ções que botou no livro?

Já estou preparando o volume 2. Eu já tinha listado, a princípio, 100 histórias, só por ser um número redondo. Mas quando chegou na sexagésima eu percebi que o livro estava ficando muito gran-de. Eu não tinha ideia de que as histórias iam se estender. Achei por bem parar, porque se fosse fazer as 100, o livro iria para umas 600 páginas, ia ficar muito caro. A produção acabou ficando boa, a editora é muito boa. Todo mundo que me diz que leu, diz que leu numa tacada só. Eu comecei a compor até antes de Viagem – a primeira música, feita aos 14 anos (Oh, tristeza me desculpe, estou de malas prontas...). Daí em diante, fui fazendo sem nem me dar conta do que aquilo era na minha vida.

Você foi compondo as canções e elas compondo você?Com certeza. É uma simbiose. A música começa a fazer parte

da sua história, da sua vida. Música é isso: observação. É muita inspiração, mas muita observação da vida, das pessoas, dos per-sonagens, do sentimento humano.

A música é uma estrela, deitada na minha cama. Ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber. Quando me dou conta e vou ver, ela já entrou no meu peito

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34 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010 oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 35

A música nasce sozinha. Não preciso estar triste ou feliz, num lugar especial. Posso estar preso num cubículo que faço música. Ela extrapola qualquer tipo de ambiente, a música não é racional. É uma missão

Quem compra CD por r$ 5 em camelô não paga r$ 35 em loja. o preço devia ser mais razoável. o processo de feitura do disco é caro, mas não a ponto de ter de custar r$ 35. tem de ter um meio-termo

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Era uma época privilegiada da criação musical do Brasil, né? Tudo que vinha do DNA do Caymmi, do Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Villa Lobos es-tava em plena ebulição na obra de sua geração.

A minha talvez tenha sido, até agora, a última gran-de geração de compositores do Brasil. Isso vai desem-bocar em algum momento em algum lugar. Mas acho que ainda são os mais atuantes.

Aliás, você...Eu sou o compositor de maior obra na música popular

de todos os tempos. Já falaram até que é caso para o Guiness Book. Tenho mais de 1.150 músicas gravadas e outras mil ainda na gaveta. E não parei. Tem muita gente gravando músicas minhas, alguns discos inteiros só de músicas minhas . Na história da música brasileira, talvez o mais próximo disso seja o Braguinha, que deve ter umas 700. O Baden Powell foi o cara que sacou tudo isso. Eu digo sempre com gratidão e com um misto de assombro. Na-quele momento, eu era parceiro do João de Aquino, que era primo do Baden, a quem conheci por meio dele. Nós éramos vizinhos de bairro, numa pracinha em São Cris-tóvão (zona norte do Rio). O João tocava acordeon – o pai dele era cearense –, depois aprendeu pandeiro, violão. Eu, menino ainda, já tinha muita admiração pelo Baden, que já era um nome mundial. E na década de 1960 inteira a parceria Baden-Vinícius já era muito forte. Meu assom-bro foi a visão do Baden diante de um menino começan-do a fazer música, ele já celebridade, referência de toda a minha geração. Eu tinha 16 anos quando ele me ofereceu uma parceria. “Vamos fazer música juntos?” Aquilo pra mim foi um choque, um espanto. Mas ele já estava ante-vendo o que ia acontecer comigo.

Você nem imaginava que ia viver da sua música?Meu espanto pelo Baden é essa antevisão que ele teve

de que eu poderia ser o que sou. Quando fizemos La-pinha eu tinha 16 anos (Quando eu morrer me enterre na Lapinha/ Calça, culote, paletó e almofadinha). Dali em diante fizemos cerca de 100 músicas. Muita coisa está na cabeça das pessoas até hoje. Baden me apresen-tou todo mundo.

E daí veio a ciumeira do Vinicius de Morais?O Vinícius sempre foi ciumento, possessivo. Por que

um homem de 52 anos, diplomata, escritor maravilhoso , poderia ter ciúme de uma criança? O tempo botou as coisas no lugar e nos tornamos grandes amigos.

O bilhete que você recebeu dele e reproduz no livro é algo antológico na vida de alguém.

Pra você ver até que grau ia a amizade depois... (“Para o Paulinho, De pai pra filho e de filho pra pai, sem pai e sem filho, sem filho e sem pai, e com muito amor pelo filho que eu poderia ter (e não tive) mas que é como se tivesse. E aproveitando pra mandar ele pra puta que me pariu, o co-ração amigo, paterno, fraterno, inferno do seu Vinicius.”)

Você compôs e conviveu com gente que participou intensamente da sua vida que já se foi. Crer que “a vida é uma missão” ajudou a suportar as perdas?

Com certeza, perdi muitos parceiros. De minha ge-ração e de gerações anteriores. Pixinguinha hoje estaria fazendo 113 anos, estou com 61. Teve o Radamés Gna-talli (1906-1988), o Mirabeau Pinheiro (1924-1991), Alcyr Pires (1906-1994), e outros do meu momento, Baden, Tom, João Nogueira, Mauro Duarte, Maurício Tapajós, Raphael Rabello, Sivuca... Foram morrendo meus parceiros... (pausa). Mas hoje tenho parceiros de 19 anos. Quer dizer, tenho um de 113 e um de 19 (risos).

O João Nogueira foi das mais intensas?Foi. Começamos em 1972, foi uma parceria muito

longa. Era parceiro, companheiro de farra, de boemia.

Foi ele que o convenceu a fazer um tributo à Clara Nunes.

Exatamente. [Clara Nunes morreu aos 39 anos, em 1983, vítima de um choque anafilático. Cinquenta mil pessoas velaram seu corpo na quadra da Portela. Paulo César, casado com ela desde 1975, recolheu-se a ponto de mal conseguir falar do assunto. João Nogueira insis-tiu que fizesse um samba-tributo. Dizia: “Só você tem autoridade pra fazer esse samba. Se não fizer, vai pintar uma enxurrada de samba ruim sobre o assunto”. E saiu Um ser de Luz: “... Mas aconteceu um dia/ Foi quando o menino Deus chamou/ E ela se foi pra cantar/ Para além do luar/ Onde moram as estrelas (...) Canta, meu sabiá, voa meu sabiá, adeus, meu sabiá/ Até um dia!”] João era meu amigo, meu compadre, sou padrinho de uma filha dele. Aliás, parceria não é só um trabalho de compor junto. É amizade, é convivência, senão não funciona.

Você ainda assina em baixo da tese do Pixinguinha, “beber só faz mal pra quem é mau caráter”...

Não é bem assim. É “beber só faz mal pra quem não tem caráter”. E assino embaixo.

Sua Trilogia no Alumbramento – as músicas Súplica, O Poder da Criação e Quando Eu Canto – explica so-bre como trabalha a cabeça do compositor?

Tentei explicar o que muita gente me pergunta sem-pre. “Como é que você faz?” “Você precisa estar triste, ou feliz?” “Precisa de alguma coisa especial?”... Essas perguntas eu ouvi a vida inteira. Não preciso de nada disso exatamente. A música brota, não sou quem faz, ela nasce sozinha.

Esse lance que você diz de ter sensações, visões, ouvir vozes, foi pontual, episódico, ou é recorrente?

É recorrente. Quando eu comecei a fazer meus pri-meiros versos, compor minhas primeiras melodias, isso começou em mim. São histórias intermináveis, misteriosas. Não sei explicar. Mas vejo gente, escuto coisas, acontecem coisas sobrenaturais comigo.

E as mil e poucas músicas que você ainda tem guar-dadas, tem planos pra elas?

Não, elas vão saindo lentamente. Da mesma forma que eu vou fazendo por fazer, às vezes eu faço por en-comenda. É um filme, e pedem uma canção tema, é te-atro, é novela... À medida que as pessoas vão me procu-rando pra perguntar se tem alguma nova, vou tirando do baú. Eu sempre tenho. Quando me procuram, só pergunto qual é o gênero que a pessoa quer (risos). “Samba-canção ? Bolero? Valsa? Samba? Choro? O que você quer? Tem, está no baú, é só vasculhar e escolher.”

Quando você fala de “encomenda” não é só profis-sional, mas pedidos pessoais também, né?

É. A Elis era a rainha das encomendas.

Você menciona no livro uma cantora, nos anos 1970, que enciumou a Elis. Ela até pediu um samba (Cai Dentro) pra cutucar a concorrente. Quem era?

Ah, isso eu não posso falar.

Pô, eu juro que não conto pra ninguém.De jeito nenhum (risos).

Você parece carregar um traço de generosidade. É característica nata, ou desenvolveu com o tempo, com as parcerias?

Nasci em berço pobre. Meu pai era operário, tinha dois empregos. Conheci meu pai praticamente com 11 anos de idade, porque antes eu nunca o via de tanto que ele trabalhava. A gente morava numa vila de operários, da Light, em Jacarepaguá (zona oeste do Rio). A famí-lia dele, paraibano, é toda nordestina. Eu visitando pa-rentes meus via a miséria que era. Da parte da minha mãe, meu avô era pescador, com família grande. Na casa dele não tinha luz, era lampião de querosene; não tinha gás, era fogão a lenha; a água era a de um riacho do lado. A casa era uma tapera. Minha avó, por parte de mãe, é índia guarani de uma tribo que ainda existe em Angra dos Reis, Bracuí. Saído desse meio não pode dar ninguém que não seja assim. Eu sou meio índio, meio sertanejo, tenho isso na minha essência, está no meu sangue, está no gene.

Você, acolhido naquele meio criativo de sua época, também acolheu gente jovem que veio depois, co-mo o Lenine, que não voltou pro Nordeste porque você insistiu pra ele ficar e deu no que deu.

Muita gente. Sempre fui assim.

Algumas composições suas parecem premonitó-rias. “O Dia em que o morro descer e não for carna-val, ninguém vai ficar pra assisitir o desfile final...”, você fez com Wilson das Neves...

É observação. A gente que não está no meio da correria da sobrevivência a qualquer custo, pode sentar e observar. Eu paro num balcão de bar pra tomar um

café e escuto aquelas pessoas que estão ali. Às vezes uma frase de um bêbado me faz fazer um samba. A obser-vação é algo muito forte em mim, e tendo tempo pra observar o seu tempo, você começa a ver na frente o que vai acontecer. A previsão da violência urbana, dos morros descendo pro asfalto, do medo do pessoal do asfalto, das armas. Da destruição da natureza. A música As Forças da Natureza é de 1976 e já alertava: vai haver catástrofe, vai acontecer coisa ruim. Começa a passar na cabeça uma sequência de filme, e você vai até 30, 40 anos adiante. Isso desemboca na minha obra.

E as novas gerações de compositores, e também de consumidores de música, estão ligadas? Estão observando o mundo ao seu redor?

Muita gente está. Não essa moçada da mídia. A mo-çada que segue a mídia não está. Mas a moçada que está ao largo da mídia, à margem da mídia, está bus-cando caminhos, sim. Eu conheço muita gente, muito compositor bom, que está escondido, em guetos prati-camente, e que vive da música. Meus filhos, por exem-plo, são compositores. A Escola Portátil, por exemplo, é um foco disso. A Lapa, que voltou a ser a Lapa de outros tempos, é o coração da vida noturna do Rio. A zona sul acabou. A Lapa foi renascendo, crescendo, se desenvolvendo e ramificando. Agora já está indo para a praça Tiradentes, para o cais do porto...

São redutos que vão além das baladas comerciais?Exatamente. E grande parte dos músicos que susten-

tam essa música da Lapa está saindo da Escola Portátil.

E o que é a Escola Portátil?É uma escola que foi criada pela minha mulher, Lu-

ciana Rabello, e pelo Maurício Carrilho pra ensinar cho-ro, principalmente porque os nossos filhos não tinham muito ambiente musical. E foi crescendo. Conseguiu re-centemente uma casa na Rua da Carioca, entre a Praça Tiradentes e o Largo da Carioca – em frente ao Bar Luís, pra ser mais específico. Era um pedido antigo ao governo do estado. Uma casa tombada pelo patrimônio, caindo aos pedaços. Eles estão com projetos, mantendo a facha-da e reformando tudo por dentro. É uma casa de quatro andares, já começaram as primeiras obrinhas. As salas de aula vão estar todas ali. Vai haver um teatro, como espaço de espetáculos e para gravações. Vai haver um estúdio para gravar tudo o que vai acontecer ali. Quer dizer, as pessoas estudam ali, praticam lá em cima, num terraço, num botequim tomando cerveja, e depois fazem shows e gravam no teatro. É bem bolado. É um projeto para formar cidadão e para ele sair dali um profissional de alguma coisa da música. Não é só um projeto que vai lá, tira o menino da rua e não ensina nada de arte.

Fale sobre as gravadoras, comparando aquela épo-ca efervescente com os dias de hoje, em que se produz tanta mediocridade.

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oUtUbro 2010 REVISTA DO BRASIL 37 36 REVISTA DO BRASIL oUtUbro 2010

Por Xandra Stefanel. Foto de Rodrigo QueirozatitudeNessa época rica a que você se refere, cada gravadora

tinha cerca de 90 artistas em seus elencos. A Odeon ti-nha isso, a Phillips tinha por aí, a CBS, a RCA Victor. E os diretores daquela época eram pessoas de outro tipo de gosto. E às vezes até músicos. O (Roberto) Menescal foi diretor da Phillips. Hoje a atribuição dessa escolha não é artística, é do marketing, que dita as regras e opina o que vai vender e o que não vai. As gravadoras por sua vez estão acabando no Brasil. Foram diminuindo, vendendo seus estúdios, que eram maravilhosos, e reduzindo seus castings. E ferramentas novas foram chegando. A gente tem de aprender a lidar com elas. Agora, eu só acho que o direito autoral precisa ser respeitado, ainda está haven-do discussão em torno disso. E acho que a internet é um sistema muito mais democrático do que o das rádios.

E as rádios, continuam iguais a sempre?As emissoras de rádio são concessões públicas, a

maioria é de políticos, e a regra do jogo em rádio que toca música é ditada por esse marketing de que falei an-tes. Os horários estão comprometidos. Existe o famoso jabá, a compra disso. E se quem está chegando não tem como botar seu disco para tocar em rádio nenhuma, migra para a internet. Está mais democrático. A rádio toca a mesma coisa no Brasil inteiro. Música achatada e pasteurizada, não tem leque aberto. Pelo menos na in-ternet você ouve o que você quer, busca o que você quer.

Hoje muita gente produz e vende seus próprios CDs.

Pois é, naquela época eram contratados muitos artis-tas... E hoje também é tudo muito rápido e passageiro. Naquela época, os diretores artísticos investiam muito nos artistas e durante muito tempo. Hoje se um artis-ta não dá certo num disco, ele morre, acaba. Naquela época, o Milton Nascimento, para citar um exemplo, começou a ser conhecido depois do quarto disco, mas a gravadora ia arriscando, dando condições para o cara sabendo que era um artista de verdade. Então tinha mais esse tempo de desenvolvimento, que não exis-te mais. Hoje é tudo muito veloz. Não deu certo, joga fora, bota outro.

As novas ferramentas oferecem também uma alternativa à indústria do disco. Como pode um lançamento ainda custar em torno de R$ 35, R$ 40? Quem compra? E quando alguém compra, que fatia vai para o artista?

É caro. O ganho vai depender do contrato, como uma gravadora ou uma independente vai distribuir. Pode ser 10% do preço de loja, pode ser 7% ou 15%. Mas um disco custar R$ 35 é caro. Devia ser mais ra-zoável esse preço. Por causa disso a pirataria se instala e aí esculhamba todo o resto. Quem compra um CD por R$ 5 na mão do camelô não vai dar R$ 35 na loja. O preço devia ser mais razoável, mesmo com todo o processo de feitura do disco, que é caro também, mas

não a ponto de ter de custar R$ 35, R$ 40. Tem de ter um meio-termo.

Onde você mora hoje em dia? Fale um pouco da sua cidade.

Em moro em Laranjeiras, mas eu já morei em tudo que foi canto do Rio de Janeiro. O Rio é o meu quin-tal. Eu nasci em Ramos, onde hoje é o Complexo do Alemão, barra pesada. Passei parte da minha infân-cia em Jacarepaguá, na zona oeste, onde ainda ha-via fazendas de gado, hortas. Morei em São Cristó-vão, primeiro no pé do Morro de Mangueira, na Rua Ana Neri, depois no pé do Morro do Tuiuti – minha adolescência, final de infância, foi nos morros. Por isso eu entendo bem dos morros. Depois morei em Copacabana, no Jardim Botânico, morei no Leblon, na Barra da Tijuca, morei em Jacarepaguá de novo. Estou agora em Laranjeiras, e só saio dali para o (ce-mitério) São João Batista.

Toc, toc, toc...Morei em todo canto e por isso sou um conhecedor

da cidade. Fazendo boemia, passei por todos os luga-res, nos subúrbios da zona oeste, da zona sul, da zona norte mais distante. Conheço bem, não conheço de me contarem. Talvez eu tenha sido um dos compositores que mais falou da cidade do Rio de Janeiro.

Das pessoas da sua geração, com quem você convi-ve mais hoje, e com quem ainda compõe?

Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime... Foram os que sobraram.

Nunca fez nada com o Chico Buarque, o Paulinho da Viola? Não são da mesma turma?

Não. Somos da mesma turma, mas eles fazem tudo. O Chico não precisa muito de parceiro. O Paulinho faz sozinho também, e tem alguns parceiros, Elton Medei-ros e tal. O Chico esporadicamente faz com alguém. Fez mais com o Francis, como Edu, por trabalhos en-comendados também. E aí como nós fazemos música e letra, todos... O Edu não faz tanto letra, já fez, o Dori não faz, então essa minha convivência em parceria com eles é mais por isso.

E dessa safra nova, mais jovem?Eu sou hoje parceiro dos filhos dos meus parceiros.

As minhas companhias hoje são o Bernardo Lobo (o Bena, 37 anos), Diogo Nogueira (29), o Louis Marcel e o Philippe (28 e 32 anos, filhos do Baden) – o Philippe é meu afilhado, inclusive, de batismo. A filha do Danilo Caymmi, Alice (20), é minha parceira. Então sou par-ceiro dos meninos que peguei no colo. Sou parceiro dos meus filhos. Isso daí é impagável. Você pegar uma crian-ça no colo, e 20, 30 anos depois você ser companheiro de trabalho dessa pessoa, ser parceiro dessa pessoa, é difícil explicar a sensação. Quer coisa melhor?

Já falaram que é caso para o Guiness Book. tenho mais de 1.150 músicas gravadas e outras mil ainda na gaveta. Na história da música brasileira, talvez o mais próximo seja o braguinha, que deve ter umas 700

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treze é o número de sorte de José Carlos Alcântara Mo-raes. Foi com essa idade que ele começou a ter aulas no espaço mantido na comunidade do Caju pela Fundação Gol de Letra. Criada há mais de dez anos pelos ex-joga-dores Raí e Leonardo, a instituição sem fins lucrativos

mantém unidades educativas também em Niterói e São Paulo . Des-pertou a atenção do garoto o aspecto mais óbvio: o gosto pelo es-porte que é paixão nacional. “Me interessei muito porque pensava que era uma escolinha de futebol. Daí fui ver que não era só isso. Tinha várias oficinas que, hoje sei, são muito importantes para mim”, afirma Zé Carlos. Ele participou de oficinas de informática, tornou-se “fanzaço” da biblioteca local – porque “ela ensina a gente a ficar mais esperto nos poemas” – e começou a praticar esportes que nunca havia experimentado, como basquete, vôlei e handebol. Foi muito além das peladas.

O bairro do Caju, zona norte do Rio de Janeiro, com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), tem metade de sua população formada por crianças e jovens. É para esse público que a Gol de Letra desenvolve o projeto Jogo Aberto, composto por quatro programas: Comunidades, que presta assistência

social para os jovens e suas famílias; Gol de Letrinhas, com aulas de leitura, escrita e informática; Jogos do Mundo, que busca o desenvolvimento social, corporal e intelectual por meio do estudo e da prática esportiva e recreativa; e o Mensageiro da Água, que estimula a conscientização das crianças em relação à situação ambiental da comunidade.

Seu bom desempenho nas aulas e oficinas fez como que fosse selecionado para uma viagem cultural de dez dias pela França. “Eles escolheram os alunos mais esforçados daqui e de São Paulo. Conhecemos Paris, o Louvre, a Torre Eiffel, Lyon... Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Antes eu era muito tímido. Voltei mais maduro e aberto. Estou na 8ª série e já sei que quero fazer um curso profissionalizante de desenho. O que eu aprendi aqui deve me ajudar”, comemora o adolescente.

Com mais experiência, sua responsabilidade agora aumentou. Ao completar 15 anos, foi selecionado para uma vaga de monitor do programa Jogo Aberto. “Durante três dias por semana ajudo os professores, faço o que eles pedem, organizo os materiais, olho as crianças. Mas o mais importante, e o que eles mais cobram de mim, é que eu seja um bom exemplo para elas.”

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toda a programação. Pairaram dúvidas até sobre a manutenção de programas como o Cocoricó – que a direção garante conside-rar o mais importante projeto infantil e que continuará em 2011.

ContradiçãoPara o professor da Universidade de São

Paulo (USP), Laurindo Leal Filho, o Lalo, ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comu-nicação (EBC), a Cultura convive desde o início com crises institucionais, com mo-mentos de “instrumentalização” pelo grupo que domina a política estadual, mas nunca deixou de ser um espaço para criatividade, ousadia e experimentação: “Ela se solidifi-cou no imaginário da população como um exemplo de televisão de qualidade, graças aos esforços dos funcionários”. Para Lalo, quando o governo intervém na emissora, inibe a produção. Mas a regra ainda são os programas de qualidade, e a audiência vem com a continuidade. “É uma falácia dizer que não produz audiência.”

O jornalista e professor Gabriel Priolli também considera que a emissora não per-deu a essência. “De certa forma, sempre foi

Na segunda metade dos anos 1960, Abreu Sodré foi à Eu-ropa e ao Canadá conhecer experiências de TVs educa-tivas antes de tomar posse

como governador de São Paulo. Em seu li-vro de memórias, Sodré conta que o obje-tivo era criar uma emissora “custeada pelo estado”, mas independente de seu governo e do governo de seus sucessores. Em se-tembro de 1967, foi aprovada a lei (9.849) que autorizava a criação da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, que entrou no ar em 15 de junho de 1969, virou referência de qualidade, mas não se livrou das oscilações causadas pelas mudanças de humor político. A mais recente trouxe uma onda de inquietação.

A começar de uma espécie de “fogo ami-go” tucano. Em entrevista a um blog (Po-der Online) em agosto, o secretário estadual da Cultura, Andrea Matarazzo, chamou a emissora de ficção. “É cool gostar da TV Cultura, mas ninguém assiste”, afirmou, a pretexto de questionar a utilidade do orça-mento de R$ 80 milhões destinado à fun-dação pelo governo. O escritor Jorge da Cunha Lima, ex-presidente da fundação, reagiu em seu blog: “A TV Cultura não é o caos que se deseja vender. Ainda é a melhor televisão pública do Brasil (...) E ainda será melhor e mais respeitada quando os políti-cos respeitarem a lei que criou a Fundação Padre Anchieta, que afirma que ela tem um conselho política, intelectual e administra-tivamente autônomo”.

A própria eleição do atual presidente da

Com mau humor no comando político de SP, falta de investimentos, desrespeito aos profissionais e à qualidade da programação, canal que podia ser referência de TV pública está ameaçado Por Vitor Nuzzi

culturamÍdia

Padre Anchieta, o economista João Sayad, que deixou a Secretaria da Cultura, cau-sou desconforto. Esperava-se a reeleição de Paulo Markun, no comando da funda-ção desde 2007. Markun, indicado por José Serra, não contava com a simpatia de Ge-raldo Alckmin, desafeto do ex-governador no ninho tucano.

Em texto publicado no seu blog em 22 de setembro, o jornalista Luis Nassif assinala que Heródoto Barbeiro foi afastado do co-mando do programa Roda Viva por ter feito uma pergunta sobre pedágios que teria de-sagradado José Serra. Ao receber um prê-mio do site Comunique-se, o apresentador

até dedicou-o ao “pedágio”. Nassif conta ter ouvido de Sayad que o afastamento de He-ródoto já fazia parte dos planos. Em rela-ção à saída de outro jornalista importante do staff da emissora, Gabriel Priolli – tam-bém após uma reportagem sobre pedágios –, Sayad disse apenas que o erro teria sido a nomeação de Priolli. Já quanto à saída do próprio Nassif, houve negociação direta en-tre Markun e Serra. Na mídia tradicional, nenhuma reportagem ou editorial identifi-cou alguma ameaça à liberdade de imprensa.

As intrigas não se limitam aos bastido-res do jornalismo. A TV Cultura passa por um período de remanejamento que afeta

a mesma Cultura, na busca pela qualidade e pelo respeito pela inteligência do espec-tador”, afirma. “Naturalmente, as organiza-ções públicas estão sujeitas a circunstân-cias políticas e tensões diferentes”, analisa. Uma política que assegurasse um orçamen-to mais compatível com o potencial da TV Cultura já poderia ter resolvido ou melho-rado, segundo ele, questões como audiên-cia, tratamento ou formato dos programas.

“(A questão financeira) É talvez o maior problema, mas não é exclusivo da Cultura”, diz Priolli. “Já existe um ambiente ultracom-petitivo e a internet vem crescendo de forma avassaladora, dividindo o tempo do especta-dor”, observa o jornalista, com três passagens pela Cultura que somam 12 anos. A primei-ra, aos 22 anos, foi como “foca” (novato), em 1975, seis meses antes de o então diretor de Jornalismo, Vladimir Herzog, ser assassina-do nas dependências do Doi-Codi, um dos órgãos de repressão da ditadura.

Nesta terceira passagem, como assessor da vice-presidência de gestão, Priolli tem contrato até 31 de dezembro. Prefere não comentar notícias que circularam a res-peito de sua saída. “A Cultura é uma das emissoras mais importantes do país, por oferecer uma alternativa ao espectador em relação às comerciais. Existe a necessida-de de uma emissora de formação cultural.”

Lalo entrou na Cultura meses antes de Priolli, em 1974, atraído pelo noticiário do canal. “Era um telejornal de contextualiza-ção, aprofundamento e explicação da no-tícia, levando ao debate e à reflexão, o que levou a perseguições”, lembra. Em 1975, o

rá-tim-bum De 1989 a 1992 e de 1992 a 1994 (já como Castelo Rá-Tim-Bum), teve no elenco Sérgio Mamberti (Doutor Victor): “Nunca foi feito mais nenhum investimento”

cocoricó Havia rumores de que o programa não seria mais gravado. Porém a direção diz considerá-lo o mais importante projeto infantil da emissora

estão maltratando a

pé no chão Cadão Volpato, do Metrópolis: “Emissoras privadas têm mundos e fundos, a Cultura depende de recurso público”

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então secretário estadual da Cultura, o em-presário José Mindlin, levou Herzog para a direção de Jornalismo.

MambembeGigi Anhelli entrou em 1973, como esta-

giária, e lá ficou por 18 anos. Ela lembra das dificuldades – e do prazer – de preparar e apresentar o Bambalalão, programa infantil que fez história. “Sempre trabalhamos com pouca verba. Não pintamos de dourado. A gente mostrava que fazia algo mambembe. Um programa desses só seria possível com pessoas dedicadas”, conta a apresentadora, que até hoje se pergunta por que acabou o programa que chegou a ter 17 pontos de au-diência. A equipe do Bambalalão era asse-diada por outras emissoras, diz Gigi, que agora apresenta o Brincando de Bambalalão na internet. Mas ela avalia que seria difícil subordinar um programa com tal padrão de liberdade de conteúdo, informação e educa-ção à lógica das emissoras comerciais.

Representante de outro marco da Cultu-ra, o Rá-Tim-Bum, o ator Sérgio Mamberti, atual presidente da Funarte, diz que o su-cesso do programa – e da emissora – che-gou a incomodar as outras. “A partir dali, nunca foi feito mais nenhum investimento”, lamenta Mamberti, o doutor Victor do Rá--Tim-Bum, que mesmo anos depois chegou a dar autógrafos até “para os indiozinhos do Xingu”, que reconheciam seu personagem.

O início de Mamberti na Cultura foi no primeiro ano da emissora, em 1969, com os teleteatros – adaptações de peças para a tele-visão, com direção de nomes como Antônio Abujamra, Ademar Guerra, Antunes Filho e Sérgio Britto. “Foi um oásis para quem fazia teatro”, lembra o ator, que fez também Curu-mim, pioneiro da programação infantil, di-rigido por Abujamra – hoje estrela do pro-grama de entrevistas Provocações.

Para Mamberti, a TV Cultura criou um vínculo com a sociedade. “Sempre conside-rou a questão da formação e da cidadania de forma muito criativa. Existia sempre a difi-culdade, mas havia um reconhecimento de sua importância.” Por isso, ele considera no mínimo “equívoco” um secretário de esta-do criticar a falta de audiência da TV públi-ca em vez de zelar pela qualidade. Mamber-ti vê na Cultura diversos subprodutos com potencial para dar retorno ao canal, como a produção de cadernos, livros e peças que poderiam ser montadas, mas entende que as “galinhas dos ovos de ouro são ignoradas”.

roda viva O programa de entrevistas surgiu em 1986. Passou por várias mudanças de apresentador e de fórmula

exibia uma programação diferenciada hoje existente em canais especializados.

Para o cineasta e produtor Tadeu Jungle, a Cultura está engessada. “Precisamos que ela veja o mundo com olhos livres, contemporâ-neos à internet e às novas formas de comuni-cação. Ela precisa se radicalizar, buscar raízes e antenas, no mundo do século 21”, afirma. “A molecada precisa participar, a molecada já nasce fazendo audiovisual! Os velhos mes-tres têm de interagir com o ímpeto desconexo da juventude. Tem de haver um processo de troca. Os garotos não veem mais TV. Tocam e trocam tudo na internet. Quem está pensan-do em tevezinha na sala, dançou.”

Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a Cultura reflete o problema da relação da TV com o estado. Ele mesmo testemunhou, como secretário estadual (de Ciência e Tec-nologia, no governo Orestes Quércia, 1987-1990), “hostilidade” de secretários pelo fato de a Cultura “escapar ao controle”, já que na visão de alguns a emissora deveria servir mais aos propósitos do governo. “É preciso ter muito espírito público para saber que a TV não deve servir a este ou àquele governo”, diz Belluzzo, integrante do conselho curador da fundação. Para Belluzzo, a audiência não é o quesito mais importante, como pensam alguns integrantes do conselho. “Uma emis-sora pública deve ter uma informação mais analítica e muito mais debate”, defende.

Falta, talvez, uma dose de ousadia, como ocorreu com o programa que Tadeu pilo-tava no início dos anos 1980 e abria espa-ço para talentos desconhecidos da música, como Titãs, Ultraje a Rigor, Paralamas, Ba-rão Vermelho, Ira!. “Foi um programa feito com emoção, coração, garra, coragem. Bus-cávamos a potência contida na música e na expressão de um público de auditório livre. Essa liberdade é uma das coisas que o públi-co mais sente falta. Não advogo isso como único caminho, mas sei que este funciona”, diz o apresentador do Fábrica do Som. Leia entrevista com João Sayad no www.redebrasilatual.com.br

Fábrica do som No ar de 1982 a 1984, no recém-inaugurado teatro do Sesc Pompeia, levou ao público bandas iniciantes. Tadeu Jungle foi seu apresentador: “A Cultura precisa se radicalizar, buscar raízes e antenas no mundo do século 21”

Forças ocultas Priolli deverá deixar a emissora já no final do ano: “Naturalmente, as organizações públicas estão sujeitas a circunstâncias políticas e tensões diferentes”

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co está mais eficiente, com menos etapas, menos cansativo.”

O veterano Luiz Noriega vê a Cultura como um laboratório. Ele lembra que nos anos 1970, quando apresentava o programa É Hora de Esporte, o canal abriu um espa-ço até então inédito para o esporte amador, com transmissões de tênis, vôlei e basquete, atletismo, inclusive de categorias infanto--juvenis. “Fomos precursores da Copa São Paulo de futebol júnior, criada pelo Fábio Lazzari”, lembra. “Tivemos uma participa-ção grande na divulgação da primeira fase da carreira do (Ayrton) Senna. O vôlei cres-ceu, as meninas do basquete...”, acrescen-ta Noriega, que migrou da TV Tupi para a Cultura na Copa de 1970 e saiu em 1986.

“A TV Cultura tinha um padrão de tra-balho e de organização que eu nunca vi”, afirma. Noriega destaca a linguagem criada para as narrações esportivas – menos agres-siva, sem gritaria, mais suave. A cobertura chegou a incluir jogos no interior e noti-ciário de clubes que mantinham departa-mentos de esportes amadores. Por isso, o locutor lamenta que o esporte tenha hoje tão pouco espaço, embora considere o Car-tão Verde e o Grandes Momentos do Esporte bons programas.

Hoje diretor da ESPN Brasil, José Traja-no lembra de ter trabalhado em “uma época forte” da Cultura. “Foi uma administração (Roberto Muylaert) que gostava de esporte, do jornalismo, as coisas aconteciam. Cada editoria tinha um programa ou dois que se destacavam. Lamento ver de longe muita coisa que vem acontecendo, apenas notícias que não são boas.” As mudanças de admi-nistração, avalia Trajano, afetaram a Cultura, mas outros fatores contribuíram para o en-fraquecimento. “O surgimento da TV a cabo prejudicou mais a Cultura do que as outras”, diz o jornalista, lembrando que a emissora

bambalalão Sucesso da programação infanti, foi ao ar de 1977 a 1990. Era apresentado por Gigi Anhelli, Silvana Teixeira e Chiquinho Brandão. Gigi ficou na Cultura por 18 anos: “Sempre trabalhamos com pouca verba. A gente mostrava que fazia algo mambembe. Um programa desses só seria possível com pessoas dedicadas”

DependênciaUma das fontes de receita é a prestação de

serviços. Porém, o diretor do Sindicato dos Radialistas de São Paulo, Sérgio Ipoldo, diz que a emissora está encerrando contratos es-pecíficos, como os das TVs Justiça e Assem-bleia (em São Paulo), que absorvem aproxi-madamente 500 dos 1.900 funcionários da rede. “O que a gente percebe é que o governo não quer mais por dinheiro lá”, diz. “Mudan-ças geram ansiedade”, admitiu Sayad em ar-tigo. “Fala-se em desmanche da TV Cultura, demissões em massa, destruição da TV tão querida. Não é verdade”, disse o presidente, pedindo paciência aos “blogueiros que di-fundem especulações e maldades”.

Uma das apostas é trazer de volta no-mes que tiveram sucesso em outros tem-pos. Caso de Cadão Volpato, que retornou após 15 anos ao comando do programa Metrópolis. “A TV Cultura tem um selo de prestígio que se manteve, apesar das turbulências pelas quais passou. A luta da nova gestão é retomar ainda mais essa re-levância. As emissoras privadas têm mun-dos e fundos, a Cultura depende de recur-so público e deve fazer valer cada centavo”, compara. Segundo ele, a ligação com o es-tado nunca causou restrição. “Agora, te-nho até mais liberdade, um campo vasto de trabalho. A TV já era veloz, agora está com velocidade supersônica. O processo técni-

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culturanário do rap nacional. Sua primeira músi-ca foi lançada na coletânea Som das Ruas, de 1988, mesmo ano em que saiu o álbum Hip Hop – Cultura de Rua, com músicas de Thaíde e Dj Hum, Código 13 e outros. “A gente fazia rap naquele tempo pra dançar. Foi depois que o rap pegou sua caminhada de revolucionar, fazer as cobranças, defen-der o povo...”, diz Naldinho, que na época ainda era NdeeRap. “Não tinha nenhuma outra música no país que tivesse essa postu-ra, mas isso não quer dizer que a gente não possa falar de amor, de alegria.”

Edi Rock, do Racionais MC’s, lembra: “Só depois foi que o rap ficou mais sério, só-cio-político. Foi uma fase de mudança mui-to importante. Autoafirmação, negritude, liberdade de expressão...”. Ele tinha apenas 19 anos em 1989, quando, junto com Mano Brown, KL Jay e Ice Blue, formava um dos grupos de maior referência do Brasil.

De lá pra cáRacionais MC’s, Thaíde e Dj Hum, Ndee

Naldinho, Os Metralhas, GOG e tantos ou-tros grupos influenciaram uma nova gera-ção na década de 1990, quando o rap nacio-nal se fortaleceu. E ainda hoje novos nomes ganham destaque e dão sequência a essa história. Considerando o rap uma cultura relativamente jovem, o velho terá sido su-perado? Para GOG, 45 anos, a evolução de uma geração não está na mudança do tema, e sim na superação deles. E eles não foram superados. “Acredito nessa leitura para que

o novo seja uma evolução, uma caminhada, até ser uma ruptura. Quero me emocionar mais com uma nova geração. Eu me divirto muito, mas quero chorar também.”

Para Thaíde, escola é tudo o que ensi-na. “Velha ou nova cada escola marca um período , e cada um tem sua importância”, acredita. Mas admite: “Antigamente havia a necessidade de se informar, passar as ideias para frente por meio das nossas músicas, e isso ficou em segundo plano, infelizmente”.

Max B.O., apresentador do Manos e Mi-nas, não vê somente uma velha e uma nova geração. “A gente deveria aproveitar melhor as diferenças de idade e ideias.” Max ganhou destaque com suas rimas no freestyle e co-meçou a atuar profissionalmente em 1999. Não acha que suas letras são um protesto veemente como outras. “Mas também não faço ninguém se passar por trouxa. Acre-dito que tem muita coisa vazia circulando por aí.”

O desenvolvimento da tecnologia e sua apropriação é um dos fatores que influen-ciou na atualidade do rap. O acesso a fer-ramentas de produção e aos meios de di-vulgação como sites, blogs e redes sociais ampliaram o campo de atuação e ajudaram no gargalo da distribuição. Hoje é muito co-mum o lançamento das mixtapes, vendidas de mão em mão em shows e eventos por preços mais acessíveis. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, 25 anos, vendeu mais de 10 mil cópias de sua mixtape de estreia no ano passado.

Com as mudanças na TV Cul-tura, o programa semanal Ma-nos e Minas, voltado para a cultura hip hop, foi cancelado no início de agosto, junto com

outros da grade da programação. A medida provocou uma reação em massa de pessoas envolvidas com o movimento e apoiadores por meio de blogs e redes sociais, audiên-cias e atos político-culturais. A direção da emissora acabou recuando, e o programa reestreia em outubro.

As mudanças no mercado e no mundo da música, e até mesmo a relação com a mídia, são temas recorrentes que sempre mexem no jeito de escrever, divulgar, pro-duzir e pensar o rap nacional. Desde o tem-po da São Bento, o largo que virou palco do hip hop no centro da capital paulista, até a incursão em boates, casas de shows e

programas de TV, muita coisa aconteceu. Mas datar historicamente o início do rap no Brasil é tarefa imprecisa. Cada região tem seus protagonistas. Antes de se defi-nir como hip hop brasileiro, as tendências do rap norte-americano influenciavam al-guns artistas. Por exemplo, o apresentador de TV Carlos Miele gravou em 1979 o Melô do Tagarela, sampleando a música Rapper’s Delight, do Sugarhill Gang. E a música de Jair Rodrigues, Deixa isso prá lá, de 1964, já não tem uma pegada assim, meio rap?

Para o brasiliense GOG (de Genival Oli-veira Gonçalves), mais importante que identificar uma data do nascimento do hip hop é ter a noção histórica de que essa cul-tura é uma evolução do pensamento social e da urbanidade da música. “Augusto dos Anjos, muito antes da gente, já escrevia hip hop. Solano e Raquel Trindade, Bob Mar-

ley... Como fala o Edi Rock, ‘a música negra é uma grande árvore com várias raízes’. En-tão, se nasce da mesma raiz e tá no mesmo pé, é parte do mesmo corpo, da mesma árvore.” No início, as referências eram todas inter-nacionais e falava-se de festas, mulheres, diversão. Algumas músicas já abordavam temas sociais, como o Rap da Abolição, do grupo Os Metralhas, de 1988. Mas foi so-mente mais tarde que o rap foi fortemen-te caracterizado como música de protesto.

Pepeu e MC Mike, que gravaram o rap Bastião, em 1986, Dj Ninja e MC Jack, Ge-neral D., Black Juniors e outros grupos pas-saram a agregar mais pessoas nos famosos bailes organizados por equipes de som. Foi quando surgiu o rap Bastião, de NdeeNal-dinho, hoje com 41 anos. Ele se identifi-cou com a cultura e, ao gravar o Melô da Lagartixa, inseriu-se no processo embrio-

Com pelo menos três décadas de presença no cenário musical, o rap refletiu a evolução do pensamento social brasileiro e hoje rediscute seus caminhos Por Nina Fideles

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hip hop

raiz“Na periferia, na origem do hip hop, é onde temos de estar com o amálgama preparado. Nós somos música para transformar a sociedade, a comunidade”, diz GOG, rapper de Brasília

qualidadeEx-integrante do grupo Inquérito, Nicole

acredita que rap independe de gênero. “Rap feito por mulheres não perde em nada na

qualidade musical nem nas ideias”ROD

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O mercado fonográfico também mudou. Em todos os estilos musicais, caem as ven-das e multiplicam-se os downloads. An-tigamente, os grupos apostavam alto. Os Racionais MC’s, com o Sobrevivendo no Inferno, de 1998, ultrapassaram um mi-lhão de cópias vendidas, marca ainda in-superável no rap nacional. De Menos Cri-me, com São Mateus para a Vida, de 1999, vendeu 150 mil cópias. NdeeNaldinho, com O Apocalipse, de 1999, mais de 100 mil. “Além de mudar as técnicas de produção, 50% dos militantes mudaram seus ideais e mudaram também os ativistas. Antes, o me-nino tinha 17 anos, hoje tem 35 e uma famí-lia pra sustentar. A dificuldade pra se manter financeiramente faz com que [o rap] seja pra poucos...”, analisa Cléber, do grupo Ao Cubo.

O conteúdo das músicas não transfor-mou apenas as letras das novas gerações. Para Edi Rock, hoje o rap está “mais livre” e ele gosta assim. Mas admite que muitos rappers, ao enxergar os Racionais como lí-deres e não músicos, pegaram somente a parte política e exageraram nisso. “Hoje te-mos caras novos, com formas e visões dife-rentes e isso é bom. É tempo de mudança! E acho que para melhor, senão teria sido tudo em vão.”

O rapper Crônica Mendes, do grupo A Fa-mília, faz uma avaliação semelhante. “É im-portante manter nosso público-alvo, e con-quistar outro público também, pois dentro e fora das periferias tem muita gente que com-pactua com a mesma ideia”, defende.

Para MV Bill, que organiza com a Cen-tral Única das Favelas (Cufa) o Festival Rap Popular Brasileiro (RPB), a mutação é cons-tante. “Tá sempre aparecendo coisa nova. Boas e ruins. O festival ajuda a revelar novos nomes e novas ideias, e a trazer um frescor à cena.” Seguindo a analogia da árvore como a música negra, eternizada na música de Edi Rock, GOG observa que hoje a árvore cresceu e continuará crescendo. “Alguns ga-lhos, em alguns períodos, vão crescer mais e vão pensar que estão fazendo sombra para as outras pessoas. Mas todos os galhos são importantes.”

Particularidades no todoRúbia Fraga, 42 anos, se desafiou a ras-

cunhar suas primeiras letras em 1992 e for-mou o grupo RPW. Para ela, fazer rap hoje é mais fácil e isso fez com que os grupos se preocupassem menos com a escrita, com a postura. “Rap é manifesto. Pode abordar,

alguém ter colocado o título gospel em nos-so grupo fez com que algumas portas se fe-chassem, mas nunca gostamos de usar esse rótulo. Quando levamos uma música numa rádio secular, dizem que nosso som é gos-pel; quando levamos numa rádio gospel di-zem que é muito rap. Vai entender”, ironiza.

Reflexão e açãoNos últimos anos, o público das perife-

rias brasileiras, em um primeiro momento fiel ao rap nacional, tem curtido muito o funk. Essa perda de espaço tem gerado re-flexões sobre a atuação do estilo. “Quando as portas começavam a se abrir, o rap falou ‘lá eu não vou, isso a gente não faz, lá a gen-te não pode’. Se fechou em muitos lugares, mas ainda assim conquistou muita gente e cumpriu um papel”, avalia Naldinho.

Marco Antônio, o Markão II, 38 anos, é membro do grupo DMN, e segundo ele o hip hop não construiu uma estrutura po-

lítica, mesmo que alguns tenham atingido para si um nível de organização pessoal. “Eu não consigo bater no peito e dizer que a cultura está muito bem, porque mais uma geração envelhece e não conseguiu ter uma estrutura de rádios, lojas, casas de shows, revistas. Isso é sinal que a gente falhou em algum momento, e não acho que a nova ge-

ração está preocupada em fazer isso. O rap vai ser mais um gênero musical como outro qualquer, sem diferença nenhuma”, declara.

Durante todos estes anos, os Racionais MC’s e outros negaram inúmeros convites da grande mídia. Para Edi Rock, ver o gru-po na TV vai depender muito do formato: “Eu não consigo ver o grupo na televisão, a não ser em programas que tenham a ver com a nossa cara”, afirma.

Mas muitos rappers conheceram de per-to essa mídia como Rappin’ Hood, Thaíde, Xis, KL Jay, RZO. Hoje, por exemplo, o ca-rioca MV Bill tem papel em Malhação, e conta que sempre respeitou os grupos que foram avessos à mídia, mas optou por ou-tro caminho. “Apesar de ter estagnado um pouco, o hip hop me fez gostar de comuni-cação, e o meu parceiro Celso Athayde me ensinou a utilizar a mídia a nosso favor e, quando possível, intervir nesta realidade”.

Thaíde também “não teve medo de fazer”, como ele diz, e após deixar a apresentação do Manos e Minas se integrou à equipe do programa A Liga, da Bandeirantes. “A gen-te ensinou muita coisa, mas não ensinamos ninguém a lidar com a TV, com os rádios, a se profissionalizar, a ser artista. E isso tam-bém é importante”, opina.

Por ter um discurso político e reivindica-tório, o rap quase que naturalmente se afas-tou da grande mídia e se aproximou da vida política, via partidos e movimentos sociais. Vários envolvidos com a cultura já se can-didataram ou assessoram e apoiam publi-camente candidatos. Erlei Melo, 36 anos, rapper do grupo Face da Morte, conhecido como Aliado G, disputou vaga de deputado estadual pelo PC do B, em São Paulo. “So-mos muitos e muito fortes. Acredito que en-tre nós podem existir médicos, engenheiros, advogados e lideranças políticas. O que te-mos de diferente da elite são as oportuni-dades”, diz.

Aliado G criou o Face da Morte em 1995, em Hortolândia, no interior paulis-ta, e como selo lançou discos do GOG, Re-alidade Cruel e Clã Nordestino. “Indepen-dentemente da vontade de A ou B, a arte transforma ou conserva a sociedade. A nossa transforma”, sintetiza. GOG concor-da. “Lá em nossa base, na periferia, na ori-gem do hip hop, é onde temos de estar com o amálgama preparado. Nós somos música para transformar a sociedade, a comunida-de. Trabalhando contra nós mesmos, sem-pre sairemos derrotados.”

sim, várias coisas, mas não pode perder o tom da reivindicação e ultimamente mui-tos não têm essa preocupação.” Em sua opi-nião, alguns mais novos não conhecem e não se preocupam com o que foi feito an-tes deles e alguns mais velhos não aceitam certas coisas novas.

Nicole, 26 anos, é ex-integrante do grupo Inquérito. Ela segue com a produção de suas músicas e participa de outros grupos. Sobre a condição feminina, acredita que rap é rap, seja ele feito por mulher ou por homem. “Acho que rap feito por mulheres não perde em nada na qualidade musical nem nas ideias, e é im-portante que se mantenha assim.”

Em Fortaleza, Preto Zezé, 34 anos, do grupo Comunidade da Rima, aponta que não basta colocar qualquer coisa com o

rap e dizer que é nordestino. “É preciso in-corporar musicalidade, adaptar à técnica da rima, se não fica muito estereotipado, só para demarcar. Muito sotaque, estética, mas pouca essência e prática do que o con-teúdo quer passar”, explica.

O também cearense Francisco Igor Al-meida dos Santos, o Rapadura, 26 anos, diz que seria um avanço se cada estado tivesse o rap com sua raiz e sotaque: “Consigo alcan-çar outros meios artísticos e outros públi-cos por fazer ‘rap com ritmos nordestinos’. Só assim aprenderíamos a nos respeitar e nos entender melhor”.

O mercado do chamado rap gospel tam-bém tem público. Diversos grupos transi-tam no cenário livremente, sem rótulos, como afirma Cléber: “O fato de um dia

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protesto Rúbia: “Rap é manifesto. Pode abordar, sim, várias coisas, mas não pode perder o tom da reivindicação”

respeito Para Rapadura, do Ceará, seria um avanço se cada estado tivesse o rap com sua raiz e sotaque: “Só assim aprenderíamos a nos respeitar e nos entender melhor”

Fôlego novo Edi Rock, dos Racionais MC’s, afirma que hoje o rap tem diversas formas: “Isso é bom. É tempo de mudança! Acho que para melhor, senão teria sido tudo em vão”

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viagembém fazem parte do cotidiano dos pome-rodenses. A iguaria chamada “cuca” é pre-sença certa no café da manhã dos hotéis da cidade. Feita com manteiga, ovos, fermen-to e farinha de trigo, a guloseima pode ser doce ou salgada. Marreco recheado tam-bém não pode faltar no cardápio dos res-taurantes e nos almoços de família aos domingos. O fogão a lenha ainda é mui-to utilizado nas casas da região: “O gás é caro e lenha a gente tem, por isso usamos mais esse fogão do que o moderno”, explica a moradora Guerda Hornburg, de 66 anos.

É impossível caminhar pela cidade sem perceber os detalhes que a carac-terizam como reduto germânico. Uma singularidade de Pomerode são as casas construídas com a técnica denominada de enxaimel, em que madeiras entrelaça-das formam a estrutura da residência e os vãos são preen chidos com tijolos. As edi-ficações estão presentes desde o início da colonização da área, em 1863.

É em Testo Alto que está a Rota do Enxai-mel. Os 16 quilômetros de estrada têm uma grande variedade dessas casas. A mais an-tiga, tombada pelo Patrimônio Histórico, é A mais alemã do Brasil

Em Pomerode, a colonização germânica influencia o cotidiano da cidade até hojePor Selma tronco

Willkommen. A placa de “bem-vindo” escrita em alemão sinaliza a chega-da a Pomerode, na região centro-norte de Santa

Catarina, a 33 quilômetros de Blumenau e a 165 da capital, Florianópolis. A partir da chegada, é melhor se acostumar com o idio-ma dos primeiros habitantes, já que quase todos os 26 mil moradores falam ou têm algum conhecimento da língua.

O dialeto plattdüsch é ouvido nos pontos de ônibus, padarias, em conversas entre pe-dreiros ou dentro da prefeitura. As crianças têm contato com o idioma desde peque-nas, pois antes de ir para a escola aprendem em casa a língua dos antepassados. Tradi-ção que só é quebrada quando um dos pais

a Wachholz, de 1867, recentemente restau-rada e onde, desde o início do ano, funcio-na uma pousada. A responsável pela casa é Ilse Lore, 62 anos, cujo marido, Ruthard Wachholz, já falecido, era bisneto do pri-meiro imigrante que chegou a Pomerode.

A maioria dessas construções antigas passa de geração para geração. Muitas ve-zes são herdadas pelo filho mais novo que, quando casa, leva a esposa para morar no imóvel com os sogros. E assim por diante.

É o caso da família Siewert. Wendelin, 75

seis ocasiões comemorativas. Uma delas é a Festa do Colono que acontece sempre no segundo final de semana de julho. No sá-bado tem baile e no domingo, desfile dos clubes da cidade. Nos dois dias de festa, faz--se a colheita de frutas e verduras que ficam penduradas no salão e, ao final, são levadas pelos participantes.

Para quem não vive na região e tem curiosidade de testar a pontaria, uma boa oportunidade é no mês de janeiro, na Fes-ta Pomerana. A comemoração surgiu em 1984 para celebrar a emancipação político--administrativa de Pomerode, que ocorreu em 21 de janeiro de 1959. Até então, a re-gião era considerada distrito de Blumenau.

Durante dez dias de festa, há desfiles tí-picos pelas ruas centrais, quando rainhas e princesas que representam os clubes locais são saudadas pelo público. Não é raro ser abordado por jovens, que oferecem copos de chope grátis durante os desfiles. Por fim, todos se dirigem ao pavilhão de eventos, onde há shows, tiro ao alvo e comidas típi-cas. Nessa ocasião, a cidade recebe visitan-tes que chegam de ônibus e lotam os hotéis.

Todas essas tradições revelam o moti-

não tem descendência alemã. Lindorf Lemke, 74 anos, conta que ape-

nas uma neta não domina o idioma: “A mãe dela é do Paraná e não fala alemão, então não conversam em casa, por isso ela não fala”. Nesses casos, o conhecimento da lín-gua ocorre na própria escola, pois todas têm aulas de alemão na grade. O meio de

transporte utilizado pela garotada para se deslocar até o colégio é a bicicleta, princi-palmente as crianças que moram em locais mais afastados do centro.

A quatro quilômetros da região central, o bairro de Testo Alto conserva uma atmos-fera calma em meio às montanhas.

As comidas de origem germânica tam-

anos, caçula de 12 irmãos, vive desde que nasceu na residência construída pelo pai em 1913. Na época em que casou preferiu ficar com o imóvel a aceitar uma quantia de dinheiro oferecida pelo pai: “Sempre gos-tei muito dela, preferi continuar morando aqui”, diz. Da união com dona Rovena, 72 anos, nasceram cinco filhos. E novamente essa herança ficará com o mais novo. Hoje, Rogério vive com os pais, a esposa e dois filhos no imóvel que futuramente será dele.

Tradição e tiros

As missas, em português e alemão, pre-servam a religião evangélica luterana. Uma das mais antigas de Pomerode é a da Igreja Testo Alto, construída em 1886. Como o ca-tolicismo era a religião oficial na época do Império, apenas igrejas católicas podiam ter sinos e torres. Por isso, o instrumen-to só foi instalado no início do século 20. “Os sinos são importados da Alemanha e antigamente eram tocados uma hora antes de começar o culto para atrair as pessoas”, conta Adalbert Riemer, presidente da co-munidade.

Até o Cemitério Testo Alto II preserva a

tradição luterana de manter os túmulos po-sicionados de costas para a rua. “É por cau-sa do costume da religião de deixar os pés dos mortos voltados para o sol nascente, como se a pessoa estivesse olhando para o leste. Na hora de velar um corpo essa posi-ção também deve ser mantida”, explica Adir Siewert, secretário administrativo do local.

Pomerode tem ao todo 16 clubes de caça e tiro, que promovem eventos durante o ano inteiro. No XV de Novembro, fundado em 1966 por Augusto Lindemann, 89 anos, há

vo de Pomerode ser considerada a cidade mais alemã do Brasil. Até o nome é de-rivado de palavras estrangeiras: o radical Pommern e o verbo rodern, que significa tirar os tocos, tornar a terra apta para o cultivo. A denominação também se refere à origem dos imigrantes vindos da Pome-rânia, região do norte da Alemanha. Es-ses pioneiros que cruzaram o Atlântico trouxeram como legado uma cultura que já perpassa séculos e não mostra sinais de esmorecimento.

Rota do Enxaimel: casas típicas alemãs

do século 19

Festa Pomerana: tradição mantida

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A russa Sophia Kovalevsky foi jornalis-ta e romancista, mas destacou-se mes-mo pela genialidade e pioneirismo na matemática. Na segunda metade do século 19, foi uma das primeiras mu-lheres admitidas como professora uni-versitária em Estocolmo (Suécia). Os dias que antecedem sua morte são tema do conto que dá nome ao livro Felicida-de Demais, da canadense Alice Munro, lançado pela Compa-nhia das Letras. São histórias de mulheres diante de aconteci-mentos (muitas vezes trágicos) que mudaram o rumo de suas vidas. Tudo narrado com extrema delicadeza. R$ 50.

Por Xandra Stefanel ([email protected])

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A África é muito mais que um continente devastado pela fome, pela pobreza e pela aids. É o que mostra o documentário Mama África – O Cotidiano de um Continente pelos Olhos de Seus Filhos, lançado no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, realizado entre o final de setembro e o começo de outubro. Produzido pela Cine Internacional, braço africano da produtora brasileira Cinevideo, o filme mostra os filhos de dez países, moradores de pequenas e grandes cidades em Moçambique, Tanzânia, África do Sul, Senegal, Malawi, Marrocos, Suazilândia, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Gana. Acima de tudo, expõe muita beleza, contrastante com a imagem que geralmente se tem do continente. Um dos entrevistados diz: “É verdade que a maioria das pessoas que não são da África tem

um estereótipo de que é um continente das trevas”. E não é.

O diretor Alê Braga viajou por meses para mostrá-lo sob outra ótica, mais humana. A frase da escritora nigeriana Chimamanda Adichie daria uma boa sinopse do filme: “O problema com estereótipos não é que eles sejam mentira e, sim, que eles são incompletos.

Eles fazem com que uma história se torne a única história”. O personagem principal do documentário é o saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça. Mama África, que também foi selecionado no festival argentino DocMeeting e no Festival de Cinema Brasileiro no Canadá, deve ser exibido parcial ou integralmente no site da produtora: www.cinevideoproducoes.com.br.

África muito além dos estereótipos

Relato de um pai

Em busca da felicidade

Paisagens distintas marcam as cenas de Mama África

Moreira Chonguiça

Marcelo Nadur resolveu declarar seu amor pelo filho Rafael escrevendo um li-vro: Síndrome de Down – Relato de um Pai Apaixonado. A obra, lançada pela Edi-tora Gaia, foge das explicações científicas e técnicas sobre a SD. O autor é professor de educação física, e não médico. Trata-se de uma lição de dedicação e amor incon-dicional na qual Marcelo transmite sua experiência como pai de uma criança es-pecial e mostra como é possível superar preconceitos e ser feliz. Mesmo porque todos somos diferentes. R$ 27.

A exposição Los 24 Escalones y Joan Miró, no Museu Nacional do Conjunto Cultu-ral da República – no Eixo Monumental de Brasília –, promove a relação entre a obra do catalão e cinco jo-vens artistas espanhóis contemporâneos. Pin-turas, litografias, es-cultura, filme e livro de Miró dividirão espaço com peças de Abigail Lazkoz, Diana Larrea, Javier Arce, Juan López e Raúl Belichón, que tiveram acesso privilegiado aos diferen-tes espaços da Fundação Miró de Barcelona e à biblioteca do artista para realizar obras de diferentes linguagens. De terça a domingo, das 9h às 18h30. Tel. (61) 3325-5220. Grátis. Até 25 de novembro.

Miró em brasília

O Museu de Arte de São Paulo reúne pinturas produzidas nas duas últimas décadas na Alemanha pós-Muro. A mostra Neste Tempo – Pintura Alemã Contemporânea: 1989-2010 tem 83 obras de 26 artistas que nasceram e cresceram sob as mudanças de um país dividido. São vários estilos e movimentos de artistas consa-grados, como Gerhard Richter e A.R.Penck, e também de jovens talentos, como Johathan Meese, Tim Eitel, Albert Oelen e Kathe-rina Grosse. Na Galeria Clemente de Faria, subsolo do Masp, de terça a domingo e feriados das 11h às 18h; às quintas, das 11h às 20h. R$ 15 e R$ 7. Grátis às terças. Até 9 de janeiro de 2011.

Alemanha em São Paulo

Pin.Up nº 148,quadro de Anton Henning

Zac (Marc-André Grondin) nasceu num dia de Natal considerado clinicamente morto. Sua mãe, católica fervorosa, jura que isso lhe deu o dom de curar as pessoas só de pensar nelas. C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor, de Jean-Marc Vallée, conta a história de dois amores: o de um pai por seus filhos e o de um filho pelo pai. O garoto é completamente diferente dos outros irmãos, mas para agradar Gervais (Michel Côté), renega ao máximo sua homossexualidade. Trata sobre a importância de aceitar as diferenças antes que seja tarde. Bom enredo, com reforço de uma trilha sonora cheia de David Bowie. Em DVD.

Loucos de amor

Pierre-Luc Brillant e Marc-André Grondin

Mulher,1969

Proyecto del pavimento de cerámica del Pla de l’Os, Barcelona, 1976

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crônica Por Mouzar Benedito

Que nome você gostaria que sua cida-de tivesse? Ventania ou Alpinópolis? Mimoso ou Luís Eduardo Magalhães? Pergunto porque há uma cultura que acho besta de querer mudar o nome de

cidades, de ruas ou aeroportos para agradar aos po-derosos da política local. É o caso de Luís Eduardo Magalhães. A cidade de Mimoso, no oeste da Bahia, mudou de nome para homenagear o filho do todo--poderoso ACM logo depois que ele morreu. Inde-pendentemente das qualidades ou defeitos do home-nageado, isso lá é nome de cidade? E quem nasce lá, o que é? Luiseduardo magalhãesense?

Mas os seguidores de ACM não se contentaram em dar o nome de seu filho a uma cidade. Mudaram o tradicionalíssimo nome do Aeroporto 2 de Julho para Aeroporto Luís Eduardo Magalhães. Em 2 de julho comemora-se a “independência da Bahia”, lembran-do que nessa data, em 1823, os baianos impuseram a derrota final no estado aos portugueses, que não acei-tavam a independência do Brasil.

São muitos os lugares que mudaram de nome para agradar políticos. Geralmente a mudança é para pior. No estado de São Paulo, por exemplo, tem Borboleta, que mudou de nome para Bady Bassit. Não sei quem era Bady Bassit, mas eu preferiria muito mais morar num lugar chamado Borboleta do que em Bady Bassit.

Minha cidade mesmo mudou de nome várias vezes. Já se chamou Santa Rita Velha e Santa Rita dos Cafés. Promovida a município, virou Vila Nova de Resende – sobrenome da família mais influente na política local na época – e finalmente Nova Resende. Vila Nova de Resende até que é um nome sonoro, bonito. Sem o “Vila”, perdeu o charme.

Alguns outros lugares mudaram de nome não para homenagear alguém, mas por outras bobagens. E pio-raram bastante. Em Minas, Ventania (que beleza!), vi-rou Alpinópolis, sem graça. Barro Preto virou Con-ceição da Aparecida. Tuiuti virou Jureia. Cavaco virou Divino Espírito Santo (!!!). No estado de São Paulo,

Pinhal virou Espírito Santo do Pinhal. Em Goiás, a segunda cidade fundada no estado chamava-se Meia Ponte, porque uma enchente levou a outra metade. Al-guém comparou a serra de lá com os Pirineus e botou--lhe o nome feioso de Pirenópolis.

E tem o caso dos preconceitos. No Rio Grande do Sul, na época da ditadura, Não Me Toques teve seu nome mudado para Campo Florido, por imposição de um prefeito. A população chiou. Caminhoneiros con-tavam que em todo lugar que paravam, alguém via a placa do caminhão e vinha brincar com o nome Não Me Toques, e tornavam-se amigos. Fez-se um plebis-cito, e a cidade voltou ao nome tradicional.

No Espírito Santo tem uma história interessante. Um distrito da cidade de Alegre emancipou-se em 1928 e ganhou o nome de Veado, nome de um rio que passa por lá. Logo depois, veado virou sinônimo de homossexual, e havia muito preconceito contra a homossexualidade. Em 1931, uma comissão de mo-radores foi ao IBGE, argumentou e conseguiu mudar o nome da cidade para Siqueira Campos, em home-nagem a um herói das revoltas tenentistas da década de 1920, que morreu em 1930, num desastre de avião.

Só que naquela época não havia o CEP, o código de endereçamento postal. Para facilitar o trabalho dos correios, quem mandava cartas para lá dava a indica-ção no envelope: Siqueira Campos (ex-Veado). Aí a coisa complicou, a família do homenageado não que-ria saber disso.

Novamente resolveram mudar o nome da cidade, e em 1943 uma comissão foi procurar o apoio do mi-nistro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, para ajudar os trâmites da mudança de nome. Conta-ram a história e ele concordou. Perguntou qual seria a nova denominação. Guaçuí, informaram. E ele deu uma bela risada.

Muito culto, Capanema sabia um pouco de tupi. E explicou: a palavra guaçuí significa rio do veado. Não se importaram. Guaçuí é o nome até hoje, sem pre-conceitos. Dizem que é uma bela cidade.

Ventania! mimoso! Guaçuí!

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