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1 A TV, a janela e a rua 1 Vera Regina Veiga França A análise de programas televisivos (no nosso caso, programas populares na TV) é necessariamente precedida por uma indagação sobre o próprio conceito de “televisão” - seu lugar, suas características, sua linguagem. Não se trata, naturalmente, de promover uma completa revisão teórica sobre o tema (o que ultrapassaria em muito nosso propósito aqui) ou de reivindicar respostas e definições precisas a tais indagações, mas tão somente da identificação do lugar de onde estamos falando, bem como das referências que balizam nosso olhar sobre a TV. Desde seu surgimento, a televisão vem sendo exaustivamente tratada – mas seus estudos se caracterizam por abordagens distintas e pouco confluentes, dificultando a construção de uma “teoria da televisão”. Ao contrário do jornalismo, por exemplo, que, enquanto um fazer específico, constitui um domínio de conhecimento relativamente estruturado 2 , possui uma dimensão estratégica e princípios operacionais mais ou menos definidos, a televisão é um meio que vem se recriando continuamente enquanto linguagem, passível de diferentes usos, alojando práticas distintas, acolhendo múltiplos discursos. Como então falar de “televisão”? Mas como não falar, se a natureza televisiva é fundamental na constituição de nossos programas? É preciso, assim, encarar de alguma forma o panorama geral dos estudos sobre a televisão, para estabelecer nosso ponto de partida. Sem qualquer pretensão classificatória, mas para orientar nosso caminho e nossas escolhas, podemos, grosso modo (assumindo os riscos da simplificação), identificar três grandes tendências dentro deste panorama. Não se trata de uma ordenação das teorias, menos ainda de inserir de forma definitiva obras e autores em cada uma delas, mas de identificar ênfases. A primeira delas diz respeito às abordagens mais gerais, que falam da relação televisão e sociedade, buscando delinear seu papel, funções, efeitos. Numerosas obras se dedicam a discutir o que a televisão significou e trouxe à sociedade. Com freqüência esta perspectiva promove uma identificação entre televisão e meios de comunicação, entre TV e cultura de massa, por vezes atribuindo à televisão as principais características da produção midiática. Os primeiros estudos sobre a cultura de massa, até aproximadamente os anos 1960, tratavam de 1 Primeiro capítulo do livro Narrativas televisivas: programas populares na tv. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

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Page 1: A TV, A Janela e a Rua

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A TV, a janela e a rua1

Vera Regina Veiga França

A análise de programas televisivos (no nosso caso, programas populares na TV) é

necessariamente precedida por uma indagação sobre o próprio conceito de “televisão” - seu

lugar, suas características, sua linguagem. Não se trata, naturalmente, de promover uma

completa revisão teórica sobre o tema (o que ultrapassaria em muito nosso propósito aqui) ou

de reivindicar respostas e definições precisas a tais indagações, mas tão somente da

identificação do lugar de onde estamos falando, bem como das referências que balizam nosso

olhar sobre a TV. Desde seu surgimento, a televisão vem sendo exaustivamente tratada – mas

seus estudos se caracterizam por abordagens distintas e pouco confluentes, dificultando a

construção de uma “teoria da televisão”. Ao contrário do jornalismo, por exemplo, que,

enquanto um fazer específico, constitui um domínio de conhecimento relativamente

estruturado2, possui uma dimensão estratégica e princípios operacionais mais ou menos

definidos, a televisão é um meio que vem se recriando continuamente enquanto linguagem,

passível de diferentes usos, alojando práticas distintas, acolhendo múltiplos discursos. Como

então falar de “televisão”? Mas como não falar, se a natureza televisiva é fundamental na

constituição de nossos programas?

É preciso, assim, encarar de alguma forma o panorama geral dos estudos sobre a televisão,

para estabelecer nosso ponto de partida. Sem qualquer pretensão classificatória, mas para

orientar nosso caminho e nossas escolhas, podemos, grosso modo (assumindo os riscos da

simplificação), identificar três grandes tendências dentro deste panorama. Não se trata de uma

ordenação das teorias, menos ainda de inserir de forma definitiva obras e autores em cada

uma delas, mas de identificar ênfases.

A primeira delas diz respeito às abordagens mais gerais, que falam da relação televisão e

sociedade, buscando delinear seu papel, funções, efeitos. Numerosas obras se dedicam a

discutir o que a televisão significou e trouxe à sociedade. Com freqüência esta perspectiva

promove uma identificação entre televisão e meios de comunicação, entre TV e cultura de

massa, por vezes atribuindo à televisão as principais características da produção midiática. Os

primeiros estudos sobre a cultura de massa, até aproximadamente os anos 1960, tratavam de

1 Primeiro capítulo do livro Narrativas televisivas: programas populares na tv. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

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forma relativamente indistinta os novos meios técnicos de produção e distribuição massiva de

informações e imagens (fotografia, cinema, rádio, TV, além da imprensa de grande tiragem).

Era ainda a infância da televisão. Mas os traços desde o início apontados como definidores

dos então chamados MCM (meios de comunicação de massa) encontraram na TV sua melhor

expressão: produção industrial em larga escala; homogeneização da produção e busca de um

termo médio; mercantilização e busca de grandes audiências; ênfase no entretenimento e no

caráter lúdico; mistura de elementos (sincretismo); especialização técnica e caráter coletivo da

produção3. A ampliação da penetração e importância da TV vão torná-la o carro-chefe da

indústria cultural; o cinema e a fotografia ganham auras de arte; o rádio, a despeito de sua

força e penetração, é relegado a um plano secundário. É a televisão que encarna por

excelência o espírito e o espaço da nova cultura de massa.

Neste caminho de leitura, vários autores desenvolvem uma crítica às vezes arrasadora da

televisão: para Baudrillard, a televisão – expressão mais acabada dos meios de massa - veio

retirar a palavra da cena pública e eliminar a comunicação4:

“O que caracteriza os media de massa é que eles são antimediadores, intransitivos, fabricam

não comunicação – se aceitarmos definir a comunicação como uma troca, como um espaço

recíproco de uma palavra e de uma resposta, portanto, de uma responsabilidade –, e não uma

responsabilidade psicológica e moral, mas uma correlação pessoal de um com outro na

troca. Por outras palavras, se definirmos como algo diferente da simples emissão/recepção

de uma informação, mesmo que essa fosse reversibilizada pelo feedback. Ora, toda

arquitetura atual dos media se funda nessa última definição: eles são o que proíbe para

sempre a resposta, o que torna impossível qualquer processo de troca (a não ser sob a forma

de simulação de resposta, elas próprias integradas no processo de emissão, o que não altera

em nada a unilateralidade da comunicação). Aí reside sua verdadeira abstração. É nessa

abstração que se funda o sistema de controle social e de poder” (Baudrillard, 1972, p. 217).

Para Bourdieu, a televisão ameaça as esferas culturais, artísticas, científicas e inclusive a vida

política e a democracia. Através do jogo da visibilidade e da invisibilidade, do esconder

mostrando, do jogo remissivo e do fast-thinking, a televisão exerce ao extremo aquilo que o

2 Não estamos falando aqui de marcos teóricos consensuais, mas de parâmetros consensuais que estabelecem os delimitações do jornalismo como campo de conhecimento. 3 Veja-se, a propósito, o estudo clássico de Adorno e Horkheimer (1985), sobre a industria cultural ; também o trabalho de E. Morin (1997) sobre cultura de massa. 4 Perspectiva também desenvolvida por Muniz Sodré: “Os media, a relação informativa, ao estabelecerem o monopólio do discurso, eliminam a possibilidade de resposta e erigem um poder absoluto, inédito na História, a hegemonia tecnológica do falante sobre o ouvinte” (Sodré, 1977, p. 26).

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autor nomeia em outras obras de ‘poder simbólico’: a dominação pela imagem. A imagem

televisiva tem a particularidade de poder “fazer ver e fazer crer no que faz ver” (Bourdieu,

1997, p.28); “a televisão se torna o árbitro do acesso à existência social e política (Idem, p.29)

G. Sartori aponta o surgimento do homo videns, que pouco a pouco substitui o homo sapiens;

a televisão estaria mudando a natureza humana, levando a um “predomínio do visível sobre o

inteligível que conduz para um ver sem entender”.5 Outros, no entanto, como D. Wolton,

ressaltam o potencial democratizador e o lugar ímpar da TV aberta:

“A idéia de programação inerente à televisão de massa, obriga a conceber uma programação

para todos os públicos: ela traduz assim uma aceitação da heterogeneidade de gostos e de

aspirações e é, portanto, uma espécie de reconhecimento de sua legalidade.

Quanto ao que diz respeito à recepção, a televisão de massa acentua, quase na mesma

proporção das incertezas da diversidade da grade, a heterogeneidade das mensagens e dos

públicos. Essa dispersão dos sentidos é, na verdade, um fator de comunicação, uma vez que

a televisão é um assunto sobre o qual os indivíduos conversam com maior facilidade. Não só

podemos assistir, se quisermos, às mesmas imagens, como também nada nos obriga a

assistir à mesma coisa. (...)

A força principal da televisão generalista, pública ou privada, continua sendo o seu registro:

ela se dirige a todo mundo, constituindo um dos laços sociais das sociedades individualistas

de massa, em que as ocasiões de se participar simultânea e livremente de atividades

coletivas são muito menos numerosas do que se pensa” (Wolton, 1996, p. 113- 114).

Nesses vários enfoques a televisão é ressaltada alternativamente como lugar de alienação e

empobrecimento cultural, criação de valores e mitos contemporâneos, instrumento de poder e

reprodução da estrutura de dominação, espaço público e canal de acesso e participação (para

citar apenas os traços mais marcantes ressaltados por um ou outro autor).

Um segundo enfoque, mais interno, diz respeito à caracterização técnica do meio e de sua

linguagem. Tais estudos são desenvolvidos, geralmente, por autores que trabalham não

especificamente sobre a TV, mas sobre estética, imagens, meios visuais. Além dos modos

operatórios e da configuração técnica do meio, indaga-se sobretudo sobre a natureza do seu

produto – o que é a imagem televisiva, que tipo de representação ela constrói. Para U. Eco, a

5 Conforme Sartori, “ na televisão o fato de ver predomina sobre o falar, no sentido que a voz ao vivo, ou de um locutor, é secundária, pois está em função da imagem e comenta a imagem. É por causa disto que o telespectador passa a ser mais um animal vidente do que um animal simbólico. (.....) Este fato constitui realmente uma virada radical de direção, pois enquanto a capacidade simbólica distancia o homo sapiens do animal, o predomínio da

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grande característica da televisão foi abolir as fronteiras da ficção e realidade; mais

contemporaneamente, ele distingue a Paleo e a Neotelevisão; uma televisão que falava sobre o

mundo é substituída hoje por uma televisão que fala sobretudo de si e do contato que

estabelece com o próprio público.6 Para F. Jost, a linguagem televisiva se constrói em torno

de três grandes gêneros televisivos (três mundos aos quais a TV se dirige): o real, a ficção e o

lúdico. No Brasil, de forma particular, vale ressaltar as contribuições significativas de D.

Pignatari e A. Machado, entre outros, na caracterização do meio e da linguagem televisiva7.

Por último, encontramos um vasto repertório de análises circunscritas a programas

específicos. Fugindo das abordagens muito amplas e totalizantes, vamos encontrar,

contemporaneamente, uma grande proliferação de estudos tratando ora dos aspectos da

produção de tal ou tal produto, ora da sua audiência. São estudos mais pontuais que, evitando

generalizações excessivas, buscam caracterizar dinâmicas particulares que conformam

múltiplas TVs. Como exemplo, no Brasil, destaca-se sobretudo o estudo das telenovelas8, mas

também de telejornais, programas de auditório, reality shows (tendo o Big Brother

catapultado um bom volume de reflexões nos últimos anos). Os estudos de recepção9 também

respondem por uma boa parcela da produção da área, seja numa linha de etnografia dos usos

e/ou das audiências, seja buscando o diálogo e interlocução entre programas e sociedade.10

Este é o nosso caso – estudo de alguns programas. Mas não queremos fazê-lo (ou não

podemos fazê-lo) a partir do próprio programa, negligenciando os enquadramentos mais

amplos da “interação televisiva” que resignificam características especificas encontradas em

cada um. Como dissemos no início, a televisão é um meio de comunicação11 – dotado de

configurações técnicas e padrões de funcionamento próprios, que obedece uma lógica de

visão o aproxima de novo às suas capacidades ancestrais, isto é, ao gênero do qual o homo sapiens é a espécie.” (Sartori, 2001, p. 15-16). 6 “(...) em contato com uma tevê que fala de si, privada do direito à transparência, isto é, do contato com o mundo exterior, o espectador volta a si próprio. Volta a ser valida uma velha definição de tevê: ‘uma janela aberta sobre um mundo fechado’ ” (Eco, 1984, p. 200). 7 Ver sobretudo Signagem da televisão, de D. Pignatari, e A televisão levada a sério, de A. Machado. 8 Vale ressaltar, na ECA-USP, o Núcleo de Estudos de Telenovelas, que agrega vários autores e uma significativa contribuição aos estudos nacionais sobre a telenovela, além de pesquisadores de outras universidades. 9 Na linha dos estudos de recepção, vale citar alguns estudos precursores – Leitura social da novela das 8, de Ondina Leal; Muito além do Jardim Botânico, de Carlos Eduardo Lins da Silva, e, nos últimos anos, numerosas teses e dissertações desenvolvidas nos programas de pós-graduação em Comunicação no país. 10 Constituem um capitulo à parte diversos trabalhos de cunho mais histórico sobre o surgimento da televisão e/ou de determinadas emissoras (com destaque, nos últimos anos, para publicações da própria Globo sobre a sua trajetória e seus diversos programas). 11 Conforme discutido no texto Mídia: um aro, um halo e um elo, publicado no primeiro livro desta coleção, buscamos ultrapassar uma abordagem “midiacêntrica”, que se restringe ao estudo do meio em si, entendendo-o antes como algo capaz de transmissão que permite uma modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento incessante de signos. A mídia, assim, é vista como um fluxo, um lugar e uma forma.

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produção e se realiza, historicamente, dentro de um determinado modelo e prática de

distribuição e de recepção. Tais características indicam, sim, a presença de um modo

operatório singular (uma linguagem), que buscaremos delinear a seguir. Em outras palavras, e

remetendo-nos às três grandes tendências indicadas acima, entendemos que o estudo da

televisão compreende a atenção e leitura de produtos e relações concretas (fenômenos

empíricos recortáveis, identificáveis) – o que não nos exime, mas nos obriga a falar, ainda que

indiretamente, sobre o que é televisão (linguagem) e como ela se insere na sociedade.

Situações especificas são índices e parte de uma situação maior e mais complexa, que são as

múltiplas experiências vividas com e através da TV por uma sociedade.

1.1. Uma técnica de produção e veiculação de imagem e som

Um primeiro aspecto diz respeito à configuração técnica da televisão, àquilo que ela é capaz

de fazer, ao tipo de produto que ela é capaz de gerar. O primeiro conceito de televisão se

refere antes de tudo a uma técnica de produção de imagem em movimento e som, e

veiculação instantânea à distância. Começamos do óbvio – mas também daquilo onde ela

revolucionou. Ela se distingue do rádio, pela presença da imagem; se distingue da fotografia,

pela presença do som e da imagem em movimento; também se distingue do cinema, pelo tipo

de imagem (eletrônica)12 e, sobretudo, por sua forma de veiculação: à distância, para

múltiplos aparelhos receptores, e imediata (geração e recebimento a domicilio).

Nos seus primórdios, essas características técnicas (imagem eletrônica, distribuição à

distância) trouxeram alguns condicionantes. A ainda baixa qualidade da imagem dificultava

planos abertos e composições mais elaboradas, estimulando planos menores, enquadramentos

simples. Também o tamanho da tela dos receptores domésticos sugeriu um trabalho mais

comedido com as imagens.

A tecnologia evoluiu: a imagem digital ganhou em precisão e recursos de criação e

montagem; a oferta de receptores domésticos inclui hoje várias opções de tela, que vão do

widescreen (o “cinema em casa”) à tela do celular. Isto significa que muito se pôde avançar na

construção e criação das imagens e na formatação dos produtos. A televisão trabalha hoje com

padrões sofisticados, e superou há muito a mera transmissão de imagens do mundo: ela

fabrica suas imagens e um mundo próprio. Cria cenários, formas, movimentos; recupera e

12 Hoje o cinema se utiliza também da imagem eletrônica, e a hibridação das linguagens opera nos dois sentidos. Mas esta apenas acontece hoje, quando linguagens específicas foram configuradas (existe o cinema, existe a televisão, o que nos permite perceber as influências recíprocas).

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reedita trilhas sonoras e musicais; acoplada aos novos recursos multimídia, gera imagens e

sons criativos e inusitados.

Esta mesma tecnologia se desdobrou em um outro meio, ou linguagem, que é o vídeo13, e

onde as novas possibilidades criativas são particularmente exploradas; a televisão, contudo,

permanece (e é reconhecida) enquanto tal. Mais do que exercício de formas, ela se sustenta na

possibilidade da distribuição massiva e instantânea, para telespectadores (e aparelhos

receptores) os mais diversificados.

Um outro recurso técnico que incidiu de maneira muito intensa naquilo que a televisão se

tornou é o controle remoto, instituindo o zapping14. Se a televisão compreende a oferta de

imagens a domicílio – e esta oferta está pautada em uma seleção feita pelo produtor - o

zapping acrescenta a seleção e uma nova montagem do lado da recepção. O telespectador é

um receptor que recebe à sua maneira a produção ofertada, transformando o “poder ver”

possibilitado pela televisão em um “ver como” (ver de que maneira). As limitações desse

suposto poder de escolha do receptor são ressaltadas por vários autores (ele pode escolher –

mas dentre aquilo que lhe é ofertado); atentando para tais limites, não se deve negligenciar,

contudo, que sua montagem também é instituinte. O ritmo, as junções temporais e temáticas, a

costura do zapping criam algo novo - algo que não está dado de antemão pela produção, e que

não estava dado em nenhum outro meio anteriormente.15 Este movimento instituinte faz parte

do que é a televisão, indicando uma linguagem que se faz no processo da interlocução.

1.2. Centralização da produção e lógica comercial

O conceito de televisão inclui mas ultrapassa sua dimensão técnica, e diz respeito também a

seu modo de produção e organização. A televisão tem uma vida e um lugar institucional na

sociedade, e compreende um sistema de produção centralizada e de veiculação à distância

para um público amplo e diversificado.

Esse lugar institucional tem implicações políticas e econômicas; um sistema amplo de

fornecimento de imagens a domicílio é tão importante quanto o sistema de distribuição de

água ou energia na vida de uma sociedade. Por isso mesmo, por sua força e potencial, é

sujeito a controle e regulamentação (concessão, normas de propriedade e funcionamento),

13 Também o vídeo se desdobra em várias modalidades, que incluem a videoarte, os vídeos domésticos, os vídeos documentários, antropológicos etc. 14 Uma interessante análise do zapping na televisão é desenvolvida por Sarlo (1997). 15 A internet, hoje, potencializa ao infinito este poder de busca e montagem do sujeito usuário.

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bem como objeto de acirradas disputas políticas. Trata-se também de um empreendimento de

alto custo, o que restringe a possibilidade de estabelecimento dessas centrais de produção

àqueles que detêm o capital financeiro e político necessários, gerando uma situação de

monopólio ou oligopólio de grupos, e um modelo de funcionamento pautado pela lógica do

lucro e leis do mercado16. A televisão é um “negócio” que se organiza em moldes

empresariais.

Este modelo – centralização da produção, lógica comercial – traz profundas implicações na

natureza do produto: transformado em mercadoria, tanto está comprometido com o máximo

consumo (portanto, conquista do consumidor) como é porta-voz de interesses específicos. A

reflexão de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural trouxe uma contribuição

definitiva para nossa compreensão da mercantilização dos produtos culturais (Adorno;

Horkheimer, 1985).

A crítica contundente desses autores, no entanto, deixou escapar as contradições que

permeiam já o processo de produção. Tanto é necessário atentar para a natureza sui generis do

produto – o terreno movediço do simbólico, avesso ao aprisionamento – quanto para aspectos

internos da própria produção. A natureza complexa desta produção envolve intensa divisão de

trabalho e a participação de profissionais e especialistas com orientações diversas, o que gera

diferenças, impossibilita um controle estrito da natureza do produto. A produção de uma

novela, por exemplo, traz a marca do autor, mas também outras marcas – do diretor de TV, do

ator, acrescentando matizes ao produto, e comprometendo a idéia de autoria como algo

fechado17. O volume e diversidade de produtos, por sua vez, bem como o ritmo da produção,

estabelecem um fluxo desenfreado e uma extrema fragmentação da oferta; a pressão do

tempo, a necessidade de encher a grade tanto ocasionam a repetição de moldes e de um

padrão dominante (racionalização da produção), quanto possibilitam a inclusão de

“estranhezas”, ou “qualquer coisa”. O filtro da produção (da emissora, ou do proprietário) não

tem como funcionar de forma absoluta. Falar em homogeneização da produção, portanto, é

uma leitura um tanto imediata e simplificadora; trata-se de um cenário marcado antes pela

presença de misturas, tensões e contradições – o que, entretanto, nunca é demais ressaltar, não

elimina (não chega a neutralizar) os traços fundantes de seu modo de organização.

16 Em que pese a existência, no Brasil e na maior parte dos países, de emissoras públicas, predomina no sistema de televisão o regime de propriedade privada. São empresas comerciais, regidas pela lógica do investimento e retorno de capital. 17 Um livro interessante a este propósito, e um pouco esquecido em nossa bibliografia, é Tio Patinhas e os mitos da comunicação, de Orlando Miranda, publicado pela Summus em 1976.

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1.3. Diversidade de público e condições de recepção

Muito já foi dito sobre a extensão e diversidade do público televisivo: a audiência de TV

atravessa clivagens de classe, gênero, faixa etária, cultura, localização geográfica. Alguns

autores ressaltam: a televisão (no caso, a TV aberta) é um meio absolutamente democrático,

atingindo a todos indistintamente. No Brasil, quase a totalidade dos lares dispõe de pelo

menos um aparelho receptor; nas classes médias e altas a existência de mais de um aparelho

por domicilio é um dado comum. Não é preciso se estender sobre este aspecto, mas é

importante tirar dele todas as conseqüências: esta horizontalidade da recepção de TV

claramente diz alguma coisa da própria televisão, e tem implicações tanto no seu conteúdo

quanto na criação de um repertório social comum. A presença da televisão, mais que qualquer

outro meio, é responsável pela disseminação e partilhamento de códigos, referências,

representações, e pelo estabelecimento de uma pauta ou roteiro de atenção. A televisão

sintoniza todos numa agenda coletiva: copa do mundo, olimpíadas, catástrofes, efemérides

(casamentos, nascimentos no mundo dos olimpianos18), momentos fortes da programação

(final de telenovela, paredão de um personagem de sucesso no Big Brother são alguns dos

múltiplos exemplos). E a televisão é consciente disto; faz parte do seu jogo e dos seus

objetivos, inserindo-a num círculo vicioso. Ela tanto aposta e cuida de criar referências que

tenham ampla repercussão, quanto não pode se eximir de pautar-se por aquilo que,

supostamente, suscita amplo interesse (ela cria uma pauta, mas também se submete à pauta da

vida cotidiana). Ela está presa neste malha, digamos assim: a busca de audiência é mais que

um imperativo de sua lógica comercial; é também algo que realiza sua “natureza”19, sua

condição de estar potencialmente em todos os lugares.20

Nas primeiras análises da televisão (bem como de outros meios de veiculação massiva), o

conceito de massa foi utilizado para designar essa audiência ampla, esse coletivo diversificado

que se supunha amorfo. Tal conceito já mostrou seus limites, e estudos diversos vieram

questionar definitivamente a idéia de homogeneidade e/ou homogeneização da audiência, e

18 O termo “olimpianos” é tomado, aqui, como trabalhado por Morin (1997). Ver discussão no capítulo seguinte, Dramas do cotidiano na programação popular da TV brasileira. 19 Sabemos que “natureza” é uma palavra perigosa; nosso uso aqui não é conceitual, mas retórico. Não queremos dizer que existe uma natureza da televisão, mas ressaltar uma prática que, no nosso contexto, se tornou natural, naturalizada. 20 Assim é que mesmo emissoras públicas, menos presas aos imperativos de mercado, também se preocupam com seu índice de aceitação.

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indicar não apenas a manutenção da heterogeneidade no seio dessa pretensa massa21, como

formas diferenciadas de apreensão e uso dos meios. Tais avanços reflexivos nos trazem outros

elementos para pensar a televisão: dirigindo-se a distintos públicos, ela sofre leituras

diversificadas e atende a múltiplos usos. Ela realiza, portanto, interlocuções diferenciadas – e

também isto faz parte de seu “modo de ser”.

Realçamos acima a ampla disseminação de aparelhos receptores; um outro aspecto a ser

lembrado, ao falar dos múltiplos usos, são as condições de acesso e recepção da TV. Um meio

ou uma tecnologia, em si mesma, orienta mas não determina a maneira como vai ser usada; o

uso é construído na prática, na realidade específica de uma sociedade, de uma cultura. A

televisão, na sociedade brasileira, se disseminou intensamente: ela faz parte do cotidiano e

está em todos os lugares, numa condição sobretudo de recepção doméstica ou privada. A

televisão chegou na sala de visita dos lares; ganhou em seguida (em residências de classes

mais abastadas) uma sala própria, para finalmente adentrar para as demais dependências –

quarto, sala de refeição, cozinha, área de lazer. Ela também se disseminou por diversos locais

públicos (salas de espera de hospitais, consultórios, repartições públicas, bares e restaurantes).

Mesmo nestes espaços, permanece a recepção privada, salvo em momentos de alta

efervescência, como jogos de futebol, desfecho de situações críticas etc. Deste tipo de

presença e uso se depreende que ela é assistida tanto individualmente quanto em grupo ou na

presença de outros (com ou à revelia dos outros), e mais: a audiência da televisão, via de

regra, é entrecortada com outras atividades. Assiste-se à TV fazendo outras coisas, no

intervalo de outras coisas, conversando, sendo inclusive muito freqüente o televisor ligado

sem que ninguém esteja particularmente assistindo. Neste último caso ela funciona mais como

áudio; um som que se ouve na casa, uma interlocução da qual não se faz parte, salvo se

provocado por uma interpelação (através de vinhetas sonoras, ela tem o poder de convocar).

Também estes aspectos configuram a realidade televisiva: uma presença às vezes silenciosa e

invisível, mas permanente; portanto, uma onipresença. Ao mesmo tempo, uma atenção volátil

ou falta de atenção por parte de seu público. A televisão teve que aprender a falar para um

telespectador pouco atento, dividido – e, para tal, desenvolver seu poder de interpelar, de

chamar a atenção, tirando partido (mas ao mesmo tempo sabendo dos limites) de sua

onipresença22.

21 Ocasionando o que é chamado de segmentos de mercado. 22 Abusar de sua onipresença pode torná-la uma presença incômoda, e provocar uma ruptura do pacto. Estar presente em todos os lugares significa também respeitar esses ambientes (atuar de forma comedida e neutra).

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1.4. Funções da TV

Presente em quase todos os lugares, prestando-se a diferentes usos, há que se perguntar: a

televisão serve para quê? Uma resposta marxista ortodoxa aponta para a reprodução da

estrutura de classes: a televisão cumpre uma função ideológica, mantendo a alienação e

assegurando o processo de dominação. Concordando com o papel político-ideológico da TV

(as formas discursivas, permeadas pela vida e pelas contradições sociais, são ideológicas), é

preciso desconfiar, no entanto, das visões monolíticas, e reagir a uma visão puramente

instrumental da TV. Sua inserção na vida social é antes polivalente: a televisão é um veiculo

de informação e de socialização, estabelecendo um repertório coletivo (tanto no que diz

respeito a temas como vocabulário, formas expressivas, representações e imagens) e

estendendo o mundo comum. A metáfora da aldeia global de McLuhan é bem apropriada para

dar conta do grau de trocas e compartilhamentos alcançado na era televisiva. A televisão torna

o mundo (ou um certo mundo) acessível e conhecido por todos, e fornece os assuntos que

povoam as conversas cotidianas. Suspendendo, por ora, uma apreciação valorativa, é preciso

dizer que nenhum meio disponibiliza tanto e tão rapidamente informações como a TV (as

novidades vêm através dela – o jornal impresso, e mesmo o rádio, vêm a reboque).

Inserida na rotina da vida cotidiana, e prioritariamente no lar, ela preenche o espaço

doméstico como possibilidade de lazer e descanso: a televisão distrai, descansa, alivia as

tensões do trabalho e das diversas relações. Na perspectiva do grupo, ela suscita conversas e

partilhamentos; numa perspectiva individual, ela abre janelas próprias (para o futebol, para a

novela, para o desenho animado) e inclusive ajuda a quebrar a solidão.23 A televisão também

cumpre uma função identitária, ao criar referências comuns, estabelecer partilhamentos; o

papel da rede Globo, de forma particular, já foi ressaltado como um dos fatores estratégicos

de apoio à política nacionalista dos governos militares (pós-68).

Através da publicidade direta e indireta, ela nos estimula para o mundo do consumo; cria

modas, suscita necessidades de toda ordem (relacionadas com a aparência, valores, bens de

consumo). Formatos mais contemporâneos estariam ainda cumprindo novas funções: uma

função de justiça (TVs tribunais, e de ajuda à caça de bandidos), além de questionáveis

funções terapêuticas (TV-divã, TV-aconselhamento) e psicológicas (o sucesso do Big Brother

estaria fundado numa exacerbação contemporânea dos traços de exibicionismo e voyeurismo).

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A maneira como ela cumpre essas diferentes funções é largamente criticada; ressalta-se, como

mencionado inicialmente, não apenas sua vinculação ideológica, mas ainda a qualidade (ou

falta de qualidade) das informações e entretenimento que ela fornece. Mas a televisão é

sobretudo criticada por aquilo que ela não faz, ou prejudica, que é a reflexão. Comparada aos

meios impressos (jornais, mas sobretudo o livro), a linguagem visual é apontada como

simplificadora (a linguagem alcança uma tradução direta da imagem e dispensa a mediação do

pensamento).24 Comparada a outros meios visuais (fotografia, cinema), critica-se a falta de

problematização das imagens televisivas, que trabalham no nível das evidências e clichês.

De nossa parte, achamos apressado esse caminho das generalizações; cumprindo várias

funções, ofertando produtos variados, e marcada por usos e leituras distintas, a televisão deve

ser sempre pensada no plural – as muitas televisões, que devem ser investigadas com cuidado,

em si próprias e nas diferentes relações que estabelecem com os receptores e com o mundo.

Quanto ao seu possível papel anti-reflexivo, é preciso atentar e evitar cair em posições

essencialistas – que tanto criam uma dicotomia entre diversão e reflexão25, como

desenvolvem uma análise por demais internalista, conformando no interior dos produtos (e

não na relação de interlocução) os efeitos e a leitura a ser produzida pelo receptor.

Isto dito, é importante perceber, pelo lugar que a televisão ocupa hoje na nossa sociedade,

pelo uso que lhe é conferido, que o entretenimento é seu nicho e função preferencial (com o

que isto significa de limites e de positividade).

1.5. Discursos, gêneros, dispositivos

Alguns conceitos são usados, corriqueiramente, quase como sinônimos, para se referir ao que

seria uma “linguagem” da TV. De forma apenas didática, para clarear o terreno que estamos

trilhando, achamos oportuno promover algumas distinções. Na perspectiva usada por Bakhtin,

falamos de discurso enquanto fala social – conformação de falas específicas de grupos

sociais. Discursos traduzem um posicionamento social: as relações com o outro, as

estratégias, a ideologia, enfim, de um determinado grupo ou classe social. Os discursos não

nos pertencem: “[a palavra] é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como

23 É muito freqüente as pessoas chegarem em casa e ligarem a TV, enquanto se ocupam de outras coisas (no caso, apenas a voz da TV ocupa um espaço e faz companhia). 24 A linguagem visual precede a abstração da escrita, e seria a linguagem dos povos primitivos (do anthropos) e das crianças. 25 Benjamin (1986), avesso a dicotomias rígidas, e no movimento de mistura que caracterizava seu pensamento, fala do espectador de cinema que se distrai - e presta atenção.

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pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do

locutor e do ouvinte” (Bakhtin, 1992, p. 113). O que significa também que não estão prontos

em algum lugar; eles são construídos em nossas práticas cotidianas, nas nossas relações de co-

presença (entre o um e o outro). Assim, e a partir desta acepção, não é de todo apropriado

falar de um discurso da TV26, mas entender antes que esta é permeada ou acolhe múltiplos

discursos: tanto os discursos de práticas comunicativas estratégicas ou bem conformadas (o

discurso publicitário, o discurso jornalístico), como discursos políticos (o discurso do

governo, o discurso da direita), sociais (o discurso de minorias, o discurso ecologista),

culturais (o discurso mineiro), religiosos (estes, aliás, em intensa disputa no cenário midiático

nos últimos tempos).27 Esta distinção ou constatação nos permite entender um pouco mais da

natureza polimorfa ou eclética da televisão, ou seu lugar de espaço público, lugar de

acolhimento e caixa de ressonância de diferentes falas sociais. Podemos falar da TV como

uma arena de discursos – lugar onde ecoam e ganham visibilidade os diferentes atores da vida

social. Esta constatação, no entanto, não deve obliterar o reconhecimento da dominância de

certos discursos (os grupos não falam em igualdade de condições, e empiricamente é possível

constatar a presença de falas hegemônicas28) – o que, no entanto, não advém ou não é uma

característica do meio televisão, mas da própria estrutura social da qual a atividade televisiva

faz parte.29

Uma tendência mais recente nas pesquisas sobre televisão enfatiza o estudo dos gêneros como

forma de entrada não apenas para alcançar os diferentes discursos televisivos, mas sobretudo

para tratar da audiência, ou das relações com a recepção. Gêneros são enunciados regulares,

facilmente reconhecíveis; Bakhtin falou de gênero enquanto “um padrão relativamente estável

de estruturação de um todo” (1997, p.301), ou “formas típicas de dirigir-se a alguém” (Idem,

p. 325). O estudo dos gêneros pode conduzir para dentro, para as características internas do

enunciado, ou para fora - para o trabalho de conformação de estímulos em diálogo com uma

estrutura de reconhecimento; para a interlocução, portanto. Tal perspectiva foi seguida por

Martín-Barbero, quando aponta os gêneros como “estratégia de comunicabilidade”, lugar

26 Dizemos corriqueiramente “discurso da TV” para nos referirmos aos produtos, mensagens ou textos televisivos. Nada nos impede de fazê-lo (usar “discurso” como equivalente de “texto”), sendo apenas necessário, em cada uso, discriminar o sentido que está sendo acionado. 27 Tais discursos não estão na televisão em estado puro, mas normalmente imbricados uns nos outros; por exemplo, identificamos claramente o discurso publicitário, mas podemos perceber dentro dele um discurso machista, ou ecologista, e assim por diante. 28 O discurso do MST, por exemplo, se manifesta em vários momentos através da televisão; certamente numa presença muito menos significativa que o discurso capitalista, de defesa da propriedade privada. 29 Inusitado seria, numa sociedade de classes, marcada pela desigualdade social, desigualdade política, esperarmos encontrar na televisão um terreno (ou uma ilha) de fato democrático(a).

Page 13: A TV, A Janela e a Rua

13

privilegiado de mediação, espaço de negociação entre objetivos do produtor e expectativas do

receptor.30

Os gêneros, assim, devem ser buscados e definidos tanto do ponto de vista da construção de

sentido (regras semânticas), quanto do estabelecimento de um contrato de interlocução com o

outro (regras pragmáticas); eles dizem respeito à relação entre o enunciado e o mundo, e à

comunicabilidade com o outro a propósito do sentido de mundo que se quer construir: “Todo

gênero, de fato, repousa sobre uma promessa de uma relação a um mundo cujo modo ou grau

de existência condiciona a adesão ou a participação do receptor” (Jost, 2003, p. 19).

O estudo dos gêneros televisivos, no entanto, não tem se mostrado tarefa fácil, pelas

dificuldades de sua caracterização (sabemos que são uma estratégia de interação, que são

reconhecíveis pelo receptor, mas como recortá-los e trabalhar com eles?). Trata-se de uma

área nova, ainda não convenientemente conceitualizada – e o estudo de uma nova área é

sempre feito com as ferramentas e com o olhar advindo de áreas já construídas. O estudo dos

gêneros televisivos tem sido marcado pela tipologia dos gêneros literários, o que provoca

evidentes desencaixes e distorções. A novidade, diferença e mobilidade dos produtos

televisivos nem sempre se deixa apreender bem pela classificação emprestada da literatura, ou

mesmo pela noção de gênero, dada a mistura e movimento de formas que marcam a produção

televisiva.

Duas grandes categorias de referência – ficção e realidade – são evocadas pelos vários autores

para dizer do tipo de relação com o mundo criado pelos produtos televisivos, que oscilam

entre o polo realidade (representado, em princípio, pelos telejornais) e o polo ficção (as

novelas, por exemplo), mas com freqüência borrando suas fronteiras. Se Eco dizia que o

caracteriza a televisão é a mistura e indistinção crescente entre ficção e realidade, Jost, por seu

lado, apresenta três grandes gêneros, ao incluir um terceiro mundo, que é o do lúdico (o

espaço do jogo, onde se inscrevem programas de auditório, certo tipo de entrevistas, os reality

shows etc – e onde esta distinção ficção / realidade é de certa forma suspensa ou

reconfigurada).

30 “Entre a lógica do sistema produtivo e as lógicas dos usos, mediam os gêneros. São suas regras que configuram basicamente os formatos, e nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos. Claro que a noção de gênero que estamos trabalhando tem pouco a ver com a velha noção literária do gênero como 'propriedade' de um texto, e muito pouco também com a sua redução taxonômica, empreendida pelo estruturalismo. No sentido em que estamos trabalhando, um gênero não é algo que ocorra no texto, mas sim pelo texto, pois é menos questão de estrutura e combinatórias do que de competência. Assumimos então a proposta de uma equipe de investigadores italianos segundo a qual um gênero é, antes de tudo, uma estratégia de comunicabilidade, e é como marca dessa comunicabilidade que um gênero se faz presente e analisável no texto” (Martín-Barbero, 1997, p 313)

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Ao lado dessas categorizações mais amplas, várias outras tipologias têm sido apresentadas,

criadas pelos próprios produtores31 e/ou consagradas pela estrutura de reconhecimento dos

receptores.32 Alguns formatos são mais facilmente identificáveis, como o telejornal,

telenovela, programa de auditório; esses formatos seriam caracterizados tanto por sua

estrutura interna (a maneira como são construídos e identificados enquanto forma33) quanto

pelo mundo a que nos acessam (realidade, ficção, jogo). Mas ao nos debruçarmos sobre os

produtos, já no primeiro movimento analítico vamos nos dar conta das dificuldades; as

misturas se alargam, num processo de permanente hibridação, e dificultam uma caracterização

definida ou definitiva: Brasil Urgente, por exemplo, é um telejornal que se apóia

constantemente em recursos dramáticos (performance do apresentador, recursos sonoros e

visuais); o Programa do Ratinho é um programa de auditório, um programa de variedades,

que incorpora ainda recursos dramáticos (encenações), informativos (pequenas reportagens); é

show, é denúncia – enfim, uma mistura. Frente a tais dificuldades, o estudo dos gêneros

arrisca-se a ficar nas evidências (formatos-padrão) ou, buscando as particularidades de um

produto, ater-se por demais às características internas da forma em si, perdendo de vista a

dialogicidade que lhe é inerente (a proposta de relação com o outro e com o mundo). Também

tratar o gênero apenas a partir de suas estratégias de interpelação ou endereçamento pode

causar alguns equívocos, pois gêneros diferentes podem compartilhar alguma estratégias

comuns.34 É preciso, assim, tratá-lo em contexto, ou seja, atentar para o quadro interlocutivo

mais amplo em que está inserido.

A mistura e mobilidade de gêneros não eliminam sua existência - toda linguagem constrói

seus formatos estandardizados e reconhecíveis de enunciados, sob pena de criar a

incomunicabilidade. E as dificuldades de reconhecimento não diminuem a necessidade de

buscar a sua identificação. Um aprofundamento na reflexão e identificação dos gêneros

televisivos ultrapassa as pretensões deste trabalho35, e nos limitamos a realçar a importância,

ao nos debruçarmos na análise de produtos específicos, de buscar caracterizar seu formato, ou

seja: a maneira como se estruturam, os elementos de que lançam mão para se apresentarem,

serem reconhecido e interpelarem o receptor. Fazendo isto estaremos localizando-os numa

31 A maneira como uma emissora classifica seus programas na sua grade. 32 O uso ou compreensão comum cristaliza uma forma de identificar e nomear os produtos. 33 Em quase qualquer país, ao ligar a televisão e nos depararmos com um telejornal, saberemos do que se trata, mesmo se não compreendemos a língua (e, portanto, do que ele esta falando), graças a uma composição muito semelhante seguida por todos eles. 34 É o caso dos programas que estamos analisando, que partilham certas formas de tratamento e de endereçamento a um público popular, mas não pertencem, por isto, necessariamente ao mesmo gênero. 35 Ver a propósito Souza (2004), Balogh (2002).

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grade de tipos ou gêneros – num trabalho mais de aproximação que de encaixe definitivo

(dada a mobilidade e promiscuidade destas formas).

Gêneros ou formatos se constroem através do uso de recursos de construção e formatação, ou

dispositivos. O conceito de dispositivo (do latim dispositus), por sua vez, diz dos instrumentos

e mecanismos usados para construir determinadas formas ou disposições; ele diz das maneiras

como são dispostos os elementos e peças de um aparelho, forma ou, no caso, enunciado

(texto). Os dispositivos estão relacionados com a construção de uma determinada ordem (são

um instrumento de ordenação); incorporam, portanto, uma dimensão estratégica. Trata-se de

um conceito operacional, de grande riqueza para uma análise mais aprofundada dos produtos

e do processo de produção (da mise-en-scène de um discurso, da maneiras como ele é

materializado, se torna matéria viva, disponível). O estudo dos dispositivos auxilia nossa

percepção do caráter construído dos produtos, e de como as intencionalidades (com relação ao

mundo e ao outro) estão presentes nestas construções. No caso do discurso jornalístico, por

exemplo, podemos falar dos dispositivos acionados para produzir um efeito de real; no Brasil

Urgente ou no Hora da Verdade, vamos identificar dispositivos de dramatização, e assim por

diante.

Poder-se-ia tentar elencar os diferentes dispositivos disponíveis no campo da produção

televisiva, mas este conceito é antes fecundo para um trabalho de prospecção das diferentes

formas construídas: em um programa ou gênero especifico, uma telenovela mexicana, por

exemplo, identificar e contrastar os dispositivos usados que aproximam e/ou diferenciam este

produto de um outro semelhante (de um drama cinematográfico ou de uma telenovela da

Globo).

Uma síntese deste item, assim, nos mostra a televisão como um meio que acolhe diferentes

discursos, que oferece diferentes e variados gêneros ou formatos de produtos, construídos

através da utilização de um vasto repertório de dispositivos.

1.6. Prática e experiência

Por fim, vale lembrar que a televisão é uma prática comunicativa, e nomeá-la assim tem

implicações epistemológicas (expressa uma forma de ver, de compreender a televisão).

Primeiramente, entendemos que ela é uma prática, uma ação humana e social - e práticas são

criadoras, são lugar do fazer: é através de suas intervenções, reciprocamente referenciadas,

que os sujeitos sociais se constituem enquanto tal, e constituem o mundo à sua volta. E

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televisão é uma pratica comunicativa; uma relação mediada simbolicamente, que se efetiva

através da criação e partilhamento de discursos, de sentido. A produção televisiva não

acontece imune ou à revelia da presença de sua audiência (intervenções, interesses), mas é

permanentemente modificada por ela, pela dinâmica viva das intervenções dos diferentes

sujeitos envolvidos na interlocução. Portanto, é uma linguagem em processo, que se faz / se

refaz continuamente - donde a mobilidade de suas formas e gêneros. Como toda linguagem,

orienta tanto quanto é constituída pelas falas que a efetivam.

Lugar de prática, a televisão é, portanto, um lugar de experiência, da nossa experiência

cotidiana. Fazer televisão, assistir à televisão não é algo externo, mas interno à vida social; o

espaço televisivo não existe paralelamente às nossas experiências, mas é uma delas – com um

fortíssimo poder de penetração nos demais âmbitos de nossa vivência36. Não podemos, hoje,

conceber ou falar da vida cotidiana de uma sociedade, ou de uma pessoa, sem falar da

presença da televisão inserindo e repercutindo imagens, representações, temas, formas de

procedimento e conduta. Para alguns, ela está ai atuando unilateralmente. Se a

compreendemos, entretanto, enquanto interação, espaço de um fazer que se reorienta a partir

da intervenção dos diferentes sujeitos envolvidos, falamos antes de uma relação bilateral, bem

como de uma linguagem atravessada (poluída) pela vida, espaço e dinâmica de experiências

partilhadas, uma televisão banhada em nosso cotidiano, enfim. Neste sentido, nos damos

conta do quanto a televisão é sensível ao seu ambiente, e colada ao que chamamos senso

comum.

1.7 - Enfim: como e de onde fala a TV?

Frente a esse quadro amplo e disperso de características, o que podemos concluir sobre a

televisão, sobre uma possível linguagem televisiva? Já o conceito de linguagem é bastante

complexo e controverso; sem adentrar uma discussão conceitual, partimos inicialmente da

idéia de um sistema estruturado de signos, uma estrutura geral que ordena formas de dizer. Se

entendemos linguagem como uma estrutura definida, fixa e determinante (conforme

trabalhada pela perspectiva estruturalista), estaremos já de inicio fadados ao insucesso. Mas

36 Contrapomo-nos aqui a uma afirmativa corrente, de que a televisão substitui ou esvazia a experiência. Fazer experiência, experimentar significa vivenciar, afetar, ser afetado, não sair ileso de uma situação. Ora, nossa relação com a televisão é bem da ordem de uma experiência, ela é uma experiência entre outras: nós afetamos e somos afetados; somos tocados por algo, nos apropriamos, damos nossa forma ao apropriado. Costuma-se contrapor a pobreza da TV à (possível) riqueza da vivência “direta” – essa vivência direta, no entanto, não é evidente, e muitas vezes permanece no nível da idealização.

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se pensamos em linguagem como processo de estruturação, conformado tanto quanto

conforma as diferentes práticas linguageiras (discursivas), podemos sim, falar de uma

linguagem geral da TV, enquanto um quadro amplo de referências e determinações37 que

orientam a maneira como se constroem os diferentes produtos televisivos. “Estar na” ou “ser”

televisão traz implicações para um produto, e é isto que queremos dizer ao falar de linguagem

televisiva.

Os diferentes aspectos e características discutidos acima nos permitem destacar alguns traços

que marcam um certo enquadramento ou moldura colocados pela produção televisiva (ou por

esta televisão que hoje conhecemos, fazemos e usamos), e que procuraremos sistematizar a

seguir.

a) linguagem visual, com predomínio do icônico

Primeiramente há que se dizer, ou lembrar, que televisão é imagem; uma linguagem visual,

portanto. Há uma certa universalidade na linguagem visual, que trabalha com signos

facilmente reconhecíveis, e que fala mais diretamente aos nossos sentidos. As imagens da

televisão, coladas ao cotidiano, falando dele e de nosso mundo, estabelecendo uma relação de

proximidade e verosimilhança com a realidade, se inscrevem sobretudo no terreno do icônico

(relação de semelhança com o mundo). “Janela para o mundo”, ela não prima exatamente pela

criação e pelo fantástico de suas imagens, mas pelo reconhecimento e identificação;

b) sensorialidade

Conforme já indicado acima, a linguagem visual, icônica, marcada pelo cotidiano, por

relações de proximidade, confere à televisão uma alta sensorialidade: ela fala aos nossos

sentidos, nos afeta, mexe diretamente com nossas emoções38;

c) instantaneidade e caráter massivo

37 Usamos “determinações” escapando do conceito fechado de determinações mecânicas e definitivas, mas querendo antes dizer influências fortes. 38 Já foi bastante ressaltado que a televisão exacerba principalmente um dos nossos sentidos - o olhar. A esta ênfase acrescenta-se ainda a denúncia da superficialidade de um olhar destituído de reflexão. Tratamos diferentemente essa questão, entendendo antes que a televisão, ao acessar ou nos adentrar diferentemente um mundo novo de formas, sons, dimensões, espaços, afeta nossos vários sentidos, toca nossa sensorialidade (capacidade de sentir). Quanto à ausência de reflexão, dois pontos devem ser considerados. Primeiramente, e pelo conjunto de traços que marcam sua atuação, percebe-se que a TV, hoje, tem como propósito (se propõe e é buscada) muito mais como um meio de entretenimento que de reflexão. Não obstante, parece-nos que a crítica à superficialidade do olhar carece totalmente de evidências empíricas; se ela não está lá ou não tem como principal função suscitar a reflexão, nada indica que ela a impede ou obscurece (ela suscita tanto ou tão pouco nossa reflexão como a infinidade de nossas outras experiências cotidianas).

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Uma farta distribuição de imagens, acessadas instantaneamente por milhões e milhões de

telespectadores: a imediaticidade e partilhamento são traços definidores da existência da TV;

d) fragmentação e diversidade

Produtos diversificados, múltiplos; fragmentação, descontinuidade e mistura de temas e

gêneros marcam o vasto repertório de bens distribuídos pela TV;

e) natureza industrial, mercadológica

Produção industrial, em larga escala, atendendo a uma lógica de mercado: esta é a forma de

organização da produção da televisão, o que se traduz em uma tendência à repetição, uso de

clichês e fórmulas consagradas. Se a inovação está presente na TV (como em qualquer

linguagem), só se pode pensá-la dentro do movimento dialético que estabelece com as forças

de padronização39;

f) inscrição no domínio do senso comum

Sua inserção na vida cotidiana, nos lares, em todos os lugares, confere aos produtos

televisivos uma relação de coloquialidade com seus receptores, e uma inscrição no senso

comum: ela fala dentro dos padrões interativos de uma determinada cultura, e dentro do

universo de referências partilhado por uma sociedade;

g) ficção e realidade

Abertura para o mundo, ficcionalização da realidade: a linguagem da TV oscila

continuamente entre estes dois mundos, sendo a mistura sua forma básica de lidar com as

duas instâncias;

h) caráter lúdico, entretenimento

A forma de inserção da TV – sua onipresença na vida cotidiana – desenvolveu

prioritariamente seu caráter lúdico, e a função de entretenimento. Permeando as demais

atividades, e inscrevendo-se como possibilidade de lazer e escape, a televisão é usada

sobretudo buscando a distração;

i) arena de discursos

A televisão é um espaço público; certamente o espaço público central da sociedade

contemporânea. Trata-se, portanto, de um terreno de grandes disputas, e onde eclodem e se

manifestam os mais diferentes discursos sociais. É um espaço de diversidade, marcado pela

39 Também aqui a referência de Morin (1997), sobre a dialética renovação versus inovação é imprescindível .

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presença de muitas vozes. A TV apresenta e reflete a diversidade da vida social, e é o palco

onde diferentes atores, situações, temáticas e problemas se dão a ver;

j) caráter institucional e de classe

A TV é uma instituição dentro de uma determinada estrutura social; ela não é externa nem

avessa a essa estrutura mas, ao contrário, espelha (e ao mesmo tempo reproduz) as relações de

classe, de poder que marcam a vida de uma sociedade. Assim, é de se prever que

predominem, na televisão, os discursos e forças hegemônicas da sociedade. A diversidade

está presente na televisão, mas os diferentes temas, sujeitos, discursos não se apresentam aí

em igualdade de condições. A linguagem da TV é marcada por este lugar institucional e pela

dinâmica de classe;

l) linguagem em construção

Prática comunicativa, a TV se constrói a cada dia, em interação com seu público e com a

dinâmica da vida social; dai a diversidade de gêneros, temáticas, e o permanente movimento e

hibridação de suas formas;

m) interação comunicativa: o lugar da recepção

Por último é importante ressaltar que, interação à distância, ela não elimina e não absorve

nossos outros espaços de vivência e de ação – ela dialoga com eles, mas não retira de nós o

papel e lugar de sujeitos no mundo, e de verdadeiros mediadores. Em um certo sentido, sim, a

televisão é uma mediadora, como o são também a cultura e várias outras instâncias. Mas na

soma final, é em nós e nas nossas ações que acontecem as transições, as junções e disjunções.

É isto que explica a existência das diferentes leituras e usos da televisão; a televisão está

submetida aos sujeitos tanto ou mais que os submete, e seu poder apenas pode ser

compreendido no seio das outras forças que são agregadas e conjugadas pela atuação dos

sujeitos no mundo. Mais que outros meios, a televisão é construída no bojo das interações que

estabelece.

Finalizando, queremos ressaltar que este quadro de características elencadas é sobejamente

conhecido e (pelo menos em sua grande parte), consensual. O objetivo e possível importância

desta compilação é tentar pensá-las em conjunto; uma tendência dominante nos estudos e

autores é privilegiar, em cada momento, um ou outro aspecto como sendo o traço central e

definidor da televisão. Nosso objetivo é ressaltar que ela é a soma e a confluência destes

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vários traços e fatores; oscilando entre forças às vezes contrárias, ela se situa sempre em

pontos de equilíbrio precários – o que dificulta uma resposta definitiva sobre o que é a TV, e

nos instiga a investigar, em cada caso, as relações e o lugar em que ela se conforma.

A caracterização da TV é também importante no sentido de orientar nossas críticas e busca de

uma televisão melhor e mais crítica; podemos e devemos fazer isto, mas a partir do que ela é

(e não daquilo que ela não é); do que ela pode dar (e não daquilo que lhe imputamos como

necessário). A televisão não é um remédio para todos os males – mas nem tampouco a doença

da sociedade. Ela apenas diz do seu estado de saúde.

1.8. Cultura popular e o popular na TV

Em nosso estudo, estamos falando de programas televisivos, e a esta qualificação se

acrescenta uma outra, programas televisivos populares; o que estamos entendendo por

popular neste contexto? O que ele acrescenta ao campo da televisão?

Popular vem de povo, um conceito complexo, e que vamos tomar aqui, para iniciar nossa

discussão, no seu sentido mais básico - conjunto de homens e mulheres vivendo em uma

sociedade. A palavra popular, em seus vários significados, evoca distintas relações com o

povo: o que vem do povo, o que se destina a ele, o que é característico dele, o que é amado

por ele – distinções estas que precisam ser consideradas.

Este último sentido - aquilo que o povo gosta - corresponde à noção de popularidade: algo

(uma coisa, uma pessoa, um valor) que goza de grande adesão por parte de grupos e membros

de uma sociedade. Tanto podemos aplicá-lo a Sílvio Santos (que goza de uma tal

popularidade no Brasil que, num determinado momento, chegou a pensar em usar este seu

“capital” para se candidatar à presidência da República) como à cerveja, por exemplo, em

certa medida considerada uma bebida nacional (e ela não o é por sua origem, mas exatamente

por sua popularidade).40

Já o “popular” de cultura popular, em suas conceituações mais correntes, expressa mais

propriamente aquilo que vem do povo, que é produzido por ele. Neste momento, as distinções

do coletivo “povo” começam a se fazer sentir: por vezes povo é tomado como sinônimo de

nação (associado à idéia de identidade – é neste sentido que falamos de uma “verdadeira” ou

“autêntica” cultura popular brasileira); outras vezes povo é um coletivo já recortado, do qual

40 Uma das campanhas da cerveja Antarctica tinha como slogan “Antarctica – paixão nacional”.

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se excluem os grupos dotados de uma cultura sem adjetivação (normalmente os que possuem

também um melhor nível de vida e consumo, maior poder aquisitivo). É no primeiro sentido

que falamos em MPB (Música Popular Brasileira); e quando apresentamos Pixinguinha ou

Chico Buarque como exemplos desta produção, é cheios de orgulho que o fazemos (nesta

perspectiva, o popular espelha o melhor de nós, uma exemplaridade que nos permite idealizar

nossa essência). Já no segundo sentido, povo equivale às classes baixas, aos pobres e setores

mais afastados (tanto do ponto de vista geográfico como de sua prática) dos padrões culturais

dominantes. Restrito a um mundo próprio, este povo se inscreve em um domínio cultural

particular.

A literatura sobre esta temática – cultura popular como “do povo” – é extensa, e as teorias

clássicas se dividem (ou dividem a questão) em duas grandes tendências: a) ou bem ela é

tomada como algo dotado de uma existência própria e isolada – e neste lugar ela é valorizada

em sua pureza original; b) ou ela é vista em relação à cultura dominante (ou “verdadeira

cultura”), quando é então caracterizada pela falta - por aquilo que ela não é, que ela não

alcança.41 No primeiro caso a cultura popular constitui um mundo à parte, e é sua

singularidade, sua ingenuidade primitiva que é exaltada e resguardada. Esta cultura é objeto

de medidas de preservação e incentivo por parte das políticas públicas, e objeto de respeito e

de consumo por parte de setores intelectuais e turistas. Inscrevem-se nesta rubrica, para falar

de exemplos próximos, o artesanato do Vale do Jequitinhonha, festas religiosas como o

congado e o reisado, comunidades identitárias (indígenas, afro-descendentes).

Mas numa outra perspectiva, o lugar dos pobres é antes um lugar de ausência (ausência de

referências, de conhecimento, de hábitos adequados), e, portanto, expressão de não-cultura.

Os pobres não têm acesso à cultura impressa, ao cinema, ao teatro ou às belas artes, ao

conhecimento histórico e, inclusive (e em decorrência), à reflexão e à consciência crítica.

Como lugar de falta, eles são objeto tanto de desprezo como de zelo pedagógico (estimulando

iniciativas de natureza educacional que visam a levar a cultura aos diversos tipos de

excluídos).

Sem entrar no debate sobre a natureza e o valor daquilo que o “povo” produz enquanto

cultura, é preciso dizer, no entanto, que se em algum momento essas clivagens culturais de

fato se apresentaram com nitidez (o mundo da corte, o mundo da plebe; a casa-grande e a

41 Essa questão foi discutida em trabalho anterior (França, 2005), em que retomamos as reflexões de Hall (2003) e Chartier (2003), sobre as classificações e periodizações da cultura popular.

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senzala)42, hoje é absolutamente impossível traçar fronteiras claras entre os diferentes

universos culturais, ou achar uma perfeita equivalência entre classe social e cultura, tal o grau

de mistura e hibridação que marca a dinâmica cultural contemporânea. Através da mídia em

geral, e da televisão em particular, as classes populares (ou classes baixas) têm cada vez mais

acesso a um universo de referências, valores, imagens, representações também acessado e

partilhado pelas classes mais altas. A idéia de um universo cultural próprio foi, digamos

assim, absolutamente comprometida pela horizontalidade da televisão.

Neste momento aqueles que defendiam a existência de uma cultura popular pura, ingênua,

constatam sua (quase) extinção; os que a caracterizavam como um lugar de falta registram

que, lamentavelmente, o vazio foi preenchido por uma cultura de segunda categoria (a cultura

de massa, hoje, mais convenientemente chamada de midiática). De toda maneira, por um ou

outro caminho, a idéia de popular enquanto produzido pelo povo se esvazia: nesta nova

dinâmica cultural, a ele só cabe o papel de recepção.

Resta então um último sentido; pode-se também chamar de popular aquilo que se dirige ao

povo e que, buscando ativar o consumo pelos mecanismos da identificação, se parece com

ele, assume algumas de suas características. Chamamos de popular, por exemplo, certo tipo

de produto e de comércio de baixo preço (identificamos, na cidade, as zonas e lojas

populares). Por este caminho, invariavelmente o popular se associa a baixa qualidade, falta de

sofisticação (nível básico), mau gosto, pobreza.

Ora, é bem este significado que encontramos quando se fala de programas populares (ou

popularescos) da TV; são programas voltados para o consumo das massas, dotados de uma

estética grosseira, de conteúdos pobres (baixo grau de informação, predomínio do

entretenimento), de temas “baixos” (sexo, crime, horrores). No caso do Brasil, o crescimento

destes programas é comumente associado a um pequeno aumento do poder aquisitivo das

classes populares nos últimos anos e ampliação dos domicílios com televisão. As audiências

televisivas se estendem, e algumas emissoras pegam esse novo filão de mercado (processo

que logo contamina, em maior ou menor grau, as demais). Nesta perspectiva, em que o povo

se mantém num lugar de simples destinatário e consumidor, ele sai pelo menos inocentado do

processo; é apenas vitima de uma produção que o avilta ainda mais (o afunda ainda mais em

sua pobreza cultural).

42 Mesmo em momentos passados, em que o universo de convivência das classes sociais era mais nitidamente demarcado, não se pode negligenciar que toda cultura é resultado de permanentes costuras e assimilações.

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Não é uma caracterização do processo histórico que nos interessa aqui, mas da natureza

desses programas, o que toca no conceito de “popular”. O elenco de programas que poderiam

se agrupar sob este rótulo é extenso, e inclui os mais variados gêneros e formatos (como será

visto nos capítulos adiante); seu primeiro elemento definidor é a presença de figuras (pessoas)

e temas advindos da realidade das classes populares. Até então a televisão, dirigindo-se a um

público médio (o “homem médio universal”, conforme Morin), situou-se também num

patamar supostamente neutro de interesses, na verdade uma mixagem de temas advindos das

classes altas e médias. Os interesses e a realidade das classes populares, seja pela sua fraca

presença no mercado de consumo, seja pela indesejabilidade ideológica das suas referências,

estavam excluídos.

Algo mudou: os temas, a realidade e os próprios sujeitos dessas classes se apresentam na TV.

Por que mudou? A explicação de mercado é apenas uma delas. Um outro caminho de reflexão

passa por uma revisão e uma outra formulação do próprio conceito de popular, rejeitando as

vias da autenticidade e da carência. Numerosos autores, nos últimos anos43, marcados por

uma visão não essencialista, e por um outro tratamento da noção de sujeitos sociais,

empreendem uma terceira via, onde o lugar do povo, da cultura popular, passa a ser visto

como um espaço atravessado por tensões - um espaço marcado pela presença das idéias e

valores dominantes, mas também, e sobretudo, por um movimento de resistência e de

negociações; lugar de embates, misturas, contradição.44

Algumas leituras enfatizaram sobremaneira a cultura popular como campo de luta e

resistência (no que foram criticadas por um excesso de idealização); outras destacaram mais o

aspecto das misturas e hibridações. Para o que nos interessa aqui, esta última perspectiva é

particularmente iluminadora. Nosso objeto de estudo não é a cultura popular como um todo e

o vasto campo que ela recobre, mas antes a cultura midiática, ou televisiva, naquilo que ela

incorpora ou expressa os traços dessa nova configuração do sentido de popular45. Ora, a

43 O trabalho de Hoggart, The Uses of Literacy (1957), teve um papel decisivo na leitura da cultura popular que será feita a partir de então (via Estudos Culturais), agregando depois novas e inúmeras contribuições, com destaque para a reflexão de S. Hall. Na América Latina, vale ressaltar as discussões de hibridação, mestiçagem, desenvolvidas por Martín-Barbero, Canclini, entre outros. 44 Contrapondo-se a uma definição comercial ou de mercado da cultura de massa, e a uma definição descritiva-antropológica, Hall apresenta uma terceira definição, que considera a cultura popular como dizendo respeito às “formas e atividades cujas raízes se situam nas condições sociais e materiais de classes específicas; que estiveram incorporadas nas tradições e práticas populares. (....) O essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a 'cultura popular' em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural” (Hall, 2003-a, p. 257). 45 Continua Hall : “Se as formas de cultura popular comercial disponibilizadas não são puramente manipuladoras, é porque, junto com o falso apelo, a redução de perspectiva (....) há também elementos de

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novidade dos programas que estamos apontando, marcados por este veio popular /

popularesco, é exatamente um grau de mistura mais acentuado e mais evidente. Se a cultura

de massa, desde sua origem, teve como uma de suas características centrais o sincretismo,

este acontecia, entretanto, a partir dos imaginários reconhecidos pelas culturas convencionais

(nacionais, religiosas, clássica, etc.). A linha de corte se situava sempre acima desse universo

lodoso que é a vida, a experiência e o cotidiano das classes populares.

Por uma série de aspectos mercadológicos e políticos da nossa realidade contemporânea

(surgimento de novos sujeitos sociais, lutas de identidade), esse quadro vem sofrendo

desequilíbrios, e a amplitude das misturas se faz mais intensa. Esta é a questão que toca

diretamente os programas populares e, de forma mais ampla, a própria televisão ou cultura

televisiva. Dissemos acima, a televisão é ela mesma um espaço de diálogo da vida social;

colada ao cotidiano, aos sentidos que permeiam a vida social, ela reflete e inflete seus temas,

embates, contradições. Essa “nova” televisão é apenas uma televisão que acolhe questões,

temas e sujeitos que saem do gueto e passeiam pela cidade, povoam a rua46. A dinâmica

ideológica (a briga de sentidos, de representações) transborda o universo de glamour e

assepsia em que por muito tempo foi contida. Esta nova televisão não é uma televisão

revolucionária, nem tampouco uma maré de detritos; ela fala de um cotidiano cada vez mais

saturado de diferenças, de diferenças que reivindicam espaço e claridade. A realidade das

periferias e da exclusão social, afastada dos olhares e das residências das classes abastadas, as

assombra agora nas ruas, e penetra também na televisão. Olhando juntos para a televisão,

confrontando imagens e representações, as diferentes classes estão hoje, mais que antes,

expostas às suas diferenças. O resultado disto extrapola políticas de programação televisuais,

mas diz respeito ao próprio quadro da convivência e estruturação da vida social.

A antiga metáfora da televisão como janela para o mundo mantém sua pertinência: a janela

mostra e esconde, incorpora o dentro e o fora. Ela entra e transforma nossa intimidade

doméstica (nossa casa, lugar da nossa vivência); ela abre para fora e nos dá acesso ao mundo

exterior. Mas não é exatamente “o mundo” que passa em frente de uma janela – é a rua, a

hibridação confusa e perigosamente instável das ruas.

reconhecimento e identificação, algo que se assemelha a uma recriação de experiências e atitudes reconhecíveis, às quais as pessoas respondem” (Hall, 2003-a, p. 255) 46 Através do conceito bakhtiniano de transgressão carnavalesca, Hall lembra que o dialogismo, nas formas discursivas, não significa acomodação nem elimina o antagonismo, mas expõe a mistura, a dissolução dos lugares, a eclosão do baixo “enquanto local de desejos conflituosos e representações mutuamente incompatíveis” (Hall, 2003-b, p. 226).

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