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    ATROCA INFORMACIONAL ENTREO MODELO FISIOLGICO DE

    ORGANISMO E CONCEPES DEORGANIZAO POLTICO-SOCIAL

    Poltica, tcnica e cincias davida a partir de Georges Canguilhem.

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    Nicola Labrea

    ATROCA INFORMACIONAL ENTRE

    O MODELO FISIOLGICO DEORGANISMO E CONCEPES DEORGANIZAO POLTICO-SOCIAL

    Poltica, tcnica e cincias da

    vida a partir de Georges Canguilhem.

    Porto Alegre2015

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    Direo editorial, diagramao e capa:Lucas Fontella MargoniFoto de capa: Georges Canguilhem, Castelnaudary, dans lesannes 1930. (Photo archives familales/Adocs-Photos)Reviso do autor

    Todos os livros publicados pelaEditora Fi esto sob os direitos daCreative Commons 4.0

    https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    LABREA, Nicola

    A troca informacional entre o modelo fisiolgico de organismo e

    concepes de organizao poltico-social: poltica, tcnica ecincias da vida a partir de Georges Canguilhem. [recursoeletrnico] / Nicola Labrea -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015.208 p.

    ISBN - 978-85-66923-86-5

    Disponvel em: http://www.editorafi.org

    1. Biofilosofia. 2. Regulao. 3. Normatividade. 4. Vital.5. Organicismo 6. Canguilhem. 7. Tecnopoltica. I. Ttulo.

    CDD-100

    ndices para catlogo sistemtico:1. Filosofia 100

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    Esta obra uma dissertao de mestrado, intituladaoriginalmente como Sobre a troca informacional entre o

    modelo fisiolgico de organismo e concepes deorganizao poltico-social: poltica, tcnica e cincias davida a partir de Georges Canguilhem., orientada peloprofessor doutor Norman Roland Madarasz (PUCRS),

    sendo tambm aprovada em banca no dia 25 de maro de2015 pelos professores doutores Ricardo Timm de Souza(PUCRS), Nythamar Fernandes de Oliveira (PUCRS) e

    Vladimir Pinheiro Safatle (USP), concedendo o ttulo demestre a autora.

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    Il n'y a pas de dpart zro.Jean Cavaills

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    Introduo / 13

    Captulo I

    Organizao e Consenso um modelo e um problemaconcernentes constituio vital / 31

    Captulo II

    Intermdio. Fraturas conceituais, recomeos conceituais / 87

    Captulo III

    A funo de regulao e os rgos reguladores normatividade e prteses vitais / 97

    Captulo IVConsideraes finais / 191

    Referncias bibliogrficas / 197

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    Introduo

    possvel apreender o que relaciona cincia e poltica,saber e poder, compondo com tais domnios o segundo par:tcnica e vida. O cientfico, o poltico, o tecnolgico e o vitalso quatro referenciais de cuja natureza, hoje como h longadata, uma anlise resulta insuficiente quando cr retir-losdos processos produtivos que os fazem fundamentalmentecorrelatos. A identificao do trao distintivo de umafilosofia da cincia que leve em conta tal situao deinterdependncia remete maneira pela qual ela opera otrnsito conceitual entre as reas, maneira pela qual aloca emsua compreenso os movimentos de importao,transferncia, migrao, evico de conceitos, parautilizar alguns termos canguilhemeanos, e de comocompreende o uso de modelos de analogia e homologia emque tais podem ser veiculados.

    At os primeiros anos do sculo presente, no Brasil, aobra de Georges Canguilhem (1904-1995) fora maisinterpretada por estudiosos instalados originalmente na reada sade do que por aqueles em primeiro lugar tributrios deuma perspectiva histrica da filosofia. Prevalecera dessemodo um recorte, por vezes no pouco estreito, daspossibilidades de debate acerca de seus livros, artigos econferncias, lidos at ento sob o vis tcnico do clnico,

    especialmente o vis psiquitrico. A primeira ediobrasileira de tudes dHistoire et de Philosophie des Sciencesdata

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    de 2012. Em conjunto com a traduo de Connaissance de laVie, publicada no mesmo ano pela Editora Forense (ColeoEpisteme Poltica, Histria Clnica), o seuaparecimento no mercado editorial brasileiro configura umaespcie de tardia confirmao de interesse, exemplificada eamplificada nos comentrios acadmicos. Antes disso, tinha-se apenas a traduo brasileira da tese de doutoramento, LeNormal et le Pathologique (com posfcio de Pierre Macherey,apresentao de Louis Althusser e o acrscimo das NovasReflexes), somada traduo dos artigos compilados em

    crits sur la Medecine, ambas publicadas pela primeira vez noano de 2005.No obstante demais obras significativas, como por

    exemplo Idologie et Rationalit dans lhistoire des sciences de la vie,ainda no conheam publicao no Brasil, e que diversosartigos, alguns assinados com o pseudnimo Laffont ouC.-G. Bernard, como Le fascisme et les paysants, sejam deacessibilidade recente mesmo na Frana, onde foram

    disponibilizados pela famlia Canguilhem CAPHS tantoa biblioteca pessoal quanto os arquivos de trabalho, abrindoo Fonds Georges Canguilhemem 2003, e onde o tomo primeirodas Oeuvres Compltes: crits philosophiques et politiques 1926-1939 veio a pblico em dezembro de 2011, inegvel oaclive de interesse pela obra canguilhemeana, perceptveligualmente na procura pelos materiais inditos. Emcorrespondncia com essa renovao de interesse, e

    aprofundando o tema praticamente inexplorado da leiturafeita por Canguilhem da sociologia de mile Durkeim, aprimeira dissertao de mestrado brasileira dedicadaintegralmente obra filosfica de Canguilhem de FbioLus Nbrega Franco, defendida na Universidade de SoPaulo, no ano de 2012.

    Na Frana, embora tenha adquirido amplitude o visde leitura medico-biolgico, como talvez se o considereaquele que prevalece em Franois Dagognet, MichelMorange, Anne Fagot-Largeault, Henri Atlan ou Andr

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    Pichot, autores que sobretudo aprofundam os temas dovitalismo canguilhemeano (incluso o tema tecnolgico e arelao com Gilbert Simondon, Leroi-Gourhan e RaymondRuyer), os trabalhos de cunho predominantemente scio-poltico como os de Claude Debru, Michele Cammelli, Jean-Franois Braustein, Guillaume Le Blanc e AnastasiosBrenner tm no somente retomado a filiao de GeorgesCanguilhem Epsitemologia Histrica, reestabelecendo suaproximidade com Gaston Bachelard, Jean Cavaills, MichelFoucault e Alexandre Koyr, como tambm retomado a

    presena do positivismo de Auguste Comte em sua obra,assim como a sociologia de mile Durkheim, mile Littr,Raymond Aron, a tematizao de modelos econmicos edemais questes concernentes pauta da normatividadesocial e poltica1. Pode-se considerar sem equvoco que essasegunda espcie de leitura j houvera sido iniciada porDominique Lecourt, Pierre Macherey, pelo prprio MichelFoucault e por Alain Badiou, todos antigos alunos dos

    seminrios de Canguilhem que o retratam antes de mais nadacomo um filfoso marcado pelo par de preocupao com otema do vital e do social, s vezes mesmo se sobressaindopela crtica de cunho poltico. Com efeito, essa duplicidade uma referncia adequada para definio da obracanguilhemeana, e primria, inclusive, com relao cadaum de seus termos, caso se consiga de algum modo isol-los.

    devido precisamente ao feitio duplo enquanto

    marca da obra que, a despeito da especificidade dostrabalhos sobre bacteriologia, embriologia, sobre a teoria doreflexo em neurologia ou acerca da passagem da teoriafibrilar teoria celular, com ttulos como Patologia eFisiologia da Tireoide no sculo XIX ou A

    1 Cf., a ttulo de exemplo, o colquio organizado pelo Collge

    International de Philosophie: Georges Canguilhem: Philosophe,historien des sciences. Actes du colloque (6-7-8/12/1990). Paris: AlbinMichel, 1993.

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    Experimentao em Biologia Animal, e diversos textosdedicados parcial ou integralmente aos mdicos XavierBichat, Claude Bernard, Ren Leriche, Franois Broussais eoutros, vale insuspeito o rigor de descries como esta,registrada no ltimo texto publicado por Foucault antes desua morte:

    Mas suprimam Canguilhem e vocs nocompreendero mais grande coisa de toda uma sriede discusses que ocorreram entre os marxistasfranceses; vocs no mais apreendero o que h de

    especfico em socilogos como Bourdieu, Castel,Passeron, e que os marca to intensamente nocampo da sociologia; vocs negligenciaro todo umaspecto do trabalho terico feito pelos psicanalistas,especialmente os lacanianos. Mais: em todo o debatede ideias que precedeu ou sucedeu o movimento de1968, fcil reencontrar o lugar daqueles que, deperto ou de longe, haviam sido formados porCanguilhem.2

    Aqui o inevitvel de uma meno ao contextosignificativo ao qual reenvia o nome de Michel Foucault,aproximado de demais como Louis Althusser, Alain Badiou,Jacques Rancire e tienne Balibar. Contexto em queestiveram envolvidos coesivamente, antes dos eventos de1968 terem divisado notavelmente seu(s) encontro(s). Osncleos de pensamento filosfico francs cuja clivagem

    tornou de praxe a classificao entre filosofias existenciais efilosofias conceituais3 so consequentes tambm do

    2 FOUCAULT, M. A Vida: a Experincia e a Cincia. In: Ditos eEscritos, v. II. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000, p. 352-353. "LaVie: Lexprience et la science". Rvue de Mtaphysique et de Morale, ano 90,n1, 1989, pp. 3-14.3C'est celle qui spare une philosophie de l'exprience, du sens, du sujet et une

    philosophie du savoir, de la rationalit et du concept ("La vie: l'Exprience et laScience", Revue de mtaphysique et de morale, anne 90, n1:Canguilhem, janvier-mars 1985, pp. 3-14). Embora o contedo das

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    desmonte desse grupo de alunos dacole Normale Suprieure, poca responsveis pela feitura e publicao dos Cahierspour lAnnalyse, a revista cuja condio de existncia talvezmelhor apresente o fundamental da figura de Canguilhemenquanto inserida nos quadros da filosofia francesanovecentista4. A notoriedade de sua presena nas discusses

    discusses impressas nos Cahiers pour lAnnalyseatestem a prevalncia doformalismo, em referncia direta lingustica, matemtica, psicanlise,qumica, e de fato o primado das cincias ditas duras, no resta menosexpressa a fora da influncia da releitura althusseriana do marxismo-leninismo e das demais linhas de interpretao (do PCF, dos maostas,etc.), que, de fundo, balizavam mesmo as questes acerca dacientificidade e da ideologia, do surgimento de uma cincia e de suatrajetria na histria. O tema da publicao n 9 Cahiers, em 1968, tendosido A Genealogia das Cincias, com a participao importante deFoucault, marca o momento em que o grupo se dissipou como sabido, a filosofia fundada na existncia humana ou experincia da ticaque o perodo posterior fez espessa, fez divises na filosofia francesa aomesmo tempo que minorou a prevalncia de elementos da cincia

    discusso filosfica. nesse sentido que Norman Madarasz, professor-orientador desta dissertao, em sua Apresentao edio v. 58, n. 2(2013) da Revista Veritas, dedicada ao tema Sistema e Ontologia naFilosofia Francesa Contempornea, faz referncia quilo que 1968interrompeu. Desde a proliferao da filosofia francesa das dcadas de70 e 80, a quase mudez acerca dessa outra filosofia francesa se vbem em sua ausncia nos espaos acadmicos. A filosofia das cincias da

    vida de Canguilhem reenvia de maneira direta a tal momento que perfeitamente, como descreve ainda Norman Madarasz, matriz

    convergente entre formalismo e poltica de emancipao.4 abertura de cada um de seus volumes, a revista veiculava a seguintecitao de Canguilhem: Trabalhar um conceito fazer variar suaextenso e sua compreenso, generaliz-lo pela incorporao dos traosde exceo, export-lo para fora de sua regio de origem, tom-lo comomodelo ou, inversamente, procurar-lhe um modelo, em resumo,conferir-lhe, progressivamente, por transformaes regradas, a funode uma forma. Trata-se de um excerto retirado do artigo de 1963,Dialtica e Filosofia do No em Gaston Bachelard (Dialectique et

    philosophie du non chez Gaston Bachelard.In: Revue Internationale dePhilosophie, 1963, p. 452), em que Canguilhem ressalta o carter estruturale coletivo do racionalismo bachelardiano.

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    do grupo do Cahierspode ser observada no prprio contedocolocado luz nos debates, mas tambm pode-se observarque a recorrncia dos nomes de dois dos principais mestresde Canguilhem no teriam tido ali tamanha ateno senopor efeito de seus seminrios: Jean Cavaills e GastonBachelard, nomes para os quais converge em ampla medidao referencial epistemolgico canguilheameano eemblemticos no que suas prprias linhas de trabalhorepresentam ao transcurso da filosofia francesa da cincia5.

    O trabalho terico especializado de Bachelard,

    abrangente da matemtica e da fsico-qumicacontemporneas primeira metade do sculo XX (emdilogo com mile Meyerson, Louis de Broglie, douard LeRoy, etc), no o impedira de filiar-se membro do Comit deVigilance des Intellectuels Antifascistes (CVIA)6, repetindo oposicionamento do qumico Paul Langevin e do filsofoAlain antes dele (membros-fundadores, ao lado de Rivet), eassim como o prprio Canguilhem na sequncia. No menos

    ilustrativa a figura de um matemtico como Cavaills, que

    5Em 1969, Louis Althusser escreve em seu Lenin e a Filosofia: De fato, preciso alguma coragem para admitir que a filosofia francesa, de Mainede Biran e Cousin at Bergson e Brunschvicg, pelo caminho deRavaisson, Hamelin, Lachelier a Boutroux, somente pode ser salvada desua prpria histria pelos poucos grandes espritos contra os quais virousua face, como os de Comte e Durkheim, ou, enterrados em oblvio,

    Cournot e Couturat; [isto] atravs de alguns poucos conscientizadoshistoriadores da filosofia, historiadores da cincia e epistemlogos quetrabalharam pacientemente para educar aqueles a quem, em parte, afilosofia francesa deve o seu renascimento nos ltimos trinta anos. Nstodos sabemos estes nomes; desculpem-me se eu cito apenas aqueles quej no esto conosco: Cavaills e Bachelard.6O Comit, fundado em maro de 1934 por Alain, Paul Langevin e PaulRivet sob o princpio de sauver contre une dictature fasciste ce que le peuple aconquis de droits et de libert publique", teve adeso de intelectuais socialistas,

    comunistas e radicais da esquerda francesa assinalando a preocupaocom a ascenso do fascismo na Frana, anos antes ecloso da SegundaGuerra.

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    segundo as palavras de Canguilhem optou por lutar naResistncia por lgica7: uma referncia justificativa doprprio Cavaills decorrente da qual a afirmao conclusivade que a luta contra o inaceitvel , portanto, inelutvel.Reverbera na filosofia de Canguilhem aquilo que Cavaillsescrevera em sua primeira condenao priso militarnazista, em maio de 1940, prvia a ocorrida em 1944, ocasioque desembocou em seu fuzilamento. Dizia Cavaills: no uma filosofia da conscincia, mas uma filosofia doconceito, que pode dar uma doutrina da cincia8.

    Canguilhem no fora aluno de nenhum dos doiscientistas/filsofos professores, mas fora manifestamenteaprendiz de ambos, e veio a suced-los tambm no mbitoacadmico, ocupando tanto a ctedra de Cavaills emEstrasburgo como a de Bachelard na Sorbonne. A ambosrecorreu em incontveis momentos de sua obra parareafirmar tal aprendizado, o que, excetuando as refernciasindiretas, pode ser encontrado expressamente, por exemplo,

    em Vie et Mort de Jean Cavaills9

    e nos numerosos trabalhoscuja centralidade dada a filosofia de Bachelard10.

    *

    Na conferncia de 1969, proferida em Varsvia e emCracvia comunidade cientfica polonesa sob o ttulo

    7"(...) a t Rsistent par logique". CANGUILHEM, G. Vie et Mort de JeanCavaill. Paris: Allia, 1996, p. 34.8CAVAILLS, J. Sur la logique et la thorie de la science. Paris: Vrin, 1997, p.90.9 CANGUILHEM, G. Vie et Mort de Jean Cavaills. Paris: Allia, 1996(1944).10

    Cf. CANGUILHEM, G. "L'Histoire des Sciences dans l'OeuvreEpistemologique de Gaston Bachelard". In: tudes d'Histoire et dePhilosophie des Sciences. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968.

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    Quest-ce quune idologie scientifique,11 o dilogo com a teoriaalthusseriana de diviso cincia versusideologia palco paraque o conceito de ideologia cientfica tome destaque nopensamento canguilhemeano. Ele projetado visandoreforar uma perspectiva cuja origem vai de encontro aosfundamentos epistemolgicos desenvolvidos na dcada de1920/30 por Bachelard,12com o qual Canguilhem sustenta anecessidade de considerar a atuao histrica dasapropriaes do cientfico pelo no-cientfico como nomenos relevante nem menos retratvel do que a pretensa

    linearidade causal e o estatuto de pureza habitualmenteaferido pela historiografia das cincias sancionadas s suastrajetrias.

    Ideologia cientfica, nesse sentido, reenvia categoria bachelardiana de obstculo epistemolgico: osempecilhos ao desenvolvimento cientfico que o vem a seratravs do uso acrtico repetido massivamente, ao ponto dese tornarem ossificados ou fossilizados pelo uso. O

    desconhecimento da tenacidade dos erros que por muitotempo obscureceram um problema.13 Se, como Badiouafirmava em seu texto de 1966, Le (Re)Commencement du

    11 A conferncia foi depois publicada no n 7 da revista Organon,Varsvia, 1970. Posteriormente, em:Idologie et rationalit dans lhistoire dessciences de la vie. Paris: Vrin, 2000.12

    Ver o Prembulo de Ideologia e Racionalidade nas Cincias da Vida, p. 9: aintroduo, no meu ensino ou em artigos e conferncias, do conceito deideologia cientfica, a partir de 1967-68, sob a influncia dos trabalhos deMichel Foucault e de Louis Althusser, no era apenas um indcio deinteresse e de adeso concedida a estas contribuies originais para adeontologia da histria das cincias. Era um meio de revigorar, sem arejeitar, a lio de um mestre, Gaton Bachelard, falta de poder seguiros seus cursos, lio em que se inspiraram e fortificaram os meus jovenscolegas, a despeito das liberdades que sobre ela tomaram.13

    CANGUILHEM, G. "L'Histoire des Sciences dans l'OeuvreEpistemologique de Gaston Bachelard". In: tudes d'Histoire et dePhilosophie des Sciences.Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968, p.185.

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    Matrialisme Dialectique14, a cincia produz oconhecimento de um objeto do qual uma regio determinadada ideologia indica a existncia15, isso se conectaabsolutamente com o fato de Canguilhem utilizar o termoevico para consignar a ao da ideologia cientfica, isto, algo que desapropria mas no ocupa. O sentidocanguilhemeano para ideologia cientfica encontra-se emsua obliquidade perspectiva em direo aos objetos tambmvisados pela investigao de teorias cientficas sancionadas.Mas essa ideia tambm evoca, ainda que menos diretamente,

    a noo de fronteira epistemolgica

    16

    . Esse conceito,surgido da ideia de que um problema depende de sualocalizao em determinada problemtica, fundamentado na conjuno de duas coisas aparentementeincompatveis: limites s reas do saber e troca informacionalentre eles. Toda fronteira absoluta proposta cincia, diziaBachelard, um problema mal formulado. A tarefa deabordar os fenmenos de movimentao conceitual entre

    um domnio e outro, evitando delinear com exagero asfronteiras de uma disciplina como pretextos para que bemcorra a historiografia de herana positiva que legitimava aprevalncia da continuidade sobre os cortes/rupturas, buscada e ampliada por Canguilhem ao longo de toda a suaobra. Finalmente, devemos sublinhar ento o conceito decorte epistemolgico. Eis o ponto de encontro ediscordncia mximos de seu pensamento com o

    pensamento historicista do positivismo, afinal, sua pechacom o continuismo histrico to forte que ultrapassa acrtica linearidade temporal e se desdobra em crtica

    14 BADIOU, Alain. Le (re)commencement du materialisme dialectique. Paris:Cririque, 1967.15Ibid., p. 449.16Cf. BACHELARD, G. Crtica preliminar do conceito de fronteiraepistemolgica. In:Estudos. Rio de

    Janeiro: Contraponto, 2008.

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    continuidade espacial, s concepes, por assim dizer, deum mbito do saber integrado a si prprio, fechado em siprpio. Canguilhem substitui essa perspectiva por aquela queatribui primazia ao relacional, ao interdependente.

    Na relao entre os momentos descontnuos dahistria de uma cincia, entra o papel da valoraoepistemolgica. Canguilhem afirma que os valores racionaisdevem ordenar a histria da cincia visto que eles polarizama prpria atividade cientfica17Desse modo, uma teoria dovalor est por trs da perspectiva histrico-epistemolgica da

    descontinuidade. Se ela pleiteia a insero das utilizaesconceituais que no ocupam e contudo desapropriam olocal da teoria cientfica porvir, reverberando no planoepistemolgico, Canguilhem nunca deixou de frisar sua visoda historiografia cientfica: para alm de laboratrio,deveria compreender-se enquanto uma espcie detribunal18, compreendendo o exerccio do julgamentocomo fator decisrio particular e relevante para

    reestruturao causal dos fatos. Algo de seu colega RaymondAron que ecoa em sua obra, como se v na descrio:

    sem dvida a razo pela qual Aron recebeu tofavoravelmente a idia de valor como condio deexerccio do julgamento histrico. Sem a refernciaaos valores, os eventos da histria so uma sucessosem consequncia, sem apelo ao julgamento, seja umencadeamento de causas e de efeitos fundada num

    tipo de explicao estritamente naturalista, ou seja,

    17CANGUILHEM, G. A histria das cincias na obra epistemolgicade Gaston Bachelard. In:Estudos de histria e filosofia de cincias concernentesaos vivos e vida. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 183.18

    Cf. CANGUILHEM, G. O Objeto da Histria das Cincias. In:Estudos de Histria e de Filosofia das Cincias concernentes aos vivos e a vida. Riode Janeiro: Forense Universitria, p. 5-7.

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    inversamente, uma poeira incoerente de eventoscontingentes.19

    Dispensando a iluso retrospectiva pela assunodeliberada de uma espcie de estruturalismo historiogrficoforte, Canguilhem concluir: o relato histrico sempretranstorna a verdadeira ordem de interesse e interrogao. no presente que os problemas solicitam reflexo. Se areflexo leva a uma regresso, a regresso necessariamenterelativa reflexo20. O fator crucial que d forma maislimitada ao que poderia ser acusado de pura e livre escolha

    de pontos de corte, de reconhecimento de rupturas, suavalorizao, etc, a necessidade de identificar modelos eretratar sua utilizao.

    Em Models et analogies dans la dcouverte enbiologie21,Canguilhem enfatiza que s cincias de estudo dovivo no tanto a construo de analogias (transposiesestruturais; semelhanas morfolgicas), mas sim dehomologias (correspondncias referentes finalidade;

    origens associadas mesma funo) que adquire maioreficcia quando de suas aplicaes. No mais das vezes,quando se trata de construes tericas nos estudos sobre ovivo, ele sustenta, um modelo nada mais do que sua

    19CANGUILHEM, G. "Raymond Aron et la philosophie critique delhistoire", Enqute, 1992, p. 29. Online desde 16/11/2005, consultadoem 20/01/2014. URL: http://enquete.revues.org/138.20CANGUILHEM, G. Augusto Comte e o Princpio de Broussais.In: O Normal e o Patolgico, Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.29.21Com o nome The role of analogies and models in biological Discovery, esteartigo aparece primeiro na publicao decorrente de um Simpsioocorrido na Universidade de Oxford: Scientific Change. ed. by A.C.

    Crombie; Heinemann. London, 1963. Surge mais tarde na lnguafrancesa, emtudes dHistoire et de philosophie des sciences. 5. ed. rev. e aum.Paris: Vrin, 1983.

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    funo22. Apresentar o que o autoriza a constatar essasingularidade das cincias da vida, a primazia outorgada funo em detrimento da forma, implica aludir ao momento-chave em que a individualidade biolgica ganha estatutocientfico dentro da histria da anatomo-fisiologia. Trata-sedo momento em que Claude Bernard fundamenta a noode regulao orgnica, importada de um modelo poltico desociedade, para redefinir a compreenso da individualidadebiolgica. Essa especificidade da individualidade se explicamesmo nas partes, totalidades indecomponveis vivendo

    dentro do organismo vivo como sevidas autnomas fossem.Encontra-se a latente, pensamos, a convenincia e aimportncia da definio da funo de regulao orgnica,inclusive para anlise da operao de transferncia funcionalentre modelos.

    verdade que no h ineditismo na ocorrncia dediscursos cientficos que excedem seu campo terico originalao adentrar saberes laterais, seja alterados em seu contedo

    seja aderentes, ainda, aos mesmos. So plurais os casos queo exemplificam. Anteriores fundao da ideia fisiolgica deregulao, apenas tratando-se de biologia, no foram poucosos modelos adaptados em mbito do saber poltico. Aacepo de economia animal23,por exemplo: se Linn a veiculaem seus Poltica Naturaee Oeconomia Naturae, no o faz semimprimi-la da carga com a qual Lavoisier a tinha emprestado(o dispositivo de estabilizao mecnica do modelo de

    mquina animal, a mquina hidrulico-pneumtica queseria composio dos trs reguladores: respirao,

    22 CANGUILHEM, G. Models et analogies dans la dcouverte embiologie. In:tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: LibrariePhilosophique J. Vrin, 1968, p. 340.23CANGUILHEM, G. conomie, Technologie et Physiologie: "La

    formation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXesicles". In : Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin,2000.

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    transpirao, digesto) e Buffon expandido quantidadepopulacional, a partir da juno do mecanicismo subjacente ideia de mquina animal com o ideal naturalista deconservao e equilbrio da natureza, por sua vez herdeiroda medicina hipocrtica, sumria da qual a expresso vismedicatrix naturae faculdade vital compensatria ereorganizadora (natureza curativa) qual Cannon,recolhendo o conceito de milieu intrieur, atribuiu a inspiraopara o desenvolvimento do conceito de homeostasis.Avanando ainda no mesmo exemplo, vis medicatrix naturae

    tanto a expresso que Stalh, influente Escola mdica deMontpellier (de tradio vitalista), descrevia enquantoautocracia da Natureza (autocratia naturae)24 como tambm a ideia que Malthus transformava em vis medicatrixres publicae25em sua teoria de equilbrio das populaes. NaseoEconomie, Technologie et Physiologiedo artigo intitulado Laformation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXesicles26, Canguilhem aponta para o fato de que, quando as

    teorias econmicas liberais e as teorias econmico-polticassocialistas consolidaram-se no sculo XIX, nutriram-se daideia da diviso fisiolgica de trabalho. Em seguida, ateoria celular consignava a vida social das clulas, ErnstHaeckel utilizava os termos repblica das clulas eEstado celular e Claude Bernard introduzia anlisescomparativas entre a vida em liberdade das clulas comsua vida social.

    24 CANGUILHEM, G. A ideia de natureza na medicinacontempornea. In: Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro: Forense,2005, p. 19.25MALTHUS, R.Essai sur le principe de population(1798). Paris: Seghers,1963.26

    CANGUILHEM, G. "La formation du concept de rgulationbiologique aux XVIIIe et XIXe sicles". In: Idologie et rationalit danslhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000.

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    Mas dessa profuso de transferncias destacam-seobservaes mais pontuais. Constatado isso seja na aplicaotecnolgica, na formulao de mecanismos decisrios, nalegitimao de prticas econmicas, na mistificao etipologia do poder, no so escassos os casos em que seencontram conceitos originrios da biologia na prtica dosaber polticoo que, sem dvidas, no implica em excluira veracidade da recproca. Porm, vem evidncia que oscasos em que uma teoria poltica domina uma filosofiabiolgica27parecem ser menos caros Canguilhem do que

    a ocorrncia do caminho inverso, que possibilita encontrar,em uso por determinada teoria vigente na esteira das cinciasda vida, modelos polticos. Ao longo dos anos, Canguilhemvolta-se muitas vezes s teorias vitalistas, ao evolucionismo, gentica, casos diversos em que a biologia justificaopara a poltica, em que h parasitismo, conversointeressada ou casos de transplante de conceitosbiolgicos para o terreno da poltica28. Isto , a troca

    informacional entre o saber interessado na organizaoscio-poltica e o saber cientfico acerca do organismomantm-se presente no cerne de trabalhos de Canguilhemao longo de toda sua obra, dos anos 20 at os anos 80 dosculo XX. O uso de modelos, para Canguilhem, um fatoentre os saberes. No entanto, seu mtodo de tra-los,fazendo sobressair a filiao dos conceitos, ao invs dasucesso de teorias, jamais foi esquematizado ou

    transformado em sistema, de modo que s podemosapreend-lo no acompanhamento de sua prtica.

    Cumpre, por fim, salientar a seguinte singularidadeacerca da obra: se se deseja tambm abordar a filosofiacanguilhemeana da normatividade em suas bases funcionais,

    27CANGUILHEM, G. A Teoria Celular. In: O Conhecimento da Vida.Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 70.28CANGUILHEM, G. Aspectos do Vitalismo. In: O Conhecimento daVida. Forense, 2011, p. 102-103.

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    faz-se preciso esclarecer suficientemente o fato de que, antesde sustentar um interesse pelas normas em si, por suaaplicao ou legitimidade, Canguilhem interessa-se pelopoder instituinte das normas em seu carter originrio, isto, pela origem biolgica da constituio de tcnicas expressasjunto a modelos de racionalidade, pela anterioridade vital dafaculdade normativa. H relevncia em sublinhar aanterioridade do pensamento do vital, em Canguilhem, comrelao ao pensamento do poltico, mesmo que modelospolticos sejam pensados com anterioridade em relao aos

    modelos biolgicos, em suas anlises (como o caso domodelo regulatrio). Dessa forma, parece-nos legtimoentrecruzar assim os traos essenciais de seu trabalhofilosfico: de um lado, a direo de modelos polticos scincias da vida; de outro, e indo mais longe, a origem vitaldas normas sociais. Ademais, ser necessrio, como veremosadiante, sublinhar o papel da tcnica (tanto a tecnologia daagncia direta quanto a do frmaco e a do terapeuta, por

    exemplo), um papel de prolongamento de rgos biolgicossem a explicitao do qual no estaria completa a abordagemda filosofia canguilhemeana acerca dos aspectosinterdependentes do domnio biolgico e de estruturasscio-polticas.

    Tomado em conjunto e a ttulo introdutrio, pode-sedizer que isto o que Canguilhem estabelece enquantoescopo para anlises filosficas. So teorias, conceitos ou

    noes atravs dos quais o domnio cientfico comunica como social e com o poltico. Comunicao essa que, no limite,identifica-se com a anlise de informaes provenientes dainvestigao do tema do vital e, por suposto, dotecnolgico. A vida enquanto perspectiva primeira ocasionaa especificidade da reflexo canguilhemeana, furtando-a decair em antropomorfizao no debate acerca do normativo,como faria caso partisse de uma preconcepo decoletividade da espcie humana ao invs de tomar comoincio fatos da individualidade biolgica e suas definies

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    formais. , por exemplo, a partir da vida de qualquer espcie,enquanto faculdade e exerccio normativos, que a teoriasocial pode extrair o dado, do qual o problema, do modelofuncional de regulao.

    *

    O objetivo geral deste trabalho ser o de rastreamentode alguns pontos significativos da troca informacional entreo modelo fisiolgico de organismo e concepes de

    organizao poltico-social enquanto interagentes naproduo de saber acerca do vivo, a partir de umainterpretao particular da filosofia canguilhemeana.Particularmente, tentaremos demonstrar que a filosofia deCanguilhem no se restringe ao ramo da histria das cincias,mas se apresenta tambm, se no como um esboo de teoriapoltica, no mnimo enquanto matria prima para que delasejam extrados os componentes de um mtodo de atuao

    da filosofia que no a restrinja aproximao sobre um saberisolado dos demais, mas sim que possa adquirir uma espciede atuao crtica sobre a relao entre mais de um domnioda racionalidade. No caso presente, pelo vis de nossointeresse prprio e por serem eles justamente os camposmais explorados pela obra de Canguilhem, ganhar relevo arelao entre saberes mdico-biolgicos e saberes poltico-sociais. Especificamente devido carcaterstica fundamental

    da obra canguilhemeana, isso ser retratado a partir da noode vida, que engendra, por sua vez, certa noo de tcnica.

    A presente dissertao nasce do encontro entre umanecessidade prtica, relativa ao exerccio ou estudo dafilosofia, com a descoberta, a partir da pesquisa sobre a obrade Canguilhem, de uma possvel metodologia para pensar aproduo de saber a partir da relao de mbitos delimitados.Esperamos conseguir mostrar, com ela, que dos escritos deCanguilhem possvel extrair as bases de um modo de fazerfilosofia e pensar a poltica e a cincia a partir da ideia de vida

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    e das formulaes de modelos utilizados para compreend-la, em nveis plurais.

    O modo de pensar os modelos, a troca informacionalentre eles, est presente na obra de Canguilhem noenquanto mtodo mas enquanto exerccio. Pensar umaorigem canguilhemeana de inteleco do enredamento entretcnica, poltica, e cincias da vida, implica, portanto, emacompanhar seu raciocnio e demonstrar de que maneirasuas anlises resultam em grmen de um mtodo. Modelono aparecer em sua obra com o sentido de um molde

    padronizador, mas como via de comunicao. O vital, porsua vez, adquire papel de conceito operatrio principal, como qual se passa de um setor a outro, atravs da ideia que ofundamenta: a normatividade. Se a questo metodolgica emCanguilhem exige ser buscada no exerccio de sua prticafilosfica e no em determinado conjunto de regras que eleporventura poderia ter hierarquizado em forma de sistema,isso de modo nenhum torna menos evidente sua

    considerao de mbitos diferentes do saber enquanto partesinteragentes, que especificam-se e mantm-se em estado decmbio conceitual constante.

    No Captulo I, propomo-nos interrogar a comparaoentre o modelo anatmico de organismo fundamentado nanoo de consenso das partes e o modelo de organizaoscio-poltica positivista do sculo XIX, a partir de textos deCanguilhem. So levantadas as questes da finalidade, da

    integrao, da continuidade. Ao rechaar a noo de consensuscomteana em sua aplicao ao pensamento da sociedade,Canguilhem adotar uma concepo de convergncia denormas enquanto ideal de organizao e fundamentar aideia de um problema relativo compatibilidade das normassociais, problema este que ele chama de sem soluo. Pelavia estrutural, Canguilhem rejeitar a assimilao do corposocial ao organismo vivo, visto que a organizao enquantocoeso absoluta das partes s hbil a represent-lo aosolapar a convergncia das normas a um princpio metafsico

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    ou teolgico de solidariedade ideal das partes, supondo quetodos os membros da sociedade confiem contratualmente aopoder de governo o suprimento de suas necessidadesinternas.

    No Captulo II, intencionamos apresentar o modelofisiolgico de organismo, isto , o modelo regulatrioproposto por Claude Bernard. A sociedade do final dosculo XX e incio do sculo XXI apresenta caractersticasque j tm sido definidas pelo paradigma da regulao. Deteorias da regulao em economia modelos de Estado

    Regulador, v-se uma nova leva de organicismo social,porm com a seguinte diferena: dessa vez, a comparaono se d por analogia, e sim por homologia. Aautorregulao pelo interior, seja no organismo ou nasociedade, aparece na obra de Canguilhem corroborada pelasnoes de potencial normativo e pela formulao de umateoria biolgica da tcnica, em que rgos e aparelhos deregulao so como extenses de funes vitais.

    Apresentaremos a ideia de rgos sociais comoprolongamento da vida e no da racionalidade.O trabalho, ento, perseguir um duplo objetivo. De

    uma parte, procurar, nos captulos que descrevemos,mostrar a troca informacional entre o saber mdico-biolgico do corpo vivo e o saber poltico-econmico docorpo social. Mas, de outra parte, procurar mostrar ocarater metodolgico da obra de Canguilhem usando seus

    textos para percorrer este exemplo. Em resumo,pretendemos mostrar que a abordagem filosfica da troca deinformaes entre modelos servente ao objetivo de pensaruma filosofia do cruzamento entre filosofia da cincia efilosofia da poltica em sua interao conceitual. Se senecessita uma classificao para tal modo de exerccio dafilosofia, o caso da obra de Georges Canguilhem, quepercorre esse caminho, um bom exemplo de permisso asimplesmente classific-la enquanto filosofia da vida.

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    Captulo IOrganizao e Consenso

    um modelo e um problemaconcernentes

    constituio vital.

    Il est impossible de crer un corps pour une fin sans lui donner uneorganisation, des formes et des lois propres lui faire remplir les fonctions

    auxquelles on a voulu le destiner. Cest ce quon appelle la constitution de cecorps. Il est vident quil ne peut pas exister sans elle. Il lest donc aussi quetout gouvernement commis doit avoir sa constitution; et ce qui est vrai dugouvernement en gnral lest aussi de toutes les parties qui le composent.

    Ainsi le corps des reprsentants, qui est confi le pouvoir lgislatif oulexercice de la volont commune, nexiste quavec la manire dtre que lanation a voulu lui donner. Il nest rien sans sesformes constitutives; il nagit,il ne se dirige, il ne commande que par elles. cette ncessit dorganiser lecorps du gouvernement, si on veut quil existe ou quil agisse, il faut ajouter

    lintrt qua la nation ce que le pouvoir public dlgu nepuisse jamaisdevenir nuisible ses commettants. [...] Ces lois [constitutionnelles] sont ditesfondamentales, non pas en ce sens quelles puissent devenir indpendantesde la volont nationale, mais parce que les corps qui existent et agissent parelles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie la constitution nest paslouvrage du pouvoir constitu, mais du pouvoir constituant.29

    29SIYES, Emmanuel Joseph.Qu'est-ce que le Tiers-tat ? Prcd de l'Essaisur les privilges. Paris: Alexandre Correard, Libraire, 1822 (1788), p. 52-3.

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    I.1. Fisiologia social, fsica social, poltica biolgica

    I.1.1. Regularidades normativas do sculo XIX francs

    Os avanos desempenhados no mbito das cinciasnaturais forneceram histria do sculo XIX contribuiesabrangentes. Estabelecido como escopo o perodo entre oslimites de duas datas, restringindo-nos a Frana, podemospontuar alguns registros desses avanos. Como data incial: oano de postulao cientfica do termo biologia, marco que

    ocorre pelas mos de J.-B. Lamarck (1744-1829) em 180230

    ;como data final: 1878, este que foi no apenas o ano defalecimento de Claude Bernard (18131878), mas tambmaquele em que, ministrando a disciplina de Fisiologia criadapara ele no Collge de Franceem 1872, menciona pela primeiravez o termo regulao com conotao relacionada ssecrees do chamado milieu intrieur, termo remetente a certaao autnoma de declinao homeosttica31. Intermedeiam

    essas duas datas momentos-chave no itinerrio das cinciasda vida, tais como a descoberta, operada por Louis Pasteur(1822-1895) em 1863, dos micrbios enquanto agentespatognicos - abrindo as portas, inclusive, das aes polticashigienistas que se dariam sob a gide da bacteriologia -; aformulao dos mtodos anatomo-comparativos comoferramenta de classificao taxonmica das espcies,elaborada por Georges Cuvier (1769-1832), mtodo que

    influenciaria fortemente a biologia das espcies, sob o signode Charles Darwin (1809-1882) e sua principal obra,publicada em 1859; as leis da hereditariedade apresentadaspor Gregor Mendel (1822-1884) no ano de 1865; o

    30 Surge primeiro em Hydrogologie (1802). Depois, no prefcio dePhilosophie Zoologique(1809), e em seus Recherches sur lorganisation des corpsvivantse Philosophie Zoologique.31BERNARD, C. Leons sur le diabte et la glycogense animale. Paris: Baillire,1877.

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    recebimento e aproveitamento, por Claude Bernard, doimpacto da patologia celular - desenvolvida por aquele quefora tambm autor do termo Epidemiologia Social, o alemoRudolf Virchow (1821-1902)sendo-lhe doravante possvelfazer a descoberta da funo glicognica do fgado em 1853,sem o que, alis, o termo regulao, com a conotaomencionada supra, talvez no tivesse tido os meios para quepudesse ter sido cunhado.

    Levando em considerao a exigncia bachelardianade incluso da considerao do erro no pensamento

    filosfico sobre a cincia, frequentemente retomada eaplicada por Canguilhem, que afirmava: a histria de umacincia falharia sem dvida o seu objetivo se no conseguisserepresentar a sucesso de tentativas, impasses e recomeosque teve por efeito a constituio daquilo que essa cinciaconsidera atualmente como sendo o seu objeto prprio32,os atalhos e desvios no devem ser aqui menos destacveisque os avanos. At que Pierre Flourens (1794-1867)

    refutasse as teorias frenologistas, fazendo da prtica daablao de partes do crebro de pombos a base emprica parajustificar uma viso contrria ao locacionismo cerebral, afrenologia do alemo Franz Joseph Gall (1758-1828)vigorava no pensamento mdico-biolgico francs. Outrocaso a noo ideolgica de eugenismo, defendida em 1882pelo ingls Francis Galton (1822-1911), que desembocariano alastramento das ideias de higiene racial, somadas, na

    Frana, com a preocupao bacteriolgica ocasionada pelasdescobertas do j mencionado Louis Pasteur. No menospatentes foram as influncias do darwinismo social sobremais de um ramo das cincias da vida. importante notarque todos esses so casos que no se limitam neurologia, gentica, ou qualquer um discurso interior ao mbito

    32

    CANGUILHEM, G. "O problema da normalidade na histria dopensamento biolgico.In: Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences dela vie. Paris: Vrin, 2000, p. 108.

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    cientfico que se pudesse forosamente sitiar. So casos que,ainda que de assalto ao conhecimento cientfico33, obtiveramefeitos fora do mbito de seu surgimento e aindaextratericos, a partir das polmicas polticas geradas poreles. Uma ligeira impresso de que os erros cientficos tmmais efeitos sociais do que os acertos no deve enganar apercepo filosfica. Mais ou menos evidentes em prticaspolticas, seria necessrio manter a ateno e assimgostaramos de fazer com o pano de fundo deste trabalho -para o fato de que, do sculo XIX francs ao tempo presente

    supranacional, ao estarmos diante de trocas e influnciasentre cincia (em particular as cincias de estudo do vivo) epoltica, sejam elas calcadas em valores negativos oupositivos, poderamos bem classific-las entre estveis ou emcondio de crescimento, mas de modo nenhum poderamosafirm-las como sendo inexistentes.

    Alm dos erros ou apropriaes ideolgicas, ascondies materiais so para Canguilhem, mais do que eram

    para Bachelard, fundamentais para compreender ofuncionamento dos racionalismos regionais em suasinterdependncias. Canguilhem, que frequentementedemonstrava valorizar o ato de conceber o conhecimentocomo uma operao e no mais como uma contemplao,apagar a fronteira de dignidade que separava a teoria daprtica34, nunca deixou de sublinhar como questeselementares de estrutura de pesquisa, como o uso do

    microscpio por exemplo (determinante na relao deaceitao ou rejeio da teoria celular), estava to emcomunicao com o terreno poltico quanto os erros que

    33Canguilhem utilizava o termo evico" para designar as ideologiascientficas, querendo dizer o ato de desapropriar sem, no entanto, ocuparo mesmo local.34

    CANGUILHEM, G. O homem de Veslio no mundo deCoprnico. In:Estudos de histria e de filosofia das cincias concernentes aos vivose vida. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2012, p. 25.

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    acabamos de destacar. Em seu surgimento, menosproblematizada que o microscpio, a tcnica da vivissecaode animais no ser menos determinante para descobertas dergos fundamentais ao desenvolvimento da endocrinologia.O sculo XIX permeado de momentos em que umconjunto de desenvolvimentos pertinentes s cincias davida se converte em temas s cincias polticas e sociais ederivam em aes prticas e repercutem em discusses tico-pragmticas. Para aqum disso, no entanto, pode-se apenasrecuar ao fato de que essas descobertas recobrem, no modo

    como se d sua constituio conceitual, seja ela polmica ouindiscutida, uma inegvel troca informacional. Entre saberesde reas divergentes do conhecimento em constituio,ocorre um contato sem aparente mediao, que levanta anecessidade de esclarecimento dessa influncia mtua entresaberes mdico-biolgicos e poltico-sociais j quando deseus momentos de irrupo.

    Se h troca, nada interdita suspeitar que h tambm

    um dispositivo a permitir o transporte de informao. Queeste no dependa de uma interpretao terica posterior asua atuao, fundamentada em anlises comparativas, parafuncionar e se fazer exposto, deve levar ao questionamentode que tipo de dispositivo seria esse. Pois assim comoexistem casos de converso interessada de uma teoriabiolgica em teoria sociolgica de interesses polticos, outrasvezes, bem ao contrrio, percebe-se que essas migraes

    ocorrem (como o caso da palavra constituio oumesmo mquina) como que simultaneamente. Odispositivo que permite sua importao e exportaoaparentemente sem paradas alfandegrias, encontra-se nautilizao de modelos, que vai antes mesmo de que osconceitos passsem a endossar uma transformao relacional,ou de que as compatibilidades categoriais passem atransformar-se de dentro de seu sentido. No entanto, sefunciona como um espao de livre comrcio, a moeda no comum. H desvalorizaes e sobrevalorizaes adicionadas

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    aos conceitos-chave dos modelos, assim que eles passam aser usados em domnios que no os originais.

    Para compreender como podem ocorrertransferncias mesmo quando no h um propsito ouconscincia explcitos de faz-lo, julgamos crucial apreenderque h um carter especfico para o que queremos dizer como termo informao, neste caso: , justamente, que ela sejausada antes de ser detalhada. O que precede esse conceito deinformao um modelo da Gentica, pois a ele vai aliada aideia de que o cdigo contido no gene, transportado

    contendo informao, cuja manifestao ainda no se deu nofentipo, e que justamente por essa razo tem vrias chances,um quadro de probabilidade aumentado na hora de sertranscrito. Isto , a ideia de que um gene pode produzirmltiplas protenas, dependendo de um processo deregulao de cujo detalhamento funcional no entraremosno mrito de descrever. Como afirmava Canguilhem, ummodelo ganha valor quando se empobrece. Em Models et

    analogies dans la dcouverte en biologie35

    , lembrado o fato de que,em matemtica, usar um modelo colocar emcorrespondncia termos com conservao de relaes.Contudo, em biologia36 no ocorre a conservao derelaes: o modelo no estruturalmente conservadoenquanto tal. Quando fora do domnio inicial de suaverificao, os conceitos de um modelo entram em novasrelaes, ligando-se aos termos da nova rea do saber na qual

    adentra. Se modelos aqui devem ser entendidos noenquanto figuras mas enquanto veculos porque ainformao passada no nem pronta nem unvoca, mas simum pattern de cuja pobreza de certificao de mensagemclara e pura pode ser extrada a riqueza de possibilitar novos

    35 CANGUILHEM, G. Modelos e analogias na descoberta embiologia. In:Estudos de histria e de filosofia das cincias concernentes aos vivos e vida. Rio de Janeiro: Forense Universitria. 2012.

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    usos. Ecoa aqui a teoria de Henri Atlan, segundo a qual orudo amplia a informao, pois fraciona a pretensaequalizao entre um local de sada e outro local de entrada,gerando assim mais possibilidades de transformao dainformao. , evidentemente, uma noo quantitativa, eno qualitativa de pobreza, que figura na frase deCanguilhem como na concepo de Atlan. O que importa compreender que a informao contida num modelo no a mesma contida na teoria da qual ele foi retirado, mas simuma informao que, sendo por excelncia prvia a sua

    manifestao, comporta possibilidades latentes de serexpressa.Acima, dissemos um dispositivo a permitir a troca

    de informao, mas no dissemos a ocasionar tal cmbio.O que ocasiona, ou pelo menos fomenta fortemente, essatroca entre os domnios do saber? Podemos pensar que oque alimenta, incita ou ocasiona a troca especfica entrebiocincias e cincias polticas seja um certo nmero de

    problemasem comum. Talvez isso fique claro se voltarmos aosculo que Canguilhem tratou no maior nmero de pginasnostudes d'Histoire et de Philosophie des Sciencese acerca do qualiniciamos o presente texto, para dele extrair um exemplosignificativo. Em se tratando do sculo em questo, bastante evidente que a troca informacional entre essescampos tenha radicado no assunto da organizao, daarregimentao social, do ajustamento de sua ordem,

    demonstrado da economia poltica s cincias naturais. Mascompreende-se sem ter vista grandes empecilhos o cartersintomtico dessa escolha temtica, havendo ente as reascerto nmeros de problemas em comum que se aglomeramsobre o tema da organizao.

    De incio, bastar recordar o pano de fundo daFrana nesse perodo para compreender o que guia suasproblematizaes. At adentrar o perodo de TerceiraRepblica, sendo este o nico regime iniciado no sculo XIXque alcana vigncia mais longa - comea com o fim da

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    Guerra Franco-Prussiana, em 1870, e tem fim junto ao incioda Segunda Guerra, em 1940 -, o territrio francs conheceuma sequncia de curtos implementos de diferentes regimesentre o ano de 1814 e o ano de 1871: Restaurao, 1815-1830; Monarquia de Julho, 1830-1848; Segunda Repblica,1848-1851; Segundo Imprio, 1852-1870. Alm de pelomenos trs situaes de revoluoRevolues de 30, de 48e de 71. uma paisagem que agrava e fortalece o tompropositivo no debate poltico, e igualmente o estmulomais evidente para a proliferao de programas de

    reorganizao social. O debate geral incidia sobre problemasespecficos, levados em conta projetos gerais para asociedade, de fundamentao filosfica.

    Convm fazer duas observaes iniciais paraclarificar o que fundamenta e qual a natureza desses debatesprospectivos. Em primeiro lugar, vale ressaltar que essetumultuoso perodo uma poca em que a problemtica daorganizao social, do ajuste entre poltica e sociedade, na

    Frana, praticamente se confundia com a ideia de socialismoque ento era emergente. hoje j bem propagada a frase deVladimir Lenin que apontava para as trs fontes de uma dasteorias polticas mais influentes da modernindade - ele diziaque suas fontes, as fontes do marxismo, eram a filosofiaalem, a economia poltica inglesa e o socialismo francs37-,mas muitas vezes no apresentado pela historiografia dasideias do sculo XIX o quanto tal socialismo, em seu

    surgimento francs, podia muito bem se confundir e seconfundia de fato, na amplitude das ideias liberais, comconcepes conservadoras, e de todo modo, sem sombra dedvidas, com o positivismo. Auguste Comte dizia mesmoque "o socialismo o positivismo espontneo, e o

    37Cf. LENIN, V. As trs fontesdo marxismo. In: Obras Completas deV.I. Lnine, t.23, pp. 40- 48.

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    positivismo constitui o socialismo sistemtico"38. Oprincpio do socialismo francs foi alicerado sobre umamistura entre problemas da vida prtica e ambiesuniversalistas, perfilando-se sob seu nome uma srie de tesespolticas, s vezes to divergentes quanto possvel, voltadas preocupao com estratgias e programas de organizao.Tanto o positivismo quanto o socialismo sentiram-segestionrios do mesmo esforo, de reorganizao da vidasocial, passando por reformulaes institucionais mais locaiss reformas culturais no sentido mais vasto. Transpuseram

    sua operacionalidade terica sobre necessidades sentidas naprtica, sendo assim indicativos das preocupaes gerais dasociedade da poca.

    Em segundo lugar, em marcha na Frana desde osprimeiros anos do sculo, a problemtica social passou a sertambm, e de maneira relevante, temtica de discussomdica. A comear pelas discusses entre os sanitaristas,considerados homens polticos, ocupando na maioria dos

    casos cargos pblicos, como de senadores, em algummomento de suas vidas. Seria exagero afirmar que exercerampapel poltico simplesmente por serem mdicos, mas noseria exagero perceber sua participao poltica como ligadaao fato de o Estado adquirir papel mdicono sem razoque tantas vezes se qualificou o sculo XIX como o sculodo higienismo. Como afirma a observao de Canguilhemem Le statut pistmologique de la mdecine39, foi o sculo em que

    a situao socioeconmica de um doente singular e suarepercusso vivida entram no quadro dos dados que o

    38COMTE, A. "Lettre Pierre Laffitte: 13 aot 1849". In : Correspondanceindite d'Auguste Comte (deuxime srie). Paris: Au Sige de la Socitpositiviste, 1903, p. 43. Disponvel online em:http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k66412r.39

    CANGUILHEM, G. "Le statut pistmologique de la mdecine". In:tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Librarie PhilosophiqueJ. Vrin, 1968, p. 15-29.

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    mdico deve levar em conta, e que, pelo vis dasexigncias polticas da higiene pblica, a medicina vaiconhecer a passagem do conceito de sadeao de salubridadeao de seguridade: deriva semntica [que] recobre umatransformao do ato mdico40. Se a ligao dos avanosmateriais com os avanos morais, a procura dos meios parao progresso sem seu sentido abrangente e totalizador, sonotadamente os moldes do republicanismo francs, isso algo que se presentifica tambm nas pautas mdicas queconduzem os pensadores oitocentistas procura da forma

    mais correta, mais saudvel possvel de organizaosocial. De um lado, o prprio positivismo, por exemplo,apresenta-se como um programa de reorganizao, tratando-se, em seu incio, de um programa sociolgico compretenso normativo-cientfica. De outro lado, se pairava aideia de controle atento do andamento da ordem social,pairava concomitante a ideia de cura, legada ideia dedoenas sociais. O mal social era representado nos moldes

    da desordem orgnica. A desordem no coletivo eraequiparada enfermidade e ganhava metforas de corpodoente, com seus devidos perturbadores da sade social,replicando concepes, por exemplo, que ainda hoje servem imunologia, como veremos adiante. De todo modo, aspatologias sociais marcam tambm a importncia dasdefinies de organizao da sociedade.

    Pode-se ter por bvio que o tema da organizao

    mobiliza modelos que transitam entre cincias do organismovivo e da sociedade; nesse caso, o sculo XIX apenas podeintensificar tal observao. poca, o esquema dirigentede certa concepo integralista da noo de organizao nohabitou, repetidamente como problemtica central, somenteobras de biologia, de fisiologia, de economia, de sociologia,mas tambm a dicusso pblica e leiga. Canguilhem chamouesse tipo repetitivo de um padro de problemtica, para no

    40Ibid., p. 463.

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    dizer paradigmas, retificou, regularidades enunciativas deuma poca41, fazendo aluso a Michel Foucault como autordesse termo. Termo que abriga certamente a possibilidade decoadunar-se com aquele de ideologias cientficas, cunhadopor Canguilhem, e tambm com obstculoepistemolgico, termo de Gaston Bachelard. Mas o que nosinteressa que essas regularidades enunciativas e, no limite,normativas, tem o papel enzimtico de atuarem comocatalizadores, facilitadores do intercmbio informacionalentre modelos do qual falamos, entre reas cuja divergncia

    entre si torne mais ou menos compatvel seus modos decomunicao; demonstrando, assim, que a polaridade doconceito de ideologia cientfica, como de obstculoepistemolgico, est em ser fator limitador e possibilitador,a um s tempo. Com efeito, at o incio do sculo XIX, noapenas os autores naturalistas, os mdicos vitalistas oumecanicistas, cada um segundo a sua perspectiva, fizeram daorganizao um problema com termos polticos, mas antes

    disso e muitas vezes, aderindo ao mesmo tempo aopensamento que conclui do organismo sociedade42.O caso do Cours de Philosophie Positive, redigido entre

    1829 e 1842, onde Auguste Comte (1798-1857) promulga asrie de caractersticas que procederiam uniformemente paraimplementao de uma poltica social positiva em umasociedade cientfica, talvez seja um dos exemplos que maisevidencie o cruzamento entre o estudo da vida e do social a

    vigorar no primeiro tero do sculo XIX francs.Consideraremos todo este perodo, anterior dcada de 70,como sendo marcado pela medicina pr-fisiolgica, tendoele precedido as descobertas de Claude Bernard, que

    41 CANGUILHEM, G. "La formation du concept de rgulationbiologique aux XVIIIe et XIXe sicles". In: Idologie et rationalit danslhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000, p.78.42CANGUILHEM, G. "Aspectos do Vitalismo". In: O Conhecimento daVida. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2001, p. 102.

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    modificariam o modelo de organismo vivo. Neste perodo, aordem social figura como subjacente e fundamental parainteleco da ordem poltico-administrativa e industrial. E esta ordem social que ser intensamente relacionada com omodelo de organismo estruturalmente integrado, designadopelo conceito de organizao, tal qual ele considerado porAuguste Comte.

    No sem razo que organizao e diviso social dotrabalho se unem no termo vida, naquele que influenciouComte em primeiro lugar e que fora o primeiro a cunhar o

    termo socialismo na Frana. A sntese do pensamento dosocialista Saint-Simon (1760-1825) se d a conhecer na obrapublicada em 1814 junto ao seu aluno, Augustin Thierry,com o longo ttulo: De la rorganisationde la socit europenne,Ou de la ncessit et des moyens de rassembler les peuples de l'Europeen un seul corps politique en conservant chacun son indpendancenationale. Nas primeiras pginas do livro, o pensador daRevoluo Industrial e entusiasta dos poderes

    progressistas do saber cientfico e tcnico deixa claro quesua ideia de progresso sempre foi bem menos ligada ao teorrevolucionrio do que consigna de manuteno da ordem:a filosofia do sculo passado foi revolucionria, a do sculodezenove deve ser organizadora43. Influncia maior deComte, o av utpico do socialismo e do cientificismopositivista falava em Fisiologia Social, ttulo, inclusive,dado a uma compilao de opsculos seus publicados entre

    1803 a 1825 com introduo e notas do socilogo GeorgesGurvitch. Dentro desta obra est seu primeiro textopublicado, o ttulo O Organizador. Num pequeno textode ttulo igual ao ttulo da compilao, o modelo da mquina

    43SAINT-SIMON, C-H. De la rorganisation de la socit europenne, ou De la

    ncessit et des moyens de rassembler les peuples de l'Europe en un seul corps politiqueen conservant chacun son indpendance nationale. Disponvel online em:http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k83331f.

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    organizada, individual e social, faz-se expresso com asseguintes palavras:

    A fisiologia portanto a cincia, no somente da vidaindividual, mas tambm da vida geral, contexto noqual a vida dos indivduos no passa de engrenagem.Em toda mquina, a perfeio do resultado dependeda manuteno da harmonia primitiva estabelecidaentre todas as molas que a compem; cada uma delasdeve necessariamente fornecer seu contingente deao e de reao; a desordem surge rapidamentequando as causas perturbadoras aumentam

    viciosamente a atividade de umas s custas daatividade de outras.44

    A perspectiva de Saint-Simon se v reelaborada naobra de Comte, que por sua vez influenciaria grandementetanto cientistas e filsofos quanto polticos. ComoCanguilhem sublinha em diversos momentos de sua obra,no poucos foram os mdicos influenciados por Comte, em

    geral devido a influncia intermediria de mile Littr (1801-1881). Mas alguns fatos institucionais, tanto quanto osconceituais, demonstram nitidamente as ligaes entrecincias da vida e poltica que passam pela obra de Comte.Sabendo que Sociologia foi conceitualizada pela primeira vezpor ele em 1832, lembremos que quando a Revoluo de1848 ocorreu, no mesmo ano, a Socit de Biologiefoi fundadapelos mdicos comteanos que intentavam estudar a

    disciplina de mesologia, estudo dos meios (exteriores) esuas influncias no corpo vivo individual. Em 1971-72,quando do trmino da experincia da Comuna Francesa,Littr e Charles Robin (1821-1885) fundam a primeira Socitde Sociologie francesa. Robin , alis, um bom exemplo de

    44 SAINT-SIMON, -H. "La physiologie sociale". In: Oeuvres choisies

    (textos reunidos por G. Gurvitch). Paris: P.U.F., Collection Bibliothquede sociologie contemporaine, 1965, p. 8. Extratos de textos datando de1803 1825.

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    mdico e personalidade poltica em que a polivalnciacomteana se faz presente em teoria e prtica. Se, em 1848,Charles Robin tinha proposto e j dirigia as atividades daSocit de Biologie, logo aps o perodo em que trabalhou comomdico do exrcito na guerra franco-prussiana, participa dafundao da Socit de Sociologie, e de 1876 a 1885, ocupa cargode senador; nesse meio tempo, em 1862, lhe oferecida umacadeira na Facult de Medecine de Paris onde ele ensina adisciplina de histologia, quatro anos antes de ser membro daseo de anatomia daAcadmie des Sciences.

    Em La philosophie biologique d'Auguste Comte et soninfluence en France au XIXe sicle45, Canguilhem afirma: no hna Frana, de 1848 a 1880, bilogo ou mdico que no tenhatratado, para situar sua pesquisa na cooperao ou choquede ideias, para se definir a si mesmo o sentido e alcance deseu trabalho, diretamente os temas da filosofia biolgicacomteana, ou indiretamente a ela por temas que deladecorriam46. Embora tenham se distanciado por

    discordncias particulares acerca da religio positivista, aduradoura aproximao de Comte a Saint-Simon quanto aosfundamentos fisiolgicos do corpo social, a ligao dabiocracia sociocracia permanece ao longo do tempo eressoa nas teorias dos mdicos e polticos influenciados porComte, que nunca deixaram de aproximar os conhecimentosdas cincias biolgicas e mdicas daqueles das cinciaspolticas e sociolgicas. Como Saint-Simon, e como seus

    seguidores, a tentativa de Comte em unir biologia esociologia com tanto acento justifica grande parte dointeresse de Canguilhem em desenvolver teses crticas emreferncia a ele, na construo de sua prpria filosofia davida. Lembrando claramente o saint-simonismo e

    45CANGUILHEM, G. "La philosophie biologique d'Auguste Comte etson influence en France au XIXe sicle". In: Bulletin de la Socit Franaisede Philosophie, n spcial, 1958, p. 73.46Ibid., p.70.

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    representando o pensamento tanto de socilogos como defisiologistas que o sucederiam no encadeamento dopensamento positivista, Comte, afinal, quem afirma,explicando a fundao do que denominou fsica social:

    Todos os seres vivos apresentam duas ordens defenmenos essencialmente distintos, os relativos aoindivduo e os concernentes espcie, sobretudoquando esta socivel. principalmente em relaoao homem que esta distino fundamental. Altima ordem de fenmenos evidentemente maiscomplicada e mais particular do que a primeira,depende dela sem a influenciar. Da duas grandessees dafsica orgnica: a fisiologia propriamente ditae a fsica social, fundada na primeira.47

    Para Comte, a vida aparecia necessariamente comopropriedade de um todo, como resultado imediato daintegrao total das partes. Compreender como isso inserido em sua teoria social ser fundamental para entender

    como a noo de organizao a pedra de toque dacomparao entre modelos polticos e fisiolgicos segundomuitos pensadores do sculo XIX. Na 49 lio do Cours,Comte defende que a biologia deve fornecer o ponto departida necessrio do conjunto de especulaes sociais, daanlise fundamental da sociabilidade humana, das diversas"condies orgnicas que determinam seu carter prprio eirredutvel48. Se verdade que a sociologia, como j

    dissemos, surgiu em certa situao de confuso com teoriasparticulares, tambm fato, como disse Annie Petit, que "aofim do sculo XIX, a sociologia tem um nome, mas sempre

    47 COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. So Paulo: Coleo OsPensadores, Abril S. A. Cultural e Industrial, 1978, p. 32.48 COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. So Paulo: Coleo OsPensadores, Abril S. A. Cultural e Industrial, 1978, p. 32.

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    graves problemas de identidade49. Nesse sentido, interessante perceber como as noes biolgicas passaraminformaes s noes sociais via ideias mdicas,particularmente pelos seguidores de Comte. Basta pensar noprprio mile Durkheim (1858-1917). "Comte permanece,para Durkheim por exemplo, uma referncia obrigatria ebem onerosa, como afirma Petit. O fundador de uma teoriade patologia social bem conhecida quem escreve, noterceiro captulo de sua obraAs Regras do Mtodo Sociolgico50,que o dever do homem de Estado equivale quele exercido

    pelo mdico. Assim Durkheim observa, acerca do queconcebe como papel mdico do Estado:

    No se trata mais de perseguir desesperadamente umfim que se afasta medida que avanamos, mas detrabalhar com uma regular perseverana para mantero estado normal, para restabelec-lo se forperturbado, para redescobrir suas condies se elas

    vierem a mudar. O dever do homem de Estado no

    mais impelir violentamente as sociedades para umideal que lhe parece sedutor, mas seu papel o domdico: ele previne a ecloso das doenas medianteuma boa higiene e, quando estas se manifestam,procura cur-las.51

    Sabendo que Comte orientava-se por uma ideiasegundo a qual a natureza do progresso dependia damanuteno da ordem, podemos acrescentar que a ao de

    evitar a desordem, como aparece no mago das tentativas depensar a repblica durante sculo XIX europeu, o germedaquilo que no sculo XX se consolidar como propriedade

    49 PETIT, A. "Comte et Littr: les dbats autour de la sociologiepositiviste". In: Communications, 54, 1992. Les dbuts des sciences del'homme. pp. 15-37.50 DURKHEIM, . Rgles de la mthode sociologique. Paris: PressesUniversitaires de France, 1894. p. 59.51Ibid., p. 59.

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    definidora do que vivo, a partir da lei de neguentropia ouentropia negativa, por emprstimos energticos do meioexterno. Antiga, a ideia de autoconservao do organismo,herdeira do hipocratismo (teoria da cura espontneagerenciada pela prria natureza em caso de desequilbrio: vismedicatrix naturae), foi renovada pelo vitalismo da Escolamdico-filosfica de Montpellier. Antes de explicarmos oseu desenvolvimento em maiores detalhes, pode-se jobservar que o valor articulado sob o modelo de ordemcomo manuteno, conservao de uma determinada

    distribuio estrutural, resulta superior ao valor atribudo transformao.De modo que a racionalidade biolgica e a

    racionalidade de Estado encontram-se enfeixadas pelafuno ordem/desordem. A noo de consenso naorganizao, de integrao, de totalidade indivisvel. Alm deDurkheim, outro socilogo que permaneceu validando acomparao entre organismo e corpo social foi Herbert

    Spencer (1820-1903). Dando continuidade ideia de que asociedade assemelha-se a um organismo vivo, Spencerafirmava:

    Organizao em uma criatura individual somente possvel pela dependncia de cada parte no todo, edo todo em cada uma. Agora, isto obviamente

    verdadeiro tambm acerca da organizao social. Seele [um membro de uma sociedade primitiva] produz

    armas em vez de continuar um caador, ele deve serfornecido com o produto da caa na condio de queos caadores so fornecidos com as suas armas. Seele se torna um cultivador do solo, no maisdefendendo-se, ele deve ser defendido por aquelesque se tornaram defensores especializados. Ou seja,a dependncia mtua das partes essencial para o

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    incio e o avano da organizao social, como parao incio e avano da organizao individual.52

    Spencer conclui: Mesmo se no houvesse mais a serapontado, seria bastante claro que no estamos aqui lidandocom uma semelhana figurativa, mas com um paralelismofundamental em princpios de estrutura53. Mas precisodiferenciar organicismo social de organicismo. A palavraorganicismo se confunde com mecanicismo, oriunda deuma discusso entre filosofias mdicas. Os vitalistas deMontpellier, que j mencionamos, e os mecanicistas ou

    organicistas de Paris, influenciados por Auguste Comte.Uma obra sobre o organicismo de Lon Rostan (1790-1866) demonstrativa desse organicismo54. Contra Lon Rostan,autor da teoria mdica dita organicismo,diz Canguilhem,os vitalistas defendiam a irredutibilidade do organismo, isto, rejeitamvam as teorias que pretenderiam reduz-lo smesmas caractersticas dos objetos inertes. Um vitalistacomo mile Chauffard (1823-1879) assim apresentado por

    Canguilhem, no texto sobre Littr:Acontece ento em 1863 a lio inaugural do Coursde Pathologie gnrale de mile Chauffard,publicada em 1865 com o ttulo De la philosophiedite positive dans ses rapports avec la mdecine.Ele critica o positivismo, e portanto Littr, de terdesnaturado, pela necessidade que tinha sua defesa,o sentido comum do materialismo, levando-o a ser,

    na ordem do saber, uma negao da hierarquiaqualitativa dos fenmenos, uma reduo do superior

    52 SPENCER, Hebert. The Study of Sociology. New York: D. Appleton,1896. p. 303.53Ibid., p. 304.54

    ROSTAN, L.Exposition des principes de l'organicisme, prcde de Rflexionssur l'incrdulit en matire de mdecine, par Lon Rostan, XVI-271. Paris: Lab,1846.

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    ao inferior. O positivismo , sobretudo, seja l o queele disser, uma expresso pura do materialismo.55

    O prprio mile Chauffard explicava: essaconcepo da vida no aceita ento nada que no seja umefeito da organizao. Ela no saberia reconhecer aexistncia de propriedades vitais e de foras vitais quefizessem da causa, do princpio da organizao uma essnciae um princpio parte56.Ele toma emprestado doExpositiondes principes de l organicisme, de Rostan, os termos para definirtal viso de organismo, dizendo ns resumiremos e no

    entanto citaremos textualmente esse importante exposto".Faremos o mesmo, a despeito de ser longo o trecho, porquetem fora de resumo mesmo muito eficaz.

    A vida nada mais que o conjunto, a srie dasfunes, mas as funes so dependentes dosrgos, pois no podem vir antes dos rgos, vistoque um efeito no pode vir antes de sua causa. As

    funes so portanto apenas uma consequncia da disposio

    orgnica. Da mesma forma que a vida no pode vir antes daorganizao, e resultado dessa organizao. A vida no

    passa de uma disposio orgnica necessria ao movimento.Ns recebemos essa disposio nascendo. Amquina ento montada e funciona at que sejaalterada de maneira natural ou acidental. Quando umcorpo organizado existe sem vida, porque adisposio orgnica necessria ao exerccio de suas

    funes passou por quaisquer distrbios. Assimsendo, a vida no um ser parte que existe por sis como a eletricidade, o calor, etc, que se sobrepeaos corpos organizados , que os impregna, ospenetra, e finalmente os anima, ela nada mais que

    55CHAUFFARD, P. E. De la philosophie dite positive dans ses rapports avec lamdecine. Paris: Chamerot-Leclerc, 1863, p. 19. Disponvel online em:http://gallica.bnf.fr/ark: /12148/bpt6k5426716n.56CHAUFFARD,P.E.Principes de pathologie gnrale (1862). Paris: diteurEstem, 2006.

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    o resultado da estrutura molecular. Desde oprimeiro instante da concepo, o embrio recebecom sua organizao a necessidade de sua evoluo

    posterior57.Ou seja, o preceito da organizaobastava para definir

    a vida, no sendo necessrio defender a existncia de umafora vital metafisica da qual falavam os vitalistas para lhedar sua especificidade com relao aos outros domnios damatria. Comte no podia admitir ideia de organismo obteruma explicao metafsica, mas precisava diferenci-lo dos

    corpos fsicos em sua hierarquia das cincias. Mas nem porisso, pela ideia de consenso do organismo, como veremos,Comte equaliza organismo e sociedade. Como dissemos, nose pode confundir organicismo com organicismo social, poisorganicismo do organismo no necessariamente implicaem organicismo social importante a distino porque ochamado organicismo social marca dos seguidores deComte, positivistas, mas no foi seguida por ele prprio.

    Sua ideia no condiz com o extremismo dosorganicistas que, mais tarde, em 1893, arrogariam para si odever de fundar o organicismo social. O nome que entoconcentra as caractersticas organicistas e as amplia aoextremo Ren Worms (1869-1926). ele quem, nesta data,d a sociologia uma perspectiva explicitamente organicista,reunindo um grupo em torno de uma teoria em que asociedade deve ser estudada por leis que explicam o

    organismo vivo. A teoria est resumida em Organisme etSociet, obra que o mesmo publica em 1896. Este momentovivido pelo fundador do Instituto Internacional deSociologia e daRevue Sociologique Internationale, da qual fizeramparte Gabriel Tarde, Alfred Espinas, alm de nomes cujasobras so muito pouco exploradas no estudo da filosofia,como os de Jacques Novicow, Maxime Kovalewsky, eoutros, ficou relegado ao posto de ltimo momento de

    57Ibid.

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    organicismo terico explcito e extremo na histria dasociologia.

    A ltima dcada do sculo oitocentista marcaportanto o apogeu, mas tambm o fim da aceitao, pelacomunidade cientfica, do organicismo. Ultrapassada adcada de noventa do sculo XIX, o sculo seguinte j nolevou em frente a comparao equitativa de um e outrombito ao nvel de isomorfiabem ao contrrio, a sociologiaprocurou esquivar-se do organicismo o mximo que lhe foipossvel. Embora o conceito de organizao no tenha sido,

    evidentemente, o nico a marcar o sculo, ele se expandiu apartir daquele perodo de modo insistente nas cincias davida e segue como cerne da problemtica poltico-social emmuitas de suas tematizaes. De fato, poder-se-ia dizer queo organicismo atravessou o sculo XX bem mais implcitona teoria e atuando mais no mbito da poltica real. O picede tal atuao se deu no mbito estatal, com o nazismo peloEstado alemo. No caso da explorao dos socilogos

    nazistas de conceitos biolgicos antimecanicistas, oproblema das relaes entre o organismo e a sociedade,lembrava Canguilhem. Mas a preciso no confundir adireo das coisas. Em Aspects du vitalisme58, Canguilhemafirma que certo que o caso de Driesch oferece aconsiderar um caso tpico de transplante do conceitobiolgico de totalidade orgnica para o terreno poltico,mas seria o vitalismo ou o carter de Driesch o responsvel

    dessa justificao pseudocientfica do Fhrerprinzip? (...)Trata-se de biologia ou parasitismo da biologia?.Canguilhem resumiu de maneira taxativa: No se obrigado a alojar, na biologia, sob a forma de consequnciaslojicamente inevitveis, a atitude que, por falta de carter epor falta de solidez filosfica, alguns filsofos adotaram59.

    58CANGUILHEM, G. Aspectos do Vitalismo. In: O Conhecimento daVida. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 102-103.59Ibid., p.103.

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    O que est em questo para ns, neste trabalho, no a disponibilidade da classe mdica para formas detanatopoltica60e o vitalismo mortfero que vai a embutido,considerando inimigos da Vida ou do corpo biolgico danao tanto degenerados quando soldados vindos doLeste Alemanha de Hitler, presente no s na situaohipostaziada da Alemanha nazista, como bem lembrouEsposito em seu BiosBiopoltica e Filosofia, da mesma formaque no questo para ns o papel dos psiquiatras nodiagnstico de doena mental aos dissidentes na Unio

    Sovitica estalinista ou s vivisseces praticadas pelosmdicos japoneses nos prisioneiros americanos depois dePearl Harbor61. Mas nos ateremos aqui s operaes maissimplrias da racionalidade, os limites que ela mesmadelimita e que depois ela mesma excede, seja em seusdomnios, passando de um para o outro, seja em suasregras internas, pertinentes a cada um e a todos. Como disseCanguilhem: O que est em questo, no caso da explorao

    pelos socilogos nazistas de conceitos biolgicosantimecanicistas - e, diramos ns, em todos estes outroscasos - o problema das relaes entre o organismo e asociedade. sobre ele que permanece, porque no sedestrinchou e talvez no seja possvel faz-locompletamente, as aproximaes, s vezes metafricas svezes com pretenso ontolgico-analgica, entre estruturado organismo biolgico e estrutura de uma sociedade

    humana, organizada economica e polticamente. Doconceito de organizao resta o resduo fundamental apartir do qual a questo mencionada por Canguilhem comfrequncia levantada desde dentro dos saberes atinentes sociologia, economia, poltica, biologia, medicina, etc.Mas tambm, e com algum diferencial perspectivo, desde a

    60 ESPOSITO, Roberto. Bos: Biopoltica e filosofia. Lisboa: edies 70,2010.61Ibid., 163.

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    filosofia, levando em considerao que ela prpria umdomnio cuja diferena mais banal qual se pode depronto apontar, com relao a outras esferas deconhecimento, a necessidade e busca mais explcita deinterao com os demais domnios.

    I.1.2. O conceito de organizao entre organicismo ebiosociologia

    A questo mencionada supra - considerando-a como

    o conjunto de suas variaes - encontra-se naquela colocadapor Georges Canguilhem na conferncia de 1955, proferida comunidade israelita de Paris a convite de Pierre-MaximeSchuhl, de ttulo Le problme des rgulations dans lorganisme etdans la societ62.A ocasio foi palco para colocar em dvida asituao e a legitimidade da relao entre a noo dedinmica vital do organismo e de organizao social deconcepes econmica e poltica, tal como essa relao

    particularmente promovida por concepes adesistas doorganicismo social, tomado aqui em suas aplicaes deintenes cientficas ou de senso comum. Canguilhemcomea por interrogar-se: a assimilao usual, ora cientfica,ora vulgar, da sociedade a um organismo mais do que umametfora? Ser que essa assimilao recobre algumparentesco substancial?63. O que importa a Canguilhem seu uso justificatrio, isto , sua insero no discurso pblico

    para defesa de outras ideas que levam consigo, implcita ouexplcita, a equalizao dos domnios vital e social. Dadecorre a reflexo canguilhemeana:

    Naturalmente, esse problema s interessa medidaque a soluo que lhe dada se torna, caso seja

    62CANGUILHEM, G. O problema das regulaes no organismo e nasociedade In: Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2005, p. 64-81.63Ibid., p.71-72.

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    positiva, o ponto de partida de uma teoria poltica ede uma teoria sociolgica que tende a subordinar osocial ao biolgico e que se toma, de fato - no direi

    um risco -, um argumento para a prtica poltica.64Canguilhem vislumbrar, de incio, a necessidade de

    traar uma linha contentiva ao impulso de assimilaoconceitual da esfera biolgica pela esfera poltica. So trs oseixos de argumentao de Canguilhem. O primeiro se refereao aspecto da finalidade imanente ao conjunto estrutural doorganismo vivo. O segundo referente autorregulao pelo

    interior Canguilhem defender que no h um sistemaespecializado de aparelhos de regulao imanente existncia de sociedades. O terceiro, mais diretamenteatrelado ao segundo, referente natureza dofuncionamento da capacidade normativa e do modo comoso construdos os seus rgos (falamos aqui do poderinstituinte da infraoe do conceito de rgo como extensoda vida e no da racionalidade). Sobre o segundo e o terceiro,

    dedicaremos a ateno ao segundo captulo deste trabalho.Aqui, acerca deles, sublinharemos de antemo apenas que,para Canguilhem, no caso da sociedade, a regulao umanecessidade procura de seu rgo e de suas normas deexerccio, contraste ideia por ele admitida de que, no casodo organismo, ao contrrio, a prpria necessidade revela aexistncia de um dispositivo de regulao65. Ser a partirdeste ponto de diferenciao que o seu pensamento

    desembocar na formulao conclusiva de que aorganizao social , antes de tudo, inveno de rgos,rgos de procura e de recebimento de informaes, rgosde clculo e mesmo de deciso66, o que chamaremo