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1 O controlo judicial do despacho de arquivamento Uma abordagem do tema que nos foi proposto tem como pressuposto o facto de o mesmo tocar, transversalmente, questões fundamentais de processo penal e do próprio sistema de justiça Na verdade, numa breve retrospectiva histórica, no domínio do direito anterior, nomeadamente do Decreto Lei 35.007, já Figueiredo Dias reconduzia a questão do controle judicial da decisão do Ministério Público a um dos vectores fundamentais da sua actuação, imposto pelo principio da legalidade, ou seja, pela necessidade de controlo da legalidade dos seus actos. Aquele principio emerge como um dos principio estruturantes, e fundamento essencial do Estado de Direito, ligando-se, de forma indelével, ao principio da igualdade, assegurando a preservação da acção penal de qualquer influência externa, ou por outra razão, que não a da própria observância da lei. Porém, como mais tarde reconheceu o mesmo Autor,1 é evidente que o "princípio da legalidade" processual que, então, se tinha em vista representava o contraponto do "princípio da oportunidade" e queria, por isso, significar exactamente, como paradigmaticamente se exprimia o art. 1º do CPP de 1929, que "a todo o crime corresponde uma acção penal". Um princípio da legalidade que, por conseguinte, não se fundamentava 1 25 Anos de Estatuto do Ministério Público pag 82 e seg

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1

O controlo judicial do despacho de arquivamento

Uma abordagem do tema que nos foi proposto tem como pressuposto o

facto de o mesmo tocar, transversalmente, questões fundamentais de

processo penal e do próprio sistema de justiça

Na verdade, numa breve retrospectiva histórica, no domínio do direito

anterior, nomeadamente do Decreto Lei 35.007, já Figueiredo Dias

reconduzia a questão do controle judicial da decisão do Ministério Público

a um dos vectores fundamentais da sua actuação, imposto pelo principio da

legalidade, ou seja, pela necessidade de controlo da legalidade dos seus

actos.

Aquele principio emerge como um dos principio estruturantes, e

fundamento essencial do Estado de Direito, ligando-se, de forma indelével,

ao principio da igualdade, assegurando a preservação da acção penal de

qualquer influência externa, ou por outra razão, que não a da própria

observância da lei.

Porém, como mais tarde reconheceu o mesmo Autor,1 é evidente que o

"princípio da legalidade" processual que, então, se tinha em vista

representava o contraponto do "princípio da oportunidade" e queria, por

isso, significar exactamente, como paradigmaticamente se exprimia o art.

1º do CPP de 1929, que "a todo o crime corresponde uma acção penal".

Um princípio da legalidade que, por conseguinte, não se fundamentava

1 25 Anos de Estatuto do Ministério Público pag 82 e seg

2

numa exigência de responsabilização democrática perante a comunidade,

ligando a actuação dos magistrados do MP à lei, mas traduzia

simplesmente o dogma de "acção penal compulsória".Era este significado

de uma obrigatoriedade, sem referência aos valores legais, que permitia

contrapor o sistema predominantemente de raiz continental á

discricionariedade vigente nas legislações anglo-saxónicas.

Uma exacta compreensão dos pressupostos que então informavam o

intérprete da lei evocam na nossa memória uma justiça criminal que

raramente se aproximava do poder. Como referia Cunha Rodrigues 2 as

razões eram várias e de diferente natureza: os crimes contra a segurança do

Estado eram investigados pela polícia política e julgados por tribunais

plenários; os crimes praticados por agentes da autoridade estavam sujeitos

a garantia administrativa; e a criminalidade económico-financeira

conotava-se com infracções bagatelares ou, muito episodicamente, com

um, ou outro, caso de maior relevância explicado por razões de dissidência.

Se a justiça parecia mais eficiente tal derivava da ausência do fenómeno da

massificação, que não tinha relevância, e o sistema penal estava calibrado

para uma delinquência de tipo essencialmente rural. Neste contexto, a

investigação criminal apenas sucedia nas grandes cidades, onde também

estava concentrada a criminalidade mais elaborada, e só esporadicamente

havia a necessidade de recorrer a meio mais elaborados noutros espaços.

2 Obra citada pagina 46

3

Os lugares de inspectores da Policia Judiciária eram preenchidos por

Magistrados, muitas vezes os melhores, que concentravam a actividade

investigatória com a decisão sobre o exercício da acção penal.

Era o tempo em que a instrução preparatória (equivalente ao inquérito) se

fazia praticamente sem investigação, pois ofendido, arguido e testemunhas

compareciam, na data marcada, apresentando versões dos acontecimentos

que, geralmente, eram susceptíveis de conduzir ao esclarecimento dos

factos.

O Ministério Público constituía uma magistratura vestibular da

magistratura judicial com uma estrutura rudimentar.

Reconduzindo-nos ao percurso encetado importa relembrar que já então,

no domínio do citado Decreto Lei 35.007, se organizou um sistema de

controle exclusivamente hierárquico em relação á não acusação que se

seguisse á instrução preparatória, mas, sentindo-se a necessidade de algo

mais em função de um principio da legalidade que obrigava uma

magistratura em que a independência não era um traço natural.

Como referia Figueiredo Dias “Também na perspectiva da defesa do

princípio da legalidade um tal sistema de fiscalização se revela de todo o

ponto insuficiente, por isso que, podendo a não-acusação do MP importar

uma lesão de direitos e legítimos interesses dos particulares, máxime do

ofendido, não pode admitir-se que a decisão sobre aquela seja tomada e

fiscalizada exclusivamente por uma magistratura que, como a do MP, não

goza da prerrogativa jurídico-constitucional da independência. Por isso é

4

que, como dissemos, a nossa jurisprudência consagrou um controlo

indirecto do princípio da legalidade, ao admitir a acusação dos assistentes

em caso de abstenção do MP. Mas também neste contexto se revela a

vantagem de um sistema que admita a possibilidade de controlo judicial

directo da abstenção de acusação do MP por um tribunal de recurso (v. g.

as Relações ou o Supremo, ao estilo do sistema alemão da

Klageerzwingung 46), ou por um juiz de instrução, diferente portanto

daquele a quem eventualmente viesse a caber o julgamento da infracção

cuja acusabilidade se discute”.

No nosso subconsciente estava, assim, inscrita, a ideia de um Ministério

Público menorizado o que, por alguma forma, transparecia na própria

dinâmica do processo penal onde o papel fulcral impendia sobre o Juiz.

II

É na Constituição de 1976 que o Ministério Público assume a sua

maioridade, expressa numa afirmação de emancipação, quer em relação á

Magistratura Judicial, quer em relação á tutela do Executivo. A questão da

autonomia, então consagrada, é indissociável do perfil da sua intervenção

em termos de processo penal, e assume um papel fundamental na

modelação da estrutura da acção penal.

Como refere Cunha Rodrigues3 é útil esclarecer que a questão da

autonomia do Ministério Público esteve, desde a origem, associada a uma

certa concepção sobre o processo penal. O Ministério Público que se

3 Obra citada pag 61

5

discutira nos trabalhos parlamentares relativos à Constituição de 1976 tinha

o seu fundo cultural numa experiência de muitos anos em que a instrução

criminal, como conceito, se descaracterizara, desdobrando-se em duas fases

(preparatória e contraditória) com a primeira atribuída ao Ministério

Público e a segunda, gradualmente desvalorizada, ao juiz.

Quando a Constituição de 1976 estabeleceu que toda a instrução é da

competência de um juiz e, paralelamente, criou um estatuto forte para o

Ministério Público, abriu-se uma intensa controvérsia em termos de

polémica doutrinal. Para uns, o caminho constitucional apontava para uma

garantia de intervenção jurisdicional, formatada num contexto meramente

garantístico, e não de definição da titularidade do processo; para outros, era

crucial a criação de estruturas, que nunca existiram, que possibilitassem

uma investigação criminal dominada pelo juiz de instrução á semelhança

do que acontecia noutras latitudes. Gradualmente, cimentou-se o

entendimento de que o pensamento do legislador constitucional deveria ser

reduzido á dimensão interpretativa segundo a qual a Constituição teria

querido dizer que, nos casos em que tivesse que haver instrução, e só

nesses, ela seria da competência de um juiz. O que não envolveria qualquer

compromisso sobre o modo de organizar a investigação criminal.

É o Código de Processo Penal de 1987 que vem colocar a pedra de toque

numa perspectiva funcional e formata uma intervenção do Ministério

Público que não era mais do que o culminar de um trajecto anunciado que,

necessariamente, deveria conduzir a um novo paradigma do processo penal.

Esse novo ambiente processual, propiciado por uma Constituição apostada

6

em erguer uma outra Magistratura do Ministério Público, não passou

despercebido á doutrina e, já em 1988, afirmava Anabela Rodrigues que,

com aquela mesma Constituição, tinha sido conferida à magistratura do

Ministério Público o grau de independência efectiva, nomeadamente

perante o Executivo, que faziam com que aquele assumisse, no exercício da

sua função atinente à fundamentação da acusação, o tão desejável estatuto

de autonomia, no qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios

estritos de objectividade e imparcialidade. O que tudo faz com que se

possam remeter as coisas ao seu devido lugar: continua a defender-se a

figura do juiz de instrução, mas apenas na exacta medida em que se

defende a jurisdicionalização de todas as medidas investigatórias que

directamente contendem com os direitos" liberdades e garantias das

pessoas; e pode, sem medo do ápodo de reaccionarismo, reacentuar-se a

ideia do Ministério Público como "dominus" da fase de investigação por

excelência.

Com a solução preconizada - com um inquérito obrigatório no processo

comum, dirigido pela mesma entidade (o Ministério Público) que no final

decide da acusação ou não-acusação e com uma instrução judicial (a

cargo do juiz de instrução) facultativa contribui-se assim para uma

decisiva simplificação da estrutura do processo penal na fase preliminar,

essencial a uma eficaz política judiciária e criminal. Nesta via, em que no

inquérito se pode proceder a todos os actos necessários à fundamentação

cabal de uma decisão de acusação ou de não-acusação, mas sempre que se

torne necessária a prática de actos que directamente se prendam com a

7

esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, tais actos deverão

ser autorizados - e alguns deles mesmo praticados - pelo juiz de instrução,

não se esqueceu que o "Ministério Público" é independente: do que se

trata é de assegurar agora um outro princípio constitucional, segundo o

qual a totalidade das funções materialmente judiciais deve caber, e caber

só, aos juízes.4

Estavam, assim, traçados os pontos cardeais que, desde há cerca de duas

décadas, ditam as regras do nosso processo penal, e a desconfiança que

anteriormente se apontava a uma Magistratura do Ministério Público

menorizada, e na órbita do executivo, era agora substituída por uma

profissão de fé nas virtudes da autonomia em equação directa com o

principio da legalidade, quando não da própria igualdade.5

4 O inquérito no Novo Código de Processo Penal pag 77 5 Impõe-se aqui uma greve referência àquela que tem sido a evolução em termos de direito comparado que avaliada em relação á Alemanha; Espanha;Itália ;Holanda Portugal Reino Unido e Suiça apresentam como características principais: 1-O Ministério Publico tornou-se o principal actor da instrução assumindo um papel crescente no processo criminal á excepção de Espanha (Em Espanha á excepção das infracções menores todas as infracções são objecto de uma instrução que é realizada por um juiz de instrução auxiliado pela policia judiciária.O Código de Processo Penal encarrega o Ministério Público, garante da legalidade, de controlar a acção do juiz de instrução mas este assume, na prática, uma grande independência. Assim, é ele que decide o encerramento da instrução logo que entende que a mesma está finda. A assunção da instrução pelo Ministério Público é objecto de um debate recorrente-(confrontar La instrucion del processo penal por El Ministério Fiscal Aspectos estruturales a la luz del derecho comparado-Juan Luiz Gomez Colomer). 2-O Ministério Público desempenha um papel fundamental na instrução do processo penal mão somente na Alemanha e Itália, onde o juiz de instrução foi suprimido, mas também na Holanda. A Alemanha e a Itália suprimiram o juiz de instrução em 1975 e 1988 para confiar a direcção da instrução ao Ministério Público. Na Holanda o Ministério Público está no centro do processo penal. É ele que dirige o inquérito da policia e que decide se deve abrir, ou não, uma informação judiciária dirigida por um juiz de instrução.Como o Ministério Público e a policia obtiveram a possibilidade de recorrer a meios de investigação antes reservados aos juízes a instrução “strictu sensu”, consecutiva ao inquérito policial tornou-se excepcional.

8

III

Neste novo enquadramento também o principio da legalidade vem a ser

objecto de uma actualização interpretativa, imposta pela própria evolução

da dogmática do processo penal, e a compulsariedade do exercício da acção

penal é quebrada com a aceitação de margens de actuação que visam a

desjudicialização, encontrado o seu lugar programas de política criminal

em que surgem como pontos centrais, e irrenunciáveis, os temas da

"mediação", da "desjudicialização"; da "justiça penal negociada", dando

foros de cidadania a uma decantada "justiça restaurativa"; e institutos

processuais penais como os do "arquivamento em caso de dispensa de

pena", da "suspensão provisória do processo", da "plea bargaining" e tantos

mais.

Em Inglaterra, e no País de Gales, o inquérito é realizado pela polícia que goza de grande independência. O Serviço Nacional que pode assimilar-se a um Ministério Público, mesmo sem todos os seus atributos, foi criado em 1986 para assegurar a unidade no exercício da acção penal. Assume nesta altura uma importância crescente no processo penal, em particular na fase preliminar, coopera com a polícia desde o início do inquérito, dando o necessário apoio jurídico. O papel do Ministério Público na Suiça também foi objecto de um alargamento. Actualmente, o órgão encarregado da instrução depende da circunstância de a infracção estar pendente a nível da jurisdição federal ou cantonal.Segundo a hipótese a instrução é confiada ou a um juiz de instrução ou ao Ministério Público.O novo Código de Processo Penal, adoptado em 2007, e que entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2011, unifica o processo penal outorgando a sua direcção ao Ministério Público. Como o juiz de instrução o Ministério Público tem a obrigação de instruir “á charge et decharge”.Esta obrigação figura expressamente nos Códigos de Processo Penal Alemão e Suíço. Genericamente, pode-se afirmar que, não obstante a tutela do Ministério Público a realização ou prescrição de actos de instrução que afectem as liberdades, em particular a prisão preventiva ou as escutas telefónicas requerem a intervenção de um juiz da instrução na Alemanha; juiz das investigações preliminares em Itália:juiz de instrução em Portugal e na Holanda; magistrate na Inglatera e País de Gales. Pode-se afirmar que, genericamente este Juiz das liberdades e garantias é hoje o paradigma da generalidade dos processos penais europeus, com o abandono do paradigma do juiz de instrução, incluindo a própria França na qual em 7 de Janeiro de 2009 o Presidente da República anunciou a supressão substituído pelo Ministério Público na direcção da instrução

9

Assim, quando hoje se coloca a questão da uma acção penal inscrita no

principio da legalidade terá mais sentido falar-se de uma "acção penal

orientada pelo princípio do legalidade" num duplo sentido:- sublinhando

que a ligação do MP à lei também (e sobretudo) no momento da promoção

processual e que a sua decisão de promover, ou não promover, um processo

não pode em caso algum ser comandada pela discricionariedade.

Não obstante, e porque seria manifesto o excesso de não prever qualquer

controle da decisão de acusar, bem como na de não acusar, autonomizou-se

uma instrução dirigida pelo juiz de instrução a quem se pretendeu ligar a tarefa

de fiscalização e controle da actividade do Ministério Público. Como referia a

Autora citada quer a decisão de acusação (artigo 283 do CPP) quer a de

arquivamento (artigo 277 do CPP) devem ser passíveis de controlo judicial,

possibilidade que o novo Código assegura aos interessados - arguido e

assistente - através do direito que lhes confere de requererem a abertura da

instrução, da competência do juiz de instrução: ao arguido, no caso de

acusação (art. 287.°, nº 1 do CPP alínea a) relativamente a factos pelos quais o

Ministério Público, ou o assistente em caso de procedimento dependente de

acusação particular, e ao assistente, para os crimes públicos e semi-públicos,

no caso de não-acusação (art. 287.°, nº 1, alínea b do CPP), relativamente a

factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Nos

exactos termos do artigo 286.°, nº1 do Código de Processo Penal a instrução

"visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em

ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

10

Para além deste controlo judicial está, ainda, consagrada a possibilidade, no

caso de arquivamento, de um controlo hierárquico (art. 278.°), que se quer

que funcione, não como modo normal de controlo da legalidade da abstenção

de acusação, mas cujo sentido é o de assegurar uma "válvula de segurança" no

sistema, para a sindicância de casos escandalosos em que não haja partes

interessadas, e face à impossibilidade do exercício dos poderes gerais de

avocação após o encerramento do inquérito.

IV .

No “terminus” do inquérito o Ministério Público elabora, assim, um juízo

de prognose assente na suficiência de indícios e a que não é alheio o

principio in dubio. Tal juízo, que se reconduz á probabilidade, ou

improbabilidade, de condenação abrange apenas a problemática do

eventual comportamento futuro dos indícios recolhidos: formulando uma

convicção sobre a suficiência de indícios deduz acusação. No caso

contrário, profere despacho arquivamento6

Tal decisão, nuclear na vida do processo, pode ser sujeita ao escrutínio do

juiz de instrução, nas diversas conformações que pode assumir, o que nos

reconduz a uma questão nuclear no processo penal de um Estado de

Direito, ou seja, ao principio da garantia judiciária expresso na intervenção

judicial. Como refere Mouraz Lopes 7 Toda a construção doutrinal do

6 Conf João Conde Correia “Questões práticas relativas ao arquivamento e á acusação e á sua impugnação” 7 Garantia Judiciária em processo penal

11

sistema garantístico como fundamento da actividade jurisdicional acaba

por terminar na própria concepção legitimadora da independência do

poder judicial. Afinal, a concretização da defesa dos direitos fundamentais

só pode fundamentar a existência de um poder totalmente independente de

todos os outros que, também eles, em concreto, acabam por sustentar, em

determinadas circunstâncias, essas violações de direitos.

A estrutura típica do processo penal, adoptada em 1987, que não foi

alterada pela reforma de 1998, onde o Ministério Público, detentor da

acção penal, embora sujeito a critérios de legalidade na sua actuação, não

deixa por isso de representar o Estado no exercício da acção penal, coloca

por isso, de uma forma bem clara a necessidade de ser o juiz o garante das

liberdades do cidadão quando este se vê confrontado com a máquina

estatal da investigação criminal. Já para não falar da própria intervenção

do Estado na prevenção criminal, onde, para além das competências

próprias dos órgãos de polícia criminal nesta matéria, também o

Ministério Público vem vendo reforçados os seus poderes.

A compreensibilidade e mesmo a adequação constitucional da actual

estrutura do processo penal se só é compreensível tendo por certa a

natureza de magistratura que assume o Ministério Público, não pode

omitir, no entanto, alguns equívocos decorrentes do próprio estatuto

constitucional e legal do Ministério Público

12

Sendo uma magistratura autónoma, que goza de estatuto próprio, os seus

agentes são, ao contrário dos juízes, responsáveis e hierarquicamente

subordinados. 8

É, pois, em face deste arquivamento que se posicionam algumas das

questões mais delicadas pelo tema proposto e que desde logo radicam no

polimorfismo que tal despacho pode apresentar.

Na verdade,

O artigo. 277.°, nº 1 do Código de Processo Penal consubstancia três causas

de arquivamento distintas: a primeira hipótese ocorre quando durante o

inquérito for recolhida prova bastante de não se ter verificado crime

(arquivamento por razões de facto e/ou por razões materiais). É uma forma

de certeza da inexistência. Não está em causa a mera ausência de indícios

suficientes mas, muito mais do que isso, a constatação e a afirmação de que

não há crime. Dito por outra forma, inexistem factos que possam

fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

São esses factos que sustentam a acusação e é a sua inexistência

8 Conforme refere o mesmo autor É preciso lembrar que a hierarquização do Ministério Público assumindo a configuração de vértice, tem no seu topo a figura do Procurador-Geral da República. Cabendo a sua nomeação e exoneração ao Presidente da República, sob proposta do Governo, com uma limitação de mandato estabelecida na Constituição pela Revisão de 1997 de seis anos, a conclusão de que existe uma conexão entre o exercício da acção penal e o poder político é inevitável. lnevitabilidade que não traz em si qualquer captio diminutis relativamente ao estatuto do Ministério Público bem como ao exercício das suas funções. A política criminal é uma das vertentes fundamentais da acção dos órgãos de soberania no exercício pleno dos seus poderes constitucionais de condução da política geral do País. Cabendo ao Governo esse poder, sempre sustentado pela Assembleia da República, no que diz respeito à elaboração de legislação sobre restrições de direitos liberdades e garantias e à definição de crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como do processo criminal, caber-lhe-á sem dúvida essa parcela de controlo sobre o Ministério Público decorrente do exercício da acção penal.

13

(devidamente comprovada) que, por maioria de razão, sustentará o

despacho de arquivamento previsto no art. 277.°, n.o 1, primeira parte, do

Código de Processo Penal 9

A segunda hipótese de arquivamento tem lugar quando, durante o

inquérito, for recolhida prova bastante de que o arguido não praticou

aqueles factos a qualquer título (arquivamento por razões de facto). Existe

a certeza de um crime e, em simultâneo, a necessária certeza de que o

arguido não o cometeu. Não está em causa a existência de crime, ou a sua

qualificação jurídica, mas somente a participação subjectiva e individual na

sua prática, seja como autor, seja apenas como cúmplice.

A terceira hipótese de arquivamento, nos termos do art. 277.°, nº 1, do

Código de Processo Penal, abrange um amplo campo polifacetado em que

o procedimento criminal é legalmente inadmissível (essencialmente por

razões processuais). O normativo aplica-se a situações de proveniência

diversa, geralmente classificadas como pressupostos, ou impedimentos

processuais, sendo muitas vezes discutida a sua origem processual, material

ou mista. É o caso do ne his in idem (art. 29.°, nº5, da CRP), da prescrição

(art.s 118 e ss. do CP), da amnistia (art. 127.° do CP), da falta de queixa

9 Na opinião de Conde Correia “o mesmo acontece quando, apesar de serem típicos, os factos forem praticados a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. A verificação da sua existência preclude a possibilidade de aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido. Se os factos foram cometidos, por exemplo, em legítima defesa (art. 32.° do CP) ou ao abrigo do direito de necessidade (art. 34.° do CP), apesar de típicos não são punidos. Aqueles factos não determinam a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido (art. 31.° do CP)”.Não se perfilha tal entendimento que, a nosso ver interpreta o artigo em causa com uma amplitude que não é permitida nem pela letra nem pelo espírito da lei. Por tal forma se amplia a intervenção do Ministério Público atribuindo-lhe a competência para uma decisão que é jurisdicional que não se prende com a existência de prova mas com a responsabilização criminal que a mesma implica

14

(art. 49.° do CPP), da falta de constituição como assistente (art. 50.° do

CPP), das imunidades parlamentares (art. 157.° da CRP), da despenalização

da conduta (art. 2.°, nº 2, do CP) ou mesmo da incompetência (art. 33.°,

nº4, do CPP).10 Nesta hipótese, mesmo que porventura existam indícios

suficientes da prática de um crime e de quem foi o seu agente, o Ministério

Público não pode promover a acção penal, devendo decidir-se pelo

arquivamento.

O arquivamento então decidido pelo Ministério Público pode ser objecto

de uma adequada reacção, solicitando a intervenção hierárquica por parte

do assistente, ou do denunciante, com a faculdade de se constituir

assistente, ao abrigo do citado artigo 278 do Código de Processo Penal, ou

de um pedido de controle judicial, formulado pelo assistente, requerendo a

abertura de instrução nos termos do artigo 286 do mesmo diploma

Aqui, duas perplexidades se suscitam, desafiando uma interpretação á luz

dos próprios normativos constitucionais

A primeira questão cinge-se ao próprio controlo da decisão que incide

sobre o pedido de reabertura de inquérito que foi arquivado. Na verdade, se

é certo que os mecanismos estabelecidos nos artigos 277.°, 278.° e 279.° do

Código de Processo Penal permitem, em geral, um controlo directo, e

indirecto, por parte dos interessados sobre a actuação do Ministério Público

quando termina o inquérito, igualmente é exacto a detecção de 10 Conde Correia obra citada pag 35 e Ricardo Casdoso O Controlo jurisdicional do despaco de arquivamento em O Processo Penal em revisão pag 187

15

disfuncionalidades, deixando sem controlo a actuação do Ministério

Público. Tal sucede com a inadmissibilidade de controlo judicial do

despacho que denega a reabertura do processo, nos termos do artigo 279.°,

n.º 2 do mesmo diploma.

Regressando á estrutura da decisão de arquivamento salienta-se que apenas

é possível a reabertura do inquérito, depois de proferido o despacho de

arquivamento, quando, e se surgirem, novos elementos de prova, que

infirmem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho

que arquivou o inquérito. Do despacho que recusar a reabertura do

inquérito apenas é possível reclamar para um superior hierárquico do

Magistrado do Ministério Público que proferiu o mesmo despacho, não

existindo recurso de tal decisão.

Como acentua Mouraz Lopes11 é uma situação que numa perspectiva

garantística se imporia que fosse alterada, sob pena de se ver encerrado

um inquérito pelo Ministério Público sem que alguém com interesse possa

sindicar esse despacho.

Num outro ponto encontramos uma potencial linha de fractura, caso se

perfilhe o entendimento de que arquivamento processual por

inadmissibilidade legal de procedimento não é susceptível de controlo

jurisdicional. Como refere Ricardo Cardoso12, a posição de que o

arquivamento efectuado pelo Ministério Público, em casos de

inadmissibilidade legal de procedimento criminal, nos termos do artigo 11 Obra citada pag 67 12 Obra citada em nota supra

16

277. °, n.º1, in fine, não sendo susceptível de controlo jurisdicional quando

se trate de situações de "verificação de obstáculos de natureza substantiva"

(como é o caso da amnistia) ou "situações de interpretação extensiva do

referido arquivamento por inadmissibilidade de procedimento, atinentes a

razões adjectivas de ordem processual", carece de adequada

compatibilização constitucional.

V

Aqui chegados assalta-nos a sensação de que o que foi exposto sugere um

modelo que colide com a realidade dos tempos que se vivem.

Na verdade, decorridos cerca de vinte anos sobre a entrada em vigor do

Código de Processo Penal, devemos questionar se o mesmo se

compatibiliza com a evolução entretanto verificada ou se, pelo contrário, é

tempo de equacionar a mudança de paradigma. Sem ter o atrevimento de

uma ponderação dogmática á luz dos novos valores diremos, todavia, que

hoje as realidades mudaram, pelo menos em parte, e tal exige uma

reponderação do significado que devem assumir os princípios que

informaram, inicialmente, o legislador.

17

Uma dessas realidades são as novas formas de delinquência que se

desenham com contornos próprios, que distam da criminalidade

tradicionalmente reflectida num Direito Penal de “sangue e lágrimas”,

espelho do drama da vida. O refinamento no “modus operandi” das novas

modalidades criminosas desafia as estratégias de combate que lhe são

direccionadas. A complexidade na investigação das condutas criminosas

está muito além da elevada danosidade/lesividade desses delitos. A sua

visibilidade escassa, a vitimização difusa e certa imperceptibilidade da

prática destas infracções, além das dificuldades de aplicação de técnicas

legislativas adequadas quando do sancionamento das condutas são

exemplos da alta problemática envolvente do tema.

Nesta sequência, podemos afirmar que o direito penal clássico está

desfasado de algumas exigências de combate reclamadas pelas modernas

configurações penais, nomeadamente quanto aos crimes de “colarinho

branco”, porque foi concebido para o Estado Liberal do século XIX,

construído a partir de uma realidade sócio-cultural inteiramente diversa da

actual.13

13 , SILVA SANCHEZ, La expansión dei Derecho Penal, p. 22. afirma que o Direito Penal contemporâneo não pode ignorar «a existência no nosso âmbito cultural de uma verdadeira demanda social de mais protecção» e logo em seguida adverte que esta se não deve confundir com exigências irracionais de punição, motivadas por sentimentos gerais de insegurança, e estimuladas pela intervenção de «opinion makers» e por uma política criminal oficial pouco esclarecida, que frequentemente se serve do instrumento penal com desígnios políticos, quer de condução social ou de reforço sancionatório de políticas sociais, quer de conquista eleitoral. A distinção entre expectativas legítimas de mais e melhor protecção e pretensões irracionais de mais Direito Penal, apresentada por SILVA SANCHEZ, é útil para a delimitação das formas e dos limites de expansão racional do Direito Penal de combate aos novos riscos (conf. Augusto Silva Dias “Delicta in Se Delicta mera prohibita” pag 639

18

Como acentua Diez Ripolles14 entrámos numa dinâmica que tende a

superar o, até há pouco tempo, indiscutido modelo penal garantista e a

substituí-lo por outro que pode denominar de modelo penal da segurança

cidadã. Nesse movimento, outros modelos penais disponíveis, como o

ressocializador, ou o da justiça restaurativa, começam a ser questionados

como alternativas dignas de consideração.

As exigências de um debate entre as exigências securitárias e as pulsões

garantisticas atingem o seu ponto mais elevado perante realidades novas

como os fenómenos de uma criminalidade organizada, e muitas vezes

transnacional, quando não global, ou uma criminalidade económica que

atinge dimensões preocupantes, evidenciando uma captura do Estado ou

uma privatização ilegítima do interesse público.

Na verdade, também aqui o redimensionamento das estruturas de protecção

inerente á sociedade de risco importa, ou deve importar, uma dinâmica

associativa e solidária da sociedade civil. A densificação subjectiva de direitos

que visam proteger o bem comum deve ter repercussões práticas importantes

ao nível da respectiva tutela jurisdicional e regime processual. A noção de

interesse colectivo, assumindo uma componente substantiva, pode, e deve,

assumir uma consequência em termos de configuração dos meios de tutela

jurisdicional. A atribuição de um “direito de acção” a um cidadão, ou a um

conjunto de cidadãos, implica a consagração de um universo de cidadania.

Neste aspecto se cumpre também a dimensão de solidariedade ética. Sobre

cada um de nós, cidadãos recai um indeclinável dever na preservação de

14 Da sociedade de risco á segurança cidadã RPDC Ano 17 nº4

19

valores que são a essência do próprio Estado, cuidando da sua manutenção e

evitando, sobretudo, o seu dano a fim de que os restantes co-titulares e as

gerações vindouras possam dele beneficiar também.

O processo penal, depositário dos valores constitucionais, tem de reflectir

tal evolução e não é possível, no dealbar do século XXI a manutenção de

fórmulas processuais que já mostraram a sua desadequação aos sinais dos

tempos. A dúvida que, eventualmente, ainda nos pudesse assistir tem uma

resposta elucidativa na evolução e resultado dos processos que, nas últimas

décadas, tocam a criminalidade económica financeira.

É inevitável que as próprias necessidades inerentes á gestão racional do

sistema penal imponham a existência de tipos de processos diferentes

adaptados á criminalidade que se pretende julgar. Estamos em crer que a

um processo penal modelado de forma uniforme, com o pressuposto de um

objecto não diferenciado, irá suceder um processo penal de várias

velocidades, consoante o seu objectivo se situe no patamar de uma

criminalidade clássica, de estrutura linear, ou tenha por objecto uma

criminalidade elaborada, e organizada, com outro tipo de exigência

investigatória e de julgamento.

Um dos campos onde tal evolução se evidenciará é, como se afirmou, a

criminalidade económica e financeira onde, mais do que em qualquer outro

ponto do direito penal, são acrescidas as exigências de transparência das

decisões e a possibilidade de as mesmas serem valoradas pela opinião da

comunidade.

20

As implicações que tal postulado tem em relação ao tema do controle

jurisdicional da actuação do Ministério Público resultam desde logo na

forma como deve ser equacionado o principio da legalidade pois que,

conforme refere Figueiredo Dias15, a decisão de promover, ou não

promover, um processo não pode em caso algum - logo em nome do

princípio democrático-constitucional da igualdade, que se julgava vincular

à máxima da acção penal compulsória - ser comandado pela

discricionariedade livre ou pelas convicções, ou mesmo por (reais ou

pretensos) comandos da sua consciência ética; mas pode e deve ser

comandado pela sua discricionariedade vinculada, isto é ainda, pela sua

obediência à lei, aos juízos de valor legais e, sobretudo, aos programas

político-criminais democraticamente definidos e aos quais o Ministério

Público deve obediência estrita e pelos quais tem de prestar contas. Nesta

perspectiva, a legalidade que, deste modo, abarca a própria oportunidade,

discricionariamente vinculada, geradora de uma autonomia que não deve

ser ensombrada ou, ainda menos, limitada por interferência de outros

órgãos de administração da justiça penal. Mas uma legalidade substancial

por cuja realização o Ministério Público tem de comunitariamente se

responsabilizar, de prestar contas numa medida muito maior do que face a

uma legalidade puramente formal e, aliás, de cumprimento impossível

15 RPDC Ano 17 nº2 Abril Junho de 2007.

21

Temos, assim, por adquirido uma exigência acrescida da responsabilização

do Ministério Público em face da comunidade, também patente pela forma

como a sua decisão de arquivamento é controlada judicialmente.

A questão é, então, a de compatibilizar tal responsabilização democrática

com o controle judicial, o que gera algumas dessintonias. Na verdade, no

domínio do actual Código de Processo Penal, o exercício de tal controle

passa, essencialmente, por uma instrução, tutelada pelo respectivo juiz, cuja

finalidade é a de comprovar a decisão de arquivar o inquérito em ordem a

submeter, ou não a causa a julgamento-artigo 286 do Código de Processo

Penal.

Porém, o tempo encarregou-se de demonstrar a inutilidade desta fase

processual, reconduzida a um pré-julgamento, com o inevitável recurso a

todos os meios possíveis para prolongar a sua duração, ou como alavanca

de uma desejada prescrição, ou como instrumento de uma dilação que

transforma a celeridade processual numa palavra sem sentido. A instrução,

tal como está hoje configurada no Código de Processo Penal não tem

sentido ou propósito funcional.

Como refere Figueiredo Dias16 Á luz desta concepção fundante, analisar a

estrutura do processo penal português vigente, não se me deparam razões

para supor a necessidade de, no curto prazo, introduzir naquela alterações

radicais, nem no que respeita à fase do inquérito, nem à da audiência de

discussão e julgamento.

16 Que futuro para o processo penal Estudos em Homenagem a Figueredo dias

22

Prevejo sim que o dia virá em que (como, in thesi, desde há muito defendo

no plano do direito a constituir) a fase intermediária da instrução será

eliminada como fase processual penal autónoma. Consequência.

sobretudo, de o modelo preconizado pelo código português para esta fase -

como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do

Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito - não

ter podido ser até hoje minimamente cumprido pela praxis; antes ter sido

desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e

provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de

eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Questão será

então só saber se uma tal fase autónoma deve ser substituída, à maneira

alemã, por uma simples decisão do tribunal de julgamento de abrir a

audiência ou ordenar o arquivamento; ou deverá ainda admitir, à maneira

da preliminary hearing norte-americana, um debate instrutório. Com a

reserva evidente de que todos os actos de inquérito que contendam

directamente com os direitos, liberdades e garantias das pessoas devem -

porventura ainda em maior número de casos do que os agora

contemplados nos arts. 268.° e 269.° do Código de Processo Penal - ser

autorizados, ou eventualmente praticados, pelo juiz das liberdades (ou, se

assim se preferir chamar-lhe, pelo juiz de instrução).

Assim, reconduzindo-nos á palavra do Mestre estamos em crer que em

lugar da instrução deverá existir uma audiência preliminar, em que apenas

será permitido o debate a que alude o artigo 297 do código de Processo

Penal e com as finalidades a que alude o artigo 286 do mesmo diploma.

23

Encontradas duas referências que devem orientar o legislador em termos do

quadro que deve pautar o controle jurisdicional da decisão de arquivamento

subsiste o ponto crucial de saber como é que tal exercício se deve

desencadear, ou seja, saber se deve permanecer o assistente como único

detentor do poder de desencadear a instrução ou se, pelo contrário, deverá

ser admitida a possibilidade de tal controle ser exercido oficiosa e

obrigatóriamente, pelo menos em relação a determinados tipos de crime,

nomeadamente aqueles em que existe uma expectativa acrescida da

comunidade na tutela do interesse público.17

17 A possibilidade deste tipo de intervenção está prevista na legislação italiana. Quando da revisão do código de processo penal, o legislador desejou separar o inquérito preliminar do julgamento : as provas devem ser estabelecidas frente a um juiz que ignora os actos do processo, e o inquérito preliminar efectuado pelo ministério público não tem nenhum valor probatório. Por conseguinte, o juiz que decide da abertura do processo não pode ter participado no inquérito preliminar e não deve participar no julgamento, enquanto o juiz do inquérito preliminar também não pode participar no julgamento. Por último, o julgamento deve, em princípio, basear-se nos únicos elementos de prova recolhidos durante a audiência. Na sequência da fase de inquérito, o ministério público pede a determinação no sentido de precisar se as condições de exercício da acção penal não forem preenchidas (denúncia infundada, impossibilidade de identificar o autor da infracção, etc.). Se o juiz das investigações preliminares considera que o pedido de classificação formulado pelo ministério público não é justificado, pode determinar que o inquérito prossiga fixando um prazo para esse efeito ou impondo ao ministério público a formulação de uma acusação no prazo de dez dias. Se o ministério público considera que é conveniente prosseguir o procedimento criminal, entrega ao juiz da audiência preliminar (giudice dell' udienza preliminare) um pedido de envio para julgamento. Tem então lugar o debate contraditório entre o ministério público e a defesa em presença do juiz da audiência preliminar, que decide o lugar ou a abertura do processo. O juiz da audiência preliminar não pode ser a mesma pessoa que o juiz das investigações preliminares. Com efeito, o juiz das investigações preliminares, embora não participe directamente no inquérito preliminar, tem conhecimento de certos elementos, por exemplo se autorizar escutas telefónicas ou autorizar uma colocação em detenção provisória. É apenas quando o papel do juiz das investigações preliminares no inquérito preliminar se limitou a actos sobre o procedimento stricto sensu ou sobre elementos “neutros” que este último pode tutelar a audiência preliminar e desempenhar o papel do juiz da audiência preliminar. O código de processo penal exclui que o juiz da audiência preliminar e o juiz das investigações preliminares possam fazer parte do órgão jurisdicional de julgamento. É apenas no caso, previamente

24

Não se ignora a resposta a resposta determinada que, num preciso contexto

histórico foi dada a tal questão e, já em 1999, referia Noronha do

Nascimento “O que os juízes querem é bem pouco. Querem o controlo

jurisdiscional dos arquivamentos nos inquéritos criminais e das

prorrogações do prazo de investigação quando esses inquéritos se

prolongam muito para além dos limites legais, querem uma diminuição no

tempo do segredo de justiça e querem - quando os prazos do inquérito

estão largamente excedidos - um maior acesso dos advogados ao inquérito.

A investigação criminal não pode ser feita com juízes e advogados

permanentemente à sua margem; porque só com o cumprimento daqueles

pressupostos mínimos será possível evitar que as prescrições criminais

ocorram com frequência ou que a investigação venha a ser uma arma de

arremesso no jogo político-partidário.

O sistema português de investigação criminal não tem similitude com o dos

países que nos estão mais próximos. Em Espanha e França quem a faz são

juízes de instrução cujos actos são recorríveis; em Itália quem a faz é o

MºPº po mas com o controlo jurisdicional pelos juízes nos arquivamentos

dos inquéritos.

evocado, onde o papel do juiz das investigações preliminares no inquérito preliminar foi limitado que uma excepção à esta regra é possível e que o juiz das investigações preliminares pode tomar parte ao julgamento. Como o julgamento deve basear-se nos elementos de prova recolhidos durante a audiência, aquando do envio em julgamento, dois processos são formados: o processo para os debates, comunicado ao órgão jurisdicional de julgamento, e o processo do ministério público, transmitido às partes, mas cujo órgão jurisdicional de julgamento não tem conhecimento. Este dispositivo impede os órgãos jurisdicionais de julgamento encontrar-se numa situação “de prejuízo”. Os processos verbais dos actos do inquérito preliminar devem por conseguinte permanecer no processo do ministério público.

25

Baltazar Garzon quem é senão um juiz de instrução da Audiência Nacional

de Espanha ? E não consta que nesses países a eficácia da investigação

tenha sido atingida ou apoucada ao contrário daquilo que alguns

pretendem sugerir”18

.

Estamos em crer que a resposta á questão equacionada emerge, neste

momento, de pressupostos incontornáveis vigentes no nosso processo penal

como é o facto de o mesmo se estruturar segundo o princípio do acusatório,

detendo o Ministério Público o monopólio do exercício da acção penal. A

possibilidade, concebível em abstracto, de uma comprovação judicial e

oficiosa da decisão de arquivamento é o desenvolvimento de um corolário

que não foi pretendido pelo legislador ao desenhar o modelo de processo

penal que nos rege. Aliás, tal poderia implicar a sujeição a julgamento o

arguido de uma pronúncia em relação á qual ninguém está em condições de

exercer a acção penal: o Ministério Público porquanto entendeu que não

devia acusar e o assistente, existindo, porquanto entendeu pela mesma

forma.

O caminho a percorrer tem de ser outro, alargando a possibilidade de

intervenção dos particulares, aumentando o leque da possibilidade de 18 Investigação Criminal O Direito e o Avesso Boletim da Associação Sindical dos Juízes II Série º6 Novembro de 1999

26

intervenção como assistente. Ponto é que, como refere Damião da Cunha,

se aceite que a legitimidade para a constituição de assistente assente no

conjunto de entidades – pessoas colectivas ou singulares-que tenham

interesse na defesa e promoção de determinados bens e interesses

assumidos pela lei penal.

Efectivamente, se é certo que a regra geral é a de que o ofendido se pode

constituir assistente nos tipos legais de crime de natureza particular, e nos

de natureza semi-publica, igualmente é exacto que a alínea e do artigo 68

do Código de Processo Penal vem a enunciar um catalogo de crimes em

elação aos quais, e não obstante a sua natureza pública, qualquer pessoa se

pode constituir como assistente (crimes contra a paz; corrupção etc). Existe

aqui uma certa ideia de identidade substancial entre a legitimação dos

ofendidos e a da decorrente dos pressupostos de um «direito de acção

popular» - a necessidade de se poderem configurar, num e noutro caso,

como portadores do bem jurídico protegido pela norma penal. Mas, como

refere o mesmo Autor, importa realçar o facto de que o assistente goza de

uma certa autonomia em relação à actividade do MP. Ora, esta autonomia

implica uma diferenciação de interesses e sobretudo uma diferenciação de

corporização de interesses - pelo que, eventualmente, além das pessoas

(físicas ou colectivas) de carácter privado, dever, pelo menos, em tese,

poder ainda constituir-se como assistentes pessoas colectivas de direito

público, que gozem de autonomia, em razão de um especial substracto

territorial, institucional ou empresarial.

27

A admissibilidade- inscrita no próprio CPP- de admitir que qualquer

pessoa, ou associação, se possa constituir como assistente por crime de

peculato e de corrupção tem subjacente um propósito de garantir e

maximizar, neste âmbito de crimes, um possível controlo judicial sobre a

actuação do MP sem que tal desiderato possa constituir uma distorção dos

princípios.

Efectivamente, a potenciação da possibilidade de intervenção da figura do

assistente quando esteja em causa qualquer interesse colectivo é o caminho

a percorrer. Aliás, quando a actuação da pessoa singular, ou colectiva, seja

pautada única e exclusivamente pelo interesse público, e não por qualquer

interesse pessoal directa ou indirectamente atingido, não podem impender

sobre o assistente ónus financeiros de qualquer tipo e os encargos da

própria representação judiciária deverão ser assumidos pelo erário público.

Na verdade, se é certo que fazemos profissão de fé nas virtualidades do

principio do acusatório e no perfil autonómico do Ministério Público não é

menos exacto a consciência de que tais pressupostos constituem um entrave

a qualquer solução que passe por um controle jurisdicional oficioso do

despacho de arquivamento.19

19 De acordo com a recomendação de 2000 do Comité de Ministros do Conselho da Europa dirigido aos Estados Membro relativo ao papel do Ministério Público no sistema de Justiça penal: As partes interessadas no processo, logo que como tal reconhecidas ou identificáveis, em particular as vítimas, devem poder impugnar as decisões do MP de não proceder criminalmente; uma tal impugnação pode fazer-se no próprio processo depois de fiscalização hierárquica, quer através de controlo jurisdicional, quer autorizando as partes a deduzir acusação particular. Em todos os sistemas jurídicos, em particular aqueles em que o MP dispõe de poderes de oportunidade, a decisão de arquivamento em que uma infracção foi claramente cometida – sendo que muitas decisões semelhantes são acompanhadas de propostas de alternativa para o procedimento criminal (como, por exemplo, uma transacção, mediação, uma advertência ou aviso, condições...) - representa um sério problema se for contestada pelas pessoas envolvidas e/ou os seus fundamentos forem discutíveis.Além de recomendar - no ponto 13e - que as instruções do governo para proceder ao arquivamento do processo devem ser proibidas, o Comité

28

Concluímos, assim, pela necessidade de atribuição de um estatuto alargado

de intervenção aos cidadão que a título individual, ou associados, se

proponham coadjuvar o Estado na prossecução da acção penal em qualquer

um a das suas modalidades. Como negar uma obrigação de participação

colectiva que impende sobre cada um de nós?

procurou ajudar a reforçar todo o sistema de controlos e equilíbrios concebido para assegurar que o sistema penal não seja desviado dos seus objectivos, tudo sem prejuízo de outros direitos das partes, segundo a legislação vigente. O Comité deparou-se com dois tipos de dificuldades. No primeiro, embora a grande maioria das infracções cause vítimas directas (ou grupos de vítimas) identificáveis, noutras - tais como, os crimes de corrupção ou ofensa aos interesses financeiros do Estado ou de uma autoridade regional ou local - não ocorrem. Criar um direito apenas aplicável às vítimas, seria aceitar a ausência de controlo democrático sobre as actividades do MP num número de áreas particularmente sensíveis. Por outro lado, permitir indiscriminadamente que qualquer pessoa que se considere vítima de crimes, impugne a decisão de não proceder criminalmente, ocasionaria uma paragem da máquina do MP e aumentaria o número de recursos interpostos como estratégia dilatória. Assim, o Comité pretendeu reconhecer não apenas os direitos das vítimas, mas também os direitos das "partes interessadas no processo logo que reconhecidas ou identificáveis" como, por exemplo, alguém que tenha comunicado factos a uma autoridade judicial (sujeita a certas condições) ou associações com legitimidade ou autorizadas em circunstâncias excepcionais a defender um interesse público. A segunda dificuldade diz respeito aos mecanismos de controlo necessários, dado que não devem ter efeitos negativos, tais como, paralisar o sistema ou introduzir um controlo judicial de todas as decisões do MP. Por outro lado, o controlo ou reclamação hierárquicos não têm sido sempre adequados, particularmente em casos de decisões tomadas por membros do MP sobre instruções dos seus superiores. Com base na Recomendação Nº R (87) 18 respeitante à simplificação da justiça penal, o Comité recomendou a introdução, quer de controlo jurisdicional - consciente de que este conceito pode variar de país para país - , quer autorizando as partes, tal como é definido anteriormente, a exercerem a acção penal. Tal autorização pode ser dada de um modo geral ou caso a caso. Em alguns países, embora existam remédios tais como os descritos neste ponto da Recomendação, o seu âmbito é limitado.