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    A UNIO EUROPIA E A EUROPEIZAO DODIREITO CONSTITUCIONAL DOS ESTADOS MEMBROS

    Professor Doutor Srvulo CorreiaFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    1. No ttulo deste despretensioso trabalho, o termo europeizaosurge rodeado de aspas. Os actuais Estados-Membros da Unio Europeiaso europeus por fora da geografia e da Histria. As culturas dos seuspovos so pois manifestaes de cultura europeia. E esta assero aplica-senaturalmente aos Direitos nacionais, que so formas de cultura situadas noespao e no tempo. Falar de europeizao de Direitos Constitucionaisque j so europeus seria pois um contrasenso se o termo no aparecesseaqui com uma conotao institucional. Trata-se com efeito de analisar ofenmeno da relativa homogeneizao da essncia substantiva dos DireitosConstitucionais tendo em ateno que este se processa em conexo com aexistncia e a actuao da Unio Europeia, uma entidade supranacional.Com a brevidade que a circunstncia impe, cabe delimitar as reas da es-trutura constitucional sobre as quais tal aproximao tem sobretudo incidi-do, as razes de ser e os rumos deste processo evolutivo e o provvel sen-tido da sua progresso no futuro.

    2. Para atalhar caminho, desde j observo que a rea constitucional aque irei dedicar as minhas consideraes a rea material ou substantiva,constituda pelos direitos fundamentais e por princpios valorativos com elesconexos. certo que esse no o nico sector das constituies dosEstados-Membros relevante para efeito da participao na Unio Europeia.Nesses outros domnios, avultam as passagens em que as leis fundamentaisestatuem sobre requisitos e momentos declaradamente respeitantes vivn-cia do Estado e dos seus cidados no seio da Unio. So sobretudo aqueles

    Revista Esmafe : Escola de Magistratura Federal da 5 Regio, n. 3, mar. 2002

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    preceitos em que se estrutura o modo de interpenetrao do Direito daUnio e do direito Estadual e em que se densificam os direitos polticosprprios da cidadania da Unio. Forosamente que, sobre tpicos comoestes, os Direitos Constitucionais dos Estados-Membros albergam precei-tos semelhantes, quer eles figurem na Constituio em sentido formal, querem outros textos de eficcia normativa superior da lei comum.

    Mas aquilo de que pretendo ocupar-me no so esses preceitos cons-titucionais sobre o sistema de fontes de direito ou sobre a capacidade eleito-ral. Em funo das limitaes de tempo, parece-me mais interessante con-vocar apenas a vossa ateno sobre a progressiva formao no espao daUnio Europeia daquilo que me atreverei a chamar de "rede de sistemas dedireitos e princpios fundamentais". A aproximao dos contedos destasreas nos vrios Direitos nacionais no teve, at agora, como causa domi-nante o funcionamento das Comunidades Europeias e, mais recentemente,da Unio Europeia. Dir-se- que se trata de um fenmeno em boa medidaespontneo, que sempre teria ocorrido ainda que na ausncia do quadroinstitucional proporcionado pela Unio, at porque ele tambm ocorre emoutros Estados alheios a esse enquadramento. A verdade, porm, que,neste momento, se encontra desencadeado no espao comunitrio um pro-cesso interactivo em termos que se me afiguram irreversveis. Assim acon-tece porquanto - conforme pouco a pouco foi intuindo a jurisprudncia doTribunal de Justia Europeu e hoje proclama o Tratado da Unio Europeia- das tradies constitucionais comuns aos Estados Membros se despren-dem princpios gerais de direito comunitrio. Da viso conjugada dos Direi-tos constitucionais dos Estados-Membros resulta pois um corpo de princ-pios com valor material constitucional - muitos deles portadores de direitosfundamentais - a que a Unio Europeia reconheceu encontrar-se tambmela vinculada.

    Convm a este propsito lembrar que, nos termos do artigo 6, n1,do Tratado da Unio Europeia, esta "assenta nos princpios da liberdade, dademocracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdade funda-mentais, bem como do Estado de direito, princpios que so comuns aosEstados-Membros". Por seu turno, o n2 do mesmo artigo proclama que aUnio respeitar os direitos fundamentais tal como, designadamente, resul-tam das tradies constitucionais comuns aos Estados-Membros, enquantoprincpios gerais do direito comunitrio.

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    No se pode, porm, mais pensar hoje em dia que nos encontramosem face de um processo de sentido nico, em que os Direitos Constitucio-nais nacionais figuram apenas como emissores de impulsos axiolgicos e oDireito Comunitrio como simples receptor. A verdade que, primeiramen-te de novo graas jurisprudncia do Tribunal do Luxemburgo, depois,atravs da entrada em vigor dos artigos 6 e, sobretudo, 7 do Tratado daUnio Europeia e, mais recentemente, com a aprovao da Carta dos Direi-tos Fundamentais da Unio Europeia, se gerou um sistema interactivo. Apouco e pouco, a Unio Europeia passa a influir tambm nos nveis nacio-nais de proteco fundamental da pessoa.

    3. Como disse j, a aproximao dos Direitos Constitucionais dosEstados Membros da Unio Europeia - sobretudo no que toca a princpiossubstantivos e aos direitos fundamentais - no apenas nem, pelo menospor agora, principalmente uma consequncia da respectiva participao nestaorganizao supranacional. Esse fenmeno tem tido duas fontes primrias,ambas de perfil acentuadamente jurisprudencial: referimo-nos, por um lado, jurisprudncia sobre direitos fundamentais dos tribunais dosEstados-Membros e pelo outro do Tribunal Europeu dos Direitos do Ho-mem, um tribunal sito em Estrasburgo, institudo por conveno internacio-nal no seio de uma organizao regional - o Conselho da Europa - que temexistncia separada e composio distinta da da Unio Europeia.

    Subjacente a estas amplas construes jurisprudenciais e ao sentidoconvergente que as tem animado merece ser assinalado o fenmeno de umconsenso social transfronteirio sobre valores comuns que os rgos deproduo jurdica e a doutrina transformam em formulaes normativas oudogmticas.

    4. Neste princpio do Sculo XXI, no pode falar-se em Direito Cons-titucional Europeu no sentido de um Direito da estrutura, dos fins e dasfunes de um Estado soberano que tivesse por territrio a Europa ociden-tal e central: esse Estado no existe. A Unio Europeia no tem naturezaestadual, estando longe de findo o debate entre os que desejariam v-laevoluir para um modelo a se, mas com semelhanas com o do Estado fede-ral, e os que a essa ideia se opem tenazmente. O futuro ditar o resultado,porventura no em termos de uma sbita deciso constituinte mas nos deuma paulatina evoluo imposta pela fora das coisas. Mas j patente a

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    existncia, na Europa da Unio Europeia de um Direito ConstitucionalComum assente em princpios jurdicos transnacionais correspondentes alinhas amplamente maioritrias das opinies pblicas e das doutrinas juspu-blicistas.

    Trata-se, no plano axiolgico, de standards europeus. O consensoreinante a propsito destes explica que tenham vindo a servir como fins emrelao aos quais se verificam desenvolvimentos jurdicos paralelos aqume alm fronteiras. Os laos que articulam essa dinmica explicam-se emprimeiro lugar pelo facto de ela ter como ponto de partida uma culturajurdica comum centrada no valor do Estado de Direito.

    5. Como se referiu j, as judicaturas nacionais - em particular as dostribunais constitucionais - e a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,em Estrasburgo, tm exercido uma aco determinante na densificao deprincpios estruturantes, como o do Estado de Direito, o princpio demo-crtico, o princpio do Estado Social, os princpios da igualdade, tutela daconfiana, proporcionalidade e, em especial, do corpo de direitos funda-mentais. Mas essa actuao e os seus frutos tm, por assim dizer, circuladoem vasos comunicantes entre os Direitos nacionais graas ao contributo dadoutrina juspublicista. Hberle escreve a esse propsito sobre uma euro-peizao das jurisdies constitucionais nacionais no mbito de um caldode cultura que se poder denominar ius publicum aeropaeum. O Direitocomparado transformou-se efectivamente em "quinto-elemento de interpre-tao" das normas constitucionais, a par dos clssicos elementos literal, sis-temtico, histrico e teleolgico a que Savigny deu assento dogmtico.

    Foi a doutrina a guiar o Tribunal de Justia Europeu para, atravs deuma srie de decises proferidas nos anos setenta, se pronunciar no sentidoda recepo pelo Direito Comunitrio, sob a natureza de princpios geraisde direito, das "tradies constitucionais comuns aos Estados-Membros"(acrdo Internationale Handelsgesellschaft, de 1970). Essas "tradiesconstitucionais comuns" so afinal os sistemas de valores e princpios estru-turantes das constituies dos Estados Membros tal como as doutrinas na-cionais os trabalharam em termos de notvel convergncia.

    Os autores que se debruaram sobre o papel do contributo doutrin-rio nesta evoluo sublinham a "homogeneidade principolgica das estrutu-ras constitucionais" que permitem falar de um "Direito Constitucional Eu-ropeu Comum", e tambm a "homogeneidade das escolhas valorativas" que

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    constitui "patrimnio comum dos povos europeus" e denota a existncia de"um pensamento constitucional comum na Europa". Hberle sintetiza nosseguintes parmetros a essncia dessa comunidade de valores e princpiosdetectada a partir do duplo labor das doutrinas nacionais e da doutrina com-paratista: dignidade da pessoa, democracia pluralista, direitos e liberdadesfundamentais, Estado de direito