a transcrição bíblica de haroldo de campos - venturotti

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A TRANSCRIAO BBLICA EM HAROLDO DE CAMPOS: A POTICA DE GNESIS1 Fabiano Venturotti2RESUMO: Haroldo de Campos (1929-2003) situa-se na origem da chamada poesia concreta, provocadora de impactos na poesia brasileira e internacional. Alm de poeta, publicou ensaios crticos sobre literatura e traduziu de diversas lnguas para o portugus, revitalizando a inveno potica no cenrio nacional. A traduo constitui-se num dos aspectos mais importantes de sua obra e, neste trabalho, iremos esboar uma sntese da teoria da traduo, evidenciando a responsabilidade transcriativa reclamada por Haroldo de Campos. Em seguida, analisaremos sua transcriao de Gnesis 1 e 2.1-4 e, sobretudo, teceremos consideraes sobre seus neologismos e sua reinveno potica. Palavras-chave: traduo, transcriao, Gnesis. ABSTRACT: Haroldo de Campos (1929-2003) is at the origin of the so-called concrete poetry, provocative of impacts on Brazilian and international poetry. Besides being a poet, he published critical essays on literature and translated works from various languages to Portuguese, thus revitalizing the poetical invention in the national scene. The translation is one of the most important aspects of his work and, in this paper, we outline a summary of the theory of translation, while highlighting the transcreative responsibility claimed by Haroldo de Campos. Next, we will review his transcreation of Genesis 1 and 2.1-4 and, above all, make considerations about his neologisms and his poetic reinvention. Key words: translation, transcreation, Genesis.

1 INTRODUO

A traduo desempenha um papel crescente na integrao das culturas, pois nos parece inconcebvel que se possa viver numa espcie de autarquia intelectual, seja cientfica ou tcnica, contentando-se apenas com o que se produz em sua prpria lngua. Traduzir preciso; contudo, segundo Ruth Bohunovsky, os estudos da traduo esbarram numa vertente terica que defende uma viso tradicional/essencialista, ou seja, a viso de que o processo de traduo seria um mero transporte de significados

(BOHUNOVSKY, 2001, p. 52). Seguindo este ponto de vista, a tarefa do tradutor consistiria apenas em transportar o significado inerente ao texto original, comprovando sua capacidade de no interferir ou interpretar criativamente o texto de partida:Partindo de tais princpios de traduo, fica evidente que o objetivo principal do tradutor deveria ser ficar o mais fiel ao original em sua1

Palavras e espaos para o visual: Haroldo de Campos, Lino Machado, Programa de PsGraduao em Letras da Universidade Federal do Esprito Santo 2 Mestrando em Estudos Literrios do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Esprito Santo.

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totalidade e ficar invisvel no texto traduzido, pois o objetivo fundamental de qualquer traduo seria a reproduo do original em outro cdigo. (BOHUNOVSKY, 2001, p. 52)

evidente que esta reflexo terica no mais se sustenta, pois todo ser humano situado numa comunidade lingstica, social, poltica e ideolgica que o faz escolher entre este ou aquele modo de reproduzir o texto original. invivel pensar que se possa traduzir de modo neutro um texto justamente porque no somos pessoas neutras. Com efeito, os conceitos de fidelidade e invisibilidade no se aplicam ao trabalho tradutivo e no so mais representativos para as discusses neste campo. Assinala Rosemary Arrojo que:nossa traduo de qualquer texto, potico ou no, ser fiel no ao texto original, mas quilo que considerarmos ser o texto original, quilo que considerarmos constitu-lo, ou seja, nossa interpretao do texto de partida, que ser [...] sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. (ARROJO, 1986, p. 40-44)

Paulo Rnai considera que no possvel obter uma traduo fiel ao original, uma vez que todo texto literrio fundamentalmente intraduzvel por causa da prpria natureza da linguagem (RNAI, 1987, p. 13), apontando ainda que as palavras traduzidas isoladamente no possuem sentido em si mesmas: precisam de significao contextualizada. Esta idia assinala que nenhuma pessoa pode pensar alm do idioma, isto , que o prprio pensamento condicionado pelo idioma que concebido (RNAI, 1987, p. 14-15). Podemos citar tambm aqui o grande estudioso do sculo passado, Roman Jakobson, que alega:Falar implica a seleo de certas entidades lingsticas e sua combinao entre unidades lingsticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia imediatamente ao nvel lexical: quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com sistema sinttico da lngua que utiliza; as frases, por sua vez, so combinadas em enunciados. Mas o que fala no de modo algum um agente completamente livre na sua escolha de palavras: a seleo (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a partir do repertrio lexical que ele prprio e o destinatrio da mensagem possuem em comum. (JAKOBSON, 1977, p. 37)

Decorre desta afirmativa que o tradutor no pode ser entendido como um simples copiador do texto original, mas que em certa medida tambm ele um criador, pois necessita interpretar e escolher como ir transmitir o significado do texto para outra lngua. Ao deparar-se com o texto, deve ter

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conscincia de que tambm responsvel pela produo de significados. Fato este notado quando dois tradutores se colocam a traduzirem uma mesma obra. Com muita probabilidade, no conseguiro unanimidade no seu trabalho, poiscomo no h equivalncias absolutas, uma palavra, expresso ou frase do original podem ser freqentemente transportadas de duas maneiras, ou mais, sem que se possa dizer qual das duas a melhor (RNAI, 1987, p. 23).

Na realidade, no se pode exigir que a obra traduzida repita fielmente todas as intenes do original, mas que se aproxime o tanto quanto possvel deste. Uma vez que as lnguas no se correspondem exatamente, caber ao tradutor o expediente da equivalncia: inmeras possibilidades de escolha. No podemos criar a iluso de que o ato tradutrio repita o texto original, pois as equivalncias de lngua para lngua nunca sero as mesmas.Se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados de antemo, cada uma delas teria, de uma lngua para outra, correspondentes exatos para o sentido; mas no ocorre assim (SAUSSURE, 1979, p. 135).

Neste sentido, no h como exigir do tradutor o significado estvel dos termos, pois quando transpostos de uma lngua para outra, necessariamente sofrem alteraes expressivas. No campo da traduo literria, a investigao dos problemas suscitados pela traduo da poesia continua pertinente.No seu livro sobre os vrios mtodos utilizados pelos tradutores ingleses do Poema 64 de Catulo, Andr Lefereve cataloga sete estratgias diferentes: traduo fonmica [...], traduo literal [...], traduo mtrica [...], de poesia para prosa [...], traduo rimada [...], traduo em verso branco [...] e interpretao (BASSNETT, 2003, p. 137-138).

Segue a autora afirmando que a valorizao de apenas um destes aspectos pode acabar comprometendo o conjunto da traduo do poema. Voltando obra de Roman Jakobson, podemos dizer que ela tem seu motivo principal na relao entre sound (som) e meaning (significado), ou seja, est na significao simblica da arquitetura fnica do sistema lingstico, revelado sobremaneira na linguagem potica. Segundo este mesmo autor, a paronomsia, confrontao semntica de palavras similares do ponto de vista fnico, independentemente de toda conexo etimolgica, desempenha papel considervel na vida da linguagem (JAKOBSON, 1977, p. 112).

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Em A Operao do Texto, Haroldo de Campos demonstra como Roman Jakobson analisou a paronomsia contida no poema The Raven, de Edgar Allan Poe, olhando-o pelo avesso. Assim como Roman Jakobson obteve uma anlise sustentvel do fragmento final de The Raven quando observou minuciosamente seu jogo sonoro, Haroldo visualiza tambm esta vertente de traduo na qual o tradutor apropria-se do particular modus operandi do texto original. Citando Fernando Pessoa, Haroldo de Campos salienta:Um poema escreve uma impresso intelectualizada, ou uma idia convertida em emoo, comunicada a outros por meio de um ritmo. Este ritmo um duplo num s, como os aspectos cncavo e convexo do mesmo arco: constitudo por um ritmo verbal ou musical e por um ritmo visual ou de imagem que lhe corresponde internamente. A traduo de um poema deve, portanto, conformar-se absolutamente 1) idia ou emoo que o constitui; 2) ao ritmo verbal em que essa idia ou emoo expressa; deve conformar-se em relao ao ritmo interno ou visual, aderindo s prprias imagens quando possa, mas aderindo sempre ao tipo de imagem. (PESSOA 3 apud HAROLDO, 1976, p. 30-31)

Em seu livro Lingstica e Comunicao, Jakobson (1977) afirmava que a poesia, por definio, intraduzvel, argumentando que s possvel a transposio criativa. O mesmo problema seria colocado por Haroldo de Campos, no artigo Da Traduo como Criao e como Crtica, no qual afirma que a traduo de textos criativos ser sempre recriao, ou criao paralela, autnoma porm recproca. Quanto mais inado de dificuldades, mais recrivel, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriao (CAMPOS, 1992, p. 35). Ao tratar deste tema, Bassnett chega seguinte concluso:O tradutor continua a produzir novas verses de um dado texto, no tanto para atingir uma traduo perfeita ideal, mas porque cada verso anterior, sendo determinada pelo contexto, representa uma leitura acessvel poca em que foi produzida, e, alm disso, individual. A grande diferena entre um texto e um metatexto que o primeiro se encontra fixado no tempo e no espao e o segundo varivel. H somente uma Divina Commedia, mas h inmeras leituras e teoricamente inmeras tradues. (BASSNETT, 2003, p. 142)

Citao retirada da seguinte obra: PESSOA, Fernando. Pginas de esttica e de Teoria Crtica Literria. Lisboa: tica, 1967.

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2 HAROLDO DE CAMPOS E A TRADUO BBLICA

Em seu livro Bereshith: a cena da origem, Haroldo de Campos refere-se no a uma traduo do texto hebraico, mas a uma trans-criao do mesmo, empenhando-se em alcanar em portugus uma reconfigurao das articulaes fonossemnticas e sinttico-prosdicas do texto (CAMPOS, 2000, p. 11). Seu objetivo no mostrar uma suposta autenticidade ou verdade textual despercebida pelos tradutores, mas poetizar em estilo prprio a imagem que lhe evoca a leitura no original. Reconhece que a essncia mesma da traduo de poesia o estatuto da impossibilidade, por isso tem por objetivo:obter, atravs da operao tradutora, um texto comparativa e coextensivamente forte, enquanto poesia em portugus, a ser cotejado com as verses convencionais como um virtual exemplo contrastivo do que h por fazer, nessa matria, em nosso idioma (CAMPOS, 2000, p. 11).

Esta iniciativa de Haroldo de Campos transcriar ou reimaginar um texto nos interessa sobremaneira, uma vez que aceita a possibilidade da interferncia do tradutor. Ao transcriar o texto bblico, Haroldo de Campos teve certamente a influncia de Henri Meschonnic, especialista em lingstica e potica que se props a recriar o texto bblico atendo-se aos:acentos y las pausas cuya jeraqua compleja constituye la modulacin del versculo bblico, su ritmo y a veces incluso su sentido... La diccin, sealada en hebreo por un sistema de acentos, es lo que yo he querido recrear mediante espacios en blanco (en una jeraqua no arbitraria), recrear los silencios del texto, ritmo de pgina. (MESCHONNIC apud MARGOT, 1987, p. 26-27)

A primeira tentativa de traduo da Bblia Hebraica aconteceu na cidade de Alexandria (Egito), por volta do ano 250 a.C. Ela amplamente conhecida como a traduo grega dos Setenta ou Septuaginta. Este nome deve-se lenda:surgida com a Carta de Aristia a Filcrates [...], segundo a qual a Bblia dos LXX teria sido o resultado do trabalho de 72 escribas, seis de cada tribo de Israel, que foram trazidos da Palestina para Alexandria pelo rei Ptolomeu II Filadelfo (285-247); reunidos na ilha de Faro, teriam executado o seu trabalho de traduo em setenta e dois dias. (ASSOCIAO LAICAL DE CULTURA BBLICA, 2000, p. 158)

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Nos primeiros sculos do cristianismo, apareceram outras verses bblicas em grego, como a de quila, por volta do ano 100, e tambm a de Teodocio e Smaco. O erudito cristo Orgenes (185-253/254) empreendeu, com grande esforo, a elaborao da Hxapla ou Bblia Sextupla, edio da Bblia constituda de seis colunas paralelas contendo o texto hebraico, a transliterao em caracteres gregos, as verses gregas dos LXX, de quila, Smaco e Teodocio (ASSOCIAO LAICAL DE CULTURA BBLICA, 2000, p. 49). A partir do ano 200 acontecem as primeiras tradues realizadas para o latim. Conhecidas como Antigas Latinas, estas primeiras tradues eram de livros bblicos em separado e no toda a unidade como a dos LXX.A tal ponto inadequada era a Antiga Latina que, em 382 d.C., o papa Damaso encarregou a so Jernimo de apresentar uma verso latina oficial. Jernimo aprendeu o hebraico e o utilizou para a sua traduo do Antigo Testamento. A verso resultante ficou conhecida como a Vulgata (verso comum), a qual levou sculos para suplantar suas predecessoras Antigas Latinas em algumas das reas mais distantes, tais como a Europa setentrional. No fim, as cadncias sonoras da Vulgata asseguraram-lhe lugar firme na liturgia da Igreja Catlica. Como reao orientao bblica da Reforma protestante, a Igreja Catlica declarou a Vulgata como a nica suficiente e exigiu-se de todas as demais tradues da Bblia que nela se fundamentassem at que 1943, quando foi permitido aos estudiosos catlicos trabalhar a partir das lnguas originais. (GOTTWALD, 1988, p. 130)

Ao final do sculo XIX, a Bblia estava traduzida total ou parcialmente em 71 lnguas e chegava ao final do ano de 1977 a um total de 1631 lnguas. A traduo sempre constante de um texto, neste caso o bblico, necessria devido a algumas razes especficas: descoberta de novos manuscritos, evoluo das lnguas e o avano das descobertas semnticas, lingsticas e teolgicas. Por um lado, Haroldo de Campos precisou adentrar no idioma hebraico, sentindo a sonoridade das palavras e sua sensibilidade intratextual. No obstante esta tarefa, teve de pesquisar sobre a composio da Bblia Hebraica, situando cada texto no seu tempo, permitindo-se uma aproximao mais adequada s intenes do escritor. Sua breve descrio da teoria das quatro fontes (javista, elosta, deuteronomista e sacerdotal) nos permite concluir que foi uma de suas bases

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de apoio para a traduo bblica de alguns captulos do Gnesis. Prova disto consta de suas prprias palavras: importante assinalar que a Segunda Histria mais antiga de alguns sculos, em sua redao, que a primeira [...]. A Primeira Histria procede do chamado Documento Sacerdotal, enquanto a segunda, que remonta ao reinado do rei Salomo [...] conhecida como javista. (CAMPOS, 2004, pp. 28-29)

Embora seja esta a teoria mais aceita dentro dos estudos da Bblia Hebraica, sua primeira etapa foi de cunho confessional. Judeus e cristos aproximaram-se dela para dar sentido s suas prticas religiosas. Na segunda fase dos estudos bblicos foi adotado o mtodo histrico-crtico. um mtodo histrico, no s porque ele se aplica aos textos antigos, mas porque ele procura elucidar os processos histricos de produo dos textos bblicos. um mtodo crtico porque ele opera com a ajuda de critrios cientficos to objetivos quanto possveis em cada uma de suas etapas (da crtica textual ao estudo crtico da redao). Este mtodo visa uma aproximao literria da bblia, ou seja,procura estabelecer as origens verdadeiras do texto e de avaliar a probabilidade de que os eventos por ele relatados aconteceram no modo descrito. Prova para esta pesquisa crtica deriva de dentro do documento e da comparao com outros documentos do mesmo perodo ou do mesmo tipo. (GOTTWALD, 1988, p. 23)

O pressuposto bsico dos crticos histricos encarar a Bblia Hebraica como criao literria do ser humano, no seu sentido histrico e evolucionrio. As idias e prticas religiosas adquirem, predominam ou declinam aos poucos, pois parte do fenmeno humano e no um aspecto sobrenatural do mesmo. A combinao das abordagens literrias e sociolgicas apresenta hoje o mais promissor caminho para o avano dos estudos da Bblia Hebraica, pois, alm de abordarem a literatura e a realidade social de Israel, analisam as foras sociais subjacentes produo da literatura bblica, onde se distingue a sociedade que est por trs do texto da sociedade que aparece dentro do texto. Segundo Norman K. Gottwald, no h provavelmente nenhum estudioso bblico que domine compreenso profunda de todos os mtodos agora operantes nos estudos bblicos (GOTTWALD, 1988, p. 20). de ampla aceitao entre os estudiosos que no existe apenas um mtodo correto para

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se interpretar a Bblia Hebraica, mas que vrios mtodos legtimos se entrelaam para produzir uma compreenso menos particularista. bem verdade que todos os intrpretes, como seres humanos que so, aproximamse do texto com suposies, disposies e instrumentos de anlise que os fazem enfatizar alguns aspectos significativos que se enquadre em sua teoria.O que caracteriza o atual perodo nos estudos bblicos [...], a exploso de vrias metodologias, cada uma alegando entender uma caracterstica importante negligenciada ou rebaixada [...] da estrutura e do significado da Bblia Hebraica. No est claro at que ponto estes mtodos mais recentes so mutuamente exclusivos ou potencialmente compatveis, ou possivelmente at complementares ou necessrios um para o outro. Foi to rpida a expanso deste mtodo em estudos de pequena escala, que houve pouco tempo ou ocasio para reconsiderar as suas implicaes para os estudos bblicos como um todo. (GOTTWALD, 1988, p. 32)

dentro deste contexto de compreenso que iremos analisar a traduo que Haroldo de Campos realizou do Gn 1 e Gn 2.1-4. Neste trabalho, Haroldo de Campos props-se transcriar em portugus os 31 versculos do Gnese I e os quatro primeiros versculos do Gnese II, ou seja, o raconto dos Seis Dias da Criao e do repouso sucessivo: a Cena da Origem (CAMPOS, 2000, p.18).

3 ANLISE COMPARATIVA DA TRANSCRIAO HAROLDIANA DE GN 1 e Gn 2. 1-4

A rtmica tipogrfica utilizada por Haroldo de Campos logo salta aos olhos, pois diferente das distines entre poesia e prosa que costumamos encontrar nas tradues bblicas. Esta orientao que perfaz toda a recriao do texto haroldiano tem sua raiz, segundo o prprio autor, em Henri Meschonnic, estudioso lingstico e tradutor bblico que se props uma transposio criativa recusando a traduo veicular do significado em sua obra Au commencement - Traduction de la Gense. Segundo o prprio Haroldo de Campos, a traduo realizada por Henri Meschonnic o agrada pelo seu interesse potico, uma vez que a grande maioria das bblias so movidas por propsitos religiosos, teolgicos e confessionais que no manifestam satisfatoriamente a funo potica da linguagem, embora respeitveis em si. Henri Meschonnic prope um sistema

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de brancos, um ritmo tipogrfico, visual, capaz de notar a escanso dos segmentos frsicos do texto, pois, segundo opina, a estrutura rtmica j portadora de sentido (CAMPOS, 2000, p. 20).No utilizei alneas para destacar os hemistquios, no necessariamente iguais, do original, mas convencionei uma sinalizao mais ostensiva para o jogo de pausas, para salientar a pneumtica ou respirao do texto [...]. Nesse sentido, alm da gradao dos espaos intervalares, entendi necessrio tornar ainda mais evidente a marcao na pgina para o olho (CAMPOS, 2000, p. 22).

Para uma melhor compreenso da transcriao haroldiana, julgamos necessrio no fazer um comentrio teolgico exaustivo dos versculos bblicos. O que nos interessa so as diferenas marcantes nas escolhas dos termos literrios e neologismos, comparando a traduo da Bblia do Peregrino e a traduo de Haroldo de Campos. Nossa inteno de anlise ter como princpio os versculos delimitados nas percopes que explicitam a potica dos seis dias da criao e as opes de traduo que ressaltam alguns aspectos obscurecidos nas tradues convencionais.

3.1 Dia um1. No comear Deus Criando o fogogua e a terra

O primeiro versculo de Haroldo traz a aliterao comear e criando, num esforo de recuperar o sentido original dos termos bereshith (tyviarEB.) e bar (ar'B'). Aqui se refora a traduo do termo shamyim (~yIm;v'), que usualmente significa cu, por fogogua. Esta opo est subentendida no prprio termo hebraico, que, segundo Haroldo de Campos, seria provavelmente um composto das palavras esh (fogo) e myim (gua).2. E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da gua.

Lodo torvo procura redesenhar o jogo fonossemntico do original thhu vavhu (%v,xow> Whbow"), uma vez que as demais tradues no

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visualizam esta singularidade sonora da lngua hebraica. Tambm a traduo sopro-Deus, do hebraico rah elohim (~yhil{a/ x:Wrw>), tende a explicitar uma caracterstica da lngua hebraica: a formao do construto e do absoluto, ou seja, a relao que existem entre dois substantivos, quando um passa a depender do outro. Quando dizemos em portugus, sopro de Deus, estamos unindo dois substantivos numa expresso em que o primeiro fica na dependncia do segundo. A opo por revoa, no presente, justifica-se por causa da percepo de uma criao divina intermitente, expressa no prprio texto pelo particpio durativo merahfeth (tp,x,r:m.).3. E Deus disse seja luz E foi luz 4. E Deus viu que a luz era boa E Deus dividiu entre a luz e a treva

Haroldo de Campos optou na sua traduo pela utilizao da conjuno aditiva e. Sua presena no texto hebraico no se nota com tanta freqncia, mas a traduo grega dos LXX a utiliza 1286 vezes em todo o livro do Gnesis e 118 vezes nesta primeira narrativa da criao. Esta mesma reiterao parassinttica, comum em textos antigos, foi privilegiada por Ezra Pound na transcriao da Odissia. A utilizao do verbo dividir esboa o pensar teolgico daqueles que produziram o texto original. Segundo Souza (1990), a etimologia da palavra bar (ar'B') coincide com as imagens descritas nas mitologias dos sumerianos, hebreus, gregos e latinos. Neste sentido, Deus criou uma ruptura entre o cu e a terra. O escritor hebreu inspira-se em vrios mitos, entre eles o mito egpcio que nos descreve o CU e a TERRA (NUT e GEB) como DOIS IRMOS ABRAADOS. Seu pai CHU os SEPAROU para criar o espao e a luz. Este o sentido primitivo da palavra BAR que coincide etimologicamente com todas as lnguas semitas. Este smbolo aproxima-se admiravelmente da viso cientfica moderna: o ROMPIMENTO do tomo primitivo, a GRANDE EXPLOSO, o BIG BANG. (SOUZA, 1990, p. 290)5. E Deus chamou luz dia e treva chamou noite E foi tarde e foi manh dia um

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Existe uma diferena entre: dia um e o primeiro dia. Segundo o prprio Haroldo, a escolha do cardinal e no o ordinal traz tona uma temporalidade primitiva, indiferenciada do espao e do tempo (CAMPOS, 2000, p. 28). Esta opo est no texto hebraico determinada pela palavra yom ehad (dx;a, ~Ay).

3.2 Dia segundo6. E Deus disse seja uma arcada no seio das guas E que divida entre gua e gua 7. E Deus fez a arcada e dividiu entre gua sob-a-arcada e gua sobre-a-arcada E foi assim 8. E Deus chamou a arcada cufogogua E foi tarde e foi manh dia segundo

Segundo os antigos hebreus, a aparente abbada do cu consistia numa slida cpula que retinha as guas superiores. A imagem a de um elemento slido, plano ou abobadado, que permite a separao das guas que esto abaixo dela. A escolha do termo arcada evoca fonicamente o hebraico raqia ([;yqir"). Novamente permanece a idia de que Deus no criou o universo a partir do nada, mas que deu uma ordem ao caos existente, pois a utilizao do verbo hebraico badal (ld'B'())), que significa dividir, ocorre cinco vezes em todo o captulo descrito (Gn 1,4.6.7.14.18).

3.3 Dia terceiro9. E Deus disse que se renam as guas sob o cufogogua num stio uno e que se aviste o seco E foi assim 10. E Deus chamou ao seco terra e s guas reunidas chamou mar-deguas E Deus viu que era bom

A locuo mar de guas obteve-se da percepo entre a proximidade sonora das palavras hammyim (~yIM:h;) e yammim (~yMi_y:). No relato da criao, percebe-se a importncia do elemento gua em suas mais variadas acepes. O termo gua (ym;) ocorre nada menos que 11 vezes e o termo mar (~y") aparece 4 vezes nesta traduo analisada. Vale lembrar que a gua foi vislumbrada pelo primeiro filsofo grego, Tales de Mileto (sculo VI a.C), como o elemento primordial de todas as outras coisas.

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11. E Deus disse que vice a terra de relva de erva que gere semente de rvore-de-fruto que d fruto de sua espcie com a semente dentro por sobre a terra E foi assim 12. E a terra vicejou relva erva que gera semente de sua espcie e rvore que d fruto com a semente dentro de sua espcie E Deus viu que era bom 13. E foi tarde e foi manh dia terceiro

A traduo de Haroldo de Campos volta novamente sua preocupao sonora: as assonncias que fogem das tradues convencionais. Nestes versculos, podemos ressaltar o jogo de sons existentes entre disse e vice; terra, relva, erva e gera.

3.4 Dia quarto14. E Deus disse sejam luminrias no arco do cufogogua para dividir entre o dia e a noite E para ser quais sinais para as estaes e para os dias e os anos 15. E que sejam luminrias no arco do cufogogua para iluminar a terra E foi assim 17. E Deus os deu ao arco do cufogogua para iluminar a terra 18. E para reinar sobre o dia e sobre a noite e para dividir entre a luz e a treva E Deus viu que era bom 19. E foi tarde e foi manh dia quarto

Utilizando as palavras luminrias, iluminar e luzeiros, Haroldo pretendeu aproximar-se dos transformismos que sofre a palavra luz, or (rAa): meoroth (troaom.), limoroth (troAam.lio), hammeoroth (troaoM.h;) e hammaor (rAaM'h;). A traduo quais sinais prevalece para que possa obter a rima em eco do original leothth (ttoaol). O mesmo acontece com E Deus deu, embora o original hebraico no comporte esta rima. Interessante notar, segundo a Bblia de Jerusalm4, que os nomes so omitidos propositalmente: tanto o sol como a lua eram elementos adorados pelos povos vizinhos e aqui so simples luzeiros para fixarem o calendrio e iluminar a Terra.

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Nota de rodap letra i do texto de Gn 1, 16.

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3.5 Dia quinto20. E Deus disse que as guas esfervilhem seres fervilhantes alma-davida E as aves voem sobre a terra face a face do cufogogua 21. E Deus criou os grandes monstros do mar E todas as almas-de-vida rastejantes que fervilham nas guas segundo sua espcie e todas as aves de pena segundo sua espcie E Deus viu que era bom

Notamos que Haroldo tentou fugir ao esquema fervilhem/fervilhar e optou mais estilisticamente por esfervilhem/fervilhantes. Esta utilizao sugere a impresso de atividade em vez de passividade. A traduo alma-da-vida, do hebraico, nfesh hayy (hY"+x; vp,nW WrP.) num esquema ressoante proximativo em Frutificai multiplicai cumulai.

3.6 Dia sexto24. E Deus disse produza a terra almas-de-vida segundo a sua espcie animais-gado e rpteis e animais-feras segundo sua espcie E foi assim 25. E Deus fez os animais-feras segundo sua espcie e os animais-gado segundo sua espcie e todos os rpteis do solo segundo sua espcie E Deus viu que era bom

Haroldo de Campos preferiu manter a oposio entre animais domsticos ou bhemh (hm'heB.), que traduziu por animais-gado, e animais selvagens ou haytho-eretz (#rx:)w>), traduzido por animais-feras. As escolhas justificam-se pela seguinte razo: a palavra gado, que tecnicamente no

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aparece no texto hebraico, remete diretamente ao mundo pastoril dos hebreus e simboliza a domesticao. J a palavra feras denomina os animais que ainda esto por serem domesticados. Caso quisssemos traduzir literalmente o termo haytho-eretz (#rx:)w>), obteramos animais da terra, e aqui reside a tcnica de Haroldo, que preferiu o termo animais-feras para dar uma correspondncia sonora ao original.26. E Deus disse faamos o homem nossa imagem conforme-a-ns-emsemelhana E que eles dominem sobre os peixes do mar e sobre as aves do cu e sobre os animais-gado e sobre todos os rpteis que rastejem sobre a terra

Na criao do ser humano, Haroldo colocou nfase na traduo nossa imagem conforme-a-ns-em-semelhana para enfatizar o jogo semntico das palavras betzalmnu (Wnmel.c;B) e kidmuthnu (Wnte_Wmd>Ki), que envolvem as idias de imagem e similaridade, respectivamente. Estes dois conceitos provm das palavras tzlem e demuth. TSLEM significa: imagem, sombra, semelhana, retrato, dolo,

simulacro, escultura dum deus. [...] DEMT se origina de DAM que significa: sangue, vermelho, parente, terra, ptria. Podemos traduzir: Vamos fazer o homem como um DOLO, como um DEUS INFERIOR (TSLEM); ele ser criado do nosso SANGUE, da nossa carne (DAM-DEMT). (SOUZA, 1990, p. 150)27. E Deus criou o homem sua imagem imagem de Deus ele o criou Macho e fmea ele os criou 28. E Deus os bendisse e Deus lhes disse frutificai multiplicai cumulai na terra e subjugai-a E dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do cus e sobre todo animal que rasteje sobre a terra 29. E Deus disse eis que vos dei toda a erva que gera semente sobre a face de toda a terra e toda a rvore onde o fruto-da-rvore gera semente Isto vos caber como alimento

Seguindo a mesma lgica tradutiva, podemos perceber a similaridade sonora das palavras frutificai, multiplicai, cumulai, subjugai e dominai. mesmo acontece com eis e dei, erva, gera e terra.30. E para todo animal da terra e para toda ave do cu e para tudo o que rasteja sobre a terra com alma-de-vida dentro a erva o verde-todo-verdura por alimento E foi assim

O

Revista Desempenho, v. 9, n.1, jun/2008www.revistadesempenho.org.br

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31. E Deus viu seu feito no todo e eis que era muito bom E foi tarde e foi manh dia sexto

Novamente Haroldo busca recuperar a assonncia do original th-kolyreq sev (bf,[e, qr,y