a tv digital está chegando

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iência eTecnoIogia no Brasil iro 2006-N°120 . - CRISE ATUAL AFETA CIDADANIA ::::::::::::::::::::::::::: :::::.-::::::::::.-::::::: ATV Digital está ======== l chegando

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Pesquisa FAPESP - Ed. 120

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Page 1: A TV Digital está chegando

iência eTecnoIogia no Brasil

■iro 2006-N°120

. -

CRISE ATUAL AFETA CIDADANIA

:::::::::::::::::::::::::::

:::::.-::::::::::.-:::::::

ATV Digital está

========™l chegando —

Page 2: A TV Digital está chegando

E = me2 + Pesquisa Brasil Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz

Toda semanar em meia hora, você tem:

■ Novidades de ciência e tecnologia

■ Entrevistas com pesquisadores

■ Profissão Pesquisa

■ Memória dos grandes momentos da ciência

E o que não poderia faltar: sua participação nas seções

■ Pesquisa Responde

■ Promoção da Semana

Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura

Diretora de redação de Pesquisa FAPESP

Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h

-IDERANDD TENDÊNCI

www.radioeldoradoam.com.br

ciência e lecnoiogia w no Brasil Pesquisa - FAPESP

www.revistapesquisa.fapesp.br

Page 3: A TV Digital está chegando

PESQUISA RESPONDE

14.01.2006

■ Anna Frank - Quando ouvem barulhos for- tes como fogos de artifício ca- chorros de certas raças po- dem atacar as pessoas que estão por perto. Por que não se cria um apito muito agudo capaz de parar o ataque de um cachorro a um ser humano?

■ André Maldonado, veterinário da Universidade Bandeirante de São Paulo - Cães de algumas raças rea- gem dessa maneira a um som forte de fregüência altíssima, que é extremamente agressi- vo tanto para cães como para nós. Provavelmente já se ten- tou criar esse tipo de apito, que nem sempre apresentou a eficácia esperada: alguns ani- mais até interrompiam tem- porariamente a ação, enquan- to outros eram indiferentes ao som. No caso de raças mui- to suscetíveis a esse tipo de agressão ao ouvido, como os cães weimaraner, o melhor a fazer é deixar o animal em um lugar fechado, onde o barulho seja menos intenso. Também pode se pedir ao veterinário que dê um sedativo leve para acalmar o cachorro nessas si- tuações, ou mesmo colocar um pouco de algodão nos ouvidos do animal.

PROFISSÃO PESQUISA

28.01.2006

■ Fabíola Andréa Silva, etnologista do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo - Pesquisar é imprescindível para nosso aprimoramento pessoal, social e intelectual. Quando realizamos pesquisas temos a chance de descobrir

coisas novas ou rever antigas descobertas e saberes. Fazen- do isso, não apenas passamos a entender melhor o mundo que nos cerca, mas também adquirimos ferramentas para transformá-lo. Pesquisar é uma forma de sermos criati- vos. Estudo populações indíge- nas na Amazônia e tento en- tender o modo de vida delas. Por meio desse trabalho, des- cubro a cada dia que a diversi- dade humana é imensa. Somos capazes de viver muitas vidas diferentes. Por isso, o respeito à diversidade cultural é funda- mental.

DESTAQUE DA SEMANA

21.01.2006

■ Claudia Izique, editora de política da revista Pesquisa FAPESP - No dia 10 de janeiro, confir- mou-se o que se temia: o traba- lho do pesquisador coreano Hwang Woo-Suk era uma falsi- ficação. Em dois artigos, publi- cados em 2004 e 2005 na re- vista Science, o cientista dizia ter produzido embriões huma- nos clonados e linhagens de células-tronco embrionárias humanas. Se fosse verdade, se- ria a prova de viabilidade da

clonagem terapêutica, fato que abriria novas perspectivas para o tratamento de doenças. A confirmação da fraude pela Universidade Nacional de Seul caiu como uma bomba entre os pesquisadores. Conversamos com a professora Mayana Zatz, geneticista e pró-reitora de pesquisa da USP, sobre o as- sunto. Qual o prejuízo que esta fraude trará para a pesquisa? As pesquisas voltam para a es- taca zero?

■ Mayana Zatz - Não. No Brasil, não vai fazer diferença porque as pesquisas com clonagem terapêutica não haviam sido aprovadas pela Lei de Biossegurança. Aqui nem

Mayana: fraude chocou todos

podíamos fazer esse tipo de pesquisa. Em compensação, os estudos com células-tronco embrionárias continuam e es- sas não serão prejudicadas. O que ficou realmente prejudica- do foi a credibilidade científica. Foi um choque para a comuni- dade científica saber que ele fraudou dois trabalhos de im- pacto enorme. É preciso deixar bem claro que essa é uma ex- ceção. Em sua grande maioria, os cientistas são honestos e dedicados.

MEMÓRIA

29.10.2005

■ Apresentadora Em uma entrevista concedida em 16 de junho de 1950 à rádio das Nações Unidas, o físico alemão Albert Einstein, cria- dor da Teoria da Relatividade, apresenta sua visão de mili- tante pacifista. - Creio que as opiniões de Gandhi foram as mais ilumina- das entre aquelas proferidas pelos políticos de nosso tem- po. Deveríamos nos esforçar para agir com o espírito dele, para não usar violência nas dis- putas por causa própria, mas por não participar daquilo que acreditamos ser maléfico.

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REPORTAGENS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

28 SAÚDE PÚBLICA

Instituto Butantan inicia teste com vacina contra a gripe aviaria

29 EMPREENDEDORISMO

Finep escolhe gestores para fundos gue vão investir em empresas nascentes de base tecnológica

30 EDUCAÇÃO

Criação de novas universidades suscita discussão sobre fôlego do governo para ampliar um sistema com ensino e pesguisa

CIÊNCIA

40 BIOLOGIA CELULAR

Biomédico brasileiro descobre em Paris como o protozoário da malária se espalha no organismo

42 IMUNOLOGIA

Terapia gue associa quimioterapia e células-tronco adultas dá bons resultados

44 FISIOLOGIA

Componente da bile aciona cadeia de reações químicas nos músculos gue evita obesidade

48 ECOLOGIA

Pesquisadores descobrem padrões de comportamento de formigas gue vivem sobre o solo da Mata Atlântica

52 FÍSICA

Experimentos em acelerador da USP revelam comportamento de núcleos exóticos

56 HUMANIDADES

ASTROFÍSICA

Dois processos distintos, mas não excludentes, podem dar origem às galáxias elípticas

TECNOLOGIA

72 AGRONOMIA

Perfumaria canadense compra primeiro lote comercial de óleo extraído de folhas de manjericão

76 FÍSICA APLICADA

Eguipe da USP tenta descobrir se guadro que retrata o calvário de Jesus é mesmo do pintor belga Van Dyck

86 ECONOMIA

A curta travessia do Estado de bem-estar social à distribuição de migalhas

90 MUSICA

Tese analisa canções de Caetano Veloso e identifica aproximação de sua obra com símbolos sagrados

SEÇÕES

A IMAGEM DO MÊS 6

CARTAS 7

CARTA DA EDITORA 9

MEMÓRIA 10

ESTRATÉGIAS 18

LABORATÓRIO 32

SCIELO NOTÍCIAS 58

UNHA DE PRODUÇÃO 60

RESENHA 94

LIVROS 95

FICÇÃO 96

CLASSIFICADOS 98

Capa e ilustração: Hélio de Almeida Foto: Miguel Boyayan

4 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Page 5: A TV Digital está chegando

www.revistapesquisa.fapesp.br

24 CLONAGEM

Falsos resultados de pesquisa obrigam Science a retratar-se

e reabrem debate sobre ciência e ética

CAPA

80 SOCIOLOGIA Descrença com instituições gerada por crise política abre discussão sobre cidadania

64 COMUNICAÇÃO Pesquisadores de 75 instituições apresentam alternativas para o Sistema Brasileiro de TV Digital

Antônio Paes de Carvalho conta sua experiência de empreendedor na área de biotecnolog

36 MEDICINA Alterações genéticas podem causar imunodeficiências confundidas com doenças comuns na infância

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 5

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A imagem do Mês

Os dinossauros chegaram

Nunca uma exposição sobre dinossauros no Brasil reuniu um acervo tão grande. Até 30 de abril, 400 fósseis dos animais pré-históricos - com tamanhos que variam de 10 centímetros a 22 metros de comprimento - estão em exibição na Oca, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. A exposição traz pela primeira vez ao país peças da África, da Argentina, da China e dos Estados Unidos selecionadas por Paul Sereno, professor de paleontologia da Universidade de Chicago. Na foto, um carcharodontossauro, que viveu no Norte de África há 90 milhões de anos. Também estão expostas coleções de dinos do Brasil.

6 • FEVEREIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 120

Page 7: A TV Digital está chegando

Cartas [email protected]

Cães

Parabéns à revista Pesquisa FA- PESP. Os assuntos abordados são excelentes. Cada cientista entrevista- do me deixa orgulhosa de ser brasi- leira, pois nossos políticos só nos envergonham. Nossos cientistas são de alto nível. Que pessoas inteligen- tes, preparadas, dedicadas e muito provavelmente batalhadoras por mais verbas e melhores remunera- ções. Mesmo assim produzem com qualidade. A cada exemplar aprendo mais. É um investi- mento com retorno garanti- do e da melhor qualidade. Parabéns a todos os profis- sionais da revista e aos cien- tistas. E que 2006 lhes possi- bilite mais reconhecimento dos órgãos oficiais e mais apoio para as pesquisas, em todos os campos da ciência. Na edição 119 pude consta- tar que pesquisas mostram descobertas com cães que já havia notado de modo em- pírico com minha fox pau- listinha (reportagem "O mundo de Sofia"). Às vezes, acho que ela "saca" coisas mais rapidamente do que al- guns humanos. Só não fala.

MARACI BARALDI

Marília, SP

Pós-graduação

Interessante o artigo intitulado "Suporte para crescer" (edição 119). Seu maior mérito está no rápido e eficiente mapa da história da pós- graduação brasileira e seu papel es- tratégico no desenvolvimento do país. Uma ressalva, no entanto, pode- ria ser feita àquele conteúdo: a afir- mação a respeito da ausência de pós-graduados desempregados. Vale observar que o tema do desemprego de doutores/mestres não está ausente do debate acadêmico/científico. Bas-

ta acompanhar os artigos e cartas pu- blicadas no Jornal da Ciência. Uma rápida pesquisa no periódico trará notícias de um debate sobre o desem- prego de recém-doutores, promovi- do pela SBPC, no Rio de Janeiro. Sal- vo melhor juízo, não temos ainda, no Brasil, instrumentos para acompa- nhar e avaliar as trajetórias laborais de nossos pós-graduados. Espera-se que surjam em breve, com a possibi- lidade de informar não apenas se os doutores e mestres conseguem se in-

EMPRESA QUE APOIA A PESQUISA BRASILEIRA

IY NOVARTIS 3piNet.org

serir ao término de seus cursos, como também se atuam em sua área de for- mação, se ocupam cargos permanen- tes ou se estão com vínculos precá- rios. Enquanto essas informações não aparecem bem sistematizadas, pela via de pesquisas amplas e contínuas, poderiam vir em matérias desta revis- ta, trazendo opiniões sobre o tema.

RITA DE CáSSIA RAMOS LOUZADA

Departamento de Psicologia Social/UFES Vitória, ES

Entrevista

Agradeço pela generosa entrevis- ta publicada na edição de janeiro de Pesquisa FAPESP, a melhor do nosso

país. Faltaram apenas pequenas cor- reções, que passo a colocar:

• O ano correto da Revolução no Porto é 1820, e não 1821, como está na página 14.0 mês está certo: agosto.

• A frase que finaliza minha res- posta à pergunta "E quem são as lide- ranças..." fica confusa porque está "Es- ses militares estão com a junta...", mal colocada por mim, que devia ter dito: "Esses militares estavam contra a junta e exigiam que ela se demitisse e que se formasse outra..."

• O engano grave está na página 17 onde aparece: Joa- quim de Lima e Silva, Duque de Caxias. Esse oficial brasilei- ro, realmente herói do Dois de Julho, chamava-se José Jo- aquim de Lima e Silva. Era tio do futuro Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxi- as. Luís Alves de Lima e Silva era muito jovem. Estava na Bahia com o posto de cadete, mas não comandou tropa. Talvez tivesse participado do combate na Conceição, mas não está documentado.

• O nome completo de Acioli é Inácio Acioli de Cer- queira e Silva. Faltou o de.

Grato por tudo.

Luís HENRIQUE DIAS TAVARES

Salvador, BA

Malária

Com relação à reportagem "Pa- drões éticos sob suspeita" (edição 118), temos a informar que o Insti- tuto de Pesquisas Científicas e Tec- nológicas do Amapá (Iepa) não tem participação nenhuma na pesquisa Heterogeneidade de vetores da malá- ria no Amapá, que é coordenada pela ONG norte-americana Institu- tional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Uni- dos, envolvendo pesquisadores da

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 7

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[email protected]

Universidade de São Paulo e do Insti- tuto Aggeu Magalhães, da Fundação Osvaldo Cruz. A direção do Iepa so- licita que esta revista retifique a notí- cia divulgada e esclareça que o gover- no do Estado do Amapá espera uma posição clara das instituições brasi- leiras responsáveis pela autorização das pesquisas para que a questão seja elucidada definitivamente, já que existe um interesse comum dos agen- tes políticos do estado, da imprensa brasileira e da população em geral.

ANTôNIO CARLOS DA SILVA FARIAS

Diretor-presidente do Iepa Macapá, AP

Nota da redação: De fato, o Iepa não participa da pesquisa citada na reportagem "Padrões éticos sob suspei-

ta" (edição 119). Os pesquisadores do Instituto Aggeu Magalhães, na verda- de, utilizam o Laboratório de Entomo- logia do Iepa por intermédio da Secre- taria Estadual de Saúde do Amapá.

Apoio para o braço

Causou-me preocupação a notícia veiculada na seção Linha de Produ- ção intitulada "Descanso para bra- ços" (edição 119). Não obstante a en- genhosidade e aplicabilidade da referida inovação, inclusive reconhe- cendo que melhores condições de conforto contribuem para a seguran- ça ao dirigir, a presença de articula- ções metálicas tão próximas ao corpo do motorista aumenta a possibilida- de de sérios ferimentos abdominais e torácicos em caso de colisões de mé- dia e alta intensidade.

JOSé ALBERTO R. PARISE

Departamento de Engenharia Mecânica/PUC-Rio

Rio de Janeiro, RJ

Prostituição

Parabéns pela reportagem sobre prostituição feminina ("Amor à ven-

8 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

da", edição 119). O rigor das pesqui- sas mencionadas é um exemplo da seriedade com que o tema vem sendo tratado em investigações acadêmicas. Um tema em que, atualmente, pode- mos encontrar contribuições diversi- ficadas, incluindo aquelas advindas de áreas do conhecimento que tradi- cionalmente não se dedicavam ao seu estudo, como, por exemplo, a educa- ção (vide as investigações em curso sobre processos educativos presentes no trabalho sexual).

MARIA WALDENEZ DE OLIVEIRA

Grupo de Estudos sobre Trabalho Sexual/UFSCar São Carlos, SP

Pesquisa Brasil

Fiquei feliz ao ler o depoimento do professor Nelson Velho ao pro- grama de rádio Pesquisa Brasil, vei- culado pela Eldorado AM e reprodu- zido em Pesquisa FAPESP (edição 118). É por causa de gente como ele que a ciência ainda vive. Quanto a mim, já não posso dizer o mesmo. Sim, pois só hoje, ao fazer pesquisa, vejo o que isso significa: uma infini- dade de articulações políticas, às vezes científicas, meias palavras, afagos de egos, camaradagem, tapinhas nas costas, sorrisos sarcásticos e disputas infindáveis. A máquina da ciência, hoje, está montada de tal forma que absurdos são aplaudidos: alguns che- fes de grupo somam 120 publicações em cinco anos. Hoje, eu, que faço ci- ência, sei bem o que isso significa. Mas não se pode culpá-los, essa é que é a verdade: tem de entrar no sistema, é uma questão de sobrevivência.

ALAN BARROS DE OLIVEIRA

Instituto de Física/UFRGS Porto Alegre, RS

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

HK Ciência eTecnoloqia W no Brasil

Pesquisa ™ FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

i Números atrasados

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438

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No endereço eletrônico www.revistapesguisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arguivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

0 que a ciência brasileira produz você encontra aqui

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Carta

Pesquisa CARLOS VOGT

PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU. CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN,

JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO REN20 BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTIFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO),

CARLOS HENRIOUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,

RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO

MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR

MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIOUE (POLÍTICA CST), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS

FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES

DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA,

ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ. CARLOS ORSI, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO.

GONÇALO JÚNIOR, JAIME PRADES, LAURABEATRIZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, SÍRIO J. B. CANÇADO E THIAGO ROMERO (ON-LINE)

ASSINATURAS

TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418

e-mail: [email protected]

PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008

e-mail: [email protected] (PAULA ILIADIS)

IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃO

CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO)

TEL: (11) 3865-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA

INSTITUTO UNIEHP

RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesQuisa.fapesp.br

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NÚMEROS ATRASADOS

TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

da Editora

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Mais linhas na TVf

mais luz do sol

Mudanças à vista: dentro de alguns meses, chega ao país uma nova tevê, com promessas de uma imagem

com melhor qualidade, interatividade e possibilidades mais amplas de difu- são das mensagens. Ainda neste mês de fevereiro, o governo federal deve anunciar as principais diretrizes do Sis- tema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) e os subsistemas a serem adotados em relação a um dos três padrões dessa tec- nologia de televisão existentes no mun- do, ou seja, o norte-americano, o euro- peu e o japonês.

Muito bem, e o que isso tem a ver com a ciência e a tecnologia desenvol- vidas no Brasil, se os padrões são exter- nos? Tem muito mais a ver do que se pode imaginar, como mostra o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, na importante reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, a partir da página 64. Afinal, para formatar o Sis- tema Brasileiro que lança agora a pri- meira pá de cal sobre a transmissão analógica em televisão - ela ainda deve se manter de pé, em princípio, pelos próximos 15 anos, em convivência har- mônica com a transmissão digital -, foi montada uma rede de pesquisa tec- nológica talvez só superada pela rede montada a partir de São Paulo, em 1997, para o desenvolvimento dos pro- jetos genoma do país. Nada menos do que 1.200 pesquisadores, representan- do 75 instituições, entre universidades, institutos de pesquisa e empresas, reu- niram-se entre 2004 e 2005 para for- matar o sistema dentro das especifici- dades culturais, sociais e tecnológicas do país. Isso terá um profundo impac- to? Tecnológico, sim, ninguém duvida. Em relação aos efeitos culturais, os es- pecialistas se dividem. Para entender por que, o mais aconselhável é ler a re- portagem cuidadosamente produzida.

Em tempos de pequenas revoluções tecnológicas, capazes de produzir al- gum efeito na sociedade brasileira, o debate sobre cidadania, entendida co- mo a participação do indivíduo na

criação de sua sociedade, também aju- da numa percepção mais aguda de que país efetivamente formamos. Alguns es- tudos sociológicos recentes propõem que a descrença nas instituições, gerada pela crise política atual, não é exata- mente uma novidade, como relata o editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 80. Por isso há que se ir um pouco mais atrás para entender por que a cidadania é pouco desenvol- vida entre nós. Ou por que num país de tantas desigualdades e insatisfações nunca houve um movimento popular capaz de promover uma reforma na vida nacional.

Há males que se repetem com tanta freqüência que dá para desconfiar que o organismo em que eles se manifes- tam está fora de um padrão comum. Mas nem sempre os médicos têm a sensibilidade e a atenção suficientes pa- ra chegar a essa conclusão. É isso que ocorre, por exemplo, com as imunode- ficiências primárias, verificadas sobre- tudo entre crianças até 3 anos, em que uma falha genética congênita provoca uma repetição preocupante de episó- dios de pneumonia, otite e outras in- fecções graves e, ainda assim, são mui- tas vezes confundidas com problemas comuns da infância. Estudos que abor- dam essa questão são o objeto da repor- tagem de Ricardo Zorzetto, editor assis- tente de ciência, e Francisco Bicudo, a partir da página 36.

Para finalizar, merecem destaque a reportagem de Alessandra Pereira, sobre uma pesquisa extremamente in- teressante que revela padrões de com- portamento de formigas da Mata Atlân- tica, e o texto de Gonçalo Júnior, a respeito de uma tese apaixonada sobre o simbolismo solar nas composições de Caetano Veloso. Sim, é isso mesmo. Lembra? "Luz do sol que a folha traga e traduz em verde de novo em folha, em graça, em vida, em luz." Mais ve- rão, impossível.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 9

Page 10: A TV Digital está chegando

emona

Vigilantes da floresta

Instituto Evandro Chagas completa 70 anos pesquisando endemias na região amazônica

NELDSON MARCOLIN

Instituto Evandro Chagas (IEC), instalado em Belém há 70 anos, surgiu de um rotineiro trabalho de pesquisa realizado no Rio de Janeiro. Em 1934 Henrique Penna, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, examinava fragmentos de fígado à procura

de lesões provocadas pela febre amarela quando identificou 41 casos de leishmaniose visceral (ou calazar). Foram os primeiros casos considerados autóctones no Brasil. Como não havia conhecimento suficiente sobre sintomas e epidemiologia, Carlos Chagas, então diretor do instituto, em Manguinhos, determinou que Evandro Chagas investigasse a doença nas áreas reveladas por Penna, no Nordeste e Norte do país. Evandro, filho de Carlos Chagas, tinha 29 anos e já era um dos principais pesquisadores do país em doenças tropicais.

Ocorre que a morte de Carlos Chagas, no mesmo ano, adiou o trabalho de Evandro até

fevereiro de 1936, quando foi para Sergipe com as fichas dos casos de calazar diagnosticadas post-mortem. Lá fez o primeiro diagnóstico de um paciente em vida. Se não for tratado, o calazar é uma doença fatal, endêmica no Brasil, que afeta outros animais além do homem. É causada pelo parasita Leishmania chagasi, transmitida por insetos flebotomíneos (sugadores de sangue), provoca febre de longa duração, além de outras manifestações, com grande aumento do baço. Evandro Chagas realizou detalhado estudo clínico do paciente sergipano e mais tarde descreveu com Marques da Cunha uma nova espécie de protozoário do gênero Leishmania.

No mesmo ano, o pesquisador voltou ao Nordeste para visitar outros focos de doença em Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Piauí. Tinha a intenção de criar um laboratório regional para estudar a transmissão da leishmaniose. Como não conseguiu apoio dos governos estaduais visitados, decidiu ir até o Pará, também com casos descritos, e convenceu o governador

10 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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Evandro em pesquisa de campo, nos anos 1930. Na barraca (foto à esquerda) e com colegas (à direita):

Deane é o segundo e Evandro o quarto

José Carneiro da Gama Malcher da importância de ter um laboratório que concentrasse os estudos daquela região. Fato raro, em poucos meses, no dia 10 de novembro de 1936, foi criado o Instituto de Patologia Experimental do Norte (Ipen). O objetivo inicial era estudar as endemias regionais, com o malária, filariose e verminoses intestinais, entre outras.

A primeira equipe do instituto liderada por Evandro, nomeado diretor científico, veio da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, além de alguns jovens médicos do Rio que haviam passado por Manguinhos. Os pesquisadores embrenhavam-se na Floresta Amazônica à procura dos agentes causadores de doenças tropicais. "As equipes trabalhavam acampadas dentro da floresta ou em povoados próximos, perto | do rio Tocantins e delta do rio Amazonas", conta Manoel Soares, médico pesquisador do IEC e s estudioso da história do instituto. "Abria-se para § nós um novo mundo, o das pesquisas de campo. Um mundo duro mas fascinante por seu sabor de aventura e que nos empolgou de tal maneira que se tornou o ambiente da maioria das investigações de vários de nós pelo resto da vida", escreveu o pesquisador Leônidas Deane sobre os primeiros anos do IEC. Não

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Família de pesquisadores ilustres reunida: Evandro, o filho mais velho, Carlos Chagas e Carlos Chagas Filho

por acaso, quando Evandro morreu em um acidente aéreo em 1940, aos 35 anos, o Ipen teve seu nome mudado para Instituto Evandro Chagas apenas um mês depois da tragédia.

Os estudos iniciais do IEC se desdobraram em numerosas linhas de pesquisa. Nos anos 1930

e 1940, o calazar e a malária estavam na mira. Nas décadas seguintes, além do aprofundamento no estudo dessas e de outras parasitoses, o isolamento de diversos tipos de vírus ganhou destaque no mundo científico e ratificou a importância do instituto como um

órgão de pesquisa com ênfase na Amazônia brasileira. "O IEC é o principal produtor de conhecimento na área de virologia da região amazônica e um dos mais importantes do mundo quando se trata de arboviroses - dois terços dos arbovírus conhecidos no mundo foram descritos lá", testemunha Marcos Boulos, professor de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor-clínico do Hospital das Clínicas dessa faculdade.

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 11

Page 12: A TV Digital está chegando

Antônio Paes de Carvalho

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Caminho de pedras

CLAUDIA IZIQUE E MARCOS DE OLIVEIRA

ão há nenhum exagero em quali- ficá-lo, aos 70 anos, como um ho- mem obstinado. Nem tampouco considerá-lo um visionário. Afi- nal, Antônio Paes de Carvalho deu provas de obstinação e visão de futuro quando, há 20 anos, concebeu o primeiro pólo de bio-

tecnologia do país, enfrentando o ceticismo de muitos colegas. Na época, ele era diretor da Bio- física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cientista respeitado: especialista em eletroquímica do coração, teve dezenas de arti- gos publicados em revistas internacionais inde- xadas, sendo dois na Nature. Acreditava que a bio- tecnologia era a área do conhecimento de maior interface com a indústria, fosse ela química, cos- mética ou farmacêutica. Nos anos 1980 o Brasil ainda não tinha o destaque internacional que projetos como o Genoma da FAPESP ou as pes- quisas desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conferiram à biotecnologia nacional.

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Carioca, ele projetou e presidiu por 12 anos o pólo de biotecnologia no Rio de Janeiro, onde foram gestadas em- presas importantes, hoje consolidadas no mercado.

No final dos anos 1990 decidiu criar a Extracta, com a missão de oferecer à indústria extratos da imensa biodiver- sidade brasileira como alternativa ao uso de ginseng, gincobiloba e outros produtos asiáticos.

Movia-se por um propósito que, hoje, ele mesmo reconhece ingênuo: oferecer "coisas maravilhosas" à indús- tria nacional de tal forma a torná-la competitiva. A empresa foi inaugurada na medida exata do sonho mais ousa- do de qualquer empreendedor: um só- cio inglês - com 49% do capital social -, um contrato milionário com a Gla- xo, alguns angel investors (empresa ou indivíduo que apostam num empreen- dimento de risco) e um grupo de inves- tidores. Um ano depois começaram os problemas decorrentes da ausência de marcos regulatórios para o acesso ao patrimônio genético - que fornecia a matéria-prima para as atividades da Extracta - e de programas de incentivo às empresas de base tecnológica, que, associados às dificuldades clássicas de gestão, quase levaram a empresa a en- cerrar definitivamente suas atividades. Os 60 funcionários, 20 deles doutores e mestres, foram demitidos.

Paes de Carvalho, no entanto, resis- tiu e insistiu. Em 2004 a empresa con- seguiu licença do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEn) que legitimou, digamos assim, o acesso à biodiversidade. Agora, segundo Paes de Carvalho, os clientes começaram a voltar e a Extracta passa a dar sinais de recuperação. Por precaução, ele não re- vela nomes nem dá detalhes do anda- mento dos novos contratos. Menciona apenas que negocia uma parceria com a Petrobras e que tem alguns acordos "articulados" - mas igualmente prote- gidos por sigilo - com diversas empre- sas nacionais da área de cosmético, perfumaria e fármacos para o desen- volvimento de produtos a partir de ex- tratos processados pela Extracta. "To- das essas empresas são brasileiras. As multinacionais nem olham mais para isso", ressalva.

Paes de Carvalho atribui essa reto- mada dos negócios também ao fato de

as grandes indústrias farmacêuticas e as empresas agroquímicas brasileiras estarem voltando a "olhar a química da natureza", o que, na sua opinião, abre novas perspectivas para a ciência na- cional. E considera "óbvia" a conver- gência da biodiversidade com o esfor- ço da genômica e proteômica para a compreensão do mundo macromole- cular e protéico.

■ Há 20 anos foi assinado o protocolo de intenções para a instalação do pólo de biotecnologia do Rio de Janeiro. Como surgiu a idéia de criar o primeiro pólo de biotecnologia no país? — Foi em 1982. Eu era diretor da Bio- física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e acreditava que a biotecnologia era o que tínhamos de mais moderno e promissor em termos de ciência voltada ao mercado. Cheguei a tocar no assunto com o então minis- tro do Planejamento Antônio Delfim Netto sobre o projeto de criar um pólo de biotecnologia no Rio no ano seguin- te. Ele disse: "Temos que fazer ainda este ano, mas é preciso negociar com a indústria". O problema é que não tí- nhamos dinheiro e o projeto do pólo foi postergado. Criei então a Bioma- trix, a primeira empresa de biotecnolo- gia vegetal do país, que em 1985 foi vendida para a Agroceres, que, cinco anos depois, vendeu-a à Monsanto. Em 1985 o Renato Archer, que era ministro de Ciência e Tecnologia e era carioca, veio com a notícia de que os franceses queriam criar um centro de biotecno- logia no Brasil e que ele pretendia ins-

talá-lo no Rio de Janeiro. Foi aí que res- surgiu a idéia do pólo. Em 1988 foi cri- ada a Fundação Bio-Rio, gestora do pó- lo, no mesmo ano em que assinamos convênio de concessão para uso de área com a UFRJ pelo prazo de 30 anos, para a criação do parque tecnológico. Eu fui o primeiro secretário-geral da Fundação Bio-Rio e seu presidente até 2000. Conseguimos uma área dentro do campus da universidade e, apesar da oposição de alguns setores acadêmicos, o projeto avançou. Um dos seus princi- pais defensores foi Horácio Macedo, então reitor da Federal. Aos críticos, ele argumentava: "Vamos colocar o capital e o trabalho olhando olho no olho". Re- formamos o prédio onde funcionava um restaurante e o transformamos nu- ma incubadora de empresas com oito vagas. A primeira a instalar-se foi a WL Imonuquímica, dedicada à área da saú- de humana e que teve origem no Ins- tituto de Microbiologia da UFRJ. Ou- tras empresas também tiveram sucesso, emanciparam-se e instalaram-se em vol- ta da incubadora que tinha uma área total de 200 mil metros quadrados. Hoje o pólo tem mais de 20 empresas, nenhuma depende de governo e todas estão fazendo seu mercado.

■ Como surgiu a idéia de criar a Ex- tracta? — Eu comecei a pensar em montar a Extracta em 1998. A idéia era criar uma empresa que tivesse acesso, catalogasse e analisasse a imensa variedade quími- ca da biodiversidade vegetal, dentro das regras estabelecidas pela Convenção da

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Biodiversidade e da lei brasileira. Pen- sava, cientista bobo que era, que íamos oferecer coisas maravilhosas à indústria nacional e ela se tornaria competitiva. Ao longo desses anos, reunimos uma extensa coleção de extratos isolados, coletados na Mata Atlântica e na Ama- zônia. Esses extratos estão prontos para testes de triagem na descoberta de no- vas substâncias de interesse industrial. O nosso banco de dados reúne amos- tras representativas de quase 5 mil es- pécies vegetais brasileiras. Ainda é pou- co diante das cerca de 60 mil espécies conhecidas e catalogadas da biodiversi- dade brasileira. E estamos em fase de expansão para outros biomas, de forma a abranger amostras extraídas de ani- mais, microorganismos e organismos marinhos. Essa coleção é um dos gran- des valores da empresa. A idéia de que as plantas têm moléculas biologica- mente ativas faz todo o sentido. Dife- rentemente de nós, as plantas não con- seguem se defender pelo mecanismo de luta ou fuga. Mas têm defesa contra animais que as atacam. Buscar a biodi- versidade química, portanto, é muito importante. Otto Gottlieb [químico, ex-professor das universidades de São Paulo e Federal Fluminense e pesquisa- dor da Fundação Oswaldo Cruz (Fio- cruz)], por exemplo, pensava que cole- tar plantas não fazia sentido porque elas têm uma estrutura unificada que permite conhecer exatamente onde es- tará determinada molécula. Mas entre a teoria e a prática há uma enorme di- ferença. Você pega plantas da mesma espécie e elas fazem carnavais bioquí- micos completamente diferentes.

■ O senhor contou com o apoio de par- ceiros para bancar o investimento? — A Xenova, empresa inglesa, que era dirigida por uma química brasileira, entrou como sócia com 49% do capital. Mas a parceria durou pouco: a holding da Xenova, a Xenova Group, ia mal e eles recolheram as aventuras médicas. Colocaram US$ 50 mil e pararam. Co- meçamos então a negociar com a Gla- xo, com quem fechamos o primeiro contrato de tecnologia, em 1999. Com isso, vieram os investidores nacionais - os angel investors. Foi o maior contrato de terceirização de tecnologia feito pela Glaxo abaixo da linha do equador: US$ 3,2 milhões. Eles queriam saber se a na-

tureza brasileira tinha resposta para oito alvos de doenças trazidos pela em- presa. Eram alvos para buscar molé- culas medicamentosas e um deles era uma enzima relacionada à insulina. Montamos um laboratório de 700 me- tros quadrados com o padrão de qua- lidade exigido pelo parceiro e com a missão de criar ensaios biológicos para ensaios naturais. Só os equipamentos custaram US$ 2 milhões.

■ A Extracta também contou com inves- timentos de risco? — Quando começamos a ter presen- ça, atraímos os investidores de risco. A Fundação Biominas entrou com US$ 400 mil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Solits Biotecnologia - uma venture capital do Banco Pactuai - com US$ 1,7 mi- lhão. Formamos, aos poucos, uma enorme coleção da biodiversidade bra- sileira. Tínhamos 4,5 mil espécies, com 11 extratos primários, sobre as quais se aplicou o screaming, quer dizer, a triagem de alta velocidade. Tudo foi muito bem até que, um ano depois, aconteceu o desastre da Novartis e Bioamazônia [Em 1999, o governo fe- deral considerou ilegal um acordo de

bioprospecção celebrado entre a asso- ciação Bioamazônia e a multinacional Novartis, que tinha como objetivo identificar substâncias com potencial industrial.]. Em 2001 foi editada a Me- dida Provisória 2.186 que criou uma série de regras para o acesso ao patri- mônio genético e atrapalhou a bio- prospecção. Salvamo-nos apenas por- que o contrato com a Glaxo já estava assinado. Mas a partir daquele mo- mento não tivemos novos contratos. Os clientes desapareceram. Três deles, inclusive, já estavam praticamente fe- chados. Os três contratos eram com multinacionais, já que a indústria bra- sileira não tem como pedir definição de alvo em nível molecular e celular.

■ As novas regras estabelecidas pela MP exigiram mudanças de procedimentos na coleta da Extracta? — Do ponto de vista dos procedimen- tos, não sentimos diferenças. As expe- dições saíam e traziam flores, frutos, sementes, os botânicos classificavam. Antes da MP, já havíamos criado tudo o que estava previsto na Convenção da Biodiversidade. O problema era com os clientes. Em março de 2002 foi cria- do o Conselho de Gestão do Patrimô- nio Genético (CGEn) e, 15 dias de- pois, a Extracta pediu e obteve licença especial para bioprospecção até junho de 2004. A regulamentação do acesso ao patrimônio genético, aliás, teve como base o caso Extracta-Glaxo co- mo modelo. O que importa é que cum- primos o contrato com a Glaxo, que dizia respeito a dez moléculas em cima de dois alvos de doença. O problema é que a Glaxo se fundiu com SmithKline e eles perderam o interesse. Não usa- ram essas moléculas. Temos o mate- rial e o direito de utilizá-las. É isso que agora, quando estamos retomando as atividades, queremos utilizar. São ex- tratos já fracionados com alta tecnolo- gia. Todos foram testados in vitro, de acordo com padrões aceitos interna- cionalmente para a indústria farma- cêutica. Entre eles, temos 15 extratos antibióticos.

■ E o que aconteceu com a Extracta de- pois disso? — Quando acabou o contrato, em 2002, a receita da empresa caiu a zero. Não tínhamos outro contratante e fica-

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mos em situação crítica. Tentamos re- articular com a Glaxo, mas eles não quiseram, mudaram de parceiro: trans- feriram o contrato para um centro de pesquisa em Cingapura e abandona- ram as investigações sobre a natureza. O negócio deles agora é genoma e pro- teoma. Recentemente começaram a voltar, já que o estoque de pesquisa está secando com o aumento dos cus- tos. Depois de 2002 passamos um perío- do periclitante. O nosso principal só- cio, o Banco Pactuai, já tinha colocado na empresa bem mais do que o previs- to e a Fundação Biominas também. Os angel investors também aplicaram di- nheiro e começaram a ter que sustentar a Extracta vazia. O Pactuai queria fe- char essa empresa. Na época, eu devia ter aceitado, mas não deixei fechar. Eu tinha o voto de Minerva - 51% - e não concordei. Isso levou os investidores a uma posição defensiva, já que eles que- riam sair fora do negócio com o míni- mo de prejuízo. Em 2003 aproximou-se da Extracta a Oxiteno, um sócio que nos pareceu de enorme potencial. Tra- tava-se de uma aposta de venture capi- tal que começou com um pequeno in- vestimento. Mas a expectativa era que esse valor se multiplicasse por três. Mas aí começaram novos problemas: o Ban- co Pactuai decidiu sair e isso preocu- pou a Oxiteno. O temor era associar a imagem a algo que tivesse falido. A coi- sa chegou a tal ponto que um dos nos- sos investidores anjos nos chamou a atenção dizendo que não fazia sentido Pactuai e Oxiteno estarem associados a um negócio como este. Hoje a Extrac- ta é 87,5% Antônio Paes de Carvalho, com os anjos pelas costas. A Biominas ficou com 9%. Eles têm investimento institucional e não podem sair. E a Xe- nova, o nosso primeiro parceiro, tem 2,5%. Tínhamos zero de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ne- nhum recurso da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).

■ Vocês nunca pleitearam recursos da Finep? — Sim. Participamos dos fóruns de venture capital e ganhamos um prê- mio de R$ 150 mil. O dinheiro não foi liberado e no ano seguinte avisaram que aquele programa tinha encerrado e que o dinheiro viria via empréstimo.

Eles perguntaram se eu queria. "Você vai pagar com uma porcentagem de seu faturamento, mas se você não tiver faturamento, daqui a cinco anos desa- parece o empréstimo", explicaram. En- tão eu disse: "É claro que eu quero". Foi então que disseram que precisáva- mos estar com todos os seus papéis em ordem e tínhamos também que apre- sentar a autorização do conselho de administração da Extracta. Fui ao con- selho de administração e o Banco Pac- tuai e a Oxiteno não autorizaram a empresa a fazer o empréstimo. Argu- mentaram que R$ 150 mil não resol- veriam a vida da empresa e ela teria que se manter aberta até o emprésti- mo terminar. Comuniquei à Finep que os sócios não queriam e eles me disse- ram: "Livre-se de seus sócios". Eu ain- da indaguei: "Se eu me livrar dos sócios, a Finep me segura?". A resposta foi sim. Eu confiei na Finep. Convence- mos os sócios a sair. A Finep pediu no- vamente toda aquela papelada de car- tórios, e eu não consegui todas as certidões. Tinha estourado uma dívida e até pagar e levantar a objeção demo- ra. E eu não consegui fechar nada com a Finep. Tentei parceria com a Fiocruz, mas eles contrataram a mes- ma coisa que a Extracta faz, uma parte em Cingapura e outra na Europa. Não foram capazes de atravessar a avenida Brasil. Vão buscar produtos deste tipo com as plantas do Oriente. Hoje em dia se perguntarem se quero fazer ne- gócio no governo eu digo que não.

■ Depois de todos esses percalços, a em- presa está se recuperando? — A nossa coleção é precisa. É um dos grandes valores da Extracta. A partir de 2004, depois da licença da CGEN, os clientes começaram a voltar. Os novos clientes também foram atraídos pela estabilidade da economia, um sinal positivo para os parceiros. Hoje temos parcerias sendo articuladas em diver- sas empresas da área de cosmético, perfumaria, fármacos etc. O que esta- mos tentando mostrar para a indús- tria farmacêutica brasileira é o seguin- te: vocês estão atrás de fitoterápicos. Em vez de ficar fazendo ginseng, gin- cobiloba, olhem para a nossa biodiver- sidade. São centenas de extratos para vários alvos. Todas são empresas bra- sileiras. As multinacionais nem olham

isso. Elas só se interessam pela molé- cula pura porque não podem colocar no mercado internacional.

■ Como garantir a produção sustentável das plantas a partir das quais são obti- dos esses extratos? — A expedição vai ao campo, pede au- torização ao proprietário e apresenta uma proposta concreta: vamos coletar, mas você pode, com um mínimo de esforço, daqui a um ano, estar com a planta cultivada. Com isso você traz uma parte do negócio de volta para a base da terra. Os proprietários estão fa- zendo isso. Há comunidades mais sim- ples, que fazem isso. Isso não tem nada a ver com o conhecimento tradicional. Tem a ver com a planta.

■ O Ministério do Meio Ambiente está elaborando um projeto de lei de acesso à biodiversidade. O que o senhor acha dos termos da proposta? — O que eles querem fazer decorre das enormes queixas de pesquisado- res, cientistas e até de empresas. Tudo que foi coletado antes de 2000, antes da medida provisória, está sob suspei- ta. Logo, não pode ser usado. Agora eles querem partir para o seguinte: não querem mais saber onde se coleta, como se contrata etc. Querem tudo dentro da norma, mas o controle será feito apenas no contrato final com o grande cliente, no caso de o produto chegar ao mercado. Este sim será re- gistrado no CGEN. Concordo com isso, porque nunca pensei diferente. Mas a proposta contém algo que pode atra- palhar: eles querem que no grande contrato saia uma porcentagem para um fundo manejado pelo governo, para distribuir benefícios e garantir a conservação da natureza em comuni- dades que não têm nada a ver com o contrato. Isso vai virar uma confusão. A Associação Brasileira de Biotecno- logia é frontalmente contra a criação de um fundo público que vai acabar distribuindo benesses. Isso não vai funcionar, vai para mãos erradas, terá distribuição política. Seria muito me- lhor que as empresas que trabalham com a bioprospecção, como a Extracta ou Natura, fossem obrigadas a consti- tuir fundos que elas registrassem e cu- jos projetos elas controlassem. Tudo transparente.

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■ A Extracta já faz algo parecido com isso? — A Extracta, que nunca distribuiu um tostão de royalties, porque não re- cebemos royalties de nada, já investiu R$ 600 mil na Universidade Federal do Pará. Construímos uma central de extração igual à que temos no Rio de Janeiro, equipamos inteiramente o la- boratório e pagamos funcionários durante dois anos, para que eles pu- dessem fazer a nossa coleção amazô- nica, que é 20% do total de nossa co- leção. Tudo isso - e mais a tecnologia de como fazer a extração - foi para o patrimônio da Universidade Federal do Pará. A universidade não sabia o que fazer com aquilo e quase deixou morrer. Agora estamos prestes a fe- char um contrato muito interessante com a Petrobras que vai praticamente dobrar a nossa coleção usando coisas da Amazônia. Os parceiros são a Ex- tracta, Petrobras e Universidade Fede- ral do Pará.

■ A Extracta continua aberta aos inves- tidores de risco? — Se os contratos que atualmente te- mos no pipeline da Extracta se concre- tizarem, não precisamos de capital de risco nem de nada. Um deles é três ve- zes maior que o da Glaxo, uma multi- nacional da área farmacêutica. A Ex- tracta voltará para o nível de receita anterior.

■ Na época do contrato da Glaxo, quan- tas pessoas trabalhavam na Extracta? — No auge do contrato com a Glaxo, tínhamos 60 pessoas trabalhando, sen- do 20 mestres e doutores.

■ E o que aconteceu com esse pessoal? — Aconteceu uma coisa típica do Rio de Janeiro: uns 20% foram imediata- mente contratados por empresas pau- listas. A Natura ficou com vários da área de química, por exemplo. O res- tante ficou flutuando numa nuvem em torno da UFRJ, Fiocruz, uma bolsa de pós-doc aqui, outra acolá. E todo mundo perguntando quando vai vol- tar. Nós tivemos que despedir um por um, pagando todos os direitos, sem dever nada.

■ Afora a sua obstinação, a que o senhor atribui essa retomada da empresa?

— Isso se deve ao fato de que as gran- des indústrias farmacêuticas, as agro- químicas, entre outras, estão voltando a olhar a química da natureza. Isso é uma tendência clara. Tenho conversa- do com meus colegas paulistas e afir- mado que fazer medicamentos à base de proteína, com exceção de vacina, é difícil de administrar. Me parece óbvio que é possível fazer convergir a biodi- versidade com todo o esforço de genô- mica e proteômica que nos faz entender cada vez mais do mundo macro-mole- cular e protéico que fazem funcionar nosso organismo. É preciso identificar pequenas moléculas que permitam meter a chave no meio de uma fecha- dura destas e torcer. Há uma ligação óbvia entre o que a Extracta faz e a ge- nômica e proteômica. .

■ O senhor teve todos os tipos de parcei- ro que uma empresa de biotecnologia poderia ter. Qual teria sido o parceiro ideal? — O parceiro ideal foi a Glaxo. Os parceiros de investimento de risco in- gressaram por conta do contrato da Glaxo. A Oxiteno foi mais precavida. A Votorantim tinha aberto seu fundo de investimentos - o Votoratim Ventures — e a Oxiteno queria ter um também.

■ A biotecnologia brasileira tem futuro? — O Brasil tem potencial científico muito bom, mas que tende a estiolar. Isso não vale para São Paulo. Vale para o Rio que representava entre 17% e 20% da produção científica nacional e hoje está em decadência, com as pes- soas indo para o exterior ou buscando em São Paulo o sonho dourado. Fico

louco da vida quando dizem que isso acontece porque São Paulo tem di- nheiro. Não dá para ficar de boca aberta esperando o governo soltar mi- galhas. Todos os programas de gover- no, desde a gestão Fernando Henrique Cardoso, foram programas com cada vez menos tomadores. Assim, os re- cursos estão caindo exponencialmente no tempo. Apurou-se tanto a qualida- de, enquanto a quantidade de recursos caía. A FAPESP deu um pulo enorme. O Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), que repro- duz o modelo do norte-americano Small Business Innovation Research (SBIR), foi importante para esse salto. Quando conheci o SBIR, nos Estados Unidos, me surpreendi: "Vocês estão colocando dinheiro público para fins privados". Eles me olharam como se eu fosse um ET e responderam: "É o me- lhor investimento que o público nor- te-americano pode fazer por meio de seu governo, porque é por isso que nós temos tecnologia suficiente para ven- der coisas para vocês o tempo inteiro".

■ E qual a saída para o país avançar? — Ainda estamos começando a ama- durecer. Não podemos esperar pela solução política que tem como moto primário a construção do superávit da economia e a garantia de que os gran- des negócios do país terão uma visibi- lidade boa no exterior. Não está pre- visto que a gente vai desenvolver nada em termos de ciência e tecnologia. A convenção da biodiversidade biológica foi feita para os países ricos virem aqui, usar nossas coisas e deixar uns espelhi- nhos e umas miçangas. •

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Estratégias Mundo

Da diáspora à reconciliação Há três décadas, 2,7 milhões de vietnamitas abandona- ram o país, tangidos na ocu- pação de Saigon (capital do Vietnã do Sul, até então protegida pelos Estados Uni- dos) pelo Exército do Vietnã do Norte, comunista. Uma iniciativa capitaneada por uma organização não-gover- namental está tentando re- conciliar os emigrados e seus descendentes pelo viés da ciência. O Clube Estrangeiro Vietnamita para a Ciência e Tecnologia começou a ca- dastrar pesquisadores - nas- cidos no Vietnã e radicados em outros países - interes- sados em colaborar com universidades e empresas e emprestar suas expertises

para o desenvolvimento do país asiático. Na primeira semana de funcionamento o clube recebeu a adesão de 130 profissionais instalados em diversos países. O poten- cial é imenso. Metade dos emigrados vive nos Estados

Unidos e sua influência no país vai muito além da po- pularização da culinária asiática. Cerca de 200 mil deles trabalham com ciência e tecnologia, segundo le- vantamento do Ministério de Assuntos Externos do

Vietnã. "A modernização de nosso país não pode pres- cindir da ajuda intelectual dos pesquisadores vietnami- tas que vivem no exterior", disse ao site SciDev.Net Nguyen Thien Nhan, coor- denador do clube. •

■ Rejuvenescer para crescer

Cientistas mexicanos levarão aos quatro candidatos à pre- sidência do país um Projeto chamado Acordo Nacional de Ciência e Tecnologia, que propõe o compromisso de reforçar o investimento no setor para ampliar o número de pesquisadores e de cursos de pós-graduação de quali- dade. "Nossa situação é dra- mática. A idade média dos lí- deres de projetos científicos no México já beira os 70 anos", disse ao jornal La Jor- nada o presidente da Acade- mia Mexicana de Ciências, Octavio Paredes. "Há dez anos o investimento em ciên- cia e tecnologia alcançava

0,46% de nosso PIB. Hoje caiu para 0,37%. Formamos poucos doutores e pesquisa- dores e, mesmo assim, falta trabalho para eles." Um au- mento nos recursos, de acor- do com o projeto, é essencial para criar novos centros de pesquisa e, assim, deter a

migração de jovens pesqui- sadores para os Estados Uni- dos e o Canadá. •

■ Doutores exorcizam a crise

Os Estados Unidos voltaram a formar doutores como na

áurea década de 1990. O nú- mero de teses defendidas no país cresceu pelo segundo ano consecutivo e chegou a 42.155 em 2004, segundo da- dos divulgados pela National Science Foundation (NSF). A soma de teses se aproxima dos picos históricos alcança- dos entre 1996 e 1998 e pare- ce exorcizar a crise desenhada em 2002, quando caiu a me- nos de 40 mil teses pela pri- meira vez em dez anos. A área de ciências e engenharias foi a grande responsável pelo cres- cimento, com destaque para as ciências biológicas. Do total de doutorados, 62% es- tão vinculados a esses cam- pos. Na evolução dos últimos dez anos destaca-se a amplia- ção da participação das mu-

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lheres. Em 1995 eram res- ponsáveis por 39% dos títu- los de doutorado. Em 2004 alcançaram 45%. •

■ Sem medo de seqüestro

A arqueóloga alemã Susanne Osthoff, de 43 anos, com- prou uma briga com a opi- nião pública de seu país ao anunciar que voltará em bre- ve ao Iraque, onde vivia há mais de uma década e parti- cipava da exploração do sítio de Isin, de mais de 4 mil anos. Explica-se a polêmica: em novembro, Susanne foi seqüestrada por um grupo extremista no Iraque e ficou três semanas em cativeiro. Foi libertada depois que au- toridades germânicas paga- ram € 5 milhões de resgate. O governo alemão já cortou verbas que destinava a seus projetos e parlamentares querem que ela seja proibida de deixar o país. "Se ela vol- tar, não seremos responsá- veis por sua insensatez", disse o deputado Roland Gewalt ao jornal Bild. Susanne con- verteu-se ao islamismo após casar-se com um jordaniano, com quem teve uma filha há 11 anos. •

■ Articulação contra o barbeiro

O barbeiro está na berlinda. Com patrocínio da União Européia, cinco países uni-

ram-se para estudar o com- portamento do inseto trans- missor da doença de Chagas, conhecido cientificamente como Triatoma infestans. O estudo, informa o site do Conselho Nacional de Pes- quisas Científicas e Técnicas (Conicet), vai reunir pesqui- sadores de campos como a ecologia, a citogenética, a bio- química e a genética mole- cular. A pesquisa vai debru- çar-se sobre as populações do inseto na região do Grande Chaco, enclave de 1,2 milhão de quilômetros quadrados entre a Argentina, o Paraguai e a Bolívia. "No Chaco, as populações do Triatoma in- festans apresentam elevada resistência a inseticidas, ge-

rando sérios problemas de controle", disse Silvia Catalá, do Centro de Pesquisa Cien- tífica e Transferência Tecno- lógica, em Anillaco, Argenti- na. Também vão participar da investigação o Instituto de Pesquisa para o Desenvol- vimento, da França, o Insti- tuto de Pesquisa em Ciências da Saúde, do Paraguai, a Uni- versidade da República, do Uruguai, e a Universidade de Cochabamba, da Bolívia. •

■ Sob a sombra da suspeita

O ministro da Ciência da Croácia, Dragan Primorac, diz que é intriga, mas está sen- do acusado de manipulação da distribuição de verbas pa- ra pesquisa. Mais de 250 pes- quisadores da Croácia assina- ram um manifesto exigindo transparência na destinação de recursos para ciência e tec- nologia no país. O abaixo-as- sinado pede uma investigação sobre uma dotação concedi- da há dois anos a um projeto liderado por Primorac. Os cientistas denunciam conflito de interesses no financiamen- to de US$ 1,2 milhão ao pro- jeto que criou um laboratório de genética molecular foren- se. Ele se tornou ministro quatro dias depois de receber a verba, em dezembro de 2003. Detalhe: Primorac era membro do conselho que avaliou e aprovou a subven- ção. O ministro classificou o

abaixo-assinado como uma "campanha impiedosa". "Na- da tenho a esconder", disse à revista Nature. •

■ A gincana das bolsas de estudo

Deu no New York Times: a tradição dos milionários nor- te-americanos de legar parte de sua fortuna a universida- des gerou um efeito colate- ral, ainda que raro. Algumas bolsas de estudo financiadas por beneméritos estão vagas porque é difícil encontrar quem se encaixe nas exigên- cias registradas em testamen- to. No Hamilton College há uma bolsa destinada apenas aos descendentes do patrono Elias Leavenworth, banquei- ro que morreu no século 19 atormentado com a medio- cridade intelectual de seus filhos e netos. Mas, desde 1994, ninguém se candidata à vaga. O Vassar College também tem uma bolsa ocio- sa legada pelo milionário Calvin Huntington a estu- dantes com seu sobrenome. A Universidade da Califór- nia em San Diego obteve na Justiça o direito de renegar o desejo de um empresário que instituiu uma bolsa em enge- nharia aeronáutica exclusiva- mente para órfãos de judeus. Como a bolsa ficou inativa por mais de uma década, hoje pode ser disputada por ju- deus com pais vivos e esten- de-se a outros cursos. •

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Estratégias Mundo

Resistência francesa O governo francês segue adian- te na cruzada para combater o que classifica como "impe- rialismo anglo-saxão" na in- ternet. A pedido do presiden- te Jacques Chirac, uma equipe composta por pesquisadores da França e da Alemanha de- senvolve um novo buscador chamado Quaero ("Eu bus- co", em latim), voltado para rivalizar com o norte-ameri- cano Google. Trata-se de um empreendimento privado, mas recebeu £ 150 milhões da Agência Francesa para a Ino- vação Industrial. O buscador vai disponibilizar on-line acer- vos de bibliotecas européias. O objetivo declarado é con- trabalançar o predomínio da língua inglesa na rede e dar uma resposta aos planos do Google de digitalizar 15 mi- lhões de livros de bibliotecas universitárias norte-america- nas e disponibilizá-los na re- de. "A nova geografia de co- nhecimentos e culturas está se definindo. Logo, o que não estiver on-line corre o risco de se tornar invisível", disse

Chirac num discurso em ja- neiro, segundo a agência Fran- ce Press. •

■ O plano venezuelano

A Misión Ciência, iniciativa do governo venezuelano para estimular o desenvolvimento científico e tecnológico no país, será deflagrada neste mês. O investimento inicial, anunciado pelo presidente Hugo Chávez, será de US$ 50 milhões, mas espera-se um reforço de US$ 100 milhões obtidos dos resultados da venda de petróleo. "O país precisa de uma ciência que possa ser compartilhada com a população", disse Chávez, segundo o periódico Venezue- lanalysis. De acordo com Chávez, o programa será coor- denado pelos principais pes- quisadores venezuelanos e deverá permitir a concretiza- ção de projetos necessários ao crescimento do país nas áreas de saúde, habitação, educa- ção e alimentação. •

Ciência na web

Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

http://www.dangerousaquaticanimals.com.br O site do pesquisador Vidal Haddad Jr., da Unesp, reúne os animais aquáticos periqosos do país e mostra o que fazer em caso de acidente.

http://stardustathome.ssl.berkeley.edu/ 0 portal convida astrônomos a analisar, via internet, 1,6 milhão de imagens de partículas de poeira interestelar trazidas pela sonda Stardust.

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http://www.genepaint.org/ O Instituto Max Planck de Endocrinologia Experimental criou um atlas on-line com mais de mil genes expressos em ratos.

20 • FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP120

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■ Charles Darwin revisitado

Num momento em que o le- gado de Charles Darwin é alvo de uma megaexposição no Museu Americano de His- tória Natural - em reação à influência política crescente dos opositores da Teoria da Evolução no governo dos Es- tados Unidos -, pesquisadores brasileiros também se prepa- ram para revisitar as contri- buições no naturalista inglês. Acontece entre os dias 18 e 20 de maio, no teatro da Facul- dade de Medicina da Univer- sidade de São Paulo, a con- ferência Teoria da Evolução: Princípios e Impactos. A pro- gramação se divide em vários módulos, nos quais serão re- vistos aspectos históricos, fi-

Unicamp cresce em Limeira Um novo campus da Uni- versidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp) começa a ser construído ainda nes- te primeiro semestre num terreno de 500 mil metros quadrados da cidade de Limeira, a 150 quilôme- tros de São Paulo. A meta é oferecer já em 2007 cerca de 700 vagas em 12 cursos divididos em cinco gran- des áreas do conhecimen- to: Ciências, Engenharias, Saúde, Administração e Gestão, e Arte, Cultura e Patrimônio. Alguns cursos oferecidos são inéditos no Brasil, como engenharia de manufatura, informáti- ca biomédica e restauro e conservação. "Os alunos poderão se especializar em profissões pouco explora- das", diz o reitor da Uni- camp, José Tadeu Jorge. O

novo campus, afirma o rei- tor, está sendo planejado para privilegiar a pesquisa científica. "A idéia é familia- rizar os alunos com o am- biente da pesquisa durante a graduação, promovendo um amadurecimento maior na escolha da carreira", afirma. A criação do cam- pus é uma resposta ao pro- grama de expansão de va- gas nas três universidades paulistas, que começou em 2001. Desde então a Uni- camp ampliou o número de vagas de 2.355 para 3.255. O projeto pedagó- gico de Limeira será calca- do na interdisciplinarida- de dos cursos, com várias matérias básicas comuns. A Unicamp já tinha duas unidades em Limeira e também possui campus em Piracicaba e Paulínia. •

losóficos e biológicos do dar- winismo. Dois palestrantes es- trangeiros estão confirmados: a portuguesa Clara Pinto Cor- reio, da Universidade Lusófo- na de Humanidades e Tecno- logia, de Lisboa, e o francês Jean-Louis Hartenberger, da Université Montpellier 2. As inscrições on-line podem ser

feitas pelo site www.even- tus.com.br.bioconferences até o dia 15 de maio. •

■ Empresas ao lado do campus

A cidade de Belo Horizonte vai ganhar um pólo tecnoló- gico numa área de 185 mil

metros quadrados contígua ao campus da Pampulha da Universidade Federal de Mi- nas Gerais (UFMG). O início das obras do Parque Tecno- lógico de Belo Horizonte (BH-Tec) está previsto para o primeiro semestre de 2006. O orçamento previsto para a in- fra-estrutura é de R$ 60 mi- lhões, que serão divididos en- tre a UFMG, a prefeitura de Belo Horizonte e o governo do Estado de Minas Gerais. Cada uma das partes destina- rá R$ 20 milhões para o pro- jeto. A Federação das Indús- trias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Se- brae) se responsabilizarão pela seleção de empresas. •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 21

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■ A morte de Gilda de Melío e Souza

Pesquisadora na área de es- tética e de filosofia da arte e professora emérita da Fa- culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), Gilda de Mel- lo e Souza morreu no dia 26 de dezembro, aos 86 anos. Nascida em São Paulo em 1919, foi uma das primeiras mulheres formadas pela Fa- culdade de Filosofia, em 1940. Fez parte do grupo que em 1941 fundou a revista Clima, na qual publicou arti- gos e contos. Sua tese de dou- toramento sobre moda, O es- pírito das roupas, projetou seu nome no meio acadêmico. Orientada pelo francês Roger Bastide, ela analisou o com- portamento da sociedade do século 19, época em que a moda se espalha por todas as camadas sociais, acelerando a proliferação de estilos. Tam- bém foi autora de estudos co- mo O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma (1979) e Exercícios de leitura (1980). Era casada com o crí- tico literário Antônio Cândi- do de Mello e Souza, com quem teve três filhas. •

Campeonato nacional de teses As melhores teses de dou- s sa aprovado pela Capes. A torado aprovadas em cur- » motivação é promover uma sos reconhecidos pelo Mi- Jêê^ 3 competição sadia entre os nistério da Educação (MEC) jj^K\ ^~2h doutorandos, o que é es- serão laureadas pela Capes \T^ 1 |^% sencial no mundo acadê- (Coordenação de Aperfei- \^^1 \ mico", disse José Oswaldo çoamento de Pessoal de Ní- M Hy^ Siqueira, integrante do vel Superior). A distinção M wk' Conselho Técnico Cientí- vai dividir-se em duas eta- M K fico da Capes e responsá- pas. A primeira é o Prêmio ■ ■ vel pela proposta do prê- Capes de Teses, que será ■ B mio, que será entregue pela concedido em 42 áreas do ■ ■ primeira vez em julho. conhecimento. Cada uni- ■ ^ versidade poderá concor- m- Acesso livre - Parte do rer indicando uma tese por ■^ conteúdo do Portal de Pe- área. Os vencedores estão ^^F "^ riódicos da Capes, biblio- automaticamente inscritos teca virtual de publicações para o Grande Prêmio Ca- ► científicas mantida pelo pes de Teses, que vai esco- Ministério da Educação, lher os ganhadores em três foi aberta a todos os usuá- grandes áreas: Ciências Bio- t -sT ^H .^^B rios da Internet. A consulta lógicas, da Saúde e Agrá- ao serviço era restrita a es- rias; Engenharias, Ciências tudantes, professores e Exatas e da Terra; e Ciên- gTLjO^^^^^^r funcionários de 163 insti- cias Humanas e Sociais. Os tuições de ensino superior três premiados receberão, do Brasil. Agora, cerca de além de diploma e meda- 20% deste acervo, que in- lha, uma bolsa de pós-dou- clui resumos ou textos torado internacional com completos de dissertações um ano de duração. Já os e teses, informações sobre orientadores ganharão au- patentes e artigos de publi- xílio equivalente a uma par- cações acadêmicas, pode ticipação em congresso na- ser consultado por qual- cional ou a mesma soma quer pessoa. O endereço de recursos para aplicação do portal é http://acessoli- em um projeto de pesqui-

^ A^ sr*y*~ vre.capes.br. •

■ Transferência ^C^l Py^âá^^L

terapia de anemia associada à

tecnológica m insuficiência renal, Aids e quimioterapia. O outro é o

A partir de 2008, o Instituto - JjBr interferon alfa humano re- de Imunobiológicos de Man- combinante (INF), adotado guinhos (Biomanguinhos), da no tratamento de hepatites Fundação Oswaldo Cruz (Fio- virais. A produção nacional cruz) irá produzir e abastecer se tornará possível graças a o Sistema Único de Saúde um processo de transferência dois remédios hoje impor- de tecnologia acertado com tados de Cuba. Um é a eri- Cuba. Deverão ser fabricados tropoetina alfa humana re- 7,5 milhões de frascos de combinante (EPO), usada na EPO e INF anualmente. •

22 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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■ Pesquisa clínica para o SUS

Dezessete hospitais de ensino vinculados a universidades vão receber R$ 29,2 milhões até 2007 para modernizar sua es- trutura laboratorial e partici- par de uma rede de pesqui- sa clínica ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS). O programa, financiado com re- cursos dos ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnolo- gia, vai preparar os hospitais selecionados, que se distri- buem por nove estados, para desenvolver ensaios clínicos de medicamentos, equipamen- tos e dispositivos para diag- nósticos de doenças. O pro- grama busca garantir que os estudos clínicos realizados nes- ses centros respondam a ne- cessidades do SUS, como por exemplo a realização de testes de novos medicamentos para o combate ao vírus causador da Aids ou contra o bacilo da tuberculose. Nos próximos meses serão definidas as nor- mas de funcionamento da rede. Uma das propostas pre- vê mecanismos que garantam um distanciamento ético en- tre os pesquisadores e institui- ções que financiam testes de remédios - o dinheiro inves- tido por indústrias farmacêu- ticas seria gerenciado pelo hospital universitário, e não diretamente pelo pesquisa- dor, como acontece hoje. •

■ Coréia investe no Brasil

O governo da Coréia do Sul vai investir US$ 1 milhão num centro de pesquisa em tecno- logia de informação sediado no Brasil. O acordo foi anun- ciado pelo ministro das Co- municações brasileiro, Hélio Costa, e o da Informação e Comunicação sul-coreano, Daeje Chin. O objetivo é es- timular a colaboração entre pesquisadores dos dois países e propagar as experiências sul- coreanas em inclusão digital e no desenvolvimento de novas tecnologias. O Centro de Coo- peração Coréia-Brasil em Tec- nologias da Informação e das Comunicações funcionará por pelo menos três anos e pre- vê intercâmbio de técnicos. Em fevereiro, os governos dos dois países nomearão os membros do grupo de traba- lho que criará as regras para

implementação do centro. Em abril será escolhida a lo- calização da sede. •

■ Trabalho reconhecido

Jerson Lima Silva, professor do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro (UFRJ), foi um dos ganhadores do Prê- mio TWAS 2005, da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), concedido anualmente a pes- quisadores de países em de- senvolvimento de oito áreas do conhecimento. Lima Silva foi o vencedor em Biologia junto com o chinês Huanming Yang, do Instituto de Genô- mica de Pequim. O prêmio é um reconhecimento aos estu- dos de Lima Silva sobre a es- tabilidade de partículas virais e outros agregados protéicos que, usando altas pressões,

podem resultar em novos métodos de obtenção de vaci- nas antivirais. O pesquisador é o diretor-científico da Fun- dação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A TWAS é uma organização autônoma fundada em Tries- te, na Itália, em 1983. •

■ Procuram-se superdotados

O Ministério da Educação (MEC) anunciou um investi- mento de R$ 2 milhões na criação de centros de apoio a alunos superdotados nas 27 capitais brasileiras. O objeti- vo é ajudar a identificar esses estudantes e dar a eles um tratamento diferenciado. Es- tima-se que 5% da população brasileira apresente habilida- des acadêmicas acima da mé- dia, mas a escola não conse- gue reconhecê-los. O Censo Escolar de 2004 apontou ape- nas 2.006 superdotados nas escolas do país. Isso não che- ga nem a 0,005% dos 43 mi- lhões de alunos matriculados nos ensinos fundamental e médio. O dinheiro será gasto na aquisição de computado- res e móveis para os núcleos. Caberá aos estados garantir os recursos humanos, mate- rial didático e as salas para atendimento aos alunos. A proposta é atender mensal- mente a 1.620 estudantes. •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 23

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Q POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

CLONAGEM

Era tudo mentira Falsos resultados de pesquisa obrigam Science a retratar-se e reabrem debate sobre ciência e ética

CLAUDIA IZIQUE

notícia de que as pes- quisas sobre clonagem humana desenvolvi- das pelo sul-coreano Woo-Suk Hwang não passavam de uma frau- de causou perplexida- de em todo o mundo.

Atônitos, muitos cientistas se indaga- vam qual teria sido a motivação que le- vara um pesquisador respeitado em seu país a montar uma farsa que, mais cedo ou mais tarde, seria inevitavelmente des- vendada. Não faltaram incursões no ter- reno da psiquiatria, mas o problema se situava mesmo no campo da ética. "Em busca do Santo Graal da ciência, que é o clone, ele fez a fraude. Temos que com- preender que o cientista, considerado um anjo no século 19, tem que ser visto como um ser humano vaidoso e cheio de ambições", justifica José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Bra- sileira de Bioética.

O fato é que, em dois artigos publi- cados na prestigiada revista Science, em 2004 e 2005, Hwang descreveu, pela primeira vez, a clonagem de embriões humanos. Afirmou que, a partir deles, obteve linhagens de células-tronco em- brionárias humanas, o que comprova- ria a validade da clonagem terapêutica. O feito teve repercussão espetacular e foi considerado um marco, já que abria perspectivas reais para a terapia celular.

Em novembro do ano passado sur- giram denúncias na imprensa sul-corea- na de que Hwang havia coagido mulhe- res que faziam parte de sua equipe a doar óvulos para o estudo - e lhes pago algo em torno US$ 1.400 -, lançando suspeitas sobre o uso de procedimentos antiéticos no desenvolvimento das pes- quisas. Esse fato detonou uma investi- gação do Conselho de Revisão Institu- cional dos Comitês de Ética do Hospital Universitário de Hanyang e da Univer- sidade Nacional de Seul.

Em dezembro, o próprio Hwang in- formou à Science sobre erros "não in- tencionais" em quatro imagens publi- cadas pela revista que teriam saído duplicadas. Dias depois, os editores re- ceberam uma carta de um dos 24 au- tores do artigo publicado em 2005 - Gerald Schatten, do Centro Médico da Universidade de Pittsburg - pedindo para que seu nome fosse retirado do paper. No final de dezembro, a Univer- sidade Nacional de Seul constatou "má conduta científica", envolvendo dados específicos de DNA e afirmações não verificáveis sobre o número de linha- gens de células-tronco efetivamente criadas.

O relatório preservou apenas os estudos que resultaram na produção do primeiro clone de um cão, o afghan hound Snuppy, apresentado no ano passado. Hwang agora poderá ser indi-

ciado criminalmente por uso indevido de verbas públicas, já que o seu labora- tório consumiu US$ 65 milhões do go- verno da Coréia do Sul.

De volta ao passado - Além de sur- preender, a constatação da farsa colo- cou as pesquisas sobre clonagem tera- pêutica de volta à estaca zero, pelo menos em termos de publicação. "Esses estudos poderiam trazer informações importantes sobre o comportamento dos genes", afirma Mayana Zatz, geneti- cista e coordenadora do Centro de Estu- dos do Genoma Humano da Univer- sidade de São Paulo (USP). "Foi uma pena", comenta Rosalia Mendez Otero, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Se fosse ver- dade, seria um grande avanço nas pes- quisas com células-tronco por tratar-se de um método mais rápido e fácil de obter linhagens." Ela lembra, no entan- to, que Hwang não estava sozinho nes- sa empreitada e que nem tudo está per- dido. "Outros grupos, como o que clonou a ovelha Dolly, também estão tentando utilizar esse mesmo método." Mas nada ainda foi publicado.

O recrudescimento de expectativas em relação à clonagem terapêutica, no entanto, "fomentou a esperança" do uso de células-tronco embrionárias, pon- dera Lygia da Veiga Pereira, geneticista da USP, a única linha de investigação

24 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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autorizada pela Lei de Biossegurança no Brasil. Ela entende que o episódio Hwang deve ter o efeito de um "alerta" para que os pesquisadores em todo o mundo procedam com mais cautela em relação à divulgação dos resultados de pesquisa. "É preciso interromper esse frenesi com células-tronco e com essa história de fazer publicidade sobre pe- quenos avanços."

A explicação da Science - A fraude levou a Science a justificar-se. "A pes- quisa fraudulenta é um fato particular- mente perturbador porque coloca em risco um empreendimento construído com base na confiança. Felizmente, ca- sos assim são raros - mas eles prejudi- cam todos nós. A fraude dificilmente será eliminada completamente do pro- cesso de publicação científica, e a ver- dade da ciência depende, em última instância, de confirmação", afirmou o diretor de redação da revista, Donald Kennedy, em edital publicado na edi- ção de 13 de janeiro.

Ele anunciou também a decisão de fazer uma revisão sistemática da história editorial dos dois papers e dos proce- dimentos adotados para avaliá-los. "Já mencionei no passado que mesmo uma revisão por pares especialmente rigorosa do tipo que adotamos nesse caso pode falhar na detecção de uma fraude bem construída", argumentou o editor. E adiantou que, junto com os membros do Board of Reviewing Edi- tors e do conselho editorial, estará "analisando opções para fornecer sal- vaguardas processuais adicionais". Estas opções poderão, por exemplo, exigir que todos os autores detalhem suas contribuições específicas à pesquisa e assinem declarações de concordância com as conclusões do trabalho.

O editorial da Science reforçou uma preocupação entre os cientistas brasi- leiros: a de que, a partir de agora, os pesquisadores de países em desenvolvi-

PESQUISAFAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 25

Page 26: A TV Digital está chegando

mento podem ter mais dificuldades em publicar artigos em revistas internacio- nais. "Eles serão mais exigentes em re- lação à comprovação. Nos trabalhos publicados por pesquisadores norte- americanos é comum a informação da- te not shown (dado não revelado). Isso não acontece quando o artigo é publica- do por brasileiros", conta Mayana Zatz.

Revisão por pares - Houve quem atri- buísse à Science um certo descuido ao aprovar a publicação de uma pesquisa que posteriormente se revelou uma farsa. "O comitê da revista e todo o con- selho editorial têm que fazer análise técnica e ética do projeto. Se o fizeram, não foi bem feito", comenta o presiden- te da Sociedade Brasileira de Bioética. Mas a grande maioria dos pesquisado- res não atribui à revista nenhuma res- ponsabilidade. "Nenhum sistema é per- feito. O que escapa aos revisores tem vida curta", avalia Lygia da Veiga Pereira.

As revistas científicas internacio- nais, como a própria Science ou Natu- re, selecionam os artigos para publica- ção por meio de um procedimento conhecido como revisão por pares (peer review). Se o artigo enviado por um pesquisador - ou um grupo de pes- quisadores - estiver dentro do escopo de interesse da revista, ele é encaminha- do para avaliação de revisores que po- dem, eventualmente, solicitar aos auto- res mais informações.

Foi assim com o artigo científico sobre o seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, assinado por 27 pesquisadores brasileiros e que foi capa da edição n° 6.792 da revista Na- ture, publicada em 13 de julho de 2000. Entre a data do envio do artigo e sua publicação passaram-se dois meses, lembra Fernando Reinach, pesquisador da USP, diretor da Votoratim Novos Negócios e um dos autores do paper.

Na sua avaliação, os revisores têm a função de verificar se as informações apresentadas pelos pesquisadores são consistentes do ponto de vista cientí- fico. "O papel do peer review não é de auditoria, não foi concebido para isso. Pedem-se provas com o objetivo de ver se a ciência é boa, partindo do princí- pio de que as pessoas são honestas", en- fatiza. Apenas uma auditoria, como a que foi feita pela Universidade de Seul, pode constatar a fraude.

Reinach considera "um erro" achar que tudo que está publicado é verdade. A ciência, em sua avaliação, tem meca- nismos internos para apurar fraudes e erros, e o principal deles é o princípio da "repetição". "A natureza é repetitiva. Alguém tenta fazer de novo e não con- segue", explica. Foi o que ocorreu com os pesquisadores Stanley Pons e Martin Fleischmann, que, em 1989, anunciaram na Nature terem descoberto a fusão a frio, uma fonte ininterrupta de energia. Nenhum outro cientista conseguiu re- produzir o experimento e os dois auto- res tiveram um pouco mais do que 15 minutos de fama antes que suas con- clusões fossem recobertas por suspeitas.

0 problema é que a clonagem huma- na-o Santo Graal

^^^ da ciência, segun- do Siqueira - não é fusão a frio: as pesquisas estão di- retamente relacio- nadas a seres hu- manos. "O tema é polêmico do pon-

to de vista científico e tecnológico, éti- co e religioso", afirma Volnei Garrafa, coordenador da cátedra Unesco de Bioé- tica da Universidade de Brasília (UnB), presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bio- ética da Unesco (RedBioética) e ex-pre- sidente da Sociedade Brasileira de Bio- ética. Por isso, ele argumenta, a Science deveria ter "quadruplicado" os cuida- dos e, além da revisão por pares, confe- rido as contra-provas da pesquisa. "O estrago é grande e pode quebrar a cre- dibilidade numa área tão promissora. A ciência, no entanto, seguirá seu cami- nho glacial, tão glacial quanto a ética."

Para Carlos Vogt, lingüista e presi- dente da FAPESP, o caso Hwang é o re- sultado do cenário atual da ciência, em que a ética é freqüentemente confrontada com a competitividade. "Isso cria uma espécie de nova moral dos resultados, desencadeia prestígios ferozes e atrai a obsessão do mercado, envolvendo não apenas o fato científico como sua expe- riência na mídia e na sociedade", afirma.

A fraude de Hwang, na sua avalia- ção, associa mecanismos de inteligência científica - já que apontava solução para restrições técnicas no caso da pes-

quisa com células-tronco embrionárias - com ingredientes éticos e religiosos. "Toda a elaboração de códigos de con- duta cria princípios normativos, o que leva um tempo diferente do tempo da competitividade", afirma. "E esse as- sunto merece muita reflexão."

O avanço das pesquisas exigirá, além das comissões de ética - "como as que existem e vêm funcionando, em ní- vel local" -, uma participação maior da sociedade. "Temos que ter um modelo mais democrático de governança da ciên- cia. Quem deve dizer para onde vão as pesquisas? O governo? O cientista? A sociedade?", ele indaga.

Na avaliação de Manoel Barrai Ne- to, imunologista e diretor da área de Ciências da Vida do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno- lógico (CNPq), os comitês de ética não têm como detectar fraudes como essa. "Mas a farsa é efêmera, já que será reve- lada quando os resultados não puderem ser repetidos", diz. E alerta: "É preciso que a comunidade científica fique aten- ta às promessas mirabolantes. O avan- ço da ciência se faz passo a passo", diz.

Tanto na avaliação de Garrafa como na do atual presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, é preciso rever as regras nas pesquisas com seres huma- nos. O argumento é que, no século 19, as investigações científicas - por seu ca- ráter e objeto - não tinham relação di- reta com valores humanos e hoje têm. "A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Unesco deveriam criar estru- turas para controlar determinadas li- nhas de pesquisa para aumentar o con- trole social sobre as investigações que envolvam seres humanos", sugere Si- queira. "Se o trabalho de Hwang tivesse sido examinado por um comitê multi- disciplinar, isso não teria acontecido."

Iguais, mas nem tanto - As regras para pesquisa envolvendo seres huma- nos foram definidas em 1964, na 18a

Assembléia Médica Mundial, em Hel- sinque, na Finlândia, e corrigidas três vezes: na Assembléia do Japão, em 1975; na da Itália, em 1983, e na de Hong Kong, em 1989. "Até hoje preva- lece o princípio de que os sujeitos de pesquisa são iguais. Essa é a tese vence- dora do século 20: foi assim em relação às mulheres, índios e minorias", subli- nha Garrafa.

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Esse princípio, segundo ele, estaria ameaçado. "Os Estados Unidos vêm tentando impor um imperialismo éti- co, propondo em todos os foros de que participam um duplo padrão de pes- quisa: metodologias distintas poderiam ser aceitas para povos diferentes", diz Garrafa. As pesquisas com anti-retrovi- rais no Quênia, ele exemplifica, podem ser diferentes daquelas realizadas na França. "Em 2004, isolados, eles desisti- ram. Mas as pesquisas financiadas por agências norte-americanas têm que en- frentar esse problema."

Parece ser o caso, segundo ele co- menta, da pesquisa sobre vetores da ma- lária realizada no Amapá, interrompida no final do ano passado por decisão do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sus- peita de utilizar como cobaias humanas 40 moradores de duas comunidades em troca de pagamento diário de R$ 12. A pesquisa é coordenada pela ONG

norte-americana Institutional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, e envolve pesquisado- res de várias universidades brasileiras.

O senador Cristovam Buarque (PDT-DF), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, visitou as duas comunidades. "O grupo que fez a pesquisa submeteu à Comis- são Nacional de Ética em Pesquisa, do CNS, documentos diferentes daqueles utilizados em campo", constata o sena- dor. O documento apresentado à co- missão falava na utilização de morado- res como coletores dos mosquitos da malária. Já o termo de consentimento assinado por esses coletores previa que alimentassem os insetos, até saciá-los, quatro vezes na mesma noite. "Isso não é ético, é falso", afirma o senador. O ter- mo do consentimento, ele continua, está em português mas, no meio do

texto, inclui algumas passagens em in- glês. "No documento está estampado o carimbo Approved by University of Flo- rida", diz Buarque.

As investigações para apurar se hou- ve ou não procedimento antiético estão em curso. "Vamos fazer audiências pú- blicas em fevereiro e março para ouvir os diversos órgãos envolvidos, inclusive o Ministério das Relações Exteriores. Queremos decisões para que isso não aconteça mais."

Robert Zimmerman, da Universida- de da Flórida e um dos coordenadores do projeto de pequisa, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, afirmou que não via problemas na utilização de iscas humanas e que as queixas eram infun- dadas. Justificou que os coletores foram expostos às picadas de mosquito com a intenção de avaliar a sobrevida destes in- setos, depois de saciados. Mas constatou- se que "essa não era uma boa idéia". •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 27

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

SAÚDE PUBLICA

Prevenir antes de remediar Instituto Butantan inicia teste com vacina contra a gripe aviaria

m 1918, quan- do a gripe es- panhola che- gou ao Brasil matando mi- lhares de pes- soas, poucas me- didas podiam ser

tomadas. "Muitas empresas investiram na fabricação de caixões; a Light alugou bondes para o transporte de cadáveres; e a Câmara Municipal aprovou a cons- trução do cemitério da Lapa", conta Isaias Raw, presidente da Fundação Ins- tituto Butantan. Agora, quando uma nova pandemia - a da gripe aviaria - surge como um fantasma ameaçador, a situação é diferente e, em todo o planeta, já se tomam medidas para enfrentá-la.

No Brasil, o Instituto Butantan co- meça a produzir, em março, as primei- ras doses da vacina contra o vírus da gripe aviaria, o H5N1, a partir das cepas enviadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A meta é fabricar 20 mil doses de vacina já em 2006, que poderão ser utilizadas no caso de uma pandemia da doença. O vírus é transmitido exclu- sivamente pelas aves e não se propaga facilmente por contato com humanos, apesar de já terem sido registrados mais de uma centena de casos e várias mor- tes, principalmente na Ásia. O grande temor é que o H5N1 troque material genético com o vírus Influenza, dando origem a uma nova cepa, esta sim alta- mente contagiosa.

As primeiras vacinas produzidas pelo Butantan serão utilizadas em teste com animais ao longo de 21 dias. Em se-

guida, e por período de tempo idêntico, serão aplicadas em humanos.

As vacinas para os testes serão pro- duzidas num laboratório piloto adap- tado para garantir segurança na mani- pulação das cepas.

Em maio estarão concluídas as obras da nova fábrica onde serão gera- das vacinas contra o vírus Influenza, imunizantes contra rotavírus, HPV, hepatite B, entre outros, com capaci- dade de produção de 20 milhões de doses de vacina por ano. Ali também será instalada a unidade de fabricação em escala da vacina contra a gripe avi- aria. A nova fábrica custou R$ 18 mi- lhões ao governo do Estado de São Paulo e R$ 34 milhões ao Ministério da Saúde. "A maior parte dos equipa- mentos já está armazenada e será insta- lada a partir de junho", adianta Raw. Três das cinco centrífugas que serão utilizadas tanto na produção de vaci- nas contra o vírus Influenza como o HP5N1 já chegaram.

Um dos insumos básicos na produ- ção da vacina - a gema de ovo fecun-

Vírus H5N1: transmitido exclusivamente pelas aves, preocupa OMS

dado - também está garantido. "Já nos reunimos com grandes pro- dutores nacionais que se compro- meteram a fornecer algo em torno de 20 milhões de ovos entre os meses de outubro e novembro des-

te ano", conta Raw.

Multiplicação de vacinas - Os testes vão medir não exatamente a eficácia do produto no combate à gripe aviaria, mas a quantidade necessária para a imuni- zação, já que a tecnologia de produção desta vacina será a mesma utilizada na criação de vacinas contra o vírus In- fluenza, transferida pela Aventis.

No caso da vacina contra o H5N1, o Butantan pretende adotar uma estra- tégia experimentada com sucesso no caso do Influenzia: a utilização de um adjuvante - em substituição ao hidró- xido de alumínio - que permitirá o fra- cionamento das doses. "Este adjuvante permite o uso de 1/4 a 1/8 da dose por pessoa e a multiplicação do número de doses disponíveis", explica Raw. "Fize- mos isso em ensaios com o vírus do tipo A e deu certo." Além de aumentar a oferta da vacina, a medida vai barate- ar o preço de venda do produto.

Raw não acredita na possibilidade de uma pandemia da gripe aviaria. "Is- so é apenas uma suposição, até porque estamos no fim da cadeia de migração das aves, que tem início no Extremo Oriente", pondera. Mas, se o vírus pas- sar a contaminar humanos, será neces- sário fazer vacinação pontual, associa- da a medidas de circunscrição dos casos para evitar contágio. •

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T POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

EMPREENDEDORISMO

Tempo de plantar Finep seleciona gestores para fundos de capital semente

A Financiadora de Estu- Wjf dos e Projetos (Finep)

começou a selecionar gestores interessados em participar do Pro- grama Inovar Semente. O novo programa, lan- çado no dia 14 de de-

zembro passado, prevê investimentos de R$ 300 milhões em empresas nas- centes de base tecnológica, ao longo de cinco anos. A expectativa é apoiar, nes- se período, cerca de 340 empreendi- mentos inovadores.

O Inovar Semente quer estimular a criação de 24 fundos de capital se- mente - também conhecido como seed money - organizados por cidades, de acordo com a sua vocação tecnológica. Cada um desses fundos deverá contar com um capital inicial de R$ 12 milhões para apoiar entre 12 e 15 empresas. Na composição do Inovar Semente a Finep participa com 40% dos recursos, ou- tros 40% serão aportados por banco ou agência de desenvolvimento local e os restantes 20% virão do investidor pri- vado. "Queremos trazer investidores pessoa física para o negócio", explica Eduardo Costa, superintendente da área de pequenas empresas ino- vadoras da Finep. Esses inves- tidores, também conheci- dos como "anjos", além de aplicar recursos próprios no novo empreendimen-

| to, oferecerão sua expe- | riência e competência ao 5 desenvolvimento do nego-

cio, ajudando na formação de equipes e na constituição de uma rede de rela- cionamento.

O primeiro passo para a constitui- ção desses fundos é a contratação de um gestor, que, de acordo com o edital disponível no site da Finep, deverá possuir experiência em todo o ciclo da indústria - prospecção, investimento, acompanhamento e desinvestimento -, conhecimento na gestão de fundos de venture capital e contar com o apoio de um agente financeiro. "Esse agente po- de ser o Sebrae local, a Federação das

Indústrias, entre outros", exemplifi- ca Luiz Antônio Coelho, gerente de Projetos e Programas da Finep. As propostas devem ser apresen- tadas até o dia 30 de julho (mais informações no site www.finep.br).

As propostas selecionadas se- rão avaliadas pela Finep segundo

critérios como o impacto da consti- tuição do fundo sobre o desenvolvi- mento local, a capacitação e experiên- cias anteriores da equipe, a estrutura de custos, a qualidade do pipeline, en- tre outros. Antes da aprovação final das propostas estão previstas a realiza- ção de visitas técnicas {due dilligencé)

para avaliar as condições de fun- cionamento do fundo e a ve- rificação das informações

apresentadas. Os primeiros resultados serão mostrados em blocos de cinco propos- tas aprovadas. •

CLAUDIA IZIQUE

PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 29

Page 30: A TV Digital está chegando

O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

TI

EDUCAÇÃO

O tamanho do cobertor

Criação de novas universidades federais suscita debate sobre o fôlego do governo para ampliar um sistema com ensino e pesguisa

£^k programa de expan- fl B são das instituições

federais de ensino superior tem núme- ros grandiosos: pre-

B B vê-se a criação de 125 BkAy mil novas vagas até ^^^ 2010 por meio da

construção de quatro novas universi- dades - ABC paulista, Grande Doura- dos (MS), Recôncavo Baiano (BA) e Pampa (RS) -, a transformação de cin- co faculdades em universidades e a cria- ção de 36 campi vinculados a institui- ções já existentes. O investimento no programa chega a R$ 266,5 milhões. Já seu impacto no sistema nacional de ciên- cia e tecnologia não é tão simples de mensurar. Há, por exemplo, incertezas sobre o fôlego do Ministério da Educa- ção (MEC) de patrocinar a expansão sem fragilizar as universidades existentes. Num discurso feito no Palácio do Pla- nalto no dia 17 de janeiro, o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Su- perior (Andifes), Oswaldo Baptista Duarte Filho, elogiou a iniciativa de am- pliar o sistema federal, mas expressou preocupações. "Tal expansão ainda está

se dando à custa dos quadros de recur- sos humanos e financeiros já existentes que se encontram defasados. As 4 mil vagas de professores destinadas inicial- mente à recomposição dos quadros atuais, além de ainda não corrigirem in- teiramente o déficit, foram transfor- madas em apenas 2.200, com as outras 1.800 sendo destinadas à expansão", dis- se Duarte Filho, que é reitor da Univer- sidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Ele reconheceu que os recursos para as federais vêm crescendo. "Em 2005 ti- vemos um aumento no orçamento, o primeiro em muitos anos, que se con- cretizou em um acréscimo de 24% ao custeio e capital das instituições fede- rais", disse. É certo que o dinheiro usa- do na construção das novas universida- des está vindo de uma fonte à parte do orçamento global das federais, que su- biu de R$ 7,7 bilhões, em 2004, para R$ 8,9 bilhões, em 2005, segundo dados do MEC. Mas as 125 mil novas vagas sig- nificarão, levando-se em conta cursos de em média cinco anos de duração, mais 625 mil matrículas depois de al- guns anos. Isso vai dobrar o número atual de estudantes. O temor da Andi- fes é que as novas instituições rivalizem

30 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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L

fortemente com as universidades já existentes na divisão de um bolo limi- tado de verbas nos próximos anos.

Há consenso sobre a necessidade de expandir o sistema de instituições fede- rais de ensino superior, que atualmente responde por 55% dos programas de pós-graduação, segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Nenhuma nação oci- dental desenvolveu-se sem um vigoro- so sistema de ensino superior público. Os Estados Unidos, segundo o Depar- tamento de Educação do governo, têm 77% de suas matrículas no ensino supe- rior em instituições públicas. No Brasil, de acordo com o último censo da Edu- cação Superior divulgado pelo Insti- tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), 72% dos estudan- tes de nível superior são alunos de insti- tuições particulares e apenas cerca de 10% dos brasileiros entre 18 e 24 anos estão na universidade.

A opção do MEC é criar universida- des com ensino, pesquisa e extensão. Assim, cada nova instituição terá de de- senvolver cursos de mestrado e de dou- torado. "Não existe universidade sem pesquisa", diz Nelson Maculan, secretá-

rio de Educação Superior do MEC. Mas há grandes desafios a superar. Existe uma distância considerável entre con- tratar professores e produzir pesquisa de qualidade. A experiência das uni- versidades federais situadas em estados distantes do Sul e do Sudeste mostra que é difícil atrair pesquisadores de peso e oferecer condições de fazer pesquisa de qualidade. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) apre- sentou uma proposta para enfrentar o problema. A idéia é abrir vagas para grupos inteiros de pesquisa, e não para professores individualmente. "Quando o governo autoriza a criação de vagas de docentes, os conselhos universitários pulverizam as oportunidades por muitos departamentos e não conseguem criar massa crítica para formar programas de pós-graduação em área alguma. O ideal seria oferecer várias vagas numa mesma área, com a chance de formar um grupo inteiro de pesquisa", afirma Ennio Can- dotti, presidente da Sociedade Brasilei- ra para o Progresso da Ciência. A idéia, contudo, esbarra na autonomia de ges- tão das universidades.

Há um debate também sobre a na- tureza das instituições. Mesmo países

ricos, como os Estados Unidos ou a Fran- ça, adotaram estratégias de criar orga- nizações de ensino superior não uni- versitárias, os chamados community colleges, nas quais não há necessaria- mente pesquisa - não sendo obrigató- rio que todos os docentes trabalhem em tempo integral - e onde o custo por alu- no chega a ser uma décima parte do de uma universidade tradicional com en- sino, pesquisa e extensão. Nos Estados Unidos, metade das matrículas no en- sino superior vincula-se a organizações deste tipo. Em São Paulo já existem instituições semelhantes, as Faculda- des Tecnológicas (Fatecs), que ofere- cem cursos de boa qualidade, com di- plomação mais rápida e voltados para demandas do mercado de trabalho.

O Estado de São Paulo também pre- para seu modelo de desenvolvimento do sistema de ensino superior público, mas com metodologia mais abrangente. Discute-se, por exemplo, a ampliação de um sistema de ensino superior com uma variedade de instituições, algumas com atividade de pesquisa, outras ape- nas de ensino, mas todas com cursos de qualidade capazes de ampliar o acesso ao ensino superior. Uma equipe de 150 especialistas está envolvida na elabora- ção do Plano Diretor do Ensino Supe- rior Público em São Paulo, proposto ao governo estadual pelo Conselho de Rei- tores de Universidades Estaduais Pau- listas (Cruesp), que vai estabelecer es- tratégias e objetivos, tanto qualitativos quanto quantitativos, para os próximos 15 anos.

O comitê executivo que coordena os grupos é presidido pelo secretário esta- dual da Ciência, Tecnologia e Desenvol- vimento econômico, João Carlos Mei- relles. O trabalho está organizado em cinco grupos voltados para temas espe- cíficos. Um deles discute formas de am- pliar o acesso às universidades. O se- gundo está debatendo a distribuição geográfica da expansão. O terceiro abor- da o desafio orçamentário de atingir as metas. O quarto trata da questão da ino- vação. O quinto discute a natureza das instituições. "A discussão exaustiva des- sas estratégias permitirá estabelecer um plano estratégico realizável, essencial para se trilhar um caminho seguro na expansão do ensino superior público paulista", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 31

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CIÊNCIA

Laboratóri Mundo

Uma caixinha de surpresas Não são apenas os pas- ses perfeitos, os dribles geniais nem as finaliza- ções impecáveis, como o chute preciso do lateral- direito Carlos Alberto Torres que fechou o pla- car de 4 a 1 contra a Itá- lia na Copa de 1970, que tornam o futebol exci- tante. Muito de sua ca- pacidade de atrair mi- lhares aos estádios todas as semanas ou fazer mi- lhões se plantarem em frente à televisão se deve à imprevisibilidade dos resultados - a famosa zebra. Em termos de resultados inesperados, nada bate o fu-

E depois do drible? O inesperado é o charme do futebol

tebol, segundo um estudo de Eli Ben-Naim, Sidney Redner e Federico Vazquez,

do Laboratório Nacional Los Alamos, Estados Uni- dos. Eles avaliaram os resul-

tados de 300 mil parti- das de cinco esportes coletivos - futebol, bei- sebol, basquete, hóquei e futebol americano - realizadas durante o sé- culo 20. Com base no número de jogos em que os times mais fracos venceram os mais for- tes, calcularam o índice de imprevisibilidade ou a probabilidade de dar zebra. No futebol, esse índice foi de 45%; no futebol americano, bem mais previsível, foi de

36%. "Sem resultados ines- perados, os jogos ficam te- diosos", diz Ben-Naim. •

■ Antidepressivos na defesa

Os antidepressivos mais usa- dos, que já haviam sido asso- ciados a tentativas mais fre- qüentes de suicídio, podem alterar o sistema imunológico de um modo ainda não clara- mente compreendido. "Obser- vamos uma forma de comu- nicação entre as células de defesa que só é encontrada entre neurônios", disse Ge- rard Ahern, pesquisador da Universidade de George- town, Estados Unidos, e coor- denador de um estudo publi- cado na revista Blooâ e comentado na Nature Revi- ews Immunology. Seu grupo verificou que as células den- dríticas, uma das primeiras células acionadas quando o organismo é tomado por mi- croorganismos, liberam sero-

tonina, que ativa as células T, um tipo de célula de defesa. Antidepressivos que mantêm a serotonina em circulação, conhecidos como Prozac, Zo- loft e Aropax, devem mudar os parâmetros de ativação das células T. Ainda não se sabe se esse efeito beneficia ou prejudica a luta contra vírus e bactérias. •

■ Vá a pé e respire menos poluentes

Quem quiser engolir menos fumaça da rua deve ir às com- pras ou ao trabalho cami- nhando ou em seu próprio carro - desde que, evidente- mente, tenha paciência e tem- po para enfrentar os conges- tionamentos. Pesquisadores

do Imperial College, em Lon- dres, mediram a exposição em tempo real a poluentes de pessoas que se deslocaram usando cinco tipos de trans- porte - a pé, de carro, de ôni- bus, de bicicleta e de táxi. Verificaram que quem toma- va táxi ou ônibus sujeitava- se a um ambiente com cerca de duas vezes mais partículas ultrafinas de poluentes que causam problemas respirató- rios do que quem andava a pé ou em seu próprio carro. Se- gundo Surbjit Kaur, um dos autores do estudo, uma das explicações é o maior acúmu- lo de partículas ultrafinas nos táxis, que circulam mui- to mais do que os carros par- ticulares. E quem anda mais perto do meio-fio pode res- pirar mais fumaça do que quem se mantém mais próxi- mo aos prédios. •

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Page 33: A TV Digital está chegando

■ Os gases das plantas

O Brasil, que já era apontado como um dos grandes res- ponsáveis pela emissão de ga- ses associados ao efeito estufa por causa das queimadas, pode estar novamente em maus lençóis. Dessa vez por manter as florestas em pé. As plantas podem produzir até um terço do volume do se- gundo mais importante gás ligado ao efeito estufa, o me- tano, de acordo com estudo publicado na Nature pela equipe de Frank Keppler, do Instituto Max Planck de Físi- ca Nuclear, na Alemanha. Até então, uma das principais fontes biológicas de metano eram as bactérias que vivem

A Via Láctea: encurvada e capaz de ondular

■ A galáxia vibra como um tambor

Nossa galáxia, a Via Láctea, vibra como um tambor. Só que cada ondulação deve du- rar centenas de milhões de anos. A equipe de Leo Blitz, da Universidade da Califór-

no solo, no aparelho diges- tivo do gado ou em folhas e raízes de plantas. A descober- ta não altera o total de meta- no lançado na atmosfera, de 500 milhões a 600 milhões de toneladas por ano, mas ajuda a identificar com mais preci- são a origem do gás. Muitos especialistas se mantêm cé- ticos. "Se as plantas emitem uma quantidade mensurável de metano, houve uma supe- restimação das outras fontes ou existe algum sumidouro importante a ser descoberto", disse Michael Keller, da Uni- versidade de New Hampshi- re, Estados Unidos. •

nia, em Berkeley, Estados Uni- dos, concluiu o mais detalha- do mapeamento da gigantes- ca nuvem de hidrogênio que permeia todo o disco da Via Láctea, a galáxia elíptica acha- tada que abriga o Sol e pelo menos outros 200 bilhões de estrelas. Blitz constatou que essa nuvem desloca-se para além do plano da nossa galá- xia, atraída pelas Nuvens de Magalhães, curvando-se como um disco empenado e fazen- do a Via Láctea vibrar. Pensa- va-se que a massa das Nuvens de Magalhães - duas galáxias que orbitam a Via Láctea - fosse insuficiente para arras-

tar a nuvem de hidrogênio. Para Martin Weinberg, da Universidade de Massachu- setts, o deslocamento dessa nuvem de gás é possível le- vando-se em conta uma enor- me quantidade de matéria escura - forma ainda não de- tectada de matéria - envol- vendo a Via Láctea. •

■ Bom motivo para dormir mais

O cérebro precisa de boas horas de sono para funcionar direito. Equipes de duas uni- versidades norte-americanas, Califórnia e Stanford, desco- briram por que dormir pou- co prejudica a memória es- pacial, comandada por uma região cerebral chamada hi- pocampo, que permite lem- brar um caminho do trabalho para casa aprendido recen- temente. Já se sabia que o aprendizado de um percurso alternativo estimula a pro- dução de células nervosas no hipocampo. Em um estudo com ratos, publicado no Jour- nal of Neurophysiology, os pesquisadores viram que a redução das horas de sono aumenta a mortalidade das novas células do hipocampo. "Parece que o cérebro preci- sa de sono mais do que qual- quer outra parte do corpo", diz liana Hairston, coordena- dora do estudo. •

■ Chocolate bom para o coração

Uma equipe internacional que incluiu índios do Pana- má encontrou um composto químico responsável, ao me- nos em parte, pelos benefícios para o coração causados por alguns tipos de cacau. É a epi- catequina, do grupo dos fla- vonóides. Pode favorecer a circulação e a saúde do cora- ção, segundo estudo da revis- ta PATAS. Os índios kunas, que vivem em ilhas da costa do Panamá, foram fundamen- tais nesse trabalho. Conheci- dos pelo consumo intenso de cacau, rico em flavonóides (de três a quatro copos por dia), quase não têm doenças cardiovasculares. Já os índios que migram para a Cidade do Panamá e consomem só qua- tro copos de cacau por sema- na não têm um coração tão bom. Notou-se uma associa- ção direta entre níveis mais altos de epicatequina e a maior fluidez do sangue pelas arté- rias e veias. •

PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 33

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■ Escondidos nos riachos

Durante dois anos os biólo- gos Osvaldo Oyakawa, Alber- to Akama e Kelly Mautari, da USP, e José Cezar Nolasco, da Universidade Braz Cubas, se embrenharam nas matas do sul do Estado de São Paulo. E coletaram 73 espécies de pei- xe que só vivem em riachos e poças d'água, descritas no li- vro Peixes de riachos da Mata Atlântica (Editora Neotrópi- ca). Muitos não passam de 10 centímetros e quase não são vistos de fora d'água, porque se confundem com a areia ou as pedras. Há espécies de co- lorido intenso, como os pei- xes-anuais, que vivem em po- ças temporárias e, antes de morrer, enterram os ovos na areia. As cavernas de Iporan- ga abrigam o bagre-cego, pri- meira espécie de peixe de ca- verna descrita no país. •

Tempos difíceis, mas nem tanto e repente elas se põem a

horar sem razão aparente, u xingam e batem sem

justificativa à altura. Para quem está por perto - e para as próprias mulheres, claro - a tensão pré-mens- rual (TPM) pode ser um

tormento. Mas pode haver algum exagero na intensi-

ade das alterações físicas e emocionais. Quatro pes- quisadoras da Universida-

e Federal de Pelotas, no io Grande do Sul, mos-

raram que a TPM é bas- nte comum, sim, mas

não tanto quanto as mu- ■lheres afirmam. A equipe

de Denise Petrucci Gigante entrevistou 1.096 morado- ras de Pelotas com idades entre 15 e 49 anos, de todos os níveis econômicos e cul- turais, e verificou que 60% afirmavam sofrer mensal-

mente com os incômodos da TPM. Mas só 25% preen- chiam os critérios médicos que definem a TPM - ter ao menos cinco sintomas, sendo ao menos um deles tristeza, raiva, nervosismo ou irritabilidade em inten- sidade capaz de afetar as atividades do dia-a-dia. "Es-

tamos fazendo outros estu- dos para descobrir por que esse problema é mais co- mum entre as mulheres mais jovens, brancas e com maior grau de instrução", diz Celene Longo da Silva, uma das autoras do estudo publicado este mês na Re- vista de Saúde Pública. •

■ Caminhoneiros sempre alertas

Da próxima vez que pegar uma estrada seja gentil com os caminhoneiros e não hesi- te em lhes dar passagem. Uma das razões é que, entre eles, é alta a prevalência de distúr- bios de sono, de uso de esti- mulantes e de acidentes, con- cluiu o psiquiatra José Carlos Souza em seu pós-doutora- do feito na Faculdade de Me- dicina de Lisboa. Professor da

Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Souza entrevistou 260 motoristas de caminhão em estradas fede- rais do Estado do Mato Gros- so do Sul. Em conjunto com Teresa Paiva, da Faculdade de Medicina de Lisboa, e Rubens Reimão, da Universidade de São Paulo, ele verificou que 43% dos motoristas dirigiam mais de 16 horas por dia. Me- tade deles dormia de cinco a seis horas por dia e 23,8%,

menos de cinco horas, segun- do o estudo que saiu nos Ar- quivos de Neuropsiquiatria. O consumo de álcool foi relata- do por 50,9% dos motoristas entrevistados, e 8,7% bebiam mais de seis vezes por sema- na. Um em cada dez tomava estimulantes, como anfeta- minas. Nos cinco anos ante- riores, 27 motoristas (13,1% do total) tinham se envolvido em acidentes, dos quais cinco resultaram em ferimentos e três em mortes. •

Bagrinho: caçador noturno de insetos Barbudinho: tentáculos e espinhos Lambari: exclusivo da região de Iguape

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■ Os brasileiros lá no alto

São poucos, mas muito pro- dutivos. Os astrônomos bra- sileiros foram quatro vezes mais produtivos cientifica- mente que os colegas britâ- nicos, três vezes mais que os norte-americanos e duas ve- zes mais que os canadenses que integram a equipe do Te- lescópio Gemini, consórcio internacional de dois teles- cópios, um no Chile e outro no Havaí. Nos últimos cinco anos os astrofísicos das uni- versidades brasileiras assina- ram 5% dos 200 trabalhos científicos publicados a partir de observações feitas nesses telescópios, mesmo que con- tassem com apenas 2,5% do tempo de uso ou até 18 noites de observação por ano. Desde 1994 o Brasil investiu R$ 7,5 milhões nos dois telescópios - o Gemini Norte, a 4.200 metros de altitude, no monte Mauna Kea, no Havaí, e o Gemini Sul, a 2.720 metros no cerro Pachón, no Chile. •

■ Quanto sobra de Mata Atlântica

Há muitos anos se diz que res- tam atualmente pouco mais de 7% da área original da Ma- ta Atlântica no Brasil. Esse va- lor resulta de levantamentos feitos desde 1990 pelo Insti- tuto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Fundação SOS Mata Atlântica, mas está sujeito a ajustes - o primei- ro levantamento, que contou com a participação do Ins- tituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), indicava uma área remanescente de 8,8% e os dos anos seguintes já caíram para a faixa de 7,3%. Mas pode não ser tão pouco. No ano passado, o Instituto Florestal (IF) de São Paulo concluiu que a área atual de Mata Atlântica no país é de 17%. O IF levou em conta não só os grandes blo- cos de floresta, mas também as matas em regeneração e os blocos menores, de até 10 hectares, desconsiderados no estudo do Inpe/SOS. Só em

A África no sangue

Greice Cardoso e João Guerreiro, da Universi- dade Federal do Pará, analisaram o sangue de moradores de Belém com anemia falciforme em busca de variações do gene HBB*S comuns na África - cada variação re- cebe o nome da nação africana em que é mais comum. Em Belém, 66% dos portadores dessa ane- mia carregam a varie- dade Bantu do HBB*S, outros 21,8% a forma Benin, 10,9% a Senegal e 1,3% a Camarões (Ame- rican Journal of Human Biology). Já se sabia que

90% dos escravos envia- dos para o Norte do Bra- sil eram de Angola, Con- go e Moçambique, onde a variedade Bantu é mais comum, e 10% da Sene- gâmbia, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, onde a Senegal é mais freqüente. O problema era explicar as taxas mais altas que o esperado da variação Be- nin, encontrada no cen- tro-oeste da África. Esse dado sugere um tráfico interno do Nordeste para o Norte do país, já que não há registro de co- mércio de negros com o centro-oeste africano. •

São Paulo os 80.704 fragmen- tos menores somam cerca de 300 mil hectares, o equivalen- te ao Parque Estadual da Ser- ra do Mar. Deve sair em maio uma atualização do levanta-

mento do Inpe/SOS, que de- verá incluir fragmentos flo- restais de 5 ou mais hectares (os primeiros levantamentos abrangiam somente áreas com pelo menos 40 hectares). •

Tajibucu ou saicanga: carnívoro Guaru: em correntezas e remansos Peixe-anual: em poças temporárias

PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 35

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CIÊNCIA

MEDICINA

Alerta contra infecções constantes Alterações genéticas podem causar imunodeficiências confundidas com doenças comuns na infância

RICARDO ZORZETTO

E FRANCISCO BICUDO

A 0 sargento e médico do Exército norte- americano Ogden Bruton ficou intri- gado em 1952 quando deparou com um garoto de 8 anos com infecções respiratórias graves e constantes. Os medicamentos produziam resultados temporários e as pneumonias não demoravam a reaparecer, ainda mais

intensas. Ao investigar o caso, Bruton surpreendeu-se: o sistema imunológico do menino não produzia anticor- pos chamados gamaglobulinas, que ajudam a proteger o organismo de invasores como vírus, fungos e bactérias. Esse relato do médico norte-americano inaugurou os es- tudos sobre as imunodeficiências primárias, hoje um gru- po de mais de cem doenças que atingem principalmen- te as crianças, deixando-as mais vulneráveis a infecções.

Mais comuns do que se imagina, essas imunodefici- ências atingem cerca de 3 milhões de pessoas no mundo e quase 90 mil apenas no Brasil. Ainda assim são pouco conhecidas mesmo dos médicos porque seus sinais mais evidentes, que em geral surgem até o terceiro ano de vida, confundem-se com os de problemas corriqueiros entre as crianças. Os especialistas recomendam aos pe- diatras que encaminhem para exames mais detalhados as crianças que atendem, caso apresentem dois ou mais

36 • FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Viviane, 11 anos

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Marcine, 7 anos

episódios de pneumonia ou oito ou mais de infecções no ouvido (otite) no período de um ano; usem antibióticos por dois meses ou mais sem que haja o efeito desejado; apresentem abscessos freqüentes na pele ou em outros órgãos; tenham aftas ou lesões persistentes na pele após o primeiro ano de vida; mos- trem dificuldade para ganhar peso ou crescer normalmente; precisem de anti- biótico intravenoso para curar infecçõ- es; apresentem duas ou mais infecções graves como meningite, osteomielite e septicemia ou uma história familiar de imunodeficiência. A diferença entre o que é normal na infância e as imuno-

deficiências é que essas infecções são mais freqüentes e difíceis de combater. Como conseqüência, quem tem o pro- blema e não sabe pode não receber tra- tamento adequado ou consumir medi- camentos sem necessidade. Nos casos mais graves pode até mesmo morrer.

Causas - Apesar do nome em comum com a mais conhecida das imunodefi- ciências - a síndrome da imunodeficiên- cia adquirida, ou Aids -, as imunodefi- ciências primárias apresentam uma origem bem distinta. "As pessoas com imunodeficiência primária já nascem com falhas de funcionamento do siste-

ma de defesa, causadas por falhas gené- ticas, enquanto na Aids o sistema imu- nológico é destruído pelo HIV, um agente externo", explica a pediatra Magda Car- neiro Sampaio, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. Magda coordena um grupo de pesqui- sadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que investiga as carac- terísticas das imunodeficiências primá- rias na população brasileira e iniciou uma campanha para alertar os pedia- tras a respeito desse problema. Recente- mente essa equipe identificou novos defeitos em genes associados a um tipo específico de imunodeficiência primá- ria: a doença granulomatosa crônica. Descoberta na década de 1950 pelos mé- dicos norte-americanos Robert Good e Charles Janeway, essa enfermidade pre- judica o funcionamento de alguns tipos de células de defesa do organismo e dei- xa as crianças mais propensas a desen- volver infecções graves.

Em parceria com pesquisadores do Chile, da Colômbia, do México, dos Es- tados Unidos e, no Brasil, de Campinas, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto, a equi- pe de Magda realizou testes em amos- tras de sangue de 14 crianças e adultos com doença granulomatosa crônica - eram 10 brasileiros, 2 mexicanos e 2 chi- lenos. Metade dos participantes do estu- do apresentava pequenos defeitos ge- néticos no gene NCF1, de acordo com análises feitas no Laboratório de Alergia e Imunodeficiências Humanas da USP e no Laboratório de Biologia Molecular e Cultura de Células da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp), chefia- dos por Antônio Condino Neto. Loca- lizado no cromossomo 7, o gene NCF1 leva à produção de uma enzima que au- xilia as células de defesa a eliminar bac- térias, lançando sobre elas moléculas al-

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 37

Page 38: A TV Digital está chegando

tamente tóxicas, conhecidas como radi- cais livres. Na outra metade dos porta- dores da doença granulomatosa crônica as falhas ou mutações, incluindo duas até então desconhecidas, estavam no gene CYBB. Esse gene, que se situa no cromossomo sexual X, contém a recei- ta de uma outra proteína essencial pa- ra a produção dos radicais livres usados contra microorganismos estranhos.

escritos em um arti- go científico publi- cado na edição deste mês da revista Pedia- tric Blood and Cân- cer, esses defeitos comprometem o funcionamento das células de defesa mais abundantes no organismo, os neu- trófilos. Produzidos

no interior dos ossos longos do corpo a uma quantidade de 100 bilhões por dia, os neutrófilos geralmente circulam no sangue por apenas oito horas, como vi- gias que fazem a guarda de um castelo. Quando bactérias invadem o organis- mo de uma pessoa saudável, os neutró- filos penetram rapidamente nos teci- dos, englobam-nas e as destroem com eficiência. Mutações em um desses dois genes, porém, eliminam o poder de combate dessas células de defesa e dei- xam vulneráveis aos invasores as prin- cipais portas de entrada do corpo: a pele e as mucosas dos aparelhos diges- tivo e respiratório. Como a doença é de origem genética, a única forma de curar a pessoa é submetendo-a a um trans- plante de medula óssea, procedimento caro que nem sempre produz os efeitos desejados no caso da doença granulo- matosa crônica.

O tratamento em geral é feito com sulfametoxazol-trimetoprima e anti- fúngicos, usados de modo contínuo para combater as infecções já instaladas e também para prevenir a ocorrência de outras. "A expectativa é que em al- guns anos esse problema possa ser tra- tado com terapia gênica, atualmente em teste na Alemanha, mas ainda dis- tante da realidade dos pacientes", co- menta a pediatra Beatriz Costa Carva- lho, da Unifesp, integrante do grupo.

Enquanto a terapia genética não chega, a identificação de mutações co-

mo as descobertas pela equipe de São Paulo contribuem para o aperfeiçoa- mento do diagnóstico da doença gra- nulomatosa crônica. Exames realizados na USP e na Unicamp confirmaram 41 casos dessa doença nos últimos cinco anos. "Como são várias as mutações as- sociadas a esse problema, pretendemos investigar como as alterações genéticas influenciam o quadro clínico, o que fa- cilitaria o diagnóstico e o tratamento", diz Condino Neto.

A identificação precisa do defeito genético por trás da imunodeficiência permite ao médico saber o momento mais adequado para iniciar o uso de medicamentos. Também é útil para o aconselhamento de casais. Um exem- plo facilita a compreensão. A doença granulomatosa crônica pode ser pro- vocada por cerca de 400 mutações di- ferentes em cinco genes, cada uma com probabilidade distinta de ocorrer. As mais freqüentes são as alterações no gene CYBB, correspondente a 60% dos casos dessa imunodeficiência. Como esse gene se encontra no cro- mossomo X, as mulheres carregam em suas células duas cópias do CYBB, en- quanto os homens têm apenas uma. Se em um casal o marido não tem a imu- nodeficiência - portanto sua cópia do gene não sofreu mutações -, mas sua mulher apresenta uma cópia inaltera- da e outra defeituosa, a probabilida- de de ter um filho homem doente é de 25%. "É um risco extremamente ele- vado para uma doença em que a taxa de mortalidade é alta", diz Condino Neto, que começou a investigar os de-

feitos genéticos da granulomatosa há quase dez anos.

Motivos não faltam para justificar a busca de técnicas mais precisas de iden- tificação de imunodeficiências primá- rias. Crianças com doença granuloma- tosa crônica e outras enfermidades genéticas que debilitam as defesas do organismo - como a imunodeficiência grave combinada, em que o corpo não produz nem células de defesa nem an- ticorpos ou os fabrica em quantidade insuficiente - geralmente não deveriam receber algumas das vacinas aplicadas logo nos primeiros meses de vida. Va- cinas como a BCG, produzida a partir de uma bactéria para prevenir a tuber- culose, ou a Sabin, feita com o próprio vírus da paralisia infantil, podem colo- car os portadores de imunodeficiências sob risco de morte. É grande a possibi- lidade de que componentes dessas va- cinas, mesmo que atenuados, desenca- deiem infecções graves nessas pessoas, uma vez que seus sistemas de defesa são naturalmente debilitados. Segundo Bea- triz, uma em cada três crianças com imunodeficiência grave combinada que tomam BCG pode desenvolver reações graves e fatais.

Subdiagnóstico - "Seria fácil evitar esse risco se logo após o parto, durante o teste do pezinho para detectar fenil- cetonúria e hipotireoidismo, fosse re- tirada uma gota a mais de sangue para avaliar o sistema imunológico da crian- ça", diz Condino Neto. Medidas simples como essa reduziriam os riscos para os imunodeficientes e ajudariam a identi-

( trmm ■ppMMi \

7. Imunodeficiências COORDENADOR(A)

primárias em pacientes 1. MAGDA MARIA CARNEIRO SAMPAIO - pediátricos de risco USP

2. Padronização do método 2. BEATRIZ TAVAREZ COSTA CARVALHO - para avaliação in vitro Unifesp da imunidade celular 3. ANTôNIO CONDINO NETO - Unicamp

3. Defeitos genético- moleculares da doença

INVESTIMENTO (£%4n\ granulomatosa crônica 1. R$ 625.319,95 J^M

2. R$ 31.900,70 ^E-SK MODALIDADE 3. R$ 217.613,74 /|/^^

1. Projeto Temático 2. Linha Regular de Auxílio N^/

a Projeto de Pesquisa 7 » 3. Linha Regular de Auxílio

a Projeto de Pesquisa / Guilherme, ^^«^^ 8 anos

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Page 39: A TV Digital está chegando

Raphael, 8 anos

ficar com mais precisão quem deveria receber tratamento já nos primeiros anos de vida. Embora se estime que uma em cada 2 mil pessoas possa apre- sentar uma das formas de imunodefi- ciência primária - o que corresponde- ria a 90 mil doentes em uma população de 180 milhões -, há apenas cerca de 700 casos registrados pelo Grupo Bra- sileiro de Imunodeficiências (Bragid, na sigla em inglês), organização que reúne 1.800 médicos dedicados ao es- tudo das doenças do sistema imune.

Outro dado reafirma a suspeita de diagnóstico subestimado: calcula-se que 1.200 crianças sofram de imunode- ficiência grave combinada, solucionada apenas com o transplante de medula óssea, procedimento de custo elevado geralmente realizado antes do segundo ano de vida. No entanto, de 1992 para cá, o Centro de Transplantes de Medu- la Óssea da Universidade Federal do Pa- raná, um dos poucos que realizam esse procedimento no país pelo Sistema Único de Saúde, fez apenas 32 trans- plantes para tratar imunodeficiências primárias. "Muitas crianças podem es- tar morrendo por falta de diagnóstico correto", lamenta Beatriz.

Mesmo as formas mais freqüentes de imunodeficiência - a produção de

anticorpos defeituosos, que é tratada com injeções mensais para repor esses componentes do sistema imune e cor- responde a 60% dos casos de imuno- deficiência primária - parecem passar despercebidas nos consultórios e pron- tos-socorros. No ano passado o Grupo Brasileiro de Imunodeficiências reali- zou um levantamento com 34 mil pe- diatras de todo o país. O objetivo era avaliar o que eles sabiam sobre imuno- deficiências primárias.

Dez sinais - Em resumo, há muito a ser feito em termos de educação médi- ca. Dos 3.047 pediatras que responde- ram o questionário, 30% nada haviam aprendido sobre imunodeficiências pri- márias durante a graduação ou a resi- dência médica em pediatria. Mesmo após a especialização dois de cada dez pediatras jamais haviam ouvido falar em imunodeficiência primária, embora 97% deles atendessem crianças com in- fecções repetidas, um dos sinais do pro- blema, e 20% não sabiam que crianças com imunodeficiência primária não deveriam receber vacinas produzidas a partir de microorganismos vivos.

Para mudar esse cenário, o Grupo Brasileiro de Imunodeficiências iniciou uma campanha de educação e alimen-

tou sua página na internet (www.imu- nopediatria.org.br) com informações para médicos. Também enviou a 34 mil pediatras brasileiros um cartão com dez sinais associados às imunodeficiências primárias, sugerindo que encaminhem para exames detalhados seus pacientes com pelo menos um dos sintomas: duas ou mais pneumonias ou oito ou mais de infecções no ouvido em um ano; uso de antibióticos por dois meses ou mais sem o efeito desejado ou de antibiótico intravenoso para combater infecções; abscessos freqüentes; aftas ou lesões persistentes na pele após o primeiro ano de vida; dificuldade para ganhar peso ou crescer normalmente; duas ou mais infecções graves como meningite, osteomielite e septicemia ou história familiar de imunodeficiên- cia. "Disseminar informações para os médicos", afirma Magda, "é o principal caminho para transformar as imuno- deficiências primárias em uma questão de saúde pública, como aconteceu com a Aids". •

Os desenhos que ilustram esta reportagem foram feitos por crianças atendidas pelos pesquisadores no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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O CIÊNCIA

BIOLOGIA CELULAR

Cenas de um parasita Biomédico brasileiro descobre em Paris como o protozoário da malária se espalha pelo corpo

m sua voraz busca por sangue, a fêmea do per- nilongo Anopheles pode causar mais do que dor e coceira. Muitas vezes ela deixa no corpo de suas vítimas algumas dezenas de exemplares do parasita causador da

malária, uma das doenças infecciosas mais comuns no mundo, que a cada ano atinge cerca de 300 milhões de pes- soas e causa a morte de 1 milhão. Velha conhecida da humanidade - o grego Hi- pócrates, considerado o pai da medici- na, descreveu-a cerca de 2.500 atrás -, a malária começou a ser mais bem com- preendida no final do século 19, quando o cirurgião francês Charles Louis Al- phonse Laveran identificou o microor- ganismo que a causava, os protozoários do gênero Plasmodium. Mais de um sé- culo após a descoberta que contribuiu para Laveran receber o Nobel de Fisio- logia em 1907, experimentos feitos no Instituto Pasteur, em Paris, pelo biomé-

dico brasileiro Rogério Amino e pelo parasitologista alemão Friedrich Fris- chknecht revelam detalhes sobre o com- portamento desse parasita que podem reorientar o desenvolvimento de vaci- nas contra a malária.

Convidado por Frischknecht para fazer um pós-doutorado de dois anos na Unidade de Biologia e Genética da Malária do Pasteur, chefiada por Ro- bert Ménard, Amino decidiu verificar como o Plasmodium infecta os organis- mos vivos. Desde os tempos de Laveran se sabe que o parasita é injetado no cor- po dos mamíferos no momento da pi- cada do inseto, mas jamais se havia ob- servado o trajeto do protozoário até as células do fígado, onde se aloja e se mul- tiplica rapidamente antes de ocupar as células vermelhas do sangue. Amino e o parasitologista alemão contaminaram exemplares do pernilongo Anopheles stephensi, responsável pela transmissão da malária humana na Ásia, com o pro- tozoário Plasmodium berghei genetica- mente alterado para produzir uma pro-

teína verde fluorescente. Em seguida, deixaram os insetos picarem a orelha de ratos e camundongos anestesiados. Com o auxílio de um microscópio con- focal a laser, que permite observar estru- turas sob a pele em seres vivos e recons- truir as imagens em três dimensões, acompanharam passo a passo o que acontecia.

Já de saída surgiram novidades. Na picada, o inseto não injeta os exempla- res do protozoário no interior dos va- sos sangüíneos, como se supunha. A maior parte dos pernilongos lança de 10 a 20 parasitas misturados à saliva em uma camada mais profunda da pele - a 50 milésimos de milímetro da super- fície, próximo à região em que nascem os pêlos. "Esse resultado confirmou uma antiga suspeita", diz Amino, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Antes de investigar a malária, Ami- no estudava a transmissão de outro pro- tozoário - o Trypanosoma cruzi, causa- dor do mal de Chagas, transmitido pelo

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Como um saca-rolhas: Plasmodium move-se em círculos sobre uma lâmina de vidro (à esquerda) e perfura a pele de ratos (acima)

barbeiro - e sabia que a saliva do in- seto era inoculada na pele, e não dire- tamente nos vasos sangüíneos. Como contém compostos farmacologicamen- te ativos, a saliva do barbeiro facilitaria o acesso do inseto ao sangue. Se era as- sim com o barbeiro, Amino imaginou que o mesmo pudesse ocorrer com o Anopheles.

O mais importante, porém, ocorreu a seguir. Sete horas após o pernilon- go se alimentar na orelha dos roedores ainda havia protozoários no local da picada, segundo estudo publicado em 22 de janeiro na edição on-line da Na- ture Medicine. Metade dos parasitas praticamente não se desloca e morre no ponto em que foram depositados. O restante pode tomar dois caminhos, com destinos bem diversos. Sete de cada dez exemplares do Plasmodium se deslocam por meio de movimentos que lembram o de um saca-rolhas, per- furando as células que encontram pelo caminho, a uma velocidade de 1 micrô- metro por segundo. Parece pouco, mas

é o suficiente para alcançarem a cor- rente sangüínea poucos minutos após a picada.

Entre a vida e a morte - Uma vez no sangue, cada parasita - que até então se encontrava no estágio de esporozoíta, com formato alongado como o de uma banana - pode invadir o fígado, onde passa a se reproduzir rapidamente, ge- rando 30 mil cópias do protozoário. Agora com formato de pêra, chamado merozoíta, o parasita deixa o fígado e retorna ao sangue, onde infecta os gló- bulos vermelhos. É o início de outra etapa de multiplicação, que termina com a explosão das células sangüíneas e febres de até 40°C, capazes de deixar qualquer pessoa de cama, batendo os dentes de frio e com anemia.

As outras cópias do Plasmodium que escapam do local da picada seguem uma rota suicida jamais imaginada: atravessam as células da pele até atingir os vasos linfáticos, canais próximos aos vasos sangüíneos que, em vez de san-

gue, transportam linfa, um líquido es- branquiçado rico em gorduras, proteí- nas e células de defesa do organismo. Conduzidos pela linfa até os linfono- dos, pequenos gânglios com grande concentração de células de defesa cha- madas linfócitos, esses protozoários en- contram seu destino final. A maior par- te é destruída em até quatro horas. Uns poucos exemplares sobrevivem por até 24 horas e amadurecem, assumindo a forma correspondente à que adquirem no fígado, antes de morrerem. "Essa descoberta é importante porque é no sistema linfático que é produzida a res- posta imunológica do organismo", diz Amino. "Sempre que se avança na bio- logia, uma aplicação surge mais cedo ou mais tarde", comentam Victor e Ruth Nussenzweig, casal de pesquisa- dores brasileiros que trabalha no de- senvolvimento de uma vacina contra a malária na Universidade de Nova York, Estados Unidos. •

RICARDO ZORZETTO

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iT CIÊNCIA

Ataque duplo

Associação de quimioterapia e células-tronco adultas ajuda no controle do diabetes juvenil

sar o termo cura é exagerado e prematuro, mas um tratamento experimental, que ministra altas do- ses de quimioterapia seguidas de um transplante de células-tronco adultas originárias da medula óssea do próprio paciente, obteve resultados animadores no controle do diabetes melito do tipo 1, também cha- mado de juvenil ou insulino-dependente, doença imunológica que atinge cerca de 1 milhão de brasilei- ros. Dos 11 pacientes, todos adultos, submetidos aos dois procedimentos no Centro de Terapia Celular (CTC), da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligada à Universidade de São Paulo, dez mostraram progressos significativos: oito se livraram da necessi- dade diária de tomar insulina - um deles permanece nessa saudável condição desde março de 2004, há quase dois anos - e dois passaram a receber apenas metade da dose desse hormônio antes necessária ao controle da doença. "Não podemos falar em cura", pondera o imunologista Júlio César Voltarelli, que encabeça essa linha de pesquisa. "Não sabemos se os

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efeitos benéficos são duradou- ros, se vão persistir por três, quatro ou cinco anos."

Apenas um doente não apre- sentou melhora, justamente o primeiro que foi submetido ao esquema terapêutico alternativo, ainda em novembro de 2003. Os pesquisado- res acreditam que esse caso não se com- portou da mesma forma que os demais porque foram usados corticóides para prevenir as reações alérgicas aos medi- camentos utilizados no transplante e, sabe-se hoje, esse tipo de droga não dá bons resultados em diabéticos. Os de- mais pacientes receberam outras classes de medicamentos, aparentemente mais eficazes nesses casos.

Mesmo que os benefícios da nova abordagem terapêutica persistam a longo prazo, dificilmente o tratamento se consagrará como a cura da doença. O procedimento é agressivo, demorado (prolonga-se por uns três meses) e mui- to caro. A quimioterapia mais o trans- plante de células-tronco adultas são de- morados e têm um custo estimado de pelo menos R$ 30 mil e, segundo Volta- relli, não poderiam ser adotados como a terapia padrão para cuidar de todos os doentes com esse tipo de diabetes.

"De qualquer forma, as pesquisas apontam um caminho que podemos perseguir para combater o mecanismo que causa o diabetes do tipo 1", afirma Marco Antônio Zago, coordenador do CTC de Ribeirão Preto, um dos dez Cen- tros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPÈSP. Como o lúpus, a esclerose múltipla e outras en- fermidades, o diabetes do tipo 1 é uma doença auto-imune, diagnosticada em geral na infância ou na adolescência. Em outras palavras, sua causa primária se deve ao mau funcionamento das cé- lulas de defesa do próprio organismo.

W sistema imunológico passa a destruir as células beta do pâncreas, responsáveis pela fabricação da insulina, cujo papel central é retirar a gli- cose do sangue. Sem capa-

cidade de produzir naturalmente esse hormônio regulador da entrada de açúcar nas células, o diabético juvenil torna-se refém de injeções diárias de insulina.

A abordagem terapêutica proposta pelos pesquisadores brasileiros tem como objetivo debelar o processo de ataque inflamatório ao tecido do pân- creas com altas doses de quimioterápi- cos imunossupressores assim que se descobre o diabetes juvenil (todos os pacientes que participam do estudo do CTC tinham recebido o diagnóstico da doença havia no máximo seis sema- nas). No estágio inicial do diabetes do tipo 1, dizem os cientistas, ainda resta uma pequena quantidade de células beta capaz de gerar insulina, que, se for preservada, e desde que se tenha venci- do a disfunção imunológica, poderá se multiplicar e devolver ao organismo a capacidade de gerar insulina.

Transplante - Não se deve confundir o papel das células-tronco adultas na terapia alternativa. Elas entram no tra- tamento porque a quimioterapia em- pregada é tão agressiva que, além de atacar a causa da inflamação imuno- lógica, desmantela todo o sistema de defesa e destrói a medula óssea do dia- bético, como nos tratamentos mais tóxicos contra certos tipos de câncer. Por isso, os médicos recorrem ao transplante de células-tronco, que possibilita ao doente reconstituir a sua medula e também o seu sistema imu- nológico. Não se descarta totalmente a hipótese de as células-tronco em si

exercerem algum papel favorável à multiplicação das células beta remanes- centes do pâncreas. Mas, definitiva- mente, não é esse raciocínio que rege o seu emprego na terapia experimental contra o diabetes juvenil. "Nossa idéia é atuar quimicamente o mais cedo pos- sível para preservar a capacidade natu- ral do organismo de gerar células beta e usá-la contra a doença", explica Vol- tarelli. "Usamos as células-tronco com o intuito de recompor a medula óssea dos pacientes."

Nada garante que a ação benéfica do tratamento contra o diabetes do ti- po 1 não seja passageira. Como no ca- so do câncer, é prudente esperar cinco anos sem a doença para se pronunciar a palavra cura. Ainda assim, mais uma vez como ocorre com alguns tumores, mesmo depois de transcorridos 60 meses, não há garantias de que outro ataque imunológico não possa voltar a ocorrer, desencadeando novamente a destruição progressiva das células be- ta. É verdade que, em tese, se o pacien- te ainda estiver bem clinicamente, os médicos poderiam recorrer de novo à quimioterapia e ao transplante de cé- lulas-tronco para combater o diabetes.

Mesmo com essas restrições, os re- sultados obtidos são suficientemente encorajadores para estimular a conti- nuidade dessa linha de pesquisa clíni- ca. O próximo passo dos pesquisado- res do CTC - que também contam com apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Con- selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Sistema Ünico de Saúde (SUS) - talvez seja testar a candidata à terapia em cri- anças que acabam de receber o diag- nóstico de diabetes do tipo 1. •

MARCOS PIVETTA

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Q CIÊNCIA

FISIOLOGIA

Energia extra sob a pele Componente da bile aciona cadeia de reações químicas nos músculos que evita obesidade

CARLOS FIORAVANTI

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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No final de 1998, poucos meses depois de instalar-se como professor visi- tante em um dos laboratórios da Universidade Harvard, Estados Uni- dos, o médico Antônio Bianco en- controu em músculos de primatas, incluindo os seres humanos, a mes- ma proteína com que havia trabalha-

do em ratos durante 15 anos na Universidade de São Paulo (USP). Trata-se da D2, como é chamada a enzima que ativa o principal hormônio produzido pela glându- la tireóide e, a partir daí, acelera as reações que aumen- tam o consumo de oxigênio - ou, em termos práticos, a liberação de calor.

Sete anos mais tarde, já ocupando o cargo de diretor de pesquisas do laboratório de tireóide do Hospital Brig- ham and Women's em Boston, afiliado à Universidade Harvard, Bianco descobriu dois mecanismos pelos quais o organismo pode regular a produção e a atividade des- sa proteína. Essas descobertas, publicadas em dois arti- gos recentes da Nature e da Nature Cell Biology, podem levar a novas abordagens terapêuticas para combater a obesidade, freqüentemente associada ao diabetes tipo 2 - um sério problema para cerca de 300 milhões de pes- soas e a causa de morte de 3 milhões de indivíduos por ano. À medida que sirvam como base para novos medi- camentos, esses achados também podem contribuir para o tratamento de outras centenas de milhões de pes- soas que sofrem de disfunções da tireóide.

Um dos mecanismos recém-descobertos que indu- zem a produção da D2 põe em cena a bile, um líquido esverdeado produzido diariamente durante a digestão que atraiu o interesse, primeiramente, dos filósofos, co- meçando pelos gregos. Um deles, Hipócrates, dividia os fluidos corpóreos em quatro humores - bile negra, bile amarela, fleuma e sangüíneo -, equiparados a quatro elementos universais - terra, água, fogo e ar - e às esta- ções do ano. Para Hipócrates, as doenças resultavam de um desequilíbrio entre esses quatro humores.

A despeito dessa popularidade, os sais biliares, prin- cipal componente da bile, não ganharam muita atenção durante séculos. Admitia-se que participassem exclusi- vamente da absorção de lípides - ou gorduras - e da eli- minação do colesterol. Só há três décadas é que se des- cobriu que poderiam ter outras tarefas no organismo. De fato, mostrou-se que agem em outras reações quími- cas - e não só no fígado, onde são produzidos, ou no in- testino, onde atuam na absorção das gorduras, mas tam- bém em outras partes do corpo. Lentamente, deixaram de ser apenas um agente emulsificador - uma espécie de detergente - de gorduras e ganharam status de hormô- nios multitarefas.

Em um estudo publicado em janeiro de 2006 na Na- ture, Bianco e pesquisadores de institutos da França e do

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Japão descrevem os resultados de um experimento que demonstra os efeitos, em camundongos, de uma dieta rica em sais biliares. Um deles é o aumento da atividade da enzima D2 no tecido adiposo marrom - um tecido especiali- zado na produção de calor em peque- nos roedores - e, como também se demonstrou, no tecido muscular es- quelético humano. Esse fenômeno não foi verificado nos roedores em que se bloqueou a ação do gene que leva à produção da enzima D2. Depois de ter sido acionada pelos sais biliares, a D2 acelera o metabolismo celular, com maior gasto energético, evitando a obe- sidade e o diabetes tipo 2, causado por uma deficiência da atuação da insulina.

Os pesquisadores con- cluíram que os ácidos biliares se ligam a mo-

^^^ léculas específicas - os receptores - da super- fície das células de gor- dura. Em resposta, au- menta a produção intracelular de molé- culas sinalizadoras que acionam o gene da D2,

uma sigla que significa desiodase das iodotironinas tipo 2. Esse é só o meio do caminho. Por sua vez, a D2 conver- te a tiroxina ou T4, um pró-hormônio da tireóide, no hormônio T3. É o T3 que inicia uma série de reações quí- micas que aumentam a atividade me- tabólica dos músculos e os fazem fun- cionar como o radiador dos carros, liberando calor. "Trata-se de um meca- nismo muito seletivo, que só funcio- na em células como as dos músculos esqueléticos, que contêm ao mesmo tempo os receptores específicos dos ácidos biliares e a D2", diz Bianco. "Como resultado, aumenta o gasto de energia, sem modificar os níveis de hormônios tireoideanos na circulação ou os processos metabólicos em outras células." Segundo ele, esses estudos de- monstram o papel essencial dos ácidos biliares e dos hormônios da tireóide na regulação do organismo, também cha- mada de homeostase, "além de mos- trar quanto a medicina dos gregos an- tigos já era sofisticada".

Se esse primeiro mecanismo de produção da D2 implica a ativação do gene dessa enzima, o segundo mecanis-

mo - descrito por Bianco em julho do ano passado em um artigo na Nature Cell Biology - depende essencialmente de uma proteína conhecida pela sigla WSB1, que, como ele verificou, contro- la o tempo de vida da D2. "Após reco- nhecer e se ligar à D2, a WSB1 auxilia na ligação de outra proteína, a ubiqui- tina, à D2", explica Bianco. A estrutura da ubiquitina já havia sido caracteriza- da há três décadas, mas sua função só foi esclarecida recentemente. Em 2004, Aaron Ciechanover e Avram Hershko, ambos do Instituto de Tecnologia Tech- nion, de Israel, dividiram o Prêmio No- bel de Química com Irwin Rose, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, por terem identificado os me- canismos de degradação de proteínas, que são destruídas após se ligarem com a ubiquitina.

Não é só a D2 que está marcada para morrer após ganhar uma ubiqui- tina - a maioria das proteínas produzi-

das pelas células tem o mesmo destino. "Uma característica muito importante desse mecanismo é que ele é regulável e altamente específico, pois exige a inte- ração de uma ligase, tal com a WSB1, que faz a ligação entre a ubiquitina e a proteína que será marcada para degra- dação", explica Bianco. A ubiquitina inativa a D2 e faz com que ela seja des- truída em alguns minutos por outras enzimas. Por outro lado, uma D2 à qual não se ligou nenhuma ubiquitina per- manece na célula por muitas horas.

Bianco mostrou também como uma outra proteína, a VDU1, reconhe- ce, se liga e salva a D2 da degradação, retirando-lhe a ubiquitina. "É como um interruptor", compara. Examinan- do esse mecanismo de liga e desliga, ele concluiu que, inibindo-se a ação da WSB1, a D2 poderia permanecer ativa por mais tempo - normalmente, sua meia-vida, como é chamado o tempo no qual se desfaz metade da quantida-

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de de moléculas, varia de dez minutos, quando conjugada à ubiquitina, a cerca de cinco horas.

O controle desse mecanismo pode- ria não só acelerar a queima de gordu- ras. Por aumentar ou diminuir a con- versão do pró-hormônio T4 para o hormônio T3, representaria também uma forma de ajudar a regular a quan- tidade de hormônio tireoideano em circulação no organismo. A falta de T4 e, por conseqüência, de T3, que carac- teriza o hipotireoidismo, causa fadiga, perda de peso e de memória, intole- rância ao frio, depressão ou irritabili- dade, entre outros sintomas; seu exces- so, o hipertireoidismo, acelera o ritmo cardíaco, provoca tremores e causa emagrecimento. No hipotireoidismo, o organismo procura aumentar a ativi- dade da D2, maximizando a conversão de T4 a T3. Essa transformação do pró-hormônio no hormônio ativo só é possível porque, nessas circunstâncias,

a WSB1 deixa de se ligar com a D2, maximizando a produção de T3, como Bianco demonstrou por meio de expe- rimentos em cultura de células e em camundongos. Já no hipertireoidis- mo, ocorre o contrário: a WSB1 parece procurar a D2 e, com mais intensida- de, adiciona-lhe uma ubiquitina, evi- tando assim que ainda mais hormônio seja produzido.

À procura de uma semelhante - Bian- co acredita que seja realmente viável a utilização desse conhecimento para ge- rar novas formas de tratamento médi- co - e já obteve nos Estados Unidos o registro da patente sobre o mecanismo de ligação dos ácidos biliares com o re- ceptor das células musculares, que ativa a D2 e pode ser utilizado para trata- mento contra diabetes e obesidade. Ele pretende encontrar uma molécula se- melhante à dos ácidos biliares, que se li- gue ao receptor celular e ative a D2 e a

produção do hormônio T3 com o mí- nimo possível de efeitos colaterais. "O tratamento prolongado com sais bilia- res não é recomendado, por causa de efeitos adversos", alerta. "Estamos em contato com indústrias farmacêuticas, que se mostraram muito interessadas em licenciar nossa patente."

Ele não é o único brasileiro traba- lhando no laboratório de tireóide do Hospital de Boston que abriga essas pesquisas. Nos últimos anos passaram por lá, sob sua orientação, Rogério Ri- beiro e Cyntia Curcio, pós-graduan- dos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Luciane Capelo, da USP, e Miriam Ribeiro, professora de fisiologia da Universidade Presbite- riana Mackenzie, de São Paulo. Neste momento estão lá Marcelo Christoffo- lete e Beatriz Freitas, da Unifesp, e o pós-doutorando Wagner Seixas da Sil- va, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). •

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O CIÊNCIA

ECOLOGIA

entre folhas secas

Normalmente lembradas pela maioria das pessoas apenas quando infestam o açucareiro ou o apare- lho de som, as formigas ocupam o planeta há pe- lo menos 100 milhões de anos, de acordo com

os fósseis mais antigos. Algo que pode soar ainda mais surpreendente: são componentes essenciais dos ecossiste- mas e têm uma importância ecológica maior do que se poderia esperar, além de apresentar uma elevada riqueza e alta diversidade de espécies, todas so- ciais. O maior estudo sobre esses inse- tos já realizado na Mata Atlântica brasi- leira, que reuniu especialistas de 11 instituições do país e colaboradores do exterior, comprova que as formigas são um dos principais indicadores da di- versidade biológica de uma região: quanto mais espécies de formigas, mais espécies provavelmente haverá de ou- tros animais e de plantas.

A equipe coordenada por Carlos Roberto Brandão, biólogo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), identificou até agora 410 espécies de formigas da Mata Atlântica, mas es- tima-se que essa floresta litorânea possa abrigar até mil espécies - mundialmente, de um total estimado em 20 mil espé- cies, já foram descritas cerca de 12 mil. "Com base nesses dados", afirma Bran- dão, "a Mata Atlântica pode ser vista

Biólogos identificam padrões de comportamento de formigas da Mata Atlântica

ALESSANDRA PEREIRA

FOTOS LARA GUIMARãES

como um dos ambientes mais ricos em espé- cies de formigas do mundo". Há regiões com muito menos: na Grã-Breta- nha, por exem- plo, vivem ape- nas 36 espécies de formigas.

"As formi- gas vivem em

colônias que podem abrigar de poucos a milhões de indivíduos, o que as colo- ca como um dos animais terrestres mais abundantes em regiões tropicais e sub- tropicais", diz ele. Estudos feitos na Amazônia indicam que formigas e cu- pins, outro grupo de insetos sociais, re- presentam cerca de 70% da biomassa animal terrestre, medida a partir do peso seco. Em outros termos, as popu- lações desses insetos que medem de 1 milímetro a 4 centímetros e individual- mente não pesam mais de décimo de grama, se pudessem ser reunidas e pesa- das, apresentariam uma massa de maté- ria orgânica mais elevada que a de todos os outros invertebrados e vertebrados terrestres juntos. Segundo Brandão, al- guns grupos animais, em especial be- souros e ácaros, são ainda mais ricos em espécies, mas geralmente são solitários e, portanto, cada espécie é representada

por muito menos indivíduos que as es- pécies sociais.

Durante dois anos, de 1999 a 2001, os biólogos percorreram 26 áreas de Mata Atlântica preservada em dez esta- dos - Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Coletaram 1.400 amostras de 1 metro quadrado da camada mais superficial do solo e da cobertura de folhas secas, a chamada serapilheira, onde se concen- tram 60% das espécies conhecidas de formigas. Em geral não se afastando mais do que dois metros de seus ninhos, esses insetos habitam os espaços entre as folhas que caem no solo, protegidas contra o ataque de outros animais e, ao mesmo tempo, encontrando aí seus ali- mentos preferidos, como os ácaros. Duas das espécies de formigas mais co- muns na Mata Atlântica são a Pheido- le flavens, com operárias de apenas 1 milímetro de comprimento, encontra- da em 842 das 1.400 amostras - ou se- ja, quase em 2 de cada 3 metros estuda- dos -, e a Pyramica denticulata, também milimétrica, com operárias dotadas de mandíbulas muito compridas e cabeça em forma de coração, presente em 780 amostras. "Provavelmente", diz Brandão, "essas duas espécies estão entre os ani- mais mais comuns da Mata Atlântica".

Analisando as informações que re- sultaram desse longo trabalho de cam- po, além de dezenas de prováveis espé-

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cies novas, em especial em gêneros bastante raros como Asphinctanil- loides e Cryptomyrmex, os pesqui- sadores encontraram formas refi- nadas de organização da fauna de formigas, vistas normalmente como integrantes de sociedades simples, com machos, que atuam somente na reprodução, e fêmeas, por sua vez divididas em rainhas, operárias e soldados, que são operárias mo- dificadas que executam os trabalhos mais pesados. O estudo das ope- rárias, mais abundantes e mais facilmente encontradas fora dos ninhos, mostrou uma inespera- da riqueza de comportamentos.

Foram identificados nove pa- drões distintos de comportamento e hábitos. Normalmente, os pes- quisadores reconhecem esses pa- drões comportamentais a partir de informações prévias sobre os hábi- tos de cada espécie. Rogério Rosa da Silva, um dos biólogos da equi- pe, examinou as espécies que vi- viam em quatro das 26 localidades estu- dadas e desenvolveu outra abordagem. Nasceu daí uma proposta de classifica- ção dos comportamentos das formigas de solo, que pode ser válida em toda a Mata Atlântica e representar de modo mais preciso o que outros especialistas faziam de modo subjetivo.

Mesmo que a composição de espécies varie de uma localidade para outra,

H a estrutura do conjun- to das comunidades é constante: as formigas sempre se organizam de acordo com os mesmos padrões de comporta- mento, chamados guil- das, que mostram como cada espécie atua no

ambiente. Onde existem formigas exis- tem as nove guildas, formadas por cin- co categorias básicas, uma delas com quatro subconjuntos. Os grupos bási- cos são: as predadoras generalistas, que caçam qualquer tipo de presa; as preda- doras especializadas, que coletam pre- sas específicas como ovos de outros insetos ou mesmo outras formigas; as cultivadoras de fungos, que levam para o ninho folhas, pedaços de plantas e carcaças de outros insetos, que são usa-

dos para alimentar a colônia de fungos que cresce no fundo do ninho e forne- ce açúcar e proteínas para as formigas; e, por fim, as generalistas, que coletam seiva de plantas e pequenos animais, dos quais as formigas se alimentam. As predadoras generalistas é que são agru- padas em quatro conjuntos: as que co- letam apenas o que está sobre o solo, chamadas epigéicas; as que visitam tam- bém as camadas superficiais do solo, ou hipogéicas, e as espécies com operárias relativamente grandes e as relativamen- te pequenas, distinguindo-se, neste ca- so, pelo tamanho da presa que coletam. Também existem, mas não foram cole- tadas, seis outras guildas: duas de espé- cies nômades, que se deslocam sob o solo, três de arborícolas e as exclusiva- mente subterrâneas, que vivem em ni- nhos fixos.

Competição - "Essa classificação per- mite uma análise mais fina da estrutu- ra das comunidades de formigas", diz o biólogo Rogério Silva, do Museu de Zoologia da USR Cada lugar comporta apenas um número limitado de espécies em cada categoria de comportamento ou guilda: em uma região em que po- dem viver apenas quatro ou cinco espé- cies de formigas predadoras jamais se encontrarão 20 espécies predadoras.

"Esse limite deriva de competição entre espécies, já que formigas predadoras grandes disputam apenas com outras predadoras grandes um número finito de presas", diz Brandão. "Guildas, nesse caso, representam os cenários da com- petição." Como se demonstrou que a fauna de formigas da Mata Atlântica deve ser composta sempre das mesmas 15 guildas, pode-se agora avaliar com mais precisão o estado de conservação de uma mata, algo que era feito apenas por meio de listagens comparativas de nomes de espécies.

A regularidade com que se encon- tram esses padrões de comportamento leva a concluir que as alterações impos- tas pelas atividades humanas, como o desmatamento de um trecho da flores- ta, pode causar desequilíbrios entre es- ses grupos e a conseqüente superpo- pulação de alguns deles, com prejuízos para as próprias comunidades e para os animais e plantas que dependem delas para sobreviver. "Elas mantêm tantas relações mutualísticas que é possível concluir que se em um lugar há mais formigas também existem mais de ou- tras espécies", diz Brandão.

No Cerrado, 70% das plantas apre- sentam glândulas produtoras de néc- tar, os chamados nectários, que atraem as formigas. Ao coletar o néctar, as for-

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migas protegem as plantas, evitando que outros insetos venham se alimen- tar da própria planta. Elas também con- trolam a população de outros insetos e de outros pequenos invertebrados, já que muitas espécies são predadoras, enquanto outras dispersam sementes. As relações das formigas com as plan- tas podem ser positivas, quando elimi- nam animais herbívoros, em troca de néctar, ou negativas, quando implan- tam colônias de insetos capazes de ob- ter seiva, cujo excesso elas coletam, em troca da proteção a esses insetos, como cochonilhas, pulgões e outros parentes de cigarras.

Indicadores - O primeiro estudo a mostrar que as formigas serviriam como um indicador da diversidade de outras espécies animais foi feito por pesquisadores ingleses e norte-ameri- canos, por meio da comparação de oito grupos de animais na reserva florestal de Mbalmayo, em Camarões, na África, e publicado em 1998 na Nature. Nasce- ram daí outros estudos que podem aju- dar a nortear a escolha de áreas a serem preservadas e dimensionar o tamanho mínimo de novas áreas de vegetação na- tiva a serem preservadas.

Essa possibilidade já está sendo pos- ta em prática. Segundo Brandão, a Se-

cretaria de Planejamento e Meio Am- biente do Estado de Tocantins pretende utilizar os dados de um levantamento sobre a diversidade de formigas no es- tado para selecionar áreas prioritárias para conservação do Cerrado. No ano passado, no município de Craolândia, em Tocantins, Rogério Silva encontrou um gênero novo de formiga, ainda sem nome oficial.

Do levantamento sobre as formigas da Mata Atlântica participaram tam- bém pesquisadores do Instituto Bioló- gico de Ribeirão Preto, Universidade de

Riqueza e diversidade de Hymenoptera e Isoptera ao longo de um gradiente latitudinal na Mata Atlântica

MODALIDADE Projeto Temático vinculado ao Programa Biota-FAPESP

COORDENADOR CARLOS ROBERTO FERREIRA BRANDãO - Museu de Zoologia da USP

INVESTIMENTO R$ 925.901,82 (FAPESP) R$ 30.000,00 (CNPq)

Mogi das Cruzes, Universidade Es- tadual de Santa Cruz e da Comis- são Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, em Ilhéus (BA), e as universidades federais de São Car- los (SP), Rural do Rio de Janeiro (RJ), Viçosa (MG), Espírito Santo, Paraíba e Pernambuco. Em con- junto, ajudaram também a mudar algumas idéias bem arraigadas. Há quatro décadas se acreditava

que o número de espécies de animais e de plantas variava segundo a latitu- de: quanto mais próximo do equador, maior seria a diversidade biológica. Não foi o que se viu. A maior diversidade de espécies foi encontrada em trechos de Mata Atlântica do norte do Rio de Ja- neiro até o sul do Espírito Santo, com cerca de 10% mais espécies do que lo- calidades mais ao norte, que, acredita- va-se, deveriam abrigar uma diversida- de maior. Nessa faixa entre o Rio e o Espírito Santo, relata Brandão, foram coletadas até 140 espécies - apenas das que vivem sobre o solo, em uma área de 1 quilômetro quadrado.

Em paralelo à demonstração da di- versidade de espécies da Mata Atlânti- ca e da importância desses insetos no apoio à definição de estratégias de pre- servação ambiental, veio à tona mais uma característica peculiar desses in- setos de hábitos tão complexos. Em um artigo publicado em janeiro na Natu- re, uma equipe coordenada por Nigel Franks e Tom Richardson, da Universi- dade de Bristol, na Inglaterra, mostrou que as formigas são capazes de ensinar a outras da colônia como buscar ali- mento. Talvez seja a primeira demons- tração formal de ensino nos animais, uma capacidade até então atribuída so- mente aos seres humanos. •

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T CIÊNCIA

FÍSICA

Choque de partículas Experimentos em acelerador da USP revelam comportamento de núcleos exóticos

A aíram os primeiros resultados cien- wÊ tíficos originais dos experimentos

^r feitos em São Paulo com uma má- quina que está revelando um pou-

^^ co mais do comportamento de wA ■ partículas atômicas chamadas nú- v| W cleos exóticos, dotados de prótons

ou nêutrons a mais que os núcleos estáveis dos mesmos elementos químicos. No equipamento conhecido como Ribras, sigla em in- glês de Feixes de íons Radioativos, instalado há dois anos no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), núcleos exóticos do elemento químico hélio - o hélio 6 - colidiram com um alvo fixo, formado por uma película de alumínio puro. Os físicos verificaram que a probabilidade de esse

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núcleo exótico de hélio quebrar-se, após colidir com núcleos de alumínio, é somente de 10% a 20% maior que a de outras partículas que não apresentam uma nuvem pouco densa formada por dois nêutrons que giram ao redor do centro - o halo, típico do hélio 6.

Dessas colisões, que duram menos de um bilionésimo de segundo, surgem informações que ajudam a entender mais profundamente as reações que originaram os elementos químicos há cerca de 14 bilhões de anos, na forma- ção do Universo, e as que ainda hoje ocorrem no interior de estrelas como o Sol, das quais resultam luz e calor para a Terra. Pode-se também conhecer me- lhor os limites das forças que agem en- tre as partículas elementares da matéria.

Grandalhões - Algumas espécies de núcleos exóticos são muito maiores que os núcleos com o mesmo número de partículas. É o caso do hélio 6, for- mado por dois prótons (partículas com carga elétrica positiva) e quatro nêu- trons (sem carga elétrica) - dois nêu- trons a mais que o hélio 4. São esses dois nêutrons extras que formam o halo, uma espécie de anel com um diâ- metro igual ao do núcleo do chumbo 208, com 82 prótons e 126 nêutrons.

Nos últimos anos, em aceleradores de partículas da França, da Bélgica ou dos Estados Unidos, os físicos estudam como os nêutrons do halo podem in- fluenciar a colisão com outros núcleos. Nesses experimentos, o hélio 6 colide com núcleos dotados de uma massa

muito maior que a do alumínio 27, como o urânio 238 e o chumbo 208. Nesses casos, segundo Alinka Lépine- Szily, pesquisadora do Instituto de Físi- ca da USP, o intenso campo elétrico dos núcleos mais pesados repele o hélio 6, já que os dois núcleos apresentam car- ga positiva, e o hélio 6 se desfaz antes mesmo da colisão nuclear.

Em 2001 e 2002, Alinka integrou a equipe que preparou e analisou alguns desses experimentos, realizados no ace- lerador do Centro de Pesquisa de Cí- clotron em Louvain-la-Neuve, na Bél- gica. Esses trabalhos mostraram que os núcleos exóticos, apesar de abrigarem partículas extras e se quebrarem facil- mente durante a colisão, fundem-se com outros núcleos do mesmo modo que os núcleos normais. Detalhada em um artigo publicado em outubro de 2004 na revista Nature, essa conclusão contrariou não só a intuição mas tam- bém os modelos teóricos, segundo os quais os núcleos exóticos seriam doa- dores naturais de prótons ou nêutrons.

De volta ao Brasil, Alinka planejou outro tipo de experimento com os outros dois pesquisadores do Ribras, Rubens Lichtenthaler Filho e Valdir Guimarães, e com um físico nuclear experimental, Paulo Silveira Gomes, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Escolhendo como alvo para o hélio 6 um núcleo atômico bem mais leve, o alumínio 27, cujo núcleo é for- mado por 13 prótons e 14 nêutrons, conseguiram reduzir a barreira cou- lombiana, definida como potencial elé-

trico repulsivo entre os núcleos em co- lisão, que faz os núcleos se quebrarem antes da colisão nuclear.

"Esses foram os primeiros experi- mentos de colisões de núcleos exóticos com alvos leves em baixas energias, próximas da barreira coulombiana", diz Alinka. "Queríamos descobrir qual a probabilidade de o hélio 6 se quebrar ao colidir com um alvo com um campo eletromagnético bem mais tênue." Era uma forma de fazer o núcleo exótico chegar intacto perto do alvo a ponto de ser atraído por uma das forças elementa- res, a interação nuclear forte, que man- tém as partículas próximas entre si.

Durante uma semana, em dezembro de 2004, os físicos da USP, em colabo- ração com o grupo de Gomes, traba- lharam dia e noite nesses experimen- tos. Criavam feixes de íons (partículas eletricamente carregadas) no oitavo andar da torre que abriga o acelerador de partículas da USP, o Pelletron, inau- gurado em 1972. Os feixes são acelera- dos, descem à superfície e são desviados para vários equipamentos - um deles é o Ribras, com 7 metros de comprimen- to. De cada um milhão de núcleos de hélio 6, só aproximadamente um nú- cleo seguia exatamente em direção do alvo, vencia a barreira coulombiana e colidia com o núcleo de alumínio. Em conseqüência do choque, poderia se fragmentar, às vezes perdendo os dois nêutrons mais afastados do coração do núcleo, que poderiam - ou não - ser incorporados pelo alvo. Outra possibi- lidade seria que, após a colisão, se des-

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viasse como se nada tivesse aconteci- do, como uma bola de bilhar batendo em outra.

o s físicos verificaram en- tão que a probabilidade de o hélio 6 quebrar-se é maior que a de outras partículas normais, cujo comportamento já ha- via sido caracterizado por meio de experimen- tos feitos por outros grupos de pesquisa nos últimos anos. Esses re-

sultados serão anunciados em março em um congresso internacional sobre fusão nuclear e constituem a matéria- prima da tese de doutoramento de uma das alunas de Alinka, Elisangela Benja- min, apresentada no final de janeiro.

Compensação - Foi o físico teórico Mahir Saleh Hussein, também do Insti- tuto de Física da USP, quem concluiu que o hélio 6, por causa dos dois nêu- trons do halo, que não se quebra tão facilmente, apresenta uma chance de fragmentar-se de 10% a 20% maior que os núcleos normais. Porém, os nú- cleos de hélio 6 também se preservam porque são grandalhões. Fragilidade e gigantismo atuam inversamente, uma característica compensando a outra, por causa do Princípio de Heisenberg, uma das leis básicas da mecânica quân- tica, a área da física que procura expli- car o comportamento muitas vezes aparentemente sem regras das partícu-

las atômicas. "Por causa do Princípio de Heisenberg", diz Hussein, "partículas fracamente ligadas ocupam áreas maio- res no espaço". Segundo ele, esse meca- nismo de compensação ajuda a preser- var a integridade do núcleo.

"Seria ótimo se houvesse aumento na fusão quando usamos núcleos exóti- cos", diz Hussein. Se a fusão aumentas- se, os núcleos exóticos poderiam ser vistos como doadores de nêutrons e prótons - algo que facilitaria não só a pesquisa como também as aplicações da física para diagnósticos e tratamen- tos médicos. Em um artigo de 111 pá- ginas publicado neste mês na revista Physics Reports, Hussein e outros dois físicos teóricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Canto e Raul Donangelo, além de Gomes, da UFF, apresentam a teoria que ajuda a

O PROJETO

Estudo de núcleos exóticos com feixes radioativos produzidos no Laboratório Pelletron-Linac do IF/USP

MODALIDADE Projeto Temático - Programa Núcleos de Excelência (Pronex)

COORDENADORA ALINKA LéPINE-SZILY - IF/USP

INVESTIMENTO

R$ 585.000,00 (FAPESP e CNPq)

explicar resultados experimentais obti- dos nos aceleradores de partículas da Bélgica, da França, dos Estados Unidos, do Japão, da Itália e do Brasil.

Nesses equipamentos procura-se reproduzir as reações que originaram o Universo e os próprios seres humanos. Aproximadamente 80% de nosso cor- po é constituído de água, formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxi- gênio - todos bastante antigos. O nú- cleo do hidrogênio, com apenas um próton, formou-se minutos depois do Big Bang, a explosão que teria origina- do o Universo, há 14 bilhões de anos. Já os átomos de hidrogênio - um elétron girando ao redor de um próton - se constituíram 400 mil anos depois. E só um bilhão de anos mais tarde, à medida que o Universo esfriava e se expandia, começaram a se formar - no interior das estrelas, como resultado da fusão de elementos químicos mais leves - o oxi- gênio, que constitui 61% da massa do organismo humano, o carbono, que res- ponde por 23%, e todos os outros ele- mentos químicos mais pesados, como nitrogênio, cálcio, fósforo e ferro. Inicial- mente soltos no espaço, aos poucos se uniram em nuvens que se adensaram tanto a ponto de originarem planetas como a Terra e suas formas de vida.

Ainda hoje se formam hidrogênio e hélio no Sol, oxigênio e carbono em es- trelas maiores, do tipo nova, e elemen- tos químicos ainda mais pesados, como sódio, urânio e chumbo, nas explosões de supernovas, com uma massa milha- res de vezes maior que a do Sol. Equi-

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pamentos como o Ribras funcionam como se fossem uma estrela do tipo nova, ao formar núcleos ricos em pró- tons e nêutrons de médio porte. Além do hélio 6, os físicos da USP já produ- ziram núcleos de lítio 8, com um nêu- tron a mais que o lítio normal, de berí- lio 7, com dois nêutrons a menos, e de boro 8, com dois neutrôns a menos que o boro normal. Jogando-os contra áto- mos estáveis e mais imponentes - como o vanádio 51, reproduzindo experimen- tos já feitos por outros grupos, e agora com o alumínio 27, como não havia sido feito -, descobrem como os núcleos exóticos podem se quebrar.

Outros experimentos deste tipo tal- vez demorem um pouco. Ainda que seja novo e se equipare a outros equipa- mentos avançados no exterior, o Ribras depende do Pelletron, um acelerador de partículas que necessita de constan- te manutenção. E já não é muito fácil encontrar peças de reposição, que de- pendem de importação, relata Valdir Guimarães enquanto mostra a sala de comando do acelerador, formada por um misto de equipamentos típicos dos anos 1970, ao lado de outros, mais re- centes. Logo depois dos experimentos com o hélio 6 o Ribras parou de funcio- nar porque uma peça do Pelletron que- brou. Os físicos acreditam que a peça será trocada e o Pelletron e todos os ou- tros equipamentos que ele atende vol- tarão ao normal ainda no primeiro se- mestre deste ano. •

CARLOS FIORAVANTI

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©CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

Gênese complexa Dois processos distintos, mas não excludentes, podem dar origem às galáxias elípticas

fom formas arredonda- das ou ovaladas que lembram uma bola lu- minosa, dotadas essen- cialmente de estrelas velhas e quase despro- vidas de gás e poeira cósmicos, as galáxias

elípticas são as mais antigas de que se tem notícia. As primeiras tomaram corpo provavelmente algumas cente- nas de milhões de anos após o Big Bang, a explosão primordial que, se- gundo a teoria mais aceita, criou o Universo 14 bilhões de anos atrás. Mas ainda é pequeno o conhecimento cien- tífico sobre os processos que origina- ram esse tipo de galáxia, menos abun- dante que as de formato espiral, como a Via Láctea e Andrômeda, ou as irre- gulares, como as Nuvens de Maga- lhães. Depois de analisar certas carac- terísticas químicas de uma amostra de 29 galáxias elípticas situadas no cha- mado Universo local, a uma distância máxima de 300 milhões de anos-luz da Terra, um grupo de astrofísicos brasi- leiros propôs um complexo quadro pa- ra explicar o nascimento das galáxias elípticas.

Por essa idéia, que foi exposta num artigo publicado em outubro de 2005 na revista científica Astrophysical Jour- nal Letters, os objetos desse tipo podem se formar de duas maneiras: pela lenta captura de galáxias menores ou de igual

tamanho, num pro- cesso denominado tec- nicamente Aglomera- ção Hierárquica; ou por meio de uma implosão bastante rápida de uma nu- vem de gás, num fenômeno conhecido como Colapso Mo- nolítico Dissipativo. Como os me- canismos não são excludentes, há ainda um cenário misto, em que as ga- láxias elípticas lançam mão das duas si- tuações anteriormente descritas para ganhar os seus contornos. Aliás, essa terceira via pode até ser a predominan- te. "Nossas observações suportam esse cenário híbrido em que ambos os me- canismos contribuem para a formação de galáxias elípticas", afirma Mareio Maia, do Observatório Nacional, do Rio de Janeiro, um dos astrofísicos en- volvidos nos estudos.

Se isso for verdade, cada galáxia te- ria uma história de vida muito particu- lar, de acordo com suas características, como maior ou menor presença de ga- ses e estrelas, ocorrência de fusões com outras galáxias e o ambiente na sua vi- zinhança. Não haveria uma regra geral regendo o nascimento dessas estruturas celestes. Pode-se dizer que, quando con- frontam as duas teorias, os cientistas estão tentando descobrir se as galáxias elípticas se originam de outras galáxias já formadas e de menor tamanho, ou se elas se formam pelo colapso de uma

grande nuvem primordial. A primeira situação é compatível com a hipótese da Aglomeração Hierárquica e a segunda com a do Colapso Monolítico. "Essa di- visão de cenários (sobre a formação de galáxias elípticas) é um pouco artifi- cial", diz a brasileira Cristina Chiapinni, do Observatório Astronômico da Uni- versidade de Genebra, na Suíça, outra autora do estudo. "Acredito que a res- posta esteja entre os dois extremos e é isso que aparentemente estamos vendo nos dados que publicamos."

Metal nas galáxias - No artigo cien- tífico, os pesquisadores mediram pela técnica de espectroscopia óptica a quantidade de um elemento químico, o magnésio, ao longo do eixo maior de quase 30 galáxias elípticas. Optaram por mensurar esse parâmetro a fim de testar as idéias postuladas por cada um

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Galáxias elípticas: formação a partir do colapso de nuvem gasosa ou da fusão com outras galáxias

dos mecanismos. Segundo a hipótese do Colapso Monolítico, as galáxias elípticas deveriam apresentar maior concentração de metais em sua zona central - que seria povoada por estrelas originadas de material gasoso enrique- cido com metais e ejetado por outras estrelas e supernovas - do que em sua periferia. Em termos técnicos, os astro- físicos dizem que, de acordo com esse mecanismo, as galáxias deveriam exibir um gradiente radial de metalicidade. Uma espécie de marca de nascença deixada por seu processo de formação. Esse modelo também advoga a idéia de que a maior parte das estrelas das galá- xias elípticas é muito antiga, tendo sido gerada num curto espaço de tempo, de maneira abrupta.

Para os defensores do mecanismo da Aglomeração Hierárquica, que tam- bém é usado para explicar a origem de

galáxias espirais e irregulares, não deve- ria existir variação radial da abundân- cia de certos elementos químicos em galáxias elípticas. E o motivo para sua não-ocorrência seria de fácil compreen- são: as galáxias desse tipo se origina- riam da junção de várias galáxias me- nores e, durante o processo de fusão, as estrelas ricas e as pobres em elementos químicos acabariam se misturando e o tal gradiente radial de metalicidade de- sapareceria. Nesse caso, o processo de nascimento de uma galáxia elíptica seria mais lento e gradativo, podendo ocorrer acréscimo de matéria em várias fases de sua vida.

Feitos os cálculos e as observações, os resultados finais apontaram para um quadro complexo e nuançado: um terço das galáxias estudadas parecia ter sido formado pela fusão de galáxias menores, um terço pelo mecanismo de

Colapso Monolítico e um terço por ambos os processos. "Queremos dobrar o tamanho da nossa amostra de galá- xias analisadas para termos mais da- dos sobre essa questão", afirma Maia. Outros parâmetros que possam dar pistas sobre a origem dessas grandes aglomerações de estrelas devem ser in- corporados aos novos estudos. "O tema é bastante interessante, está em efer- vescência e ainda está em aberto", co- menta o astrônomo Ricardo Ogando, que termina sua tese de doutorado so- bre o processo de nascimento das galá- xias elípticas no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janei- ro (UFRJ). "Temos a possibilidade de fazer uma contribuição de impacto e colocar mais algumas peças nesse que- bra-cabeça." •

MARCOS PIVETTA

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Biblioteca de

Revistas Científicas

disponível na internet

www.scielo.org

A 10a Reunião do Comitê Consultivo SciELO Brasil foi realizada na Bireme/OPAS/OMS, em novembro de 2005, e teve como resultado a aprovação de 11 novos periódicos científicos brasileiros que, em breve, serão disponibilizados no site SciELO Brasil. Segundo Fabiana Montanari, do colegiado SciELO, o índice de periódicos aprovados na 10a reunião (30%) superou os índices das últimas três reuniões do Comitê Consultivo, que atingiram em média 12% de aprovação. Os 11 títulos aprovados são: ■ Ciências Biológicas Jornal Vascular Brasileiro, Pró-Fono: Revista de Atualização Científica e Revista Dental Press de Ortodontia e Ortopedia Facial ■ Ciências Exatas Produção ■ Ciências Humanas Economia Aplicada, Nova Economia, Novos Estudos Cebrap, Revista Brasileira de Educação Especial, Revista de Administração Pública, Revista do Departamento de Psicologia - UFF e Trans/form/ação

■ Saúde

Fluxos da gripe do frango

Os aspectos epi- demiológicos e clí- nicos da gripe do frango, Influenza A aviaria, além das pandemias causa- das por esse tipo de vírus no século 20, estão em discussão no artigo ''Influenza A aviaria (H5N1): a gripe do frango". Os autores, Gabriela Costa e Alessandra Faria, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Cássio Ibiapina, professor do curso de medi- cina da Universidade Alfenas (Unifenas), em Belo Horizonte, fizeram uma análise de todos os trabalhos publicados sobre o assunto nos úl- timos dez anos. Além das buscas nos principais bancos de dados médicos, os pesquisadores rea- lizaram uma pesquisa direta, em que seleciona- ram 32 artigos originais. Todos repercutiam os surtos recentes de infecção por um subtipo de vírus influenza A aviaria, o H5N1, em criações de aves domésticas na Ásia. A maioria dos ca- sos está associada com a exposição direta a aves infectadas ou superfícies contaminadas com excrementos desses animais. O estudo mostra também que no Brasil, no período do outono e inverno, surtos de vírus sincicial respiratório levam a um aumento na veiculação de notícias na imprensa sobre infecções respiratórias virais. "Essas notícias lançam conceitos errôneos so- bre a infecção pelo vírus Influenza A aviaria, co- nhecida no Brasil como gripe do frango", afir- mam os autores. Na Ásia, as recentes epidemias causadas pelo vírus Influenza A aviário de- monstraram a capacidade desse agente em cau- sar doença grave em seres humanos, sem nen- huma recombinação ou hospedeiro mamífero intermediário. "Isso nos alerta para o fato de que o próprio homem pode funcionar como um hospedeiro intermediário."

JORNAL BRASILEIRO DE PNEUMOLOCIA - N° 5 - SãO PAULO - SET./OUT. 2005

VOL. 31

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-

37132005000500012&lng=pt&nrm=iso&tíng=pt

■ Abelhas

Primeiros enxames

Um dos problemas na meliponicultura (cul- tura de abelhas sem ferrão) é capturar uma co- lônia na natureza, para iniciar a criação, sem destruir as árvores, ou mesmo as próprias abe- lhas. O artigo "Captura de enxames de abelhas sem ferrão (Hymenoptera, Apidae, Meliponi- nae) sem destruição de árvores", de Alexandre Coletto, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), apresenta um método alter- nativo para a coleta dos invertebrados no cam- po. O objetivo do autor é contribuir para que os iniciantes em meliponicultura possam obter seus primeiros enxames de uma maneira efi- ciente e pouco agressiva ao meio ambiente. O pesquisador enfoca em seu trabalho a espécie Melipona illiger, a mais utilizada para a produ- ção de mel e pólen na região amazônica, onde o método foi desenvolvido. "O Amazonas abri- ga, aproximadamente, 300 espécies de abelhas sem ferrão e tem mostrado um expressivo de- senvolvimento da meliponicultura, não só pela quantidade de espécies, mas também pelo gran- de número de pessoas interessadas em iniciar essa atividade", segundo o estudo. O iniciante nessa atividade pode acabar cometendo pelo menos duas infrações: a derrubada ilegal de uma árvore, eliminando dessa forma a fonte de alimento e de nidificação (formação de ninhos) de várias espécies animais, e a remoção de ani- mais da fauna silvestre do seu hábitat. O méto- do alternativo consiste em abrir uma janela na árvore, coletar o material e fechar a abertura uti- lizando a resina vegetal conhecida como breu.

ACTA AMAZôNICA - VOL. 35 ■ JUL./SET. 2005

N° 3 - MANAUS -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0044-

59672005000300012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Odontologia

Saúde bucal dos idosos

A saúde bucal do idoso brasileiro encontra- se em situação precária. Ela reflete a ineficácia

58 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP120

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histórica presente nos serviços públicos de atenção odontológica, limitados a extrações em série e serviços de urgência, baseados no modelo curativista. Essa é a principal conclusão do artigo "A saúde bucal do idoso brasileiro: revisão sistemática sobre o quadro epide- miológico e acesso aos serviços de saúde bucal", de Ra- fael Moreira, Lucélia Nico, Tânia Ruiz, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universida- de Estadual Paulista (Unesp), e Nike Emy Tomita, da Faculdade de Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo (USP). Por meio de buscas em bases de dados, o estudo realizou uma revisão sistemática da li- teratura científica, no período de 1986 a 2004, sobre os problemas bucais mais prevalentes entre os idosos bra- sileiros. Segundo o artigo, o envelhecimento popula- cional alterou significativamente a estrutura da pirâ- mide etária brasileira. "As transições demográfica e epidemiológica produzem como cenário uma popula- ção com elevado número de indivíduos idosos. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, essas trans- formações nem sempre vêm acompanhadas de modi- ficações no atendimento às necessidades de saúde des- se grupo populacional", apontam os pesquisadores. Quanto às barreiras de acesso aos serviços odontológi- cos, porém, o estudo aponta a baixa escolaridade, a baixa renda e a escassa oferta de serviços públicos de atenção à saúde bucal como os principais problemas que precisam ser atacados. Apesar dos avanços do Sis- tema Único de Saúde, principalmente com a implan- tação do Programa Saúde da Família, dizem os auto- res, o acesso à atenção odontológica, sobretudo para grupos como dos idosos, necessita ser ampliado.

CADERNOS DE SAúDE PúBLICA - VOL. 21 ■ JANEIRO - NOV./DEZ. 2005

N° 6 - Rio DE

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

311X2005000600013&(nq=pt&nrm=iso&t!ng=pt

■ Lingüística

Anchieta, o gramático

Nos séculos 16 e 17 jesuítas escreveram gramáticas sobre duas das línguas indígenas faladas no Brasil colo- nial. José de Anchieta e Luís Figueira descreveram o tupi antigo em 1595 e 1621, respectivamente. Luís Vincen- cio Mamiani, a língua indígena quiriri em 1699. "Essa produção teve como objetivo facilitar, por meio da aprendizagem das línguas, o contato entre jesuítas e in- dígenas, tendo em vista a colonização e a catequização", aponta o artigo "Descrição de línguas indígenas em gra- máticas missionárias do Brasil colonial", de Ronaldo de Oliveira Batista, da Universidade Presbiteriana Macken- zie, em São Paulo. O objetivo da pesquisa é analisar al- guns dos métodos e práticas de descrição das línguas pelos jesuítas. "O que houve de comum nesses trabalhos foi também o que a gramaticografia da época renas- centista utilizou com mais destaque. Um dos exemplos é o método que privilegiava a busca de equivalências

entre a língua em estudo e o latim, que contava com grande prestígio na época", diz Batista no artigo. "En- contramos nas artes dos jesuítas a indicação de que uma redução da lín- gua a regras deveria ser breve e econômica. O que de fato contribui para a classificação das obras jesuíticas como artes de gramática", diz o autor. Anchieta propôs algumas soluções originais em re- lação a termos utilizados e a propostas de descri- ção de aspectos particu- lares do tupi antigo. A gramática anchietana, conclui o trabalho, auxiliou muito numa reconstrução do tupi antigo no âmbito de pesquisas de lingüística histórica. Ao mesmo tempo, essa própria historiografia classificou a gramática de Anchieta como complicada para uma primeira aprendizagem da língua.

DELTA - VOL. 21 - N° 1 - SãO PAULO - JAN./JUN. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

44502005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Medicina

Processos cicatrizantes

A capacidade auto-regenerativa é um fenômeno uni- versal nos organismos vivos. Nos organismos unicelu- lares, ela está restrita à presença de enzimas responsá- veis pela recuperação de elementos estruturais e de moléculas de alta complexidade. Em organismos supe- riores, também ocorre o reparo por duas formas: pela regeneração com a recomposição da atividade funcional ou pela cicatrização com restabelecimento da homeosta- sia do tecido com perda da sua atividade funcional pela formação de cicatriz. Com o artigo "Mecanismos envol- vidos na cicatrização: uma revisão", os pesquisadores Carlos Balbino, Leonardo Pereira e Rui Curi, todos do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), pretendem oferecer subsídios con- ceituais para que uma conduta terapêutica eficiente possa ser tomada quando necessário. O processo de ci- catrização, descreve o texto, ocorre fundamentalmente nas fases de inflamação, formação de tecido de granu- lação, deposição de matriz extracelular e remodelação. O estudo discute os eventos celulares de cada uma des- sas fases, com especial ênfase à participação dos fatores de crescimento.

REVISTA BRASILEIRA DE CIêNCIAS FARMACêUTICAS - VOL.

41 - N° 1 - SãO PAULO - IAN./MAR. 2005

www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-

93322005000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 59

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O TECNOLOGIA

103 2 O*

■ Sementes protegidas

A ilha norueguesa de Sval- bard, no oceano Ártico, po- derá ter papel-chave para proteger a produção global de alimentos em caso de guerra ou desastres naturais. O governo norueguês vai cavar uma caverna artificial dentro de uma montanha ge- lada, onde serão colocados equipamentos de ventilação para manter a temperatura entre 10 e 20 graus negativos. Sementes de grãos de todo o mundo serão coletadas e es- tocadas lá. Até 2007, as insta- lações estarão prontas para garantir a reposição mesmo que haja perda de material estocado em outros bancos. As condições de temperatura abaixo de zero em Svalbard, com o subsolo permanente- mente congelado, garantem o armazenamento das se- mentes. Mesmo se o equipa- mento de ventilação falhasse, levaria meses para que a tem- peratura interna chegasse a 3,5 graus negativos. •

Satélite inicia transmissão Os primeiros sinais do saté- lite Giove-A, fase inicial do futuro sistema europeu de navegação Galileu, começa- ram a ser transmitidos em 12 de janeiro. Os sinais fo- ram recebidos e analisados pelos receptores do sistema, na Grã-Bretanha e na Bél- gica. O satélite foi colocado em órbita no dia 28 de de- zembro do ano passado, a uma altitude de 23.260 qui- lômetros, depois de ter sido lançado por um foguete So- vuz da base de Baikonur, no Cazaquistão. O satélite Gio- ve-A, palavra que corres ponde às iniciais, em inglês, da expressão "elemento de validação em órbita de Ga- lileu", vai testar novas tecno- logias, como relógios atô- micos a bordo, geradores de sinais e receptores de usuá- rios. O segundo satélite, Giove-B, tem previsão de lançamento para este ano.

Giove-A é o primeiro do sistema europeu Galileu

O programa Galileu, orça- do em € 3,6 bilhões, deve entrar em serviço em 2008 e prevê a utilização de 30 satélites para colocar fim à dependência do GPS, o siste- ma global de posicionamen- to via satélite, oferecendo uma alternativa comercial a esse sistema controlado pe- los militares norte-ameri-

canos e também ao Glonass russo, de uso exclusivo mili- tar. O programa resulta de uma parceria entre a Agên- cia Espacial Européia (ESA) e a Comissão Européia, que atualmente negocia com di- versos países que desejam participar do Galileu, como Brasil, Austrália, índia, Mé- xico e Marrocos. •

■ Parasita resistente

Uma má notícia no combate à malária remete à necessida- de de novos medicamentos para essa doença tropical. Uma equipe de cientistas da França, do Senegal e do Cam- boja descobriu que o proto-

zoário causador da doença, o plasmódio, está se tornando resistente a medicamentos de- rivados da artemisinina, prin- cípio ativo extraído da planta artemísia {veja Pesquisa FA- PESP n° 118). Essas drogas são uma das mais eficazes no com- bate ao mal. A resistência foi detectada em testes em amos-

tras de sangue de 530 pacien- tes na Guiana Francesa, no Se- negal e no Camboja. Só não foram encontrados parasitas resistentes à artemísia no san- gue dos cambojanos. O estu- do, publicado na revista médi- ca The Lancet, em dezembro, sugere que o uso descontro- lado da droga pode ter criado

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Artemísia antimalária.

condições favoráveis para o surgimento da resistência. O medicamento passou a ser em- pregado depois que o parasi- ta desenvolveu resistência à cloroquina, uma das drogas mais usadas para tratar a doen- ça. "Quarenta anos separa- ram a primeira descrição de resistência à cloroquina. Ain- da há tempo para evitar que a resistência se alastre se usar- mos os compostos de arte- misinina cuidadosamente", afirmou Ronan Jambou, coor- denador da pesquisa no Ins- tituto Pasteur em Dacar, no Senegal, à revista eletrônica SciDev.Net. •

■ Vacinas contra o rotavírus

Uma vacina contra o rotaví- rus, doença que causa diar- réia e vômitos e responde por cerca de 4 mil mortes por ano no Brasil, vai fazer parte do calendário de vacinação do Ministério da Saúde a partir de março.

Chamada de Rotarix, da empresa GlaxoSmithKline, foi lançada no final do ano pas- sado no México, após testes clínicos conduzidos com crian- ças em países da América La- tina que mostraram a eficácia

da vacina no combate às for- mas mais graves de diarréia causadas pelo rotavírus.

Outra vacina que também mostrou prevenir quase todos os casos severos da doença, chamada Rotateq e fabricada pela Merck, tem lançamento previsto para fevereiro na Eu- ropa. Os resultados das pes- quisas foram publicados no início de janeiro em dois tra- balhos científicos no New En- gland Journal of Medicine. •

■ Ovos sem salmonela

Novo sistema de pasteuriza- ção de ovos reduz substancial- mente o risco de contamina- ção pela bactéria salmonela (Salmonella enteritidis), trans- mitida por frangos infecta- dos. A gema e a clara de ovos crus ou semicozidos podem conter o patógeno que leva à intoxicação. O sistema, que destrói os microorganismos patogênicos sem modificar a composição dos ovos, tem co- mo base a tecnologia de mi- croondas e ar quente.

O projeto foi liderado por um grupo de pesquisado- res do Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) da África do Sul e teve a par- ticipação da Universidade de Pretória e das empresas Del- phius Technologies, especiali- zada no desenvolvimento de fornos de microondas indus- triais, e Eggbert Eggs, a segun- da maior produtora de ovos no país.

"A tarefa mais difícil foi a otimização da curva do aque- cimento e a identificação do ponto quente", disse Nell Wiid, diretor da Eggbert Eggs. "Ovos variam de forma, massa, po- sição das gemas e perfil de aquecimento, e os microorga- nismos são sensíveis a muitas dessas variáveis." •

Um simples toque de botão Sete botões coloridos aciona- dos a um simples toque com- põem o mouse RCT-Barban, desenvolvido para ser utiliza- do por pessoas com dificul- dades motoras, que não con- seguem movimentar o mouse convencional. A idéia de cons- truir um mouse diferenciado surgiu como complementação a um trabalho desenvolvido pela empresa RCT Computa- dores na Escola, da cidade de Campinas, em São Paulo, que desde 1995 atua no mercado educacional com softwares que podem ser utilizados em es- colas de educação especial e clínicas de psicologia, fonoau- diologia e terapia ocupacional. À frente da empresa encon- tra-se a física Maria Cecília Gandra, que, após concluir o mestrado em física na Uni- versidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp), decidiu ampliar os seus conhecimen- tos e começou a fazer cursos de especialização na área de educação.

Esse novo caminho a con- duziu a um curso em educação especial na Pontifícia Univer- sidade Católica de Campinas (Puccamp) e a um trabalho como voluntária com pessoas com síndrome de Down. A convivência com os portado- res da síndrome fez com que

constatasse a falta de softwa- res no mercado para atender a essas crianças com necessi- dades especiais. Para poder desenvolver esses programas, Cecília abriu a empresa RCT em parceria com o engenheiro de computação Ronaldo Bar- bosa, também formado pela Unicamp. "Nossos softwares encontram-se em mais de 500 instituições de ensino do Bra- sil, além de escolas de educa- ção especial, clínicas de psico- logia, fonoaudiologia e terapia ocupacional", diz Cecília.

Apesar de bastante utiliza- dos por portadores de neces- sidades especiais, muitos usuá- rios com dificuldades motoras não conseguiam utilizar o mouse convencional e, com isso, ter dificuldade no uso do computador. Essa dificuldade motivou os sócios da empre- sa a criar um mouse de fácil utilização que tivesse todas as funções do convencional. Para o desenvolvimento do mouse RCT foi convidado o projetis- ta eletrônico Edson Barban. O dispositivo, com 50 centí- metros de largura e 10 de altura, funciona como um in- terruptor, a um simples toque de um único dedo do pé ou da mão, e possui as funções de movimento na tela, clicar, arrastar, entre outras. •

Clicar, arrastar, colar: como o mouse convencional

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Linha de Produção Brasi.

Beleza aquática ameaçada Em dezembro de 2005, pes- quisadores brasileiros e nor- te-americanos acompanha- ram na região de Barcelos, no Amazonas, o processo de coleta nos rios, embarque e entrega de peixes orna- mentais em Miami, nos Es- tados Unidos. Nesse traje- to, apenas 35% dos peixes, entre os quais o acará-ban- deira (Pterophyllum scalare), o acará-disco (Symphisodon ssp.), o apaiari (Astronotus ocellatus), também conhe- cido como oscar, e o néon ou cardinal-tetra (Parachei- rodon axelrodi), chegam ao seu destino. "Como há ex- cesso de pesca, o problema é a diminuição dos esto-

Acará-bandeira-branco Apaiari ou oscar

Acará-bandeira-preto Néon ou cardinal

quês naturais", diz Elisabeth Criscuolo Urbinati, pesqui- sadora do Centro de Aqui- cultura (Caunesp), da Uni- versidade Estadual Paulista (Unesp). Durante a expedi- ção, foram testadas técnicas para diminuir o estresse cau- sado pela captura. Outro ob- jetivo do Caunesp é o desen- volvimento de tecnologias de criação de peixes em cativei- ro, com a participação das populações ribeirinhas, em parceria com o Instituto Na- cional de Pesquisas da Ama- zônia (Inpa), Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e aporte de US$ 20 mil da National Geographic, dos Estados Unidos. •

■ Resíduos aproveitados

Violões, cavaquinhos, bandejas e caixinhas decorativas serão alguns dos produtos fabrica- dos com resíduos de madeira de espécies amazônicas de procedência legal pela empre- sa Puro Amazonas. Para criar os produtos, a empresa vai uti- lizar os conhecimentos em processamento de madeira de- senvolvidos pelo Instituto de

Pesquisas da Amazônia (Inpa), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), que investiu cerca de R$ 137 mil no projeto Artefatos com ma- deiras da Amazônia para co- mercialização. Além de acom- panhar o processo de venda dos produtos, a Fapeam, em uma segunda etapa, quer re- passar a tecnologia de produ- ção das peças para pessoas da comunidade. •

■ Produção nacional de medicamentos

Dois importantes medica- mentos, a eritropoetina alfa humana recombinante (EPO), que trata a anemia associada à insuficiência real crônica, Aids ou quimioterapia, e o interferon alfa humano re- combinante (INF), que auxi- lia no tratamento de hepati- tes virais e alguns tipos de tumor, começarão a ser pro-

duzidos ainda neste semestre pelo Instituto de Imunobio- lógicos de Manguinhos (Bio- manguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pa- ra serem fornecidos ao Siste- ma Único de Saúde (SUS). A transferência de tecnologia en- tre Biomanguinhos e duas ins- tituições cubanas, o Centro de Imunologia Molecular e o Centro de Engenharia Gené- tica e Biotecnologia, começou em agosto de 2004. •

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■ Robô trabalha no fundo do mar

O protótipo de um robô sub- marino, que serve tanto para recuperar equipamentos em campos petrolíferos no fun- do do mar como para coletar amostras em ecossistemas oceânicos, está em fase de tes- tes na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). O projeto do veículo autônomo submarino (SRS), coordenado pelo professor Júlio Cezar Adamowski, do Departamento de Engenha- ria Mecatrônica e de Sistemas Mecânicos da Poli, teve início em 2000, com apoio da Fi- nanciadora de Estudos e Pro- jetos (Finep). "E um trabalho

multidisciplinar que envolve hidrodinâmica, eletrônica em- barcada, sensores, propulsores, além do estudo dos compo- nentes que devem suportar a água do mar e as altas pres- sões do fundo do oceano", diz Adamowski. A recuperação de sinalizadores acústicos, cha- mados de transponders, é uma das partes do projeto, já que o veículo pode ser adaptado para diversas outras tarefas. Esses sinalizadores são usa- dos no posicionamento de navios para perfuração de poços de petróleo. •

■ Controle biológico

Um bioinseticida fabricado com vírus mostrou, em testes realizados pela Embrapa Re- cursos Genéticos e Biotecno- logia, de Brasília, e pela Empre- sa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Ca- tarina (Epagri), ser eficaz para controlar a lagarta mandaro- vá (Erinnyis ello elló), a princi- pal praga que ataca as folhas da mandioca. "O vírus patogê- nico à mandarová ocorre em condições naturais no campo", diz a pesquisadora Marlinda Lobo de Souza, da Embrapa. Ele pertence a um grupo de ví- rus de insetos chamado de ba- culovírus, que mostrou ser viá- vel para o controle de pragas agrícolas. •

Patentes

Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Proteína essencial

Uma proteína essencial para a célula humana, a endooligopeptidase A ou endo A, foi descoberta no início da década de 1970 pelo professor Antônio Carlos Martins de Ca- margo, coordenador do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), um dos Centros de Pesquisa, Ino- vação e Difusão (Cepids) da FAPESP, no Instituto Butantan. Mas a comple- ta caracterização dessa proteína, que está envol- vida em todo o transpor- te intracelular do sistema nervoso central, com o rearranjo de neurônios e a formação de novas co- nexões, somente foi feita no final da década de 1990, quando os avanços da biologia molecular permitiram a clonagem e a identificação do gene responsável pela enzima que produzia a endo A no cérebro. Essa proteína tem um papel funda- mental para a formação

de um complexo protéico responsável pelo desloca- mento do núcleo dos no- vos neurônios que irão formar o córtex cerebral. Quando há qualquer per- turbação na formação desse complexo durante a gestação de uma criança ocorre uma doença cha- mada lissencefalia ou sín- drome de Miller-Dieker, que provoca a morte do feto ou gera um bebê com gravíssimo retardo mental. Estudos apontam que a proteína também pode estar relacionada à esquizofrenia. A endo A é uma possível candidata a medicamentos para atuar em processos do sistema nervoso central.

Título: Solicitação

da patente

da endooligopeptidase A

Inventor: Antônio Carlos

Martins de Camargo

e Mirian Hayashi

Titularidade:

FAPESP/Instituto Butantan

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Atelinha vai ficar mais sofisticada. Ela vai ganhar um sistema de transmissão digi- tal que está em pro- cesso de formatação no Brasil e deverá entrar nos lares bra-

sileiros nos próximos meses. A TV di- gital chega com promessas de uma imagem com melhor qualidade, inte- ratividade e maior possibilidade de di- fusão de conhecimento. Para formatar o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) dentro das especificidades culturais, sociais e tecnológicas do país, foi montada ao longo dos últimos três anos uma das mais expressivas redes de pesquisa tecnológica, talvez só supera- da pela dos projetos genoma. Estiveram reunidos, entre 2004 e 2005,1.200 pes- quisadores brasileiros representando 75 instituições, a maioria de universi- dades, além de institutos de pesquisa e de empresas, que propuseram ao Mi- nistério das Comunicações (Minicom) uma série de alternativas técnicas para a implantação do sistema, desde a esco- lha de hardwares e softwares, análise de padrões estrangeiros e até propostas de veiculação de conteúdo educativo e apli- cações operacionais e comerciais.

Neste mês de fevereiro o governo federal deve anunciar as principais di- retrizes do SBTVD e quais serão os sub- sistemas adotados em relação a um dos três padrões de TV digital existentes no mundo: o norte-americano Advanced Television Systems Commitee (ATSC), adotado pelos Estados Unidos, Canadá, México e Coréia do Sul; o europeu, Di- gital Video Broadcasting (DVB), utili- zado em vários países desse continente e na Austrália, em Cingapura e em Tai- wan; e o japonês, Integrated System Di- gital Broadcasting (ISDB), usado ape- nas no Japão. Espera-se que a decisão do sistema brasileiro leve em conta os

Tela de testes da TV digital

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relatórios de recomendação dos 20 gru- pos de pesquisa que, além de analisar e testar os outros padrões, desenvolve- ram soluções inovadoras para a futura TV digital brasileira. Chamados de con- sórcios, esses grupos receberam finan- ciamento da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com recursos do Fun- do para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel). "O total foi de R$ 38,7 milhões, repassados para a Finep pelo Minicom", diz André de Castro Pereira Nunes, coordenador da chamada pública da TV digital da Finep.

Os grupos enviaram os relatórios com as realizações no final de dezem- bro à Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunica-

ções (CPqD), coordenadora das pes- quisas para o Minicom. As decisões, que não devem levar em conta todas as propostas porque alguns grupos apre- sentaram alternativas diferentes para determinados aspectos técnicos da TV digital, serão definidas não só pelo Mi- nicom mas também pelos ministérios da Ciência e Tecnologia, Casa Civil, In- dústria e Comércio, Cultura, Educação, Planejamento, Relações Exteriores e Fa- zenda, que formam o Comitê de De- senvolvimento, com aprovação final do presidente da República.

A análise para a decisão leva em con- ta uma série de fatores para que a nova televisão fique adequada ao cenário brasileiro, onde cerca de 90% da popu-

lação vê TV pelo sistema aberto, gratui- to e captado pelo ar. A principal pro- posta da TV digital está no parágrafo Io

do primeiro artigo do decreto presi- dencial que institui o SBTVD, em 26 de novembro de 2003: "Promover a inclu- são social, a diversidade cultural do país e a língua pátria por meio de acesso à tecnologia digital, visando a democrati- zação da informação". A intenção é do- tar essa nova mídia de recursos que qualquer pessoa possa acessar, via con- trole remoto, além da programação normal das emissoras, possibilitando, inclusive, o acesso à internet via tela de TV. No Brasil são cerca de 60 milhões de aparelhos de TV em mais de 46 mi- lhões de domicílios, dos quais 90% sin-

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tonizam apenas a TV aberta, via ondas eletromagnéticas. As TVs pagas, a cabo ou por miniparabólicas estão em ape- nas 3 milhões de lares. "O decreto deixa claro que a inclusão digital tem que ser a mais barata possível para atender a população mais pobre, porque não pode ser exclusividade de poucos que podem pagar", diz a jornalista Beth Carmona, atual presidente da TVE, que esteve por seis anos na direção da TV Cultura, em São Paulo.

"A TV digital com interatividade é uma modificação de atitude humana", diz André Barbosa Filho, ex-professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, um dos or- ganizadores do livro Mídias digitais e

atual assessor especial para a área de políticas públicas e comunicação da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. "Antes era um telespectador passivo e agora ele passará a participar e a esco- lher as informações na tela da TV." Ou- tro estudioso dos meios de comunica- ção, o professor Muniz Sodré, da Escola de Comunicação da Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro (UFRJ) e atual presidente da Biblioteca Nacional, diz que a nova tecnologia é uma conquis- ta. "Mas, em termos culturais, estou cético quanto à produção de novos sen- tidos e difusão de valores éticos. Corre- se o risco de a convergência com a in- ternet não chegar a todo mundo ou ficar restrita àquilo que os produtores -

ou seja, as emissoras - colocarem à dis- posição dos telespectadores", diz.

Inclusão social - Para o professor Car- los Montez, do Departamento de Auto- mação e Sistemas da Universidade Fe- deral de Santa Catarina (UFSC), a nova TV "é uma oportunidade de levar co- nhecimento a lugares mais remotos, onde as pessoas não têm acesso a inter- net, por exemplo". Ele é autor, junto com o jornalista e professor da UFSC Valdecir Becker, do livro TV digital in- terativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil. "A inclusão digital ajuda o indivíduo a alcançar a inclusão social", diz Montez, que participou de um con- sórcio, coordenado por Jorge Campag-

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nolo, também da UFSC, que estudou e propôs padrões de usabilidade, que é a forma como a interatividade deverá ser produzida para a TV e como as pessoas vão se adaptar melhor a ela.

"É uma mudança tecnológica que tem grande impacto social, cultural e industrial, o que torna a decisão muito difícil porque envolve grandes interesses. Calcula-se que a TV digital no Brasil vai movimentar nos próximos dez anos cerca de US$ 20 bilhões, entre a indústria eletroeletrônica, equipamento das emissoras e produção de conteúdo", diz Barbosa Filho. "Muda também a forma de pro- dução do conteúdo, do cenário, da iluminação e, inclusive, a pu- blicidade, que irá oferecer novas formas de compra via tela da TV", explica Beth Carmona. Assim como num programa de TV ou em ca- nais específicos poderá existir conteú- do sobre saúde, por exemplo, a TV Di- gital abre a possibilidade de compra direta de algo que está sendo mostrado na tela.

A tomada de decisão é, portanto, extremamente complexa. Para ter uma base de definição para a área técnica, o governo formou os consórcios que apresentaram propostas inovadoras para os vários subsistemas da TV digi- tal. Dentre aqueles que terão mais pro- ximidade com o consumidor, ou teles- pectador, está o terminal de acesso, também chamado em inglês de set-top- box, uma caixa eletrônica semelhante aos terminais de TV a cabo para ser co- nectada aos televisores atuais, de tecno- logia analógica, possibilitando a capta- ção dos sinais digitais que as emissoras vão emitir. Mais tarde, esse equipa- mento será incorporado naturalmente aos novos televisores. A previsão é que por 15 anos o sistema analógico atual continue a ser transmitido até o total de televisões ser trocado ou todas as TVs analógicas possuírem um terminal digital. O valor inicial previsto para esse terminal é de até R$ 300,00, com uma amortização anual de 20%.

Mesmo com esse terminal os usuá- rios não terão uma TV de alta definição, a High Definition Television (HDTV). Isso só vai acontecer na compra de uma nova TV que tenha definição de 1.080 linhas na tela. As atuais têm resolução

de 520 linhas. Alguns televisores de plasma ou de cristal líquido, já presen- tes nas lojas, têm a resolução digital, porém deverão possuir um terminal conectado a elas. Nas TVs atuais a ima- gem com o terminal deve melhorar consideravelmente, ou seja, não haverá chuviscos ou fantasmas.

utra possibilidade técnica da TV digital é a multiprogra- mação, em que a mesma emissora em cada localidade poderá, dentro da mesma banda de transmissão de 6 megahertz (MHz), ter vários canais, cada um deles com uma programação, ou, ainda, conforme uma futura regula- mentação, destinar esses ca- nais a outros produtores de

conteúdo - hoje uma emissora só pode transmitir por um canal. Esse tipo de opção está bem caracterizado no siste- ma europeu. Nesse caso, a transmissão não seria em HDTV, e sim no modo Standard (SDTV) em todos os canais, de forma comparável à qualidade do DVD. Haveria aí a dificuldade do não- aproveitamento de um televisor com tecnologia HDTV. Outra opção seria a adoção de um sistema de compressão para transmissão chamado de Moving Picture Expert Group 4 (MPEG4), um avanço do MPEG 2, sistema muito usa- do na internet, que pode proporcionar um canal de HDTV e mais um ou mais em SDTV. Há ainda a opção melhorada oferecida pela Enhanced Definition Te- levision (EDTV), que transmite em 720 linhas, num padrão de DVD, possível também de acomodar multicanais.

Informações gerais - Todos os acessos aos canais e a interatividade com o te- lespectador serão comandados pelo terminal e um controle remoto. Por eles estará aberto o acesso, por exem- plo, a dados de um determinado pro- grama, votações ou informações sobre economia, receitas culinárias, esportes etc. Também será possível com o termi- nal acessar informações públicas, como saldos de fundo de garantia, INSS, e até obter informações sobre doenças e marcar consultas no Sistema Único de Saúde (SUS), como prevê outro con- sórcio sediado na UFSC e coordenado por Aldo Wangenheim.

"Nossas pesquisas chegaram ao ponto de dotar esse terminal com en- dereçamento de Protocolo Internet (ou IP, na sigla em inglês), que poderá ser usado para endereçamento de caixa postal via e-mail e, mais tarde, acesso a internet", diz Marcelo Knõrich Zuffo, professor do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), coordenador do consórcio do terminal de acesso. Eles desenvolveram inclusive um padrão de autenticação digital que vai impedir, por exemplo, as contami- nações futuras de vírus no sistema. O terminal é assim a ponte para a chama- da inclusão digital que a nova TV vai proporcionar para aqueles que não têm computador.

"O grupo reuniu 65 pesquisadores, entre professores, alunos e engenheiros contratados", diz Zuffo. Participaram desse consórcio também pesquisadores da USP de São Carlos, Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp), Uni- versidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, além de empresas apoia- doras, como a brasileira Waba, de soft- wares, a Intel e a Xilinx, de semicondu- tores, a Samsung e a Itautec-Philco, de produtos eletrônicos, esta recentemente adquirida pela Gradiente.

A concepção ideal do grupo é ter um terminal que possa incorporar várias funções e em vários modelos, dos mais simples aos mais sofisticados. "Nós tra- balhamos em uma plataforma multide- finição. Isso significa que será possível no futuro usá-la em situações de mobi- lidade, ou seja, captar no celular os si- nais de uma TV digital diretamente da emissora de TV", explica Zuffo. Isso sig- nifica que o sistema poderá ser usado em computadores de mão, TV em auto- móveis etc. "Inclusive será possível adaptar aplicativos (softwares) próprios para navegabilidade (mapas) em uma cidade, informações sobre trânsito, se- gurança, saúde e muito mais." Nesses casos, o padrão não é o da HDTV nem o SDTV, e sim o de baixa resolução, ou Low Definition Television (EDTV).

O terminal de acesso deve resultar em oito patentes e registro de alguns softwares que devem ser depositados e registrados em breve no Brasil e no ex- terior. Vários protótipos foram cons- truídos com seus respectivos circuitos

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eletrônicos desenhados e montados, além de incorporados todos os softwa- res necessários para seu funcionamen- to. "Dentro do ciclo de desenvolvimen- to de um produto, se o nosso terminal for aceito, a próxima fase é o ajuste que as indústrias precisam fazer para adap- tá-lo ao formato de uma produção co- mercial", diz Zuffo.

A grande decisão que será tomada em Brasília é a escolha de um dos três padrões existentes para a TV digital - o norte-americano, o europeu e o japonês. Pode-se também optar por melhorar um deles com o que foi desenvolvido na pesquisa brasileira. Essa perspectiva do- minou a discussão dessa nova mídia desde 1998, quando as emissoras de TV resolveram investigar o assunto. "Em 1998 fomos convidados pela Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão e Telecomunicações (SET) e pela Associa- ção Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) a fazer uma avaliação dos três padrões de TV digital", conta o professor Gunnar Bedicks Júnior, coor- denador do Laboratório de TV Digital da Universidade Mackenzie. "Monta- mos o laboratório com apoio financeiro

da empresa NEC via incentivos fiscais da Lei da Informática", diz Bedicks. No grupo está o professor da mesma uni- versidade, Francisco Sukys; um dos cria- dores do sistema Pal-M, padrão para a TV em cores no Brasil desenvolvido no início dos anos 1970.

Equipamentos e visitas - O Macken- zie realizou os testes com o apoio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que indicou o CPqD como avaliador técnico. "Adquirimos os equi- pamentos dos americanos e dos euro- peus e uma Van com aprelhos e uma antena retrátil com capacidade de atin- gir 12 metros de altura para fazer testes em campo, inicialmente em vários bairros da cidade de São Paulo", conta o professor Cristiano Akamime, do mes- mo laboratório. Os norte-americanos e europeus já haviam inaugurado seus sistemas de TV digital e os japoneses só fariam isso em 2003, embora os equi- pamentos para os testes tenham che- gado aqui em 2000. Os pesquisadores criaram procedimentos para testes nos três padrões. "Recebemos as visitas dos representantes dos três sistemas que

aprovaram nossos procedimentos", diz Bedicks.

Entre 1999 e 2000, os pesquisadores fizeram testes com os três sistemas a partir da antena de transmissão da TV Cultura, em São Paulo, que acoplou o sinal digital via canal 34 em Ultra High Frequency (UHF). "Nós não compara- mos padrões, o que fizemos foi testar os sistemas dentro das necessidades do nosso país. Em 56% dos televisores a qualidade da imagem não é boa porque vários fatores interferem no sinal, como prédios, ruídos, transformadores, a to- pografia das cidades com muitas eleva- ções naturais, como os morros." Em São Paulo, algumas residências que es- tão a 4 quilômetros da antena instalada no bairro do Sumaré não pegam sinal analógico da TV com qualidade. São os famosos fantasmas que a TV digital definitivamente vai eliminar. "Nesse sistema, ou pega bem ou a tela fica es- cura", diz Akamime. Assim os pesquisa- dores buscaram o sistema mais robusto, que, além de ter sinal forte, não sofres- se influência de equipamentos eletrôni- cos como liqüidificadores, secadores de cabelo etc.

"Logo no início dos testes descarta- mos o padrão norte-americano, o ATSC, porque a transmissão simplesmente não atingia grande parte dos televisores e em alguns bairros", diz Bedicks. Ele não foi feito para TV aberta. Nos Esta- dos Unidos, dos 110 milhões de resi- dências, 80 milhões estão ligados ao cabo, outros 23 milhões captam o sinal direto do satélite e apenas 5 milhões uti- lizam o sinal de TV aberta. Lá, as trans- missões analógicas estão previstas para se encerrarem em 2009. No Brasil ocor- re o contrário. Apenas 4 milhões de re- sidências estão conectados ao serviço pago dentro de um total de 45 milhões de domicílios. Sem estatísticas confiá- veis de quantos captam os sinais pelas antenas parabólicas não-pagas, estima- se que cerca de 90% dos televisores bra- sileiros recebam sinal da TV aberta, seja por meio de antenas externas, aquelas que ficam em cima do telhado, ou por antenas internas. Assim, a TV digital aberta no Brasil tem uma participação importante para que todas as camadas da população tenham acesso à transmis- são gratuita e, conseqüentemente, à in- formação, à educação, à cultura e ao entretenimento.

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A análise do padrão digital europeu mostrou também pouca atenção à TV aberta, embora Itália e Espanha te- nham significativa parcela nesse seg- mento. Por isso, esse sistema se mostrou bem adaptado à transmissão aérea, mas não inerte a interferências eletroeletrô- nicas comuns no Brasil. "Basta ligar um liqüidificador para interferir na TV", diz Bedicks. "Na Europa, eles têm ater- ramento de fio-terra com tomadas de três pontos blindados, o que impede a interferência, e não dois pontos como no Brasil", diz Akamine. O padrão eu- ropeu também não possui uma função que viria a ser importante no Ja- pão - e cada vez mais em todo o mundo -, a mobilidade. "Os japoneses já pensaram no siste- ma de forma que possa captar a TV pelo celular ou qualquer outro equipamento móvel."

Os pesquisadores do Mac- kenzie concluíram que o siste- ma japonês é o mais robusto, chega às casas com sinal mais forte e perfeito. Por ser forma- do por várias ilhas, no Japão a distribuição do sinal ocorre por meio de TVs abertas, havendo pouca partici- pação do cabo e do satélite. O sistema japonês mostrou-se, ainda, mais robus- to no sentido de não receber interfe- rências de equipamentos eletrônicos. A condição geral dele é a mais parecida com a dos brasileiros, além de estar apto à mobilidade. A opção brasileira deverá levar em conta a mobilidade porque o número de aparelhos celula- res em funcionamento atingiu no ano passado 83 milhões de unidades.

"O padrão japonês é o resultado de uma evolução histórica. Eles absorve- ram as coisas boas e aprenderam com as limitações e as deficiências do euro- peu", explica Bedicks, do Mackenzie. "Os europeus, por sua vez, fizeram a mesma coisa com os americanos." Vá- rios pesquisadores que estudam a TV digital brasileira possuem essa mesma visão. Muitos acreditam que o mode- lo japonês com as inovações brasilei- ras poderá se tornar um sistema inter- nacional. Mas, nos últimos meses, norte-americanos e europeus acena- ram com modificações nos seus res- pectivos padrões que poderiam torná- los mais avançados. De qualquer forma, o sistema de modulação do sis-

tema japonês é o mesmo do europeu - conhecido como Orthogonal Fre- quency Division Multiplex (OFDM) -, mas com modificações que o tornam mais avançado. O sistema de modula- ção é o que transforma os sinais elétri- cos em ondas eletromagnéticas. Foi nesse ponto que o consórcio coordena- do por Bedicks propôs um novo siste- ma de transmissão e recepção baseado no modulador japonês. "Fizemos mo- dificações no hardware e no software que deixam o sistema ainda melhor e possibilitam uma correção de erros mais avançada", diz Bedicks.

om o nome de BSTOFDM Tur- bo Code, o sistema pretende se tornar mais robusto em ter- mos de sinais de recepção e emissão que o próprio japo- nês. Para finalizar esse sistema, o Mackenzie reuniu 25 pesqui- sadores, entre professores, alu- nos e contratados especiais para o projeto. O grupo tam- bém foi integrado por pesqui- sadores do LSI-USP e da Uni-

versidade Federal da Paraíba (UFPB). Como empresas apoiadoras participa- ram a Samsung, a NEC, a TVA e a Su- perior Tecnologia em Radiodifusão (STB) do pólo de eletrônica de Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais. Essa empresa mineira produziu o transmis- sor de TV Digital que foi instalado na torre da TV Cultura e pretende forma- tar uma linha de produção assim que o SBTVD for definido.

Tanto o terminal de acesso da USP quanto o sistema de modulação do Mackenzie foram integrados com pro- gramas chamados de middleware extre- mamente importantes para a TV digi- tal. Ele é responsável para receber o fluxo de bits, entendê-los e identificar o que é som, vídeo, imagens e interativi- dade e dados que fluem no sistema. O middleware também está acima do sis- tema operacional que pode ser o Win- dows, da Microsoft, ou o Linux, de uso livre. Em resumo: tudo o que se faz na nova TV passa pelo middleware. "A for- ma como o conteúdo interativo vai para a tela é definido pelo middleware", explica Guido Lemos de Souza Filho, do Departamento de Informática da UFPB e coordenador do consórcio Flex TV, o nome do novo middleware que é

uma alternativa aos sistemas dos pa- drões estrangeiros. Embora nacional e tendo a possibilidade de gerar até seis patentes e 40 registros de software, o Flex TV foi escrito na linguagem compu- tacional Java, muito utilizada na inter- net e celulares. Nesse caso, se pagariam royalties, cerca de US$ 1 por terminal, para a empresa norte-americana Sun. "No nosso sistema também podemos trabalhar com a linguagem Nest Con- text Language (NCL)" diz Souza Filho. Essa linguagem foi desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Sob a coordena- ção do professor Luiz Fernando Gomes Soares, do Laboratório de Telemídia da PUC-Rio, esse consórcio desenvolveu a linguagem NCL para TV digital para ser usada com o Flex TV. "A vantagem dessa linguagem é que não precisaría- mos pagar royalties porque ela se en- quadra na modalidade software livre", diz Soares.

Outra proposta de middleware sur- giu em outro consórcio, dessa vez sob a coordenação do professor Luís Geraldo Meloni, da Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp. Chamado de Jan- gada, ele é baseado no sistema equiva- lente europeu. "O nome foi uma refe- rência ao fato de que uma das aplicações desenvolvidas foi um navegador da in- ternet para a TV", diz Meloni, que lide- rou um grupo de 30 pesquisadores em que participaram também alguns da Fitec, uma fundação de pesquisa tecno- lógica de Recife, Pernambuco, que igualmente possui laboratórios em Campinas, Universidade Estadual de Londrina e a empresa Rcasoft, de Cam- pinas. O middleware do grupo da Uni- camp foi integrado ao terminal de aces- so da USP e é uma das opções a ser analisada pelo Comitê de Desenvolvi- mento da TV digital.

Meloni também liderou um con- sórcio que estudou o chamado canal de retorno ou de interatividade. Por esse canal, o telespectador poderá receber ou pedir informações que estiverem disponíveis, usar internet, votar ou es- colher alternativas propostas num pro- grama da emissora, além de fazer com- pras de produtos mostrados na tela. O problema é que essa interatividade não segue via canal de transmissão, por exemplo, no canal 11. Ela precisa de um outro canal de TV ou seguir via celular,

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Antena com Sinal Digital

Estúdio Digital

Os equipamentos para gerar as imagens e os transmissores deverão ser trocados para o sistema digital

Conversor

O terminal de acesso acoplado a uma TV com sinal analógico decodifica o sinal digital

TV Analógica

A relação de altura e largura da tela da TV analógica é de 4:3. Ela tem resolução de 520 linhas

Celulares poderão receber a imagem da TV digital em baixa resolução

Controle Remoto Interativo

O controle remoto tem funções para possibilitar a interação com a tela

Celular com Imagem

TV Digital

O padrão da TV digital é igual ao do cinema, no formato 16:9. A resolução é de 1.080 linhas

telefonia fixa, rádio, rede elétrica ou no- vos sistemas de transmissão sem fio, como o Wi-fi ou o Wimax, sistema em que uma rede ao redor de uma antena poderá atender televisores num raio de até 60 quilômetros. "Nossa proposta inclui o emprego de tecnologia Wimax adaptada à faixa de freqüência VHF- UHF, usada hoje na televisão aberta." Dessa forma, o projeto poderá resultar no pedido de várias patentes e registros de softwares. Para esse projeto, Meloni coordenou 80 pesquisadores, incluindo grupos da UFRJ, Instituto de Estudos Avançados de Comunicações de Cam- pina Grande, na Paraíba, da Fitec, da Te- lefônica e da Samsung, além da empresa

Linear, que, também da cidade minei- ra de Santa Rita do Sapucaí, produz e exporta transmissores digitais para uso das emissoras de TV norte-americanas.

TV-voto - Outra área bem desenvolvi- da nas pesquisas foram os sistemas de conteúdo. Fernando Carvalho Gomes, da Universidade Federal do Ceará, lide- rou um consórcio que desenvolveu conteúdos interativos como o T-mail, para troca de mensagens entre telespec- tadores, além de softwares que permi- tam agendar e personalizar a programa- ção. Isso será importante porque os terminais deverão ter uma espécie de disco rígido, como nos computadores,

em que um programa ou telejornal, poderão ser interrompidos, para aten- der um telefonema, por exemplo, e de- pois prosseguir assistindo de onde pa- rou, ou gravar algo que não se possa ver naquele momento. Ele também desen- volveu o TV-voto. "É uma aplicação com todos os requisitos de segurança do voto para que uma pessoa vote só uma vez em enquetes, referendos etc. O grupo prepara patentes para depósito nos Estados Unidos e na Europa. Desse consórcio participaram a Universidade de Fortaleza (Unifor), o Instituto Atlân- tico, Centro Federal de Educação Tecno- lógica do Ceará (CEFET-CE) e a Omni, empresa de conteúdo de vídeo. •

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O TECNOLOGIA

AGRONOMIA

Perfume de manjericão Primeiro lote de linalol extraído das folhas da planta, cobiçado óleo essencial, é comprado pelo Canadá

DlNORAH ERENO

om folhas pequenas e cheirosas, o manjericão é conhecido por seus muitos usos na culiná- ria. Agora está pronto para entrar na compo- sição de perfumes à ba- se de linalol, um óleo

essencial presente em suas folhas. O primeiro lote comercial do óleo de manjericão (Ocimum basilicum), com 40 quilos do produto, foi exportado para uma empresa canadense do setor de perfumaria no final do ano passado. A produção foi acertada, após meses de negociação, com a Linax, uma pequena empresa instalada na cidade de Votu- poranga, em São Paulo, que produziu o óleo de forma inédita no país. Antes da compra, perfumistas avaliaram a qualidade do produto, que também passou por análises químicas feitas no Brasil e no Canadá.

A pesquisa que levou ao produto foi conduzida pelo engenheiro agrôno- mo Nilson Borlina Maia, do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, e te- ve início em 1998, quando o pesquisa- dor começou um estudo comparati- vo com 18 plantas que contêm linalol, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló- gico (CNPq). Inicialmente ele procura- va uma alternativa para a extração do óleo de pau-rosa {Aniba rosaeodora),

árvore amazônica que corre o risco de extinção e é a principal fonte natural do produto (veja Pesquisa FAPESP n° 111).

Apesar de não ter conseguido en- contrar uma planta que tivesse um óleo tão rico em linalol como o descoberto na madeira do pau-rosa, que chega a 90% e tem uma mescla inconfundível de aromas, Maia conseguiu obter um óleo natural, economicamente viável, que pode substituir o sintético em mui- tas formulações de cosméticos, perfu- mes e outros produtos de higiene e be- leza e até mesmo abrir campo para a criação de novas fragrâncias.

Potencial agronômico - Entre as plan- tas analisadas pelo pesquisador esta- vam, além do manjericão, o coentro, o louro, a canela e a laranja. No caso do louro, apesar de apresentar alto ín- dice do óleo essencial, ele foi descarta- do porque a árvore demora dezenas de anos para ficar adulta, tornando inviá- vel um cultivo para extração comercial. Já o coentro e a canela não apresenta- ram linalol, enquanto a laranja possui baixo índice da substância. "Dentre to- das as plantas analisadas vi que o man- jericão tinha mais potencial agronômi- co para extração do linalol, pelo teor de óleo apresentado e porque é uma plan- ta de ciclo curto", diz Maia.

Os resultados da pesquisa foram apresentados publicamente pela primei-

ra vez em 2001, no 26° Congresso da So- ciedade Internacional para a Ciência da Horticultura, realizado em Toronto, no Canadá. O trabalho foi um dos quatro escolhidos, entre centenas enviados, pa- ra ser apresentado com destaque. Quan- do voltou ao Brasil após a realização do congresso, Maia julgava ter encerrado um ciclo e se preparava para iniciar um novo estudo agronômico.

Os planos mudaram ao receber um telefonema de José Roberto Gonçalves, um pequeno empresário de Votupo- ranga, cidade localizada a cerca de 520 quilômetros da capital paulista, que havia lido em um jornal de economia uma nota sobre o estudo realizado com o manjericão. A conversa com Gonçal- ves resultou na abertura de uma em- presa, a Linax Comércio de Óleos Es- senciais, para que o projeto pudesse ser levado adiante com financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP.

O projeto viabilizou a produção de mudas em larga escala, para que em curto espaço de tempo fosse possível instalar lavouras comercialmente viá- veis para produzir manjericão. As pri- meiras mudas levadas a campo eram da variedade maria-bonita, desenvolvida na Universidade Federal de Sergipe pe- lo professor Arie Fitzgerald Blank, com inflorescências roxas no lugar das tradi- cionais brancas. Embora essa variedade

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apresente até 70% do linalol, o cultivo não vingou por conta das irrigações e chuvas da região e foi atacado por fun- gos. "Isso atrasou um pouco o desen- volvimento do projeto", diz Maia.

Crescimento rápido - A escolha re- caiu então sobre uma variedade en- contrada entre as muitas que o IAC mantém em sua coleção, porém sem identificação. Para diferenciá-la da maria-bonita, o técnico agrícola Fa- biano Taveira dos Santos, do Piauí, que no início dos plantios estagiava na Seção de Plantas Aromáticas no IAC, passou a chamá-la de lampião, nome como ficou conhecida entre os parti- cipantes do projeto. A variedade, ape- sar de ter um teor bem mais baixo de linalol, entre 35% e 40%, é muito rústi- ca, resistente a doenças e cresce rapi- damente no campo. Essa característica de crescimento rápido surpreendeu o pesquisador, que teve de refazer as es- timativas para a produção e para o nú- mero de produtores rurais envolvidos no projeto.

No início a expectativa era de uma produção de 15 toneladas por hectare, colhida duas vezes por ano. Hoje esse mesmo volume é alcançado em torno de 70 dias, dependendo de variáveis como adubação, solo, chuvas e época de corte. "Além de a variedade respon- der bem em campo, selecionamos pro-

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dutores que tinham a possibilidade de trabalhar com irrigação, o que reduz o tempo entre as colheitas da planta", diz Maia. "Em vez das duas colheitas por ano, podemos fazer quatro, uma a cada 90 dias." Dessa forma, a produção anual inicialmente estimada em 30 toneladas por hectare dobra de volume e chega a 60 toneladas por hectare.

Hoje são quatro produtores rurais fixos que trabalham para fornecer a matéria-prima para a Linax, todos ins- talados na região de Votuporanga, que reúne as condições ideais de cli- ma quente e solo para a cultura de plantas aromáticas. A limita- ção de água no inverno pode ser contornada com a irrigação. O principal problema observado até agora é a chuva em excesso, sobretudo no verão, o que im- pede a entrada no campo para fazer o corte.

Outros produtores já se can- didataram, mas antes de contra- tar novos fornecedores a empresa quer abrir novos mercados para o produto. A idéia é expandir a área plantada de 30 para 200 hectares. Para isso é necessário conquistar o mercado consumidor in-

terno, além do externo. Como o Brasil não é um tradicional produtor de óleos essenciais, muitos consumidores daqui preferem importar o produto para ga- rantir fornecimento regular e melho- res preços. A exceção fica por conta do óleo essencial de laranja, em que o país ocupa a liderança mundial na produ- ção, mas como subproduto da indústria de citros. Outro óleo produzido em grande volume no Brasil é o de euca- lipto, também um subproduto da in- dústria madeireira.

ntes de iniciar o plantio do manjericão, os produtores receberam mudas multi- plicadas no IAC pela téc- nica de micropropagação. Eles também receberam instruções de como plantar e conduzir a lavoura. Al- guns aspectos agronômi- cos do plantio ainda não foram estabelecidos cienti-

ficamente, como, por exemplo, o espa- çamento mais adequado. "Apesar de ensaios específicos estarem sendo con- duzidos, ainda não foi possível obter os resultados e divulgá-los, o que nor-

malmente leva de cinco a seis anos", diz Maia.

As respostas para essas questões têm surgido da prática, ou seja, quando as copas das plantas começam a se en- contrar é o momento de fazer o corte, porque senão elas começam a competir por luz e as folhas da parte de baixo co- meçam a cair. O corte é feito na base da planta, quase rente ao solo. Por en- quanto essa tarefa é feita manualmente, mesmo porque a área plantada ainda não é tão extensa. Mas a mecanização está sendo estudada. O manjericão cor- tado brota novamente e a produtividade vai aumentando corte a corte, porque a planta se ramifica. A mesma planta fica no campo produzindo durante dois a três anos. Só depois desse período pre- cisa ser substituída por outra muda clonada. O plantio com semente não é recomendado por causa da variação no teor do linalol.

Depois que a colheita é feita, o manjericão é colocado em uma carreta concebida para levar as folhas direta- mente da lavoura para a indústria, sem necessidade de descarregar o material. O óleo é extraído diretamente na car- reta, o que diminui significativamente

Óleo de laranja lidera exportação

A exploração comercial dos óleos essenciais no Brasil teve início na década de 1920, baseada no ex- trativismo de essências nativas, principalmente da madeira do pau-rosa. No decorrer da Segunda Guer- ra Mundial, aproveitando a demanda das indústrias que não podiam ser atendidas pelos produtores tra- dicionais, o país passou a introduzir culturas para obtenção de óleos de menta, laranja, canela, euca- lipto, capim-limão e patchuli. Na década de 1970 chegou a ocupar a liderança mundial de produção de mentol e óleo desmentolado, usados como aro- matizantes na indústria de higiene e de alimentos, com a criação no Instituto Agronômico de uma va- riedade de Mentha arvensis resistente à ferrugem.

Hoje o país ocupa a liderança mundial no co- mércio do óleo essencial de laranja, com 33 mil to-

neladas exportadas na safra 2004/2005. De janeiro a outubro do ano passado, as exportações de 60 mil toneladas de óleos essenciais renderam ao país US$ 80 milhões.

Muitos óleos essenciais usados em produtos de limpeza, farmacêuticos, alimentos e bebidas são obtidos de forma sintética, por razões econômicas. Mas a demanda por produtos extraídos das plantas, como o linalol do manjericão, tem crescido bastan- te. Além disso, as empresas, principalmente do se- tor cosmético e de perfumaria, têm se interessado por novos óleos essenciais.

"Essa é uma boa oportunidade para o Brasil, que detém a maior diversidade vegetal do planeta", diz a pesquisadora do IAC Márcia Ortiz Marques, integrante do grupo de trabalho criado para cuidar da formalização da Associação Brasileira de Produ- tores de Óleos Essenciais. "Isso porque, apesar de ser uma atividade relevante para o Brasil, o setor está desarticulado", diz. O produtor não sabe o que o mercado necessita. Enquanto o mercado busca produtores que forneçam com qualidade, preço e regularidade.

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os custos operacionais. O sistema des- pertou o interesse de empresas tradi- cionais extratoras de óleos essenciais, como do eucalipto.

Para facilitar o trabalho de extração de óleo essencial nos laboratórios de pesquisa, Maia criou um minidestilador feito de aço inoxidável para suportar as agressões químicas e físicas. Nos apare- lhos convencionais, feitos de vidro e de difícil manuseio, o trabalho de carregar e descarregar o material vegetal leva em média uma hora. Com o minidesti- lador, a mesma tarefa demora cerca de um minuto e a destilação é controlada por um sistema elétrico automatizado.

Eficiência dobrada - Como a destila- ção demora cerca de uma hora com qualquer um dos equipamentos, o tem- po gasto para carregar e descarregar o aparelho de vidro foi eliminado. "Isso dobrou a eficiência da destilação", diz Maia. A novidade, apresentada no 3o

Simpósio Brasileiro de Óleos Essenciais, realizado em Campinas em novembro do ano passado, teve boa acolhida. Uma empresa já comprou o aparelho e algumas universidades estão em pro- cesso de negociação com a Linax, bem como com farmácias de manipulação

Óleo de manjericão pode substituir o linalol sintético em cosméticos e perfumes

que trabalham com óleos essenciais destinados a perfumes. O preço fica en- tre R$ 5.500,00 e R$ 5.800,00, depen- dendo dos acessórios colocados. O equi- pamento funciona com energia elétrica, mas pode ser adaptado ao gás natural para ser usado no campo.

O PROJETO

Produção de linalol a partir do óleo essencial de manjericão - uma alternativa ecologicamente sustentável para substituir o linalol do pau-rosa, uma espécie amazônica em risco

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR NILSON BORLINA MAIA - Instituto Agronômico de Campinas/Linax

INVESTIMENTO R$ 400.000,00 (FAPESP)

A planta industrial da Linax foi pro- jetada para receber produto de plantio orgânico, sem aplicação de defensivos agrícolas, separado do não-orgânico, para dessa forma atender a mercados externos que queiram produtos dife- renciados. Mas essa é uma outra etapa da produção. Por enquanto, além de produtora de óleo essencial de manjeri- cão, a empresa tem se destacado como prestadora de serviços. Vários clientes, de cidades em um raio de até 300 qui- lômetros, têm levado plantas para se- rem destiladas lá. São fornecedores da indústria cosmética, farmácias de ma- nipulação e pesquisadores.

Mesmo com os bons resultados já apresentados, a pesquisa com o manje- ricão não pára por aqui. Outras varie- dades, com maior rendimento de óleo e mais resistentes a doenças, continuam a ser testadas. Além disso, outras espécies de plantas aromáticas, como capim-li- mão e patchuli, estão sendo avaliadas para serem plantadas pelos agricultores da região. A idéia da empresa é trans- formar Votuporanga em um pólo aro- mático, capaz de plantar, extrair o óleo essencial e garantir um fornecimento regular tanto para o mercado interno como o externo. •

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O TECNOLOGIA

Van Dyck Falso ou verdadeiro?

Físicos da USP tentam descobrir se pintura que mostra o calvário de Jesus é mesmo do mestre dos retratos do século 17

MARCOS PIVETTA

■ ■* s 8 horas da manhã de 17

V B* de dezembro do ano passa- ^^B H^ do, um sábado, dia em que ■ H as atividades acadêmicas I H naturalmente cessam ou JÊ M diminuem no vasto campus ™ ™ da Universidade de São Paulo, no bairro paulistano do Butantã, um carro conduzido por um motorista particu- lar, e escoltado por seguranças, estacionou em frente ao Instituto de Física. De seu in- terior saiu a restauradora Mareia Rizzo com uma tela de 1 metro de largura por 1,18 metro de altura, que rapidamente foi leva- da para as dependências do Laboratório de Análise de Materiais por Feixes Iônicos (Lamfi), onde uma equipe de pesquisado- res a aguardava para o início dos trabalhos. Naquela data, em vez de fornecer dados para estudos de poluição do ar ou de finos filmes semicondutores ou magnéticos, duas

Dois pontos analisados da pintura: composição química dos pigmentos ajuda a contar a história do quadro

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Quadro atribuído a Van Dyck: tintas antigas e avarias

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de suas principais áreas de atuação, os equipamentos e os físicos do laborató- rio estiveram por horas a fio a serviço de uma iniciativa para desvendar um tipo de mistério corriqueiro, mas mui- to interessante, do mundo das artes plásticas: a origem e, se possível, a auto- ria de um quadro - no caso, uma pin- tura atribuída por seu dono, um colecio- nador particular, ao belga Anthony van Dyck (1599-1641), pintor flamengo que ganhou fama na primeira metade do século 17 por seus retratos de reis e rainhas da Europa, em especial da Cor- te inglesa.

Branco-de-chumbo - Com o auxílio de uma técnica de emissão de raios X co- nhecida por Pixe, que permite identifi- car a composição química elementar de boa parte dos pigmentos usados numa pintura sem promover danos à obra de arte, os cientistas produziram infor- mações importantes sobre como e quando a tela deve ter sido original- mente confeccionada e até mesmo de que maneira foi restaurada ou modificada ao longo de sua histó- ria. Descobriram, por exemplo, que os tons alvos originalmente presentes no quadro, que mos- tra a crucificação de Jesus, pro- vêm do chamado branco-de- chumbo, o pigmento dessa cor mais usado pelos pintores entre a Antigüidade e o fim do século 18. As partes brancas retocadas da pintura, como pedaços do te- cido que cobre a cintura de Je- sus, apresentam outro pigmento, o branco-de-zinco, que só come- çou a ser utilizado a partir do sécu- lo 19, tornando-se o favorito dos artistas. "Por ora, o estudo dos pig- mentos parece indicar que se trata de um quadro realmente antigo, não con- temporâneo", afirma Paulo Pascholati, um dos físicos que participaram das aná- lises. "Mas não podemos precisar a épo- ca, tampouco a identidade do pintor."

Também foram detectadas quanti- dades significativas de pigmentos cas- tanhos, ricos em manganês e comu- mente empregados por pintores que viveram há 400 anos, como o marrom de Van Dyck (terra betuminosa mais ferro e manganês), encontrado no ca- belo do soldado ao lado de Jesus. Havia ainda a expectativa de flagrar na pintu-

ra um tipo de pigmento azul muito va- lorizado durante a Renascença, o azul ultramarino, um complexo de enxofre derivado de uma pedra ornamental, o lápis-lazúli. Embora hoje apareça ex- tremamente escurecido pelo processo de oxidação de sua camada de proteção (ou verniz), o manto da Virgem Maria, uma das personagens do quadro, é da cor azul - e os pesquisadores achavam que ali poderia haver azul ultramarino. Mas só encontraram formas menos no-

Estátua africana: análise da corrosão

bres de azuis, talvez um indício de que o patrocinador da tela, se é que hou- ve um, não investiu muito dinheiro na obra de arte.

A pintura retrata uma cena clássica do cristianismo, o calvário de Jesus. Num fundo bastante escurecido pela ação do tempo, a tela mostra o filho de Deus crucificado ao centro, Maria Ma- dalena agarrada aos seus pés, São João Evangelista e a Virgem Maria de um lado, e um soldado, uma pessoa e um cavalo de outro. O quadro candidato a um Van Dyck apresenta evidências de que, ao longo de sua história, sofreu modificações, restauros e avarias de toda sorte. No canto inferior direito há um rasgo. A tela trocou de moldura vá- rias vezes, sendo obrigada a se adaptar a chassis de diferentes dimensões. Foi ainda dobrada quase ao meio, deixan- do marcas dessa agressão perto do bra- ço direito de Jesus. E apresenta duas emendas: pedaços do tecido foram cor- tados e posteriormente reencaixados à pintura. "O quadro também passou pelo que chamamos de uma limpe- za seletiva", afirma Mareia Rizzo, restauradora há mais de 20 anos e aluna de mestrado em química na USP. O verniz original do quadro — do tipo Dammar-, o mais usado pelos pintores antigos, que tem como característica escurecer em demasia com a passagem do tempo - foi removido apenas de certos trechos do quadro, como na figura do Cristo.

Tempo e espaço - Ninguém ti- nha a ilusão de que, isoladamente,

o estudo com a metodologia Pixe iria resolver a questão central sobre

a duvidosa autoria do quadro. A téc- nica não faz mágica. Na verdade, com a nova abordagem, o que os pesquisado- res queriam era proporcionar mais da- dos que, somados às informações ob- tidas com outras análises científicas e artísticas, talvez ajudem a elucidar o mistério das mãos que pintaram a tela. "O uso dos conhecimentos da física e da química para estudar os elementos de uma obra de arte não fornece res- postas definitivas", pondera Mareia Rizzo. "Apenas ajuda a situá-lo no tempo e espaço." Sempre que há uma controvérsia sobre a autoria de uma tela ou escultura, a palavra final sobre

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a sua autenticidade fica a cargo de es- tudiosos da obra dos grandes pintores. Pessoalmente, Mareia acredita que a tela com o calvário de Cristo seja um trabalho da escola flamenga renascen- tista e deve ter uns 400 anos de idade. Mas, se é mesmo um Van Dyck, ela não arrisca dizer. Alguns especialistas em pintura especulam que o quadro tem um estilo mais próximo ao do pintor flamengo Jacob Jordaens (1593-1678), também nascido em Antuérpia como Van Dyck, que trabalhou os temas religiosos com grande freqüência.

Sigla que em inglês significa Particle Induced X-Ray Emission, a técnica Pixe consiste em expor o objeto a ser analisado a um feixe de prótons produzido por um acelerador de partículas. Os pró- tons colidem com a superfície do arte- fato à sua frente, mais precisamente com os átomos das substâncias que compõem o objeto em estudo, e retor- nam ao equipamento na forma de raios X característicos dos elementos quí- micos da amostra. Cada elemento (o ferro, o alumínio etc.) emite uma ra- diação específica, uma espécie de as- sinatura em raios X. Dessa forma, os pesquisadores conseguem identificar a composição química dos materiais presentes em pontos da amostra extre- mamente pequenos, com diâmetro de 1 ou 2 micrômetros. A Pixe apresenta algumas vantagens quando compara- da com outros métodos não-destru- tivos igualmente capazes de fornecer a composição química dos materiais: não precisa ser realizada num ambien- te sob vácuo, como acontece nos estu- dos produzidos com microscópios de varredura eletrônica, e dá resultados um pouco mais refinados que os da es- pectroscopia de fluorescência de raios X (EDXRF). "Esta última técnica, no entanto, pode ser feita por um equipa- mento fácil de transportar, que pode ser levado a museus", diz Manfredo Tabacniks, do Lamfi/USP. "Com a Pixe, o objeto da análise tem de ser le- vado até o equipamento." No caso da possível tela flamenga, os cientistas chegaram a eleger 30 pontos de análi- se, que cobriam os distintos pigmen- tos que dão cor à obra de arte, mas só tiveram tempo de realizar o estudo em pouco mais de uma dezena deles.

Cada ponto foi bombardeado pelas partículas atômicas por cerca de 20 minutos. O feixe de prótons atravessa o verniz que protege a pintura, chega até as camadas de tinta e retorna com as assinaturas em raios X dos elemen- tos químicos que constituem os pig- mentos usados na tela. Tudo isso sem promover nenhum dano ao quadro.

ão são só os quadros que podem se benefi- ciar das análises por raios X. Técnicas co- mo a Pixe e a EDXRF também são úteis para estudar os materiais constituintes de escul- turas. "Além de carac- terizarmos a liga que compõe objetos e es-

tátuas, podemos identificar os com- postos que provocam a corrosão e le- vam ao acúmulo de depósitos nas peças", afirma a física Márcia Rizzutto, que examinou quatros itens da cole- ção do Museu de Arqueologia e Etno- logia (MAE) da USP com o auxílio de ambas as técnicas. Entre os resultados mais expressivos do trabalho Márcia percebeu que uma estátua da coleção africana do museu - um Edans, pro- duzido basicamente com uma liga de cobre e zinco pela antiga sociedade se- creta Ogboni - apresentava uma cor- rosão bastante seletiva. O elemento zinco de sua liga era mais atacado que o cobre. Esse tipo de dado é impor- tante para os administradores de mu- seus, que têm de se preocupar com a conservação de seu acervo. Num pro- jeto que conta com financiamento da FAPESP, Márcia ainda emprega as téc- nicas para a caracterização de dentes e

O PROJETO

Elementos traço em biomateriais

MODALIDADE Projeto Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADORA

MáRCIA RIZZUTTO • IF/USP

INVESTIMENTO R$ 22.000,00 e US$ 5.000,00 (FAPESP)

vestígios arqueológicos encontrados em sambaquis.

Da Vinci oculto - Em alguns grandes museus, como o Louvre em Paris, o emprego de métodos cada vez mais re- finados de análise das propriedades fí- sicas ou químicas das obras de arte tornou-se corriqueiro nas últimas dé- cadas. A área de conservação e restau- ro desses templos das artes plásticas possui equipamentos similares aos en- contrados nas melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. E quem não os tem freqüentemente abre suas portas para que os cientistas realizem suas medições. Com o auxílio da ciên- cia, um pouco de sorte e muito traba- lho, os especialistas em pintura e es- cultura podem descobrir detalhes até então ignorados da obra de um autor. Mesmo quadros extensivamente esqua- drinhados pelos olhos treinados de es- pecialistas em pintura revelam facetas insuspeitas quando submetidos a no- vas formas de análise.

Em julho de 2005, os curadores da National Gallery, de Londres, divulga- ram a informação de que, escondidos embaixo das camadas de tinta do fa- moso quadro A Madona das rochas, de Leonardo da Vinci, há dois desenhos feitos pelo mestre da Renascença. O primeiro mostra uma Virgem Maria numa pose distinta da que efetivamen- te acabou sendo pintada na versão da tela que faz parte da coleção do museu inglês. Trata-se de uma idéia inicial, um rascunho, que, por algum motivo, Da Vinci não levou adiante. O segundo é o esboço dos contornos finais da cena que acabou imortalizada no quadro. Esse trabalho oculto do pintor só veio à tona porque A Madona das rochas foi filmada por meio de uma técnica com- plementar à fotografia em infraverme- lho, a chamada reflectografia em infra- vermelho, que realça desenhos não visíveis a olhos situados sob o conjunto de pigmentos de uma pintura. A reflec- tografia é boa para salientar desenhos em preto feitos com material rico em carbono, como o grafite. "No Brasil, infelizmente, usamos com pouca fre- qüência as análises físicas e químicas no estudo da arte", comenta Pascholati. Trabalhos como o realizado com o qua- dro candidato a Van Dyck ainda são exceções. •

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HUMANIDADES

SOCIOLOGIA

Pacato cidadão Descrença em instituições, gerada por crise política atual, pede discussão sobre nossa cidadania

CARLOS HAAG

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA

ada melhor do que a música para as orelhas. Em especial para, de vez em quando, dar uma puxada nelas. "ô pacato cidadão, te chamei a

I ■ atenção, não foi à toa, não. Cest I V fini Ia utopia, mas a guerra todo ■ dia, dia a dia, não", canta o grupo

Skank. Essa é a trilha sonora ideal para se ler a recém-publicada pesquisa Cidadania, participação e instituições políticas: o que pensa o bra- sileiro?, realizada pelo Centro de Pesquisa e Docu- mentação da Fundação Getúlio Vargas, que mostra como o brasileiro ainda se conforma com a tese de que o Brasil é, e sempre será, um eterno "mar de lama", contra o qual pouco se pode fazer. Para 79% dos entrevistados, a corrupção é a marca do serviço público; a única instituição democrática que funciona é a Igreja Católica; 72% dos pesquisados acham que os políticos só existem para se dar bem na vida. Esses resultados reforçam o "conformismo" expresso no úl- timo Latinobarómetro, pesquisa feita por uma ONG chilena, que mostra como anda a satisfação latino- americana com a democracia.

Cerca de 43% dos brasileiros entrevistados crêem que uma "mão dura" do governo não faria mal ao país; 48% não se importariam de o país ficar à mercê de empresas privadas se a vida deles melhorasse; e 26%

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pensam que ter um regime democrático ou não-de- mocrático dá no mesmo. A cidadania, entendida como a participação do indivíduo na criação da sua socie- dade, parece pouco desenvolvida entre nós. Uma pes- quisa de 1993 (CESOP/Unicamp) já mostrava a in- diferença nacional sobre a presença dos órgãos de representação como necessária para o funcionamen- to democrático: 30% dos brasileiros acreditavam en- tão que o Brasil poderia passar bem sem o Congres- so Nacional. A descrença de hoje, retomada na crise em curso, portanto, não é uma novidade. Daí a per- gunta: que cidadãos somos nós, tão ágeis em identificar as deficiências institucionais e tão lentos em mudar esse estado de coisas? Somos, efetivamente, pacatos ci- dadãos ou será que nos fizeram acreditar nisso?

sse é o questionamento da pesqui- sa mais recente do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (FGV Editora, 200 págs., R$ 26,00), que tenta entender por que, num país de tantas desigualdades e in- satisfações, nunca houve um movi- mento popular capaz de promover uma reforma na vida nacional. "O Brasil encontra-se muito aquém

do limiar da sensibilidade social e assim tem convivi- do, pacificamente, com a miséria cotidiana, material e cívica, sem gerar grandes ameaças. Aqui, o horizonte do desejo ainda é puro desejo, sem horizonte", avisa o autor. O paradoxo, apontado por Santos, é que, desde os anos 1930, o país experimentou um grande salto econômico e o que ele chama de uma "megaconver- são" eleitoral ("partimos de um eleitorado reduzido em 1945-1950 para outro que, em 2002, correspondia a 68% da população", nota), sem que a cidadania dos vo- tos se fizesse acompanhar por uma cidadania de fruição dos direitos sociais. "Com o fim da ditadura militar e da construção da democracia, a partir de 1985, a palavra cidadania caiu na boca do povo. Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Isso funcionou com o voto, mas não em tudo. As grandes desigualdades sociais e econô- micas continuam e, em conseqüência, os mecanismos e agentes da democracia, como eleições, partidos, Con- gresso, políticos, se desgastam e perdem a confiança do público", analisa José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ e autor de Cidadania no Brasil, o longo caminho.

"Há, ao mesmo tempo, uma recusa histórica do país em configurar um espaço público de enunciação autônoma de direitos ao lado da novidade espantosa de os direitos humanos e sociais e sua regulação pú- blica terem se transformado em obstáculos à cidada- nia, que, dramaticamente transformada, habita agora os espaços do mundo privado e da realização indivi- dual sob governos que se apresentam apenas como gestores de crise e da mudança", avalia a socióloga da USP, Maria Célia Paoli, coordenadora do projeto te- mático Cidadania e democracia: o pensamento nas rup- turas da política, financiado pela FAPESP, que pre- tende dar conta do "desmanche, o largo processo de desregulamentação e internacionalização do mun- do, que se faz destruindo mediações", influindo dire- tamente nos direitos de cidadania e gerando a "priva-

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tização do público, destituição da fala e anulação da política", para usar palavras do sociólogo Francisco de Oliveira, da USP, parte da equipe do projeto. Oliveira questiona, em especial, como todo esse processo pôde ocorrer com tão pouca resistência da sociedade, "um domínio de classe consentido, ativa e passivamente, em que finalmente os dominados partilham os mesmos valores dos dominantes". Talvez a perene desilusão com a política nacional tenha razões que a razão co- mum desconhece. "Onde iremos com todo esse fre- nesi ético-moralizante que parece querer, com seu afã regenerador, bombardear todas as práticas da vida par- lamentar democrática?", pergunta o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp.

"Se cabe presumir que dificilmente criaremos uma sociedade genuinamente democrática, cívica e infensa

à corrupção com a preservação do legado de desigual- dade e elitismo, será razoável esperar que possamos su- perar esse legado sem agir com determinação no sen- tido de criar'artificialmente' os mecanismos legais que possam pretender eficácia em barrar a corrupção e im- plantar uma cultura nova e politicamente mais pro- pícia?", observa o professor da UFMG, Fábio Wander- ley Reis. É um ciclo "viciado": a falta de cidadania real impede uma ação efetiva para mudar o Estado; isso, aliado a um "dar as costas" à política e a uma descren- ça nos políticos, gera um mecanismo nocivo que, por sua vez, impede a criação de formas efetivas de con- trolar a corrupção e de resolver as desigualdades so- ciais. "O difundido desapreço da população pelos di- reitos civis, com certeza, não é irrelevante do ponto de vista da corrupção e seus correlatos", observa Reis. "A insegurança 'hobbesiana' (Hobbes preconizava a ne- cessidade de um Estado que refreasse a busca por po- der, ilimitada, que cada cidadão teria num estado na- tural') e o anseio por um poder autoritário e forte talvez ajudem a explicar as enormes proporções de apoio a hipotéticas lideranças pessoais que pudessem unificar e guiar a nação alheia aos partidos." E, adver- te o professor Marcello Baquero (UFRGS), quanto maior a deslegitimação institucional, maior o apelo de líderes carismáticos, que, por sua vez, contribuem para neutralizar e desacreditar essas mesmas instituições.

Direitos - A história tortuosa da cidadania brasileira é um componente fundamental no estado político e social do presente. "No Brasil experimentamos uma inversão. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em períodos de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um dita- dor, Vargas, que se tornou popular", explica Murilo de Carvalho. "Depois vieram os direitos políticos, de maneira algo bizarra, pois a maior expansão do voto deu-se em outro período ditatorial, o militar, em que os órgãos de representação política foram transforma- dos em peça decorativa do regime." Numa gangorra, sempre que o país incrementou os direitos políticos deixou de lado os sociais, e vice-versa. Essa lógica per- versa deixou seqüelas: a excessiva valorização do Executivo, pois, se os direitos sociais foram imple- mentados em períodos ditatoriais, criou-se a ima- gem, para o grosso da população, da centralidade do Estado. As melhorias sociais sempre vieram em- baladas em clientelismo. "Os benefícios sociais não eram tratados como direito de todos, mas como fru- to da negociação de cada categoria com o governo.

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Assim, a sociedade passou a se organizar para garan- tir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Esta- do", nota Murilo de Carvalho. Ou, nas palavras de Baquero, estabeleceram-se no Brasil "relações sociais terciárias", a saber, um laço direto entre Estado e in- divíduo, o qual se sente devedor do Executivo, em de- trimento dos partidos. A representação se fragiliza.

modelo neoliberal, adotado em es- cala global, ao chegar ao país, afe- tou ainda mais esse quadro, inver- tendo-o sem, no entanto, resolver suas mazelas. "O pensamento libe- ral insistiu na importância do mer- cado e na redução do papel do Es- tado. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afas- tado de preocupações com a polí- tica e os problemas coletivos", diz Murilo de Carvalho. "Hoje as pes-

soas não querem ser cidadãos, mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicam é a do direito ao consumo, a cidadania pregada pelos novos liberais. A cultura do consumo dificulta o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós, qual seja, a capacidade do sistema representativo de produ- zir resultados que impliquem a redução das desigual- dades de todo o tipo." Oliveira vai ainda mais longe. "Todo esforço de democratização, de criação de uma esfera pública no Brasil, decorreu da ação das classes dominadas." Daí, defende, os vários momentos em que o Estado "silenciou" essas vozes em nome da "harmonia social", da anulação política, do consenso, na contra- mão do "desentendimento social", construtivo à medi- da que permite que a sociedade participe ativamente da construção de seu universo sociopolítico-econômico. "É um deslocamento que tenta subaltenizar a presença política dos atores e de suas demandas e significa uma descapacitação da representação e da participação so- cial nas esferas de decisão política", analisa Célia Paoli.

Se antes era o Estado poderoso que dificultava a efetivação da cidadania, a partir da década de 1990 será a propagação do ideal de um Estado "falido" o res- ponsável pela desmobilização dos cidadãos. "Se o Esta- do, por longo tempo, subsidiou a formação do capi- tal, com a chegada da crise da dívida externa dos anos 1980, convertida depois em dívida interna pública, esgotou-se o papel de condottiere do Executivo na ex- pansão capitalista", avalia Oliveira. Criou-se a ima- gem do Estado esgotado. "Essa crise interna do gover-

no colocou os holofotes sobre a despesa pública e con- verteu as despesas sociais públicas no bode expiatório da falência do Estado, quando na verdade isso se deveu à dívida interna pública e ao serviço da dívida externa." Estabeleceu-se, segue o sociólogo, a ilusão de que o Estado apenas sobreviveria como extensão do univer- so privado, que "sustentaria" o governo, quando, afir- ma, o caminho é o inverso. Segundo Oliveira, nasceu a falsa consciência da desnecessidade do setor público, que deveria funcionar com a mesma rationale da em- presa privada. Logo, nada mais natural que o cidadão troque sua cidadania pelo consumo de mercadorias.

Essa permuta, porém, traz implicações: o indiví- duo é obrigado a resolver sozinho seus problemas en- quanto a massa demanda cada vez mais do Estado. O primeiro se verifica nas páginas policiais. "No híbrido

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constitucional que se associa o confinamento regula- tório da cidadania a um hobbesianismo social, impe- ram a violência como modo rotineiro de resolução de conflitos intersubjetivos e o comportamento predató- rio, que, nesses tempos, vêm se generalizando na socie- dade brasileira", analisa Vera Telles, socióloga da USP. Do lado da massa, observa Santos, a insatisfação de- corre do aumento do volume de demandas de uma are- na política superpovoada, pedidos que não são fáceis de serem atendidos pelo Estado no seu momento atual. "A insatisfação da população não é tanto com a demo- cracia em si, mas com o subdesenvolvimento das ins- tituições democráticas. Nos últimos 10, 15 anos, o país ingressou num processo de subdesenvolvimento institucional, à medida que a expansão e o amadure- cimento da sociedade política, sua crescente hetero-

geneidade de grupos de interesse, não se vêem ade- quadamente expressos nas instituições", acredita.

Apatia - Afinal, como lembra Nogueira, o Estado foi apropriado por interesses particulares, que foi obrigado a intermediar. "Ele foi fragmentado, aprisionado pelos vários privatismos e incapacitado de responder às mul- tiplicadas demandas sociais, dar condições aos setores estratégicos (educação, saúde) e continuar coordenan- do o desenvolvimento." Diante disso, o sistema, obso- leto, derrapou. A população, porém, queria mais. "Ao passado ditatorial recente se atribuiu a maior parcela de responsabilidade pelo precário status quo, concluin- do, com lógica certeira, caber à democracia que o su- cedeu a tarefa de providenciar o desaparecimento até do mais minúsculo vestígio das mazelas herdadas", nota Santos. Era, porém, tarde demais e o futuro trouxe mais frustração do que contentamento com a revelação do peso da inércia do estado de coisas. Ainda assim, a po- pulação mantinha-se apática. Como se conseguiu isso?

Uma hipótese, adotada por Santos, é a chamada "privação relativa", o hiato entre a condição de vida percebida pelo indivíduo e aquela que ele considera que deveria ter, por mérito ou compensação social. Quanto mais modesto o consumo real, maior o gap entre o que alguém possui e o horizonte do seu dese- jo. Esse componente, num país marcado pela instabi- lidade, gera uma elevada taxa de incerteza, estimulan- do nas pessoas uma "aversão ao risco", em especial nos mais pobres, temerosos do desemprego, da violência policial e da marginalização. Acrescente uma falta crô- nica de organização (com sindicatos enfraquecidos etc.) e você terá uma sociedade inerte. "Os partidos não são procurados, nem os políticos. Há evidente descompasso entre a magnitude das carências sociais e o empenho da sociedade em resolvê-las. Não sobra tempo para isso, ante a alocação prioritária do tempo e recursos dos indivíduos na solução de problemas pessoais e familiares." Melhor deixar como está.

Esse raciocínio, em nada destituído de sentido, faz com que falta de cidadania e desigualdades tenham, segundo Santos, "o amparo da indiferença". O cálculo que se faz é quanto se pode perder, agindo, ou ganhar, calando. O resultado é óbvio e se revela na convivên- cia quase pacífica com miséria cívica, moral e mate- rial. "O custo do fracasso' das ações coletivas pode ser elevado, levando-se em conta a deterioração do status quo dos participantes, circunstância ameaçadora o suficiente para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados." .

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O HUMANIDADES

ECONOMIA

Me dá um dinheiro aí

ILUSTRAÇÕES HÉLIO DE ALMEIDA A curta travessia do Estado de bem-estar social à distribuição de migalhas

Antes tarde do que nunca: isso po- de valer para muitas situações, mas foi fatal para a cidadania brasileira. "Foi com um atraso de 40 anos que se deu a chegada no Brasil do Estado de bem- estar social, a incorporação do paradigma dos 'anos de ouro' do

welfare state, adotado pelos países capitalistas centrais logo após a Segunda Guerra Mundial. A aplicação dessa agenda, por meio da Consti- tuição de 1988, surgiu na hora errada e vinha na contramão da nova agenda, neoliberal, que ne- gava esse projeto", explica Eduardo Fagnani, da Unicamp, autor da tese de doutorado Política social do Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade. "O projeto de Estado de bem-estar social, que se anunciava na chamada Constitui- ção Cidadã como a definiu Ulysses Guimarães, foi progressiva e calmamente destruído de 1990 em diante, em pequenas doses, e o ponto co- mum dos 40 anos analisados na tese é que, para os miseráveis, sempre se reservaram as sobras de um processo de crescimento que alçou o país ao rol de uma das maiores economias do mun- do", observa o pesquisador.

Nesse caso, o tarde significou nunca. "Verifi- cam-se dois movimentos opostos da trajetória da política social brasileira entre 1964 e 2002. Um deles aponta para a estruturação das bases institucionais e financeiras típicas do welfare state em nosso país, num processo esboçado a partir dos anos 1930, com notável impulso nos anos 1970, na redemocratização, e desaguou na Constituição de 1988", diz. "O outro aponta no sentido contrário: o da desestruturação daque- las bases. Após as primeiras contramarchas, nos últimos anos da transição democrática, a deses- truturação da frágil cidadania conquistada em

1988 foi revigorada a partir de 1990." Na traves- sia, que Fagnani divide em quatro etapas histó- ricas, o Estado de bem-estar social transforma- se em distribuição de migalhas para os pobres.

Intervenção - O sistema social brasileiro come- ça a emergir nos anos 1930, mas ganha a sua primeira "cara", feia por sinal, no período da di- tadura militar, marcado pela implementação de uma estratégia de modernização conservadora, que potencializava a capacidade de intervenção do Estado. "Essa modernização possibilitou o aumento da oferta de bens e serviços para as classes de média e alta renda, mas o seu caráter conservador impediu que seus frutos fossem di- recionados para a população mais pobre e ti- veram impacto reduzido na redistribuição de renda", analisa Fagnani. Mas deixou marcas profundas na política social: um financiamento do gasto social de caráter regressivo; centraliza- ção do processo decisório no Executivo; privati- zação do espaço público; fragmentação institucio- nal. A partir dos anos 1970 e mais intensamente no fim do regime, nos anos 1980, as forças de oposição começaram a formular uma agenda cujo núcleo era a construção de um efetivo Es- tado de bem-estar social, em que o MDB teve um papel de destaque como agente catalizador. Em 1984 esse ideário passa a ser assimilado pela chamada Frente Liberal, o bloco de dissidentes da base da ditadura, e, entre 1985 e 1986, pela retórica governamental da Nova República.

Agora a luta ocorria dentro do próprio Esta- do, provocando, em 1985, a criação do Minis- tério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad) e, um ano depois, a instituição do segu- ro-desemprego. Pouco depois houve iniciativas de mudanças na previdência, na saúde, na edu- cação e chegou-se mesmo a implantar um pro-

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grama de ações emergenciais de com- bate à fome com os Programas de Su- plementação Alimentar. Parecia que o Brasil caminhava para o "melhor mun- do dentre os mundos possíveis". Pan- gloss nos trópicos? A Constituição de 1988 parecia indicar esse caminho. "Ela foi uma etapa fundamental, embora inconclusa, da viabilização do projeto de reformas socialmente progressistas. Pela primeira vez na história do país havia um embrião de Estado de bem- estar social, universal e equânime", ava- lia o pesquisador. "Seu âmago residia nos princípios da universalidade, da seguridade social (em vez do seguro social, em que só tem direito quem contribui), da compreensão da ques- tão social como um direito de cidada- nia, e não caridade ou assistencialismo clientelista", avalia o economista.

Estávamos, enfim, como queria Voltaire, cuidando do nosso jardim. Mas o francês logo deu lugar à trucu- lência hobbesiana e as primeiras con- tramarchas ocorreram logo em 1989, com a fragmentação Ê da base da Aliança Democráti- ca. "As forças que haviam ser- vido de apoio para o regime militar, em especial o PFL, vol- taram para o poder e, comanda- das pelo então presidente José Sarney, iniciaram o processo de desestruturação do precário Estado de bem-estar social, re- cém-saído das gráficas do Congresso", observa o autor. O Mirad foi extinto e perdeu-se, diz Fagnani, de fazer, como nos países capitalistas avançados, a necessária reforma agrá- ria no Brasil. No Ministério da Saúde os defensores do Sistema Único de Saúde (SUS), visto pelo pesquisador como um dos maiores programas gratuitos de saúde do mundo, foram substituí- dos e assim por diante. "O governo re- tornou ao velho caminho da ditadura, marcado pelo clientelismo, centraliza- ção financeira, assistencialismo e pri- vatização do público. A tese que surge é que o país seria 'ingovernável' com a nova Constituição, argumento usado pelos segmentos retrógados cujos pri- vilégios haviam sido arranhados por ela." O jardim murchava.

A área econômica dos sucessivos governos pós-ditadura seria o herbici- da a matá-lo. "As equipes econômicas

sempre tinham argumentos técnicos sobre a inviabilidade financeira das pro- postas parlamentares e o gasto social brasileiro, aplicado em políticas que as- seguravam direitos universais conquis- tados na Constituição, foi se tornando, progressivamente, o vilão da estabilida- de da moeda e das contas públicas. Além de elevado', ele seria apropriado por uma casta de 'velhos e vagabundos', em detrimento da educação das crian- ças", conta o pesquisador. O ambiente externo era favorável a esse tipo de pen- samento. Estava em curso a Terceira Revolução Industrial, que exigia com- petitividade e produtividade e pregava a contenção neoliberal na direção do Estado. No Brasil, argumenta Fagnani, esse movimento, que era desfavorável à inclusão social e à redução das desi- gualdades, aterriza num momento em que o modelo de Estado nacional de- senvolvimentista se esgotava. Chegou a contra-reforma e o seu inquisidor foi Fernando Collor.

s princípios que orientam o contra-reformismo neo- liberal na questão social eram antagônicos aos da Carta de 1988: o Estado de bem-estar social é substi- tuído pelo Estado mínimo: volta o seguro social, a fo- calização, o Estado regula- dor com suas privatizações e os direitos trabalhistas

são destituídos pela sua flexibilização. A Constituição Cidadã vira vilã." A fra- gilidade da Carta foi a força de Collor. O texto constitucional delimitava ape- nas princípios gerais e era necessário a regulamentação da legislação comple- mentar. "A intenção clara do governo, ao lado das elites, era obstruir ou des- figurar essa legislação usando mano- bras que incluíram descumprimento de regras constitucionais, desconside- ração de prazos, interpretação espúria de dispositivos legais e descaracteriza- ção das propostas por veto do presi- dente", lembra Fagnani. O que se pre- tendia, acredita o autor, era aproveitar a revisão constitucional, prevista para 1993, para jogar tudo na lata do lixo. Mas o impeachment, em 1992, impediu o movimento direto. "A 'moderniza- ção' da Constituição foi adiada, pois não havia clima para mudanças após

toda aquela movimentação popular, e implementada em pequenas doses, em sucessivas contra-reformas, por leis tó- picas, eficazes, entre 1993 e 2002." Ho- meopaticamente.

Pobreza - Segundo Fagnani, a estraté- gia do conta-gotas funcionou bem, mas acarretou o aumento da crise social, observada, em especial, na desestrutu- ração do mercado de trabalho e seus efeitos sobre o emprego e as condições de vida da população. Além disso, lem- bra, houve também uma limitação à expansão do gasto público social e em infra-estrutura para ampliar o espaço de pagamentos de juros da dívida pú- blica, que, diz, recebeu a denominação impertinente de responsabilidade social. Cria-se no Brasil a mentalidade de que a "pobreza está universalizada" e pouco se pode fazer, além de ações filantrópi- cas, em acordo com o setor privado, para ajudar os miseráveis a sobrevive- rem como tal. "O interesse em manter o status quo social foi determinante para termos perdido a chance magnífica de implantar um Estado de bem-estar so- cial", lamenta. "O que pagamos em três dias de juros das dívidas interna e ex- terna é o mesmo que o Brasil gasta em um ano com a reforma agrária. Vinte dias de juros é o que gastamos em dez anos de habitação popular e o mesmo vale para o saneamento básico."

Embora sua tese não chegue até o governo Lula, Fagnani acredita que "o espectro do desmonte do sistema de proteção social de caráter universal e igualitário em favor do Estado mínimo, marcado pela crescente importância de programas de transferência de renda, continua a rondar os bastidores do po- der do Brasil". "Essa percepção apóia-se na constatação do contínuo estreitamen- to das possibilidades de financiamento do gasto social e no não menos formi- dável poder que as instituições interna- cionais de fomento ainda detêm na de- finição do destino da nação. Sem falar no conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas e na tentação do caminho fácil do assistencialismo e seu uso clientelista e eleitoral, revigorado na atual conjuntura de fragilização do governo." O "me dá um dinheiro aí" está forte como nunca. •

CARLOS HAAG

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O HUMANIDADES

MUSICA

Cardinales bonitas GONçALO JúNIOR

Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento mar- cante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa "aquela" música no rádio, emoções como sauda- de, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, re- pensar sua existência. Muitas vezes essa experiên-

cia acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para futuras lembranças e sensações. Neste caso, aconteceu algo parecido com o professor e jornalista Fernando Mesquita, que, em 1982, ouviu Luz do sol, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa.

Sua impressão imediata foi de "um tremendo susto metafísico". Mais que isso, transformou-se em uma espécie de "eixo central" do conjunto de 12 canções que mais de duas décadas depois compo- riam a tese de doutorado A luz do sol da canção - o simbolismo solar na obra de Caetano Veloso, orientada pelo acadêmico e compositor José Miguel Wisnik e defendida em 2004 no Departamento de Letras Vernáculas (área de literatura brasileira), da Faculdade de Le- tras da Universidade de São Paulo (USP). "Na época (e também agora) pareceu-me uma canção cantada do paraíso." Quando ter- minou de ouvi-la, veio-lhe à mente que se tratava de "um hino gre- go ao sol!". Nem sabia por que pensou isso, admite.

A experiência não mais lhe saiu da cabeça. Seis anos depois, Mesquita descobriu ser o verso inicial de Luz do sol bastante seme- lhante ao do famoso Peã X, de Píndaro, um hino de súplica ao sol composto por ocasião de um eclipse. A palavra peã vem do grego paian - quer dizer salvador, protetor, um dos epítetos do deus Apo- lo - e representa um poema lírico, hino de invocação ou graças de- dicado aos deuses salvadores e protetores na Grécia da Antigüida- de clássica.

Se Caetano canta: "Luz do sol/ que a folha traga e traduz", Pín- daro disse: "Luz irradiante do sol! tu que vês tantas coisas". Ou seja, inicialmente a pronúncia é feita em forma de saudação ou invoca- ção do nome da divindade (luz do sol, luz irradiante do sol). De- pois, através de uma relativa articulada pelo que, a formulação de um elogio em forma de epíteto. O que o autor desconhecia era que a dupla "nome pronunciado/epítetos" é uma "célula eulógica" (de elogio) de alcance universal, pois está no fundamento de todas as

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Tese analisa canções de compositor baiano e identifica aproximação de sua obra com símbolos sagrados de diversas naturezas

doxologias - as hínicas de louvor à gló- ria da divindade.

Ao aprofundar sua pesquisa, Mes- quita pôde determinar um paradigma de hinos solares de diversas civilizações - egípcia, védica, greco-romana, armê- nia, inca, cristã-medieval, zoroastriana, xiita iraniana etc. Encontrou 11 hinos exatamente com a mesma estrutura e, o que é mais importante, na sua opinião: Luz do sol, apesar de ser uma canção brasileira contemporânea, se encaixa nesse paradigma "como se fosse um hino a mais". Aliás, acrescenta o autor, esse "encaixe" não está só na reiteração da "célula eulógica" inicial e geradora. Há também marcantes "homologias estruturais" (não há como escapar do chavão). "Homologias que eu prefiro interpretar como 'passagens' para o universo da simbólica sagrada de civili- zações tradicionais e que, é óbvio, não se restringem à Luz do sol, mas que apa- recem em inúmeros pontos da obra de Caetano."

Esse aspecto do paradigma, no en- tanto, não entrou no texto final da tese. A decisão de excluí-lo veio da sugestão do orientador. Na opinião de Wisnik, significava uma digressão muito ampla na análise da obra de Caetano. Ao mes- mo tempo faria "pesar" demais a aná- lise para o lado do sagrado. "Embora concordasse com essas observações, achei também que, como é muito inte- ressante e esclarecedor, esse desvio aca- baria por ser um estímulo à leitura. Fiz o corte porque senti que esse paradig- ma ainda não estava 'em ponto de pu- blicação'." Ao trabalhar na versão para livro, o que faz neste momento, o autor

percebeu que seria fundamental desen- volver a questão dos quatro arquéti- pos para dar mais clareza, o que impli- ca uma definição cabal e precisa do que ele entende por "arquétipo" - o que, por sua vez, levou a um estudo da feno- menologia do olhar visionário.

O trabalho de Mesquita apresenta uma bem fundamentada argumenta- ção para destrinchar as canções - que pode ser um deleite de descobertas para os fãs de Caetano. Pelo seu con- ceito, canções solares são aquelas nas quais o sol aparece - tanto o sol físico, aquele "que todos vêem com os olhos", como o simbólico, transcendente, que "nem todos vêem". Os exemplos são muitos. Além de Luz do sol, ele cita Trem das cores, Leãozinho, Força estra- nha (esta, um "tremendo" hino solar), O estrangeiro etc.

Sol negro - Como os símbolos sagra- dos sempre são ambivalentes, apresen- tam uma face "negativa", também apa- recem Canções do sol negro: Sol negro, O ciúme, Dor-de-cotovelo, Tigresa etc. A análise inclui também duas músicas de não autoria de Caetano Veloso. Cores vivas é de Gilberto Gil; e O velho, de Chico Buarque. Nesse caso, a escolha se deu porque Caetano declara, no libreto de Velo, ter escrito O homem velho em resposta a O velho.

A busca por evidenciar símbolos sagrados nessas canções levou Mes- quita a interpretar por que na obra de um compositor contemporâneo, situa- da "em plena pós-modernidade", aflo- ram esses elementos de natureza di- versa. "Por achar que há uma ênfase

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solar nas can- ções de Caetano,

concentrei-me nos símbolos solares sa-

grados." Na verdade, acrescenta, a presença

mítica não é uma carac- terística apenas nas mú-

sicas do compositor baia- 'A meu ver, há um

movimento geral nesse sen- tido na cultura brasileira e

Caetano é um dos 'espelhos privilegiados' disso."

Pode-se perceber, por exemplo, no caso de alguns escritores impor-

tantes da literatura brasileira. Mutatis mutandis, permitiria "perfeitamente"

notar a presença do sagrado em Gui- marães Rosa, que seria ainda mais rica e abrangente do que em Caetano. "A obra de Clarice Lispector está esplen- dorosamente salpicada de epifanias." Ou, se alguém "dispuser da paciência, da amplitude e da capacidade de traba- lho necessárias", poderá fazer uma ma- ravilhosa leitura mítica dos enredos das escolas de samba. Estes teriam o poder de contar a "história sagrada do passa- do" e a "história sagrada do futuro" através de formas mestiças, num espe- táculo de "arte total", como imaginou Wagner e observou Wisnik.

Nessa interpretação final, verifica Mesquita, Caetano trata do Brasil co- mo uma sociedade e uma cultura mes- tiças situadas numa "dobra do tempo" que oscila entre um tempo profano

8 aparente, pós-moderno e globalizado, e | um tempo sagrado no anverso, por en- 1 quanto se manifestando através de "ci-

fras". "Por enquanto" porque o pesqui- sador está convicto de que "no futuro" esse tempo será claramente dominante, como anuncia, por exemplo, a canção Um índio, cuja interpretação da letra fecha sua análise.

Militância - Fernando Mesquita tem um histórico de vida que o liga decerto à obra de Caetano - para muitos, ícone maior de sua geração. Nascido em São Paulo, ele se envolveu diretamente na luta armada contra a ditadura - foi par- ceiro do líder guerrilheiro Carlos Lamar- ca e ficou preso em Salvador durante três anos na década de 1970. Quando veio a anistia, passou a militar na impren- sa alternativa. No começo da década de 1980 mudou-se para Mato Grosso, onde permanece até hoje, fiel às suas convic- ções políticas. "Recordo com muita sa- tisfação da resistência à ditadura, faria tudo de novo, nunca embarquei no can- to da sereia acrílica do neoliberalismo."

Em todo esse período junto à flo- resta, ele viveu como um "alternativo à beira do mato". Durante um bom tem- po sentiu-se "completamente perdido", mas sem nenhuma vontade de voltar para São Paulo ou de "ser achado". De- pois "de tanto me perder, acabei me en- contrando", brinca. Mesquita acredita que, se existe algum mérito em sua pos- tura, foi o de não ter sido comodista, não ter temido "virar ninguém". Ele ga- rante, porém, que suas descobertas do sagrado em Caetano Veloso não tive- ram como base nem o militante polí- tico nem o jornalista alternativo.

O pesquisador afirma que Caetano não criou essas canções em decorrên-

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Luz do sol que a folha traga e traduz em verde de novo em folha, em graça, em vida, em luz

cia de um "porquê". Simplesmente as compôs. Aliás, diz ter uma sensação muito forte de que ele não vai concor- dar com sua abordagem. Pior, "vai mesmo detestar minhas análises". Che- gou a essa conclusão a partir de conversas com seu orien- tador. Wisnik conhece bem Caetano e disse a Mesquita que ele tem verdadeira oje- riza ao "pessoal babaco- wm místico", dos "papos de altas ^ transações", que o conside- ra, babosamente, um "vate", um "inspirado dos deuses".

Não é o caso de sua abor- dagem, garante o jornalista. "Acho que esse tipo de 'veneração igno- rante' já criou uma predisposição nele, de modo que será muito difícil que não sinta no que fiz algo parecido, ainda que um pouco mais sofisticado." E acrescen- ta: "Acredite, a opinião de Caetano, de verdade, não pesa sobre mim. Você acha que poderia acontecer isso depois (por exemplo) de uma experiência co- mo a do Peã, de Píndaro? E tive várias outras coincidências durante a feitura da tese".

Para o autor, o artista baiano é um gênio no sentido usado para os poetas greco-romanos - um "inspirado pelas musas", não no sentido convencional e rococó do parnasianismo, mas naque- le que envolve "o terror e o fulgor da presença do sagrado". E, todo inspira- do, "diz muito mais do que sabe". Mes- quita interpreta que, se o sagrado se apresenta cifrado em muitas das suas canções, é porque corresponde a um movimento real na própria cultura

brasileira. Assim, "o que ele fez foi rea- lizar uma tradução afinadíssima desse sagrado emergente, ao mesmo tempo que compôs uma obra plenamente contemporânea".

partir da idéia de que não há uma "tradução para" e sim uma "tradução de si mes- mo", por fidelidade a si, Cae-

wm tano, "com toda razão, não aceita, tem rejeição mesmo, ser tomado como 'mensagei- ro do sagrado'". Por outro lado, "quer ele queira ou não, quer goste ou não", o anún- cio dessa "duplicidade" está

na sua obra em diversos momentos. Um dos mais marcantes seria em Po- dres poderes, no verso-pergunta "Será que apenas os hermetismos pascoais/ Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais/ Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ E nada mais?" A expres- são "hermetismos pascoais", no univer- so da música popular brasileira, seria uma referência à maneira de compor de outro gênio, Hermeto Paschoal.

Entretanto, permite outra leitura. "Hermetismo", segundo o dicionário Houaiss, "é o conjunto de doutrinas si- multaneamente místicas, astrológicas, alquímicas, mágicas tangencialmente, filosóficas, atribuídas pelos seus autores da antigüidade greco-latina à inspiração do deus Hermes Trismegisto, identifi- cado ao deus egípcio Thot - surgido nos primeiros séculos da era cristã, influen- ciou teólogos, alquimistas e filósofos na Idade Média, Renascimento e Iluminis- mo". "Pascoal" (ou "pascal") significa o

que é próprio da Páscoa, festa que, se para os cristãos comemora a ressurreição de Cristo, para os judeus nômades da era mosaica tem a ver com outra ressurrei- ção - a eclosão da primavera ao fim do inverno, estação frígida, estéril e escura.

Nos dois casos trata-se de um re- nascimento anunciado ao cabo de uma "travessia". Assim, diz Mesquita, a ex- pressão "hermetismos pascoais" pode ser entendida como algo que se refere aos "símbolos herméticos" (cifrados, de difícil interpretação) que anunciam um "renascimento" ou uma "ressurreição" pascoal destinada a "nos salvar das tre- vas". "Salvar" aparece como verbo com eminente sentido sagrado. "Essa anun- ciação (o verbo está no futuro - 'nos salvarão'), evidentemente, é feita pelos 'Hermetos Paschoais', pelos composito- res geniais - 'tons' (Tom Jobim), 'mil tons' (Milton Nascimento) etc. - da MPB." Uma anunciação luminoso-so- nora feita em meio às trevas, segundo o Evangelho de São João.

A tese de Mesquita - que deve sair em livro até o fim do ano - não vê a pre- sença do sagrado como uma espécie de "âmago oculto e fundamental" da obra de Caetano, e sim como um aspec- to de uma obra "inteiramente insta- lada na ponta da contemporaneidade, em pleno mundo dessacralizado e des- centrado, ao qual suas canções aderem com perfeição protéica, multiforme e acolhedora, percorrendo todas as possí- veis 'entradas e saídas' de gêneros, esti- los, modos etc". Aspectos para reflexão que são bem-vindos pela importância de Caetano Veloso na história da MPB. Não era sem tempo. •

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Resenha

Descobrindo a natureza distante A trajetória tecnológica recente no conhecimento do Universo

MARCOS DE OLIVEIRA

i Novas janelas para o Universo

11 uantas indagações I podemos fazer ■ sobre a imagem

negra do céu sal- picada por pontos lu- minosos e brilhantes. Essa distante natureza sempre suscitou per- guntas, mas ela só co- meçou a ser desvendada e entendida cientificamente, e de forma mais rápi- da, com o suporte tecnológico do século 20. Teles- cópios imensos, satélites, balões atmosféricos e ins- trumentos de radioastronomia foram capazes de vislumbrar um Universo invisível aos nossos olhos, detectado pelas ondas de rádio, dos raios X, gama, infravermelho e ultravioleta. A importância desses equipamentos na comprovação de teorias e no acú- mulo de conhecimento do Universo está no livro Novas janelas para o Universo, de Maria Cristina Batoni Abdalla, do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Thyrso Villela Neto, do Instituto Nacional de Pesquisas Es- paciais (Inpe). Eles desenvolvem uma abordagem em linguagem acessível aos não-iniciados, fazendo relatos como a breve história sobre os raios cósmi- cos, partículas extremamente energéticas que atin- gem a atmosfera terrestre. Eles foram descobertos em 1912 por detectores em um balão a 5 mil me- tros de altitude e hoje são estudados no Observató- rio Pierre Auger, instalado por várias nações, inclusi- ve o Brasil, no sul da Argentina.

Os autores contam também a história do enge- nheiro norte-americano Karl Jansky, da Bell Tele- phone, que abriu a janela da radioastronomia de forma acidental ao procurar defeitos numa ligação telefônica. Ele identificou ruídos gerados em uma região do céu que mais tarde foi identificada como o centro da nossa galáxia. Depois disso as ondas de rádio, por meio de radiotelescópios que operam do solo ou em balões e satélites, foram capazes de des- cobrir os quasares, os pulsares e a radiação cósmica de fundo. Cristina e Thyrso se preocuparam em ex- plicar cada uma dessas entidades espaciais e em re- passar informações curiosas que tornam a comple- xidade cosmológica mais próxima do dia-a-dia. Eles

Maria Cristina Batoni Abdalla e Thyrso Villela Neto

Editora Unesp 120 páginas R$ 15,00

lembram, por exemplo, que a radiação cósmica de fundo, um ruído que está em todas as direções do Universo, pode ser detecta- da num aparelho de TV em um canal sem transmissão. Cerca de 3% daquele ruído chato faz parte dos primór- dios do Universo porque está associado a uma época antes do surgimento de ga- láxias e de planetas. Outra

boa influência nos estudos astronômicos vem dos raios X, como fica evidente no exemplo da estrela Sírius, a mais brilhante do céu e 10 mil vezes mais brilhante que sua companheira, a Sírius B, na faixa do visível. Com os raios X, o ofuscamento é ao con- trário e mostra uma outra realidade dessas irmãs.

Ao tratar dos satélites com missão específica, os autores mostram que, em alguns casos, a distância de alguns anos consegue dar tempo a uma melhor análise dos dados e a um resumo mais solidificado do conhecimento gerado. É o caso dos dados coleta- dos entre 1989 e 1993 pelo High Precision Parallax Collecting Satellite (Hipparcos), que a partir da aná- lise de um grupo de estrelas ajudou os astrônomos, em 1998, a concluir que o Universo está em expan- são acelerada, ao contrário do que se imaginava, com a força gravitacional desacelerando a expansão.

O livro de Cristina e Thyrso faz parte da série Novas Tecnologias da coleção Paradidáticos da Edi- tora Unesp. A série traz mais três livros a serem lan- çados neste ano. Da internet ao grid: a globalização do processamento, de Sérgio Novaes e Eduardo Gre- gores, ambos do IFT, que mostra a grandiosidade das informações geradas nos aceleradores de partí- culas como o atual Fermilab, nos Estados Unidos, e o futuro LHC, na Europa. O outro é Energia nuclear: com fissões e com fusões, dos professores Diógenes Galetti, do IFT, e Celso Lima, da Universidade de São Paulo (USP). Eles apresentam um panorama da pesquisa no uso dos átomos para gerar energia. O quarto livro é do professor Vanderlei Salvador Bagnato, da USP, O laser e suas aplicações em ciên- cia e tecnologia, que revela desde o aparecimento desse feixe de luz concentrada até as mais diversas aplicações, nas telecomunicações, na medicina, na indústria e no entretenimento.

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Livros

Machado de \"i- /—A

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Machado de Assis: um gênio brasileiro Daniel Piza Imprensa Oficial 416 páginas, R$ 60,00

Ele, que contou em seus livros todos os nossos segredos, manteve para si os seus. A vida de Machado

já foi contada várias vezes, mas esse novo perfil, escrito pelo jornalista Daniel Piza, se beneficia de toda a bibliografia crítica mais recente, que trouxe novas luzes sobre o que diziam seus livros. Bem escrito, didático, é um bom resumo de tudo o que já se escreveu sobre o autor.

Imprensa Oficial do Estado (11) 6099-9800 www.imprensaoficial.com.br

Mito e música em Guimarães Rosa Gabriela Reinaldo Annablume/ FAPESP 242 páginas, R$ 38,00

Uma forma inovadora de "ver" a obra rosiana, justamente "fechando os olhos" para as imagens que ele cria

e concentrando-se no prazer sonoro das palavras. Rosa se preocupava com a oralidade de suas obras, na tradição de um Homero e das histórias contadas, em que os sons das palavras pegam o leitor tanto quanto o seu conteúdo. O estudo dá, nesse movimento, um estatuto mítico aos textos de Rosa. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Getúlio Vargas & a economia contemporânea Támas Szmrecsányi (org.) Editoras Unicamp / Hucitec 208 páginas, R$ 35,00

Reunião de textos de intelectuais como Octavio Ianni, Francisco Iglesias, Jacob Gorender, entre outros, esse estudo

revela o impacto da figura de Vargas sobre como se organizou a economia brasileira, a partir de sua ascensão, nos anos 1930, até sua morte, e de como os efeitos de sua atuação ainda continuam sendo um paradigma para a economia atual do Brasil.

GETULIO VARGAS

<%j ■ a economia contemporânea

Editora da Unicamp (19) 3788-7235 www.editora.unicamp.br

SID.\f VFÍAftíHU UíU

Cinema brasileiro

Cinema brasileiro: das origens à retomada Sidney Ferreira Leite Editora Fundação Perseu Abramo 160 páginas, R$ 25,50

Uma súmula dos caminhos do cinema nacional até a recente retomada. O livro traz informações fundamentais

e é importante justamente pela panorâmica crítica feita por Sidney Leite, em que se pode sentir como foi se organizando o nosso cinema e de como ele conseguiu superar o entusiasmo inicial por Hollywood para assumir características tipicamente brasileiras. Editora Perseu Abramo (11) 5571-4299 www.fpabramo.org.br

São Paulo em preto & branco: cinema e sociedade nos anos 50 e 60 Waldir Salvadore Annablume 172 páginas, R$ 30,00

Um estudo que pretende recuperar a história por meio do cinema.

O pesquisador parte de três filmes dos anos 50 e 60, nos quais se pode perceber também como se altera a sbciabilidade da nova megalópole e de como a expansão urbana aprofunda as desigualdades sociais, na contramão de visões redutoras sobre o desenvolvimento paulistano. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Kant no Brasil Daniel Ornar Perez (org.) Editora Escuta 324 páginas, R$ 40,00

Quem pensa que estudar Kant é privilégio dos teutônicos terá aqui uma bela surpresa pelo nível elevadíssimo da discussão feita por

professores brasileiros sobre o autor de Crítica da razão prática, numa coletânea que reúne densidade e heterogeneidade de temas discutidos. Esses podem ir desde os problemas das traduções de Kant até o desmonte da estrutura lógica dos argumentos e conceitos práticos, passando pela filosofia política. Editora Escuta (11) 3865-8950 www.editoraescuta.com.br

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Ficção

O próton do patriarca

01 próton é uma fantasia machista. Quando ouviu a frase, Esteia ainda estava

I com o copo de chope a meio caminho entre o tampo de madeira e os lábios. O que foi uma

boa coisa: se já estivesse bebendo, teria engasgado. Era a primeira vez que Esteia visitava aquele bar, o

que também era uma boa coisa, sinal de que as chan- ces de Gilberto encontrá-la lá seriam baixas. Quando saía à noite, Esteia mantinha o celular desligado quase todo o tempo. Se quisesse, Gilberto poderia passar a noite inteira falando com a caixa postal.

Do outro lado da pequena mesa redonda encon- trava-se Alice — a autora da frase surpreendente. "Fantasia machista." Esteia imaginou o que Alice que- ria dizer: que ela tinha visto um homem vestido de próton, e que o traje lhe parecera machista?

Como alguém poderia se vestir de próton? — Como assim? — perguntou Esteia, afinal. — Ei, é você que é especializada em física de partícu-

las — reagiu Alice. — Você que me explica. Não é ver- dade que o próton não passa de uma fantasia machista?

"Fantasia", como em "fábula", percebeu Esteia, não como em "figurino". Mas do que diabos essa loira ma- luca está falando?, perguntou-se.

As duas tinham sido grandes amigas nos tempos do cursinho pré-vestibular — na época Alice era ruiva e já namorava Cláudio, com quem, até onde Esteia sa- bia, havia se casado — mas a amizade esfriara com o passar dos anos. Não tinha sido culpa de ninguém: Es- teia foi para a Faculdade de Física, Alice havia se meti- do com astrologia e curas orientais. Perderam contato.

Até que Alice ligou, convidando Esteia para um chope. Pelos velhos tempos.

— Não é verdade que o próton não passa de uma fantasia machista? — a pergunta de Alice ainda estava no ar.

— Não — respondeu Esteia. — O próton é real. Você é feita de prótons. Quando reclamamos do exces- so de peso, na verdade estamos com excesso de prótons.

CARLOS ORSI

— Certo — reagiu Alice, sorrindo. Dentes lindos, pensou Esteia. — Concordo. Tem alguma coisa lá. Mas essa "coisa" poderia se chamar Alfredo, Maria, Unicór- nio. Ela não é, em essência, isso que chamamos de próton. "Próton" é uma narrativa, um conto elabora- do por homens brancos, europeus. E é uma história machista, uma ficção social que promove a submissão da mulher. Estou escrevendo um livro sobre isso: "O próton do patriarca".

Oh-oh, lá vamos nós, disse Esteia a si mesma. No mês passado ela havia sido convidada para o lança- mento de um outro livro, O quark do amor, ou teria sido A força da felicidade fotônica7. Esteia até achava "fofos" os títulos com aliterações, mas preferia quan- do ganhava convites para pré-estréias no cinema.

Depois de tomar não um, mas dois goles de chope — e sinalizar ao garçom para que trouxesse uma tuli- pa cheia —, Esteia respirou fundo e perguntou:

— E por que você diz isso? — Achei que fosse tão óbvio! — respondeu Alice,

frustrada. — Se fosse óbvio, você não precisaria escrever um

livro sobre o assunto. — Achei que você veria a obviedade da coisa — re-

trucou Alice. — Assim que me ouvisse. Como o ovo de Colombo, ou a teoria da relatividade.

— Relatividade? — Isso. Depois que Einstein... — Tudo bem — cortou Alice. — Talvez o machis-

mo do próton não seja tão óbvio quanto a curvatura do espaço-tempo. Ou eu esteja meio lerda hoje. Explique.

Alice fez uma cara séria. Se o botox permitisse, te- ria franzido a testa. Por fim, perguntou:

"— O próton se desfaz? Perguntando-se aonde será que ela quer chegar

com isso, Esteia respondeu: — Você quer dizer, decai? Teoricamente é possível.

Mas nunca foi observado. — Qual força mantém o próton no núcleo?

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— Força forte. — Prótons são feitos de quarks, certo? — Certo. — Alguém já viu um quark sozinho? — Não. A energia necessária para isolar um quark

é tão grande que... Esteia deu um tapa na mesa, fazendo a cumbuqui-

nha de amendoim pular: — Tá vendo? O próton nunca decai, isto é, está

sempre firme, rijo e auto-suficiente, enquanto seu par- ceiro, o nêutron, deixado sozinho, desmancha. O pró- ton interage com a "força forte", enquanto as outras partículas, as que se desmancham, sentem a "força fra- ca". E embora tenha uma estrutura interior, o próton nunca revela suas partes. Rijo, forte, inescrutável: o que pode ser mais macho que isso?

Esteia virou a tulipa nova com um gole só. O álcool começava a lhe dar alguma consciência da rotação da Terra, mas isso não importava. Ela estava de táxi. O importante era um pequeno insight que havia experi- mentado durante a fala da amiga.

— O nêutron — disse Esteia, quebrando o silêncio triunfal de Alice. — O nêutron, sozinho, desmancha. Foi o que você disse?

— Foi — respondeu a outra, de repente na defensiva. — E o nêutron é feminino? Digo, nesse seu esque-

ma aí? — O esquema não é meu — Alice agora estava

quase gritando. Esteia viu quando o garçom lançou- lhes um olhar preocupado. — É o esquema criado pelo mundo dos patriarcas para...

— Alice, querida — disse Esteia, segurando com força as mãos da amiga. — O Claudinho foi embora?

Esteia precisou de mais de uma hora para fazer Ali- ce parar de chorar. Para acalmar a amiga, acabou ten- do de inventar uma história sobre como o decaimen- to do nêutron expulsa energia negativa (um elétron) e deixa para trás um próton recém-criado, rijo, forte, positivo, íntegro. E que essa é a verdadeira lição da fí-

sica nuclear: quando expulsamos o que é negativo, o que fica para trás é mais positivo, estável e duradouro.

Alice achou lindo. — Genial! É só tirar tudo do contexto e misturar água com

açúcar, pensou Esteia. Nada genial aí. Alice entusiasmou-se: — Quer ser minha co-autora? As duas já estavam no táxi, e Esteia rezou para

que a luz fraca não mostrasse que estava corando de vergonha: por um instante, havia pensado seriamente em aceitar a oferta. Ela tinha certeza de que o livro de Alice iria vender mais que pãozinho quente. Que os fantasmas de Bohr, Schroedinger e Fermi me perdoem o momento de fraqueza, pensou.

— Não, obrigada — respondeu. — O mérito é seu. Mesmo. Juro.

Em casa, Esteia voltou a ligar o celular. Como espe- rava, havia mais de cinco mensagens de Gilberto. Por que esse cara não desiste?, pensou ela. Será que não co- nhece outra mulher? Será que valeria a pena apresen- tá-lo a Alice?

De repente, Esteia se viu tentando conceber como seu relacionamento (ou não-relacionamento, ou relacio- namento a contragosto) com Gilberto poderia se en- caixar no esquema maluco de Alice. Será que ela, Este- ia, era o próton e Gilberto, o nêutron em decaimento?

Não, não funcionaria assim, pensou. Zonza com a be- bida, imaginou-se como um isótopo pesado irradiando "me deixa em paz" e Gilberto, como uma barata imune à radiação. Já caindo na cama, decidiu apresentá-lo a Alice.

Seu último pensamento, antes de dormir, foi a imagem de duas baratas trocando carícias, esfregando romanticamente as antenas. Baratas verdes, brilhando no escuro.

CARLOS ORSI, 35 anos, é jornalista e escritor. Em 2005 lan- çou o livro de contos de ficção científica Tempos de fúria.

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