a valsa - dorothy parker

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Proposta de ilustração para o conto e respectiva capa para livro

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A Valsa

Ora essa, muito obrigada. Gosto imenso.

Não, não quero dançar com ele. Não quero dançar com ninguém e se quisesse, não era com ele. Seria o último dos últimos que eu escolhe-ria. Bem vi como dança; parece o que é costume fazer-se na noite de S. Walpurgis. Imagine-se que ainda há poucos minutos eu estava sentada e com imensa pena da pobre rapariga que dançava com ele. E agora vou ser eu a pobre rapariga. Ora, ora. O mundo é tão pequeno.

E tem coisas como esta. Um autêntico patife. As suas proezas são tão inesperadas e fascinantes, não são? Aqui estava eu, metida comigo, não fazendo mal nenhum. De repente surge-me ele com o seu sorriso e boas maneiras, pedindo-me a honra de uma inesquecível mazurca. Porquê? Ele a bem dizer que não sabe o meu nome, pondo de lado a sua signifi -cação, que é Confusão, Futilidade, Desespero, Degradação e Assassínio Premeditado; mas ele não o sabe. Também eu não sei o dele; não faço a mínima ideia. Pela expressão dos olhos, parece-me que seja Jukes. Como está, senhor Jukes? E como vai o seu irmão que tem um olhinho na testa?

Ah, porque viria ele para junto de mim, com os seus pedidos insis-tentes. Porque me impedirá de seguir o meu caminho? Eu desejo tão pouco - apenas que me deixem no meu cantinho, sozinha, pensando nos meus desgostos. E vem ele com as suas vénias, as suas delicadezas e o seu «dá-me a honra desta». E eu lá tenho de ir e dizer que gosto muito de dançar com ele. Não sei como não caí logo fulminada. Sim e cair morta seria bom, em comparação com ter de dançar com este rapaz. Mas que havia eu de fazer? Excepto eu e ele, todos se tinham levantado da mesa para dançar. Assim, fui apanhada. Apanhada como um rato na ratoeira.

Quando um homem nos pede que dancemos com ele, o que se há-de

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dizer? Não vou, primeiro havemos de nos encontrar no inferno. Ora essa, muito obrigada, gostava imenso, mas estou com as dores de parto. Oh, sim, dancemos - é tão agradável encontrar um homem que não se importa de ser contagiado pelo meu tifo. Não, não podia fazer outra coisa senão dizer: gosto imenso. Bem, vamos acabar com isto. Pois bem, Carmonball, vamos por esses campos fora. Ganhaste a partida; és tu quem guia.

Para dizer a verdade, parece-me mais do que uma valsa. Não será? Escutemos a música um segundo. Não lhe parece? Ah, sim é uma valsa. Não se importa? Estou verdadeiramente encantada. Gostava muito de valsar consigo.

Gostava de valsar consigo. Gostava de valsar consigo. Gostava de cortar-lhe as amígdalas. Gostava de estar num fogo, à meia-noite, no mar alto. Bom, agora é muito tarde. Vamos então a isso. Ai, ai, vida. Ai, ai, vida, vida, vida. Mas isto é pior do que eu julgava. Creio que é a única lei certa da vida - tudo é sempre pior do que se julga. Oh, se eu fi zesse ideia do que seria esta dança, teria lembrado fi carmos sentados. No fi m, é o mesmo. Se ele continua assim, dentro em pouco sentamo-nos no chão.

Estou contente por lhe ter feito ver que era uma valsa o que estavam a tocar. Sabe Deus o que aconteceria se julgasse que era outra coisa mais rápida. Deitávamos as paredes abaixo. Porque quererá ele sempre estar onde não está? Porque não há-de ele fi car num lugar o tempo ne-cessário para nos habilitarmos? Isto é o contínuo «corre-corre» do terror da vida americana. É a razão porque todos nós somos tão... Ui! Pelo amor de Deus, seu parvo, não dê tantos pontapés. Ai, a minha canela, a minha pobre canela que tive sempre desde pequenina.

Oh, não, não, não. Por tudo, não. Não, não me magoou nada. E além disso, a culpa foi minha. Palavra que foi. A sério. Oh, você é muito gentil em dizer isso. De verdade a culpa foi minha.

Ainda gostava de saber o que seria melhor - aguardar e deixá-lo

essa, muitoOh, sim, daimporta decoisa senãoCarmonbalquem guia.

Para

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morto de cansaço, ou, com as minhas mãos ávidas de sangue matá--lo já. O melhor é não fazer cenas. Parece-me que me vou baixar e vê-lo ser absorvido pelo espaço. Não é possível que continue assim toda a vida - é de carne e osso. Não quero pertencer ao tipo dos ultra-sensíveis, mas penso que aquele pontapé foi de propósito. Freud diz que não há acidentes. Não tenho passado a vida enclausurada, tive pares que me estragaram os sapatos e rasgaram os vestidos, mas quando se chega aos pontapés, acho que é afrontar a minha dignidade de Mulher. Quando apanhares uma canelada, sorri.

É possível que não o fi zesse por mal. É possível que mostre assim as suas gracinhas. Acho que devo estar contente por um de nós se diver-tir. E, se chegar ao fi m com vida, devo considerar-me feliz. Talvez seja absurdo pedir a um homem, a bem dizer, desconhecido que me deixe as canelas tal qual as encontrou. Vendo bem, o pobre rapaz está a fazer o melhor que pode. Possivelmente foi criado na aldeia e nunca recebeu lições de dança. Calculo que o deitaram de costas para lhe calçarem os sapatos.

Sim, é linda, não é? Verdadeiramente encantadora. Não há valsa mais bonita. Não é assim? Oh, também a acho linda.

Estou a ser realmente transportada para o Triple Threat. Ele é o meu herói. Tem os nervos de um búfalo e um coração de leão. Vejam-no - nunca tive medo da sua cara a fazer caretas, com as faces a arder e os olhos brilhantes. E poderei dizer que estou arrependida? Não, mil vezes não. É alguma coisa para mim, passar os dois anos mais chegados com um aparelho de gesso? Vamos, Butch, para o meio deles! Quem quer viver eternamente?

Oh. Oh, querido. Oh, graças a Deus, está bem. Supus, por um momento, que teria de ser levado em braços para fora da sala. Ah, não suportaria que lhe acontecesse alguma coisa. Eu amo-o. Não há ninguém neste mundo que goste mais dele. Reparem como se diverte com uma valsa vulgar e maçadora; que insignifi cantes parecem os outros ao pé dele. Ele é a juventude, a coragem, a força, ele é a alegria, o vigor e... Ui! Tira-te de cima do meu pé, aldeão bruto! O que julgas

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que sou? - um capacho? Ui!

Não, de verdade não me magoou. Nem um bocadinho. Palavra! E a culpa foi minha. Sabe, aquele seu passinho, que é tão bonito, é traiçoeiro para se seguir logo à primeira. Ah, foi inventado por si? Ah, foi? Oh, você é formidável! Ah, agora parece-me que já o aprendi. Oh, acho-o estupendo! Estive a apreciá-lo quando dançava. Faz um bom efeito quando se repara nele.

Faz um bom efeito quando se repara nele. Penso que também faço imenso efeito quando se repara em mim. O cabelo cai-me pela cara abaixo, sinto a testa húmida e tenho a saia toda torcida. Devo lembrar uma vítima de «A queda da casa de Usher». Isto dá uma nota desagra-dável de uma mulher da minha idade. E foi ele quem inventou este passinho, ele e mais a sua habilidade corrompida. Ao princípio era um pouco traiçoeiro, mas agora já sei: duas topadas, escorregar e andar dez metros aos encontroes. Sim. Já sei. Sei também mais coisas incluindo uma canela partida e um coração angustiado. Tenho ódio a esta criatu-ra com quem ando enlaçada. Odeio-a desde que lhe vi a cara estúpida olhando-me de soslaio. Aqui estou eu fechada nos seus braços, incó-modos, durante os trinta e cinco anos que tem durado esta valsa. Esta orquestra nunca mais acabará de tocar? Ou durará até ao fi m do mundo este torpe disfarce de uma valsa?

Oh, vão repetir. Que bom! Oh, é óptimo. Cansada? Nunca me canso. Gostaria de andar toda a vida assim.

Nunca me canso. Morta estou eu. Morta e de que maneira! E a mú-sica nunca mais acaba e nós continuamos a galopar até à eternidade. Calculo que não me aborrecerei tão depressa, pelo menos nos próximos mil anos. Nunca mais me importarei com coisa alguma, nem com o calor, nem com a dor, nem com a terrível fadiga, nem com o coração destroçado. Ora! Nada disso me poderá suceder tão depressa.

Gostava de saber porque não lhe disse que estava cansada? Porque não lhe teria lembrado voltarmos para a nossa mesa? Podia ter-lhe dito,

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Aqui estou eu fechada nos seus braços, incómodos, durante os trinta e cinco

anos que tem durado esta valsa.

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vamos ouvir a música, sim? Se ele concordasse, era a primeira vez que, em toda a noite, lhe teria dado atenção. Disse George Jean Nathan que os maravilhosos ritmos da valsa deviam ser ouvidos em silêncio e não acompanhados do corpo humano. Julgo que foi o que ele disse. Acho que foi George Jean Nathan. De qualquer maneira, dissesse o que dis-sesse, estivesse onde estivesse, ou faça o que fi zer, está muito melhor do que eu. Está no seguro. Todas as pessoas que não estejam a valsar com esta vaca da senhora Ó Leary, que aqui encontrei, passam bem o tempo.

Assim mesmo, se voltássemos para a mesa, possivelmente, teria de conversar com ele. Olhem para ele, o que se há-de dizer a uma coisa assim! Este ano foi ao circo, como soletra gato, qual é o sorvete que prefere? Julgo que é melhor estar aqui. Estou tão bem, como se estivesse dentro de um misturador de cimento a funcionar.

Não sinto nada já. Quando me pisa, a única coisa que posso dizer é que oiço os ossos estalarem. E toda a minha vida me passa diante dos olhos. Uma vez assisti a um furacão nas Índias Ocidentais, dou-tra vez, num choque de táxis, parti a cabeça, uma noite, uma senhora embriagada atirou com um cinzeiro de bronze ao seu amor e apanhou--me em lugar dele e houve um verão em que o meu barco à vela meteu água. Ah, que bom tempo eu passei até vir aqui parar com este Swifty. Desconhecia o que eram trabalhos antes de ter sido arrastada para esta danse macabre. Parece-me que já estou a delirar. Acho mesmo que a orquestra vai parar. Não pode ser; não, não pode ser. Todavia nos meus ouvidos há como que o som de vozes angelicais...

Oh, os maçadores pararam. Não tocam mais. Oh, diabos os levem. Ah, acha que poderiam continuar? Acha que sim, se lhes desse vinte dólares? Oh, isso era óptimo. Olhe, diga-lhes que toquem a mesma coisa. Eu acho adorável continuar nesta valsa.

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