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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE ARQUITETURA FACULDADE DE BELAS-ARTES Manuel António Joaquim Diogo Dissertação Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas Dissertação orientada pela Prof. Doutora Sofia Leal Rodrigues 2016 A TIPOGRAFIA DE CARACTERES MÓVEIS NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO EDITORIAL CONTEMPORÂNEA

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE ARQUITETURAFACULDADE DE BELAS-ARTES

Manuel António Joaquim Diogo

Dissertação

Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas

Dissertação orientada pela Prof. Doutora Sofia Leal Rodrigues

2016

A TIPOGRAFIA DE CARACTERES MÓVEIS NO CONTEXTODA PRODUÇÃO EDITORIAL CONTEMPORÂNEA

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Resumo

O objecto de estudo desta dissertação é a tipografia de caracteres móveis e a pertinência

da sua utilização na produção editorial contemporânea.

Longe dos tempos em que era a principal opção no que à impressão diz respeito, a técnica

gutenberguiana, comercialmente inviável, foi abandonada. Mas, se no que toca a uma

produção comercial e em grande escala esta é uma verdade inegável, já na pequena edi-

ção, ou edição independente, esta técnica tem vindo a renascer nos últimos anos, ao ser

adoptada – isolada ou em conjugação com outras – por um número crescente de autores

e editores.

Após um enquadramento histórico da técnica, do seu ensino e da sua prática, passar-se-á

a uma abordagem do panorama nacional contemporâneo.

Esta dissertação vai, assim, através de entrevistas e estudos de caso, abordar o que motiva

certas pessoas que cresceram a utilizar softwares gráficos e tipos de letra digitais a enve-

redar por este aparente retrocesso, e o que se tem ganho com ele.

Palavras-chave

Tipografia de Caracteres Móveis / Letterpress • Auto-edição • Revivalismo • Técnicas

analógicas • Tradição

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Abstract

The subject of this thesis is letterpress and the pertinency of its use in contemporary

publishing production.

Far from the days when it was the main option in what printing is concerned, the Guten-

berg technique commercially unviable, was abandoned. But, if regarding to a large-scale

and commercial production this is an undoubted fact, in small or independent edition,

this technique has aroused in recent years, being adopted - alone or combined with other

techniques - by a growing number of authors and publishers.

After a short historical framing of the technique, of its teaching and practice, there will be

an approach to the portuguese contemporary panorama.

This thesis aims to address – through interviews and case studies – what motivates people

who grew up using graphic softwares and digital fonts, in embarking on this apparent

backward and what one have gained from it.

Key Words

Letterpress • Self-publishing • Revival • Analogue techniques • Tradition

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Prof. Doutora Sofia Leal Rodrigues.

Sem os seus preciosos conselhos, disponibilidade e incentivo, esta tese não seria uma

realidade.

Expresso, ainda, o meu agradecimento às pessoas que entrevistei e a todas as outras que,

simpática e generosamente, de forma directa ou indirecta, deram o seu contributo para

este trabalho:

Augusto Monteiro (Grafopel) • Dafi Kühne • Catarina Figueiredo Cardoso • Chris Godek

(M&H Type) • Dinis Botelho (Tipografia Micaelense) • Francisco Cerqueira (Uniarte

Gráfica) • Hélder Prudêncio (Tipografia Prudêncio) • Isabel Santos e Manuel Castro Caldas

(Ar.Co) • Joana Monteiro (Clube dos Tipos) • João Carvalho (J.O. Correia) • João Maçarico

• João Sebastian (Oficina do Cego) • Jorge dos Reis • Júlia Garcia • Leonardo Mira Lopes,

Casimiro Martins, Flávio Romoaldo (Escola Soares dos Reis) • Luís Gomes e Inês Caria

(Atelier Artes & Letras) • Luís Henriques (O Homem do Saco) • Maria João Bom e Paula

Pinto (I.P.T.) • Nils R. B. Young (The Tagalong Press) • Nuno Neves (Publicações

Serrote) • Nuno Vale Cardoso (Ar.Co) • Paulo Ferreira da Costa e Ana Botas (Museu

Nacional de Etnologia) • Richard Hopkins (ATF) • Rúben Dias • Rui Azevedo Ribeiro

(Edições 50kg) • Rui Damasceno (Tipografia Damasceno) • Russell Maret • Sara Moreira

(Cinemateca Portuguesa) • Susana Durão

Um agradecimento especial ao Dr. António Guilhermino Pires, pelas longas conversas e

conhecimentos preciosos que comigo partilhou.

Para a Catarina

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Índice Geral

i Resumo

i Palavras-chave

ii Abstract

ii Key-words

iii Agradecimentos

iv Índice Geral

1. Introdução

2. Problematização

2.1. Objectivos da Investigação

3. Breve abordagem à TCM em Portugal

4. As raízes históricas da TCM contemporânea:

do Private Press Movement à actualidade

4.1. O private press movement

4.2. As private presses depois de Morris

4.3. Os fine press books e as fine presses

4.4. As vanguardas

4.4.1. Um caso particular: H. N. Werkmen

4.4.2. Paulo de Cantos: um caso do modernismo português

5. A TCM contemporânea

5.1. A tipografia de caracteres móveis e a auto-edição

6. Os recursos tipográficos contemporâneos: tipos móveis e outro

material impressor, máquinas de impressão e a sua aquisição

6.1. Os tipos de chumbo

6.2. Os tipos de madeira

6.3. O fotopolímero

6.4. Experiências com novos materiais e texturas

6.5. A impressão 3D

6.6. A procura de material tipográfico para as actuais oficinas

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6.7. As novas oficinas tipográficas e o seu equipamento

7. O ensino da TCM e a sua evolução

7.1. O panorama nacional

7.1.1. A oficina de tipografia do Ar.Co

7.1.2. A Escola Soares dos Reis

7.1.3. O Instituto Politécnico de Tomar

7.2. Referências além-fronteiras

8. A TCM em Portugal e os seus actores

8.1. Robin Fior

8.2. Jorge dos Reis

8.3. Publicações Serrote

8.4. Edições 50 kg

8.5. Oficina do Cego

8.6. Júlia Garcia e a Tipografia Micaelense

8.7. Joana Monteiro (Clube dos Tipos) e a Tipografia Damasceno

8.8. O Homem do Saco

8.9. Artes e Letras Atelier

8.10. Tipografia Dias

9. Uma análise à prática nacional

Conclusão

Bibliografia

Anexos

Entrevista a Luís Gomes e Inês Caria (Artes & Letras Atelier)

Entrevista a Joana Monteiro (Clube dos Tipos)

e Rui Damasceno (Tipografia Damasceno)

Entrevista a João Sebastian (Oficina do Cego)

Entrevista a Júlia Garcia

Entrevista a Luís Henriques (O Homem do Saco)

Entrevista a Rui Azevedo Ribeiro (Edições 50kg)

Entrevista a Rúben Dias (Tipografia Dias)

Entrevista a António Guilhermino Pires

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1. Introdução

À semelhança do que se passa noutros países, também em Portugal, nos últimos anos, se

tem vindo a assistir a um ressurgimento do interesse pela tipografia de caracteres móveis1.

Efectivamente, são já muitos aqueles que, habituados a utilizar as fontes do computador,

sujam agora as mãos de tinta e procuram a expressividade dos caracteres móveis.

Longe dos tempos em que era a técnica hegemónica da impressão comercial, a antiga

técnica gutenberguiana despertou interesse e foi adoptada entre nós por muitos daqueles

que já se dedicavam à auto-edição ou edição independente de pequena tiragem, designers,

artistas, entre outros. Com efeito, as suas características expressivas e a possibilidade

que oferece de acompanhar todas as fases do processo de edição, permitindo manter um

forte controlo criativo sobre o resultado final, fizeram da tipografia de caracteres móveis

uma técnica aliciante para ser usada quer isoladamente quer em conjugação com outras.

Entretanto, nos últimos anos, a proliferação de cursos, encontros, conferências e feiras

dedicadas às publicações autorais contribuiu para a divulgação da técnica junto de um

público que já não a conheceu quando ainda era comercialmente viável.

Assim, foram surgindo associações, ateliers e editoras que conseguiram reunir um razoá-

vel espólio de material tipográfico, mantendo uma produção editorial regular (aqui num

sentido lato: de livros e cartazes a postais e cadernos, entre outros). Alguns, ainda, orga-

nizam regularmente workshops da técnica, contribuindo para a sua divulgação.

Paradoxalmente, à medida que aumenta o número de interessados em possuir este tipo

de equipamento, a oferta torna-se cada vez mais escassa. Efectivamente, ao contrário

do que se passa com outras técnicas de impressão – como a serigrafia ou a gravura – os

utilizadores da tipografia de caracteres móveis deparam-se com o facto de nem os tipos

de letra nem as máquinas de impressão se encontrarem já disponíveis no circuito comer-

1 Nesta dissertação, optou-se pela designação tipografia de caracteres móveis, que passará a ser designada pela sigla TCM. Classicamente, a palavra tipografia referia-se ao ofício ou processo de impressão assim como à oficina onde era praticado. Ainda hoje, certas gráficas existem que, tendo-se modernizado e continuando a dispor de impressão tipográ-fica, referem-se à técnica – na apresentação da sua oferta de serviços – como tipografia, ao lado de outras técnicas que também possuam, como offset ou digital. Actualmente, contudo, a palavra tipografia é usada num sentido mais lato para nos referirmos à letra e à sua forma. Para evitar equívocos, há quem use entre nós a palavra inglesa letterpress, quando se pretende designar a técnica de impressão. A este propósito, refira-se Robin Fior, designer inglês radicado em Portugal no início dos anos 70 do século passado – e de quem se falará mais adiante – que criou o neologismo Tipografismo com o qual “pretendia distinguir a Arte (tipografismo) do Ofício (tipografia), tal como sucede no inglês com as expressões typography e letterpress, que significam, respectivamente, arte tipográfica e impressão” (Bom, 2013, p. 59).

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cial. Assim, o desgaste normal a que tipos e máquinas são sujeitos, sem possibilidade de

substituição, torna uma incógnita a utilização da técnica num longo prazo. De salientar

ainda que, com a compra de material reduzida a um mercado em segunda mão, nomeada-

mente à aquisição de material a velhas tipografias que encerram as suas portas, a reduzida

oferta e a constatação do interesse existente actualmente em material tipográfico, leva a

uma frequente especulação por parte de quem o tem e pretende comercializar, atingindo

normalmente valores bastante elevados.

De entre os vários protagonistas entre nós desta renovação do interesse pela tipografia

de caracteres móveis, escolhemos um grupo que pela sua produção regular, visibilidade

e consistência do trabalho nos podem ajudar a compreender as motivações por detrás da

utilização desta técnica e verificar as diferentes abordagens possíveis à mesma. Estes

dividem-se em dois grupos: de um lado, temos as associações, ateliers e editoras que se

têm dedicado a recuperar material tipográfico e cujos elementos – quase todos sem uma

aprendizagem formal – têm vindo a pô-lo em uso através de uma produção regular de

trabalho usando a técnica; do outro, temos dois casos de designers que trabalham em co-

laboração com duas antigas oficinas tipográficas ainda em funcionamento.

Para recolher o testemunho destes dois grupos, foram efectuadas entrevistas semi-estrutu-

radas, com um guião que permitia alguma flexibilidade, consoante as especificidades de

cada um. Juntamente com a observação directa procurou-se, então, a obtenção de dados

que permitissem uma análise, ainda que empírica, das questões levantadas por esta dis-

sertação.

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2. Problematização

De técnica obsoleta, a TCM móveis passou, nos anos mais recentes, a alvo do interesse

daqueles que em número crescente se dedicam à pequena edição, sejam eles provenientes

de áreas como o design gráfico sejam por exemplo, da ilustração ou da poesia. Coloca-se

assim a questão da pertinência/relevância da utilização da TCM na edição contemporânea.

Qual o motivo, ou motivos, que levam a este crescente interesse na utilização de uma

tecnologia tão vernacular na actualidade?

2.1. Objectivos da investigação

Objectivos gerais:

• Perceber a razão deste retrocesso para uma forma de impressão arcaica depois de tanta

evolução técnica.

Objectivos específicos:

• Procurar saber o que motiva as pessoas:

-As qualidades estéticas que não se obtêm com meios mais evoluídos

-A sensação de domínio pleno do processo de edição

• Avaliar o que trás de único a TCM

• Tentar perceber que ideologia está por detrás deste processo de retorno à tradição

• Avaliar como se tem inovado (ou não) com esta técnica tradicional (o que é que difere

hoje em dia na utilização desta técnica em relação ao que se fazia antigamente)

• Tentar perceber se é uma moda passageira ou se tem condições para se enraizar na prá-

tica da edição e do design

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3. Breve abordagem à tipografia de caracteres móveis em Portugal

A invenção da imprensa2 – atribuída a Gutenberg – ocorreu na Alemanha, em meados

do séc. XV, tendo sido introduzida em Portugal pelos Judeus, três a quatro décadas mais

tarde. A penetração da nova técnica, assim como o seu posterior desenvolvimento entre

nós, ficou a dever-se em grande parte à vinda de estrangeiros, nomeadamente alemães,

franceses e italianos chamados a trabalhar para os reis, clero e para a alta nobreza (Bar-

reto, 1981; Gonçalves, 2012). No entanto, a produção manteve-se durante muito tempo

com características artesanais, até ser criada a Impressão Régia (antecessora da Impren-

sa Nacional) em 1768. Segundo Barreto o antigo impressor tipográfico “era um artista,

quase um intelectual com prestígio social, bem remunerado, que até ao séc. XVIII usou

espada” (1981, p. 261) .

Desde a criação da Impressão Régia até 1821, o número de tipografias em Lisboa passou

apenas de 11 para 12, existindo unicamente mais quatro oficinas no resto do país. Com

a industrialização da produção, aumentou exponencialmente o número de oficinas (em

1863 seriam 43 em Lisboa e 113 no continente e ilhas) e de tipógrafos que passaram à

mera condição de operários. Em 1846 a sua remuneração já era pior que a do carpinteiro

e do pedreiro, por exemplo, sendo sujeito a horários arbitrários e condições de trabalho

penosas (Barreto, 1981). Deu-se então, nesta época, o início da mecanização do trabalho,

primeiro com os velhos prelos de madeira que pouco tinham mudado desde os tempos de

Gutenberg a serem substituídos por outros mais eficientes fabricados em metal. Estes, por

sua vez, são pouco depois substituídos por máquinas com sistemas mais rápidos e efica-

zes, assistindo-se, inclusivamente ao início da utilização da energia a vapor em 1844, pela

oficina da então já denominada Imprensa Nacional. A mecanização do trabalho começou

assim, pela impressão, tornando-se os compositores, numericamente a principal profissão

dentro da classe tipográfica, o que, aliado à sua maior cultura, determinou que a represen-

tação da classe recaísse mais sobre os compositores, com os quais se confundia mesmo o

conceito de tipógrafo3.

2 A palavra imprensa designava originalmente a tipografia, ou seja, a arte de imprimir e o estabelecimento tipográfico (Gonçalves, 2012, p.20). Com o tempo, o termo foi caindo em desuso entre nós, sendo hoje maioritariamente usado para designar o conjunto de publicações periódicas, como os jornais e as revistas, que são parte integrante da comuni-cação social.3 Segundo Durão (2002, p. 299) a designação tipógrafo integra as principais especialidades técnicas (onde a compo-sição e a impressão são as centrais) e, em casos concretos, pode ser apropriada em determinados momentos por outros trabalhadores correlativos.

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Efectivamente, o facto de lidarem no seu trabalho com a palavra escrita, obrigava-os a

um mínimo de alfabetização. O contacto com pessoas das letras, com a difusão de infor-

mação, cultura e ciência originavam hábitos de leitura e consumos culturais comuns entre

os tipógrafos. Estes eram dos operários mais qualificados, detendo durante muito tempo

um certo reconhecimento social. De entre os tipógrafos, os compositores eram, assim,

aqueles que tinham maior visibilidade. Mesmo em meio oficinal, a composição manual

era considerada a especialidade mais nobre, sendo inclusivamente a mais bem paga (Du-

rão, 2002).

Como classe esclarecida, os tipógrafos tomaram consciência da diminuição do seu pres-

tígio social, salário e condições de trabalho em consequência da concorrência capitalis-

ta. Seguindo o exemplo dos seus colegas europeus, nomeadamente ingleses e franceses,

compreenderam a necessidade de se associarem em prol da entreajuda e defesa dos inte-

resses comuns. Nasce então, em 1852, a Associação Tipográfica Lisbonense, a primeira

destas associações, seguindo-se a criação de outras nas principais cidades, desencadeando

numerosas greves e realizando campanhas pela implantação da regulamentação colectiva

do trabalho, de que a classe foi pioneira entre o operariado nacional, a ela se devendo o

despontar da contratação colectiva entre nós. Elementos desta classe tiveram mesmo,

durante muitos anos, uma grande influência no meio operário e no movimento sindical

portugueses (Barreto, 1981). Emblemático é o facto desta ser a única classe autorizada a

comemorar o 1º de Maio, direito adquirido em finais do séc. XIX, permanecendo o feria-

do fixado em contratação colectiva mesmo durante o período de restrição das liberdades

do Estado Novo (Durão, 2002).

Inúmeros conflitos entre tipógrafos e patronato ocorreram no final do séc. XIX, princípio

do séc. XX, com vitórias e derrotas para uns e outros. Uma das mais significativas vitórias

para a classe ocorreu em 1890, aquando de uma greve na Companhia Nacional Editora

– que detinha uma das principais oficinas da época – em que se consegue a primeira nego-

ciação e o primeiro acordo escrito entre uma associação sindical tipográfica (a, entretanto

criada, Liga das Artes Gráficas) e a administração de uma empresa, vendo os tipógrafos,

pela primeira vez, reconhecida a sua organização de classe pela entidade patronal.

Em 1904, após um conflito entre tipógrafos e empresários jornalísticos (com vitória des-

tes últimos), que fez com que durante vários dias não tivessem sido publicados jornais, é

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anunciado na imprensa “com um certo sabor a retaliação” (Barreto, 1981, p.289) a che-

gada da primeira máquina Linotype4, ao nosso país. Pretendiam os industriais demonstrar

como o trabalho dos compositores manuais era dispensável, podendo ser com vantagem

substituído pelo da máquina.

A primeira destas máquinas foi, então, adquirida pela Tipografia Universal, onde era

impresso o Diário de Notícias, em 1904 (Cunha, 1914). A título de curiosidade, refira-se

que no final do séc. XIX já existiam, só na cidade de Londres, cerca de 1000 linotypes

em funcionamento, sendo a grande maioria dos jornais nacionais compostos dessa forma

(MIllington, 2002). O ritmo de introdução destas máquinas entre nós, contudo, foi lento e

o contacto com elas não muito convincente para os industriais. Os tipógrafos, que no iní-

cio as receberam ferozmente, deixariam depois de as recear. Os resultados pouco famosos

dos primeiros tempos desencorajaram os empresários gráficos (Barreto, 1982). Apenas

no final dos anos 30 essas máquinas tiveram implantação significativa nos jornais e nas

casas que se dedicavam à impressão de livros – a chamada obra de livro – passando a ser

o padrão neste tipo de composição até serem destronadas pela impressão offset5 nos anos

70/80. Em 1956, segundo Figueiredo (1958, p.32) existiam 301 máquinas de compor e

354 compositores mecânicos.

O número de tipografias continuou a aumentar. Em 1918, de acordo com Figueiredo

(1958, p.13), existiam em Lisboa 50 tipografias, sendo de 338 em 1956, para um total de

736 no continente e ilhas. Os compositores manuais eram 2598 e os impressores 1761.

Em 1950, contudo, Manuel Pedro (1889-1956) – um dos grandes mestres da tipografia

portuguesa, estudioso e divulgador da arte – já se refere ao declínio da TCM e nostal-

gicamente recorda a profissão no início do séc. XX, quando era um jovem tipógrafo e

estes “iam para as oficinas de sobrecasaca, chapéu de coco e botas bem polidas” e “aos

domingos, em boa e leal camaradagem se juntavam à tarde e à noite no antigo Café Suí-

ço ou no Lisbonense, para ouvirem excelentes concertos musicais” (Pedro, 1950, p.12).

4 Denominação da máquina inventada por Ottmar Mergenthaler (alemão emigrado nos E.U.A.), em 1886, para compor linhas-bloco com o auxílio de matrizes reunidas por meio de um teclado (Porta, 1958, p.237). Compunha e produzia linhas inteiras sendo composta por três funções essenciais: composição, fundição e distribuição. Com um teclado seme-lhante a uma máquina de escrever, cada tecla accionava a matriz da letra correspondente. Completada uma linha, esta era fundida. Posteriormente, cada matriz era arrumada no seu devido lugar, tudo de forma automática.5 Segundo Vilela (1978, p. 19) é o mais moderno processo de impressão litográfica, em que a imagem, gravada numa folha de metal flexivel, geralmente zinco ou alumínio, é transferida para o papel por intermédio de um cilindro de borracha.

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Profeticamente, adianta a possibilidade do offset “juntamente com algum outro novo método

especial e máquinas adequadas” vir a ocupar o lugar da TCM, antevendo os “tristes dias

reservados aos tipógrafos e linotipistas de amanhã”.

A evolução foi, de facto, implacável e o offset, mais rápido, eficiente e ultrapassando limi-

tações da TCM, impôs-se definitivamente sobre a “genial arte do feiticeiro da Mogúncia”

(Pedro, 1950, p. 15). Hoje, as poucas oficinas tipográficas que ainda têm na base da sua

produção a TCM e tentam resistir fazendo facturas, cartões de visita e outros pequenos

trabalhos ditos de fantasia6, vão inevitavelmente desaparecendo juntamente com os seus

velhos proprietários e muito em breve não restará nenhuma. De facto, ao entrarmos numa

destas casas, percebemos que assistimos ao fim de uma era. A TCM tornou-se irrelevante

para a indústria que ajudou a criar e as suas máquinas e utensílios juntam-se às de outros

ofícios do passado que o progresso tecnológico faz desaparecer. Não por acaso, o ofício já

se encontra incorporado nas colecções do Museu Nacional de Etnologia, contando as suas

reservas desde 2003 com o espólio de uma antiga oficina tipográfica lisboeta, onde os seus

utensílios repousam juntamente com os de outros ofícios ultrapassados pelo avanço dos

tempos, catalogados no sub-campo tipografia, no campo das artes e ofícios.

6 Fantasia (usado em Lisboa) ou remendagem (Porto) é a parte da tipografia dedicada à composição de trabalhos que não têm relação directa com a composição e paginação do livro. A remendagem abarca toda a classe de impressos des-tinados ao comércio e industria (Pedro, 1948, p. 42).

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4. As raízes históricas da tipografia de caracteres móveis contemporâneas:

do Private Press Movement à actualidade

4.1. O private press movement

Para encontrarmos as raízes da TCM feita nos nossos dias, é fundamental recuarmos

ao final do século XIX e ao Private Press Movement7. Um nome essencial é o do inglês

William Morris (1834-1896) e a sua Kelmscott Press, à qual dedicou os anos finais da

sua vida. Designer têxtil, poeta, activista socialista, entre outros, Morris foi o mentor do

movimento Arts and Crafts. Na origem do nome do movimento está a Arts and Crafts

Exhibition Society8, fundada em 1888 e a quem se deveu a visibilidade e reconhecimento

público do mesmo (Jury, 2011).

Querendo acabar com a distinção entre artesão e artista, o próprio Morris era o exemplo

do artista convertido em artesão-designer. Multidisciplinar em termos criativos e técnicos,

as suas criações eram manufacturadas em pequenas séries, recuperando antigos processos

de fabrico. Criticava, assim, a produção mecanizada (além de todo o sistema capitalista

que a originou) que considerava responsável pela decadência estética dos artefactos vito-

rianos. Elegeu, então, a produção artesanal do período medieval e a honestidade produti-

va dos seus artesãos como referência. Vista romanticamente como uma época imaculada

e impoluta, Morris advogava o regresso ao modo de produção medievo como o único

meio possível de elevar o ideal artístico. O autor considerava a prática de um ofício uma

tarefa insubstituível, um momento único e íntimo em que o artífice, com a sua habilidade

manual, garantia que o objecto produzido teria a desejada autenticidade que a máquina

corrompera. Só assim se gerava um objecto íntegro, útil e artisticamente belo. E o prazer

de fazer gerava, como consequência directa, o prazer de usar (Rodrigues, 2012).

Sendo um movimento envolvido em toda uma vasta gama de ofícios, a tipografia não foi

excepção. De facto, as artes do livro e todos os ofícios que lhe estão associados (encader-

nação, gravação, caligrafia, impressão, etc.) faziam parte dos interesses de Morris e dos

seus acólitos.

7 Mantemos o nome original inglês, devido à inexistência de uma tradução consensual na nossa língua.8 Segundo Rodrigues (2012, p.109), com esta sociedade “fundada com o intuito de promover o vastíssimo leque de produtos materializados segundo os seus próprios ideais – Morris deixa finalmente de ser um inovador isolado para se transformar no inspirador de um amplo movimento”.

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Envolvido em projectos editoriais desde 1866, não foi, porém, antes de 1888, com 54

anos, e com o incentivo de conquistar um novo ofício que Morris começou a pensar se-

riamente na edição de livros. À semelhança dos outros ofícios, também aqui considerava

que o desenho dos tipos e a impressão tipográfica se encontravam em declínio desde 1500,

agravado com a produção mecânica e em massa de livros do pós-Revolução Industrial.

Morris pretendia voltar aos valores originais do ofício, restabelecendo o espírito pioneiro

dos primeiros 50 anos da imprensa. Ao questionar todos os aspectos dos materiais e dos

processos usados, criava uma situação mais experimental onde o resultado, consequen-

temente, era mais imprevisível (as actividades em que o resultado final tinham um grau

elevado de previsibilidade – objectivo primordial da automação – perdiam o direito de

serem denominadas “ofício”) (Jury, 2011).

O mentor das Arts and Crafts imprimia para si próprio e para o seu próprio prazer, de-

morando o tempo que fosse necessário para realizar os seus livros. Estes, eram bastante

diferentes do que quer que fosse conhecido e praticado na altura em termos de impressão.

Demonstrando um cuidado extremo na sua feitura, eram concebidos, impressos e enca-

dernados segundo os mais elevados padrões, não sendo poupados esforços para encontrar

os materiais certos, incluindo papéis e tintas feitas propositadamente para Morris (o papel

ostentava as suas iniciais em marca de água). O primeiro grande projecto da Kelmscott

press, o livro The Story of the Glittering Pain, impresso em 1891, contava ainda com o

tipo de letra Golden, criada por Morris tendo como base os caracteres dos primeiros 50

anos após a invenção da imprensa, com particular ênfase no trabalho de Nicholas Jenson

(Jury, 2011). Em cinco anos, desenhou para os livros da Kelmscott press dois tipos de

letra e seiscentos e quarenta e quatro iniciais e elementos decorativos, tendo ele próprio

executado algumas gravuras em madeira. A primazia era dada ao papel, aos caracteres,

ao espaço relativo entre letras, palavras e linhas e por fim à posição da mancha na página

(para ele o principal problema no design de livros). Só com estes elementos estabeleci-

dos, passava a equacionar a decoração. A página deveria ser considerada como um todo:

papel, tipo e decoração, todos contribuindo para uma unidade honesta e sensível. Na rea-

lidade, ele ainda deu um passo adiante, considerando, não uma página simples, mas uma

dupla, aberta, como sendo a unidade do design (Ranson, 1929).

Nos sete anos em que a Kelmscott press esteve activa, foram publicados cinquenta e três

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livros, em sessenta e cinco volumes, terminando com Note and Description, em 1898. No

início, contava apenas com um mestre impressor reformado, a que se juntou pouco depois o

seu filho. O equipamento de impressão começou por ser apenas um prelo9 Albion10 [fig. 1],

mas a dimensão de alguns projectos criou a necessidade de mais, tendo chegado aos três.

Outras private presses tiveram um papel importante no movimento. Foi o caso da The

Doves Press de Thomas James Cobden-Sanderson, amigo de Morris, a quem se juntou

9 Designação das primeiras máquinas de impressão, desde as construídas em madeira na época de Gutenberg, às suas sucessoras metálicas do séc. XIX. A palavra tem a sua origem no latim prelu, que significa “pressão” e tratavam-se de máquinas de impressão vertical, em que um plano exerce pressão sobre outro plano (Coelho, 2013). O nome passou depois a ser comummente usado para designar os prelos de provas de cilindro, de que falaremos mais adiante.

10 Talvez o mais difundido prelo do séc. XIX. Os prelos Albion (e outros nele inspirados) tendem a ser associados ao Private Press Movement. Utilizados por William Morris na Kelmscott Press ou Cobden-Sanderson na Doves Press (Moran, 1973) mantêm a sua presença até aos dias de hoje em algumas das private presses com mais destaque, como as inglesas Whittington Press ou a I.M. Imprimit.Durante aproximadamente 350 anos, os prelos de impressão não sofreram grandes alterações. Desenvolvidos no séc. XV pelos primeiros impressores, eram construídos em madeira e operados por um pesado fuso de ferro. Foram usados até ao início do séc. XIX apenas com ligeiras alterações, quando o advento da Revolução industrial levou ao apareci-mento de prelos em ferro mais eficientes (Harris & Sisson, 1978). O primeiro prelo inteiramente em ferro, surgiu em Inglaterra (cerca de 1800) logo no início do séc. XIX: tratava-se do modelo Stanhope, criado por Earl Stanhope. As linhas básicas eram as dos prelos de madeira, contudo, foram introduzidas alterações. Mais fáceis de usar, com uma melhor qualidade de impressão e uma área maior, este prelo foi copiado e várias versões foram feitas em diferentes países (Moran, 1973). Também em Portugal, a Impressão Régia – antecessora da Imprensa Nacional – teve doze destes prelos construídos a partir de dois originais ingleses oriundos do quartel general do exército britânico. Acabados de construir em 1815, segundo José Vitorino Ribeiro (1912, p.38) “esses prelos funcionaram regularmente por muitos anos e sem grande desvantagem ao lado dos prelos de origem inglesa”. Num período de grandes modificações tecnológicas, novas alterações foram sendo feitas e os Stanhope foram suplantados algum tempo depois. Cerca de 1813 surgem os Columbian, nos E.U.A.. Sem grande sucesso no país de origem, o seu criador, George Clymer, muda-se para Inglaterra, onde o prelo obtém um grande sucesso e extravasa fronteiras. Conhecido pelos avanços técnicos (que fez com que a força necessária para imprimir fosse surpreendentemente reduzida) e pela profusão de decoração simbólica que ostenta (com destaque para a águia americana de asas abertas no seu topo) foi o primeiro a ser produzido em grande número e por uma variedade de empresas durante cerca de 100 anos, sendo também normalmente associado às private presses. Construído em diferentes tamanhos, várias alterações foram sendo acrescentadas já muito depois da morte do seu cria-dor, datando a última de 1906. Seguindo estes dois prelos pioneiros, vários modelos de prelos de ferro foram surgindo em Inglaterra e nos E.U.A., como o Washington ou o Eagle. Os fabricantes da Europa Continental, tendiam a copiar os prelos destes dois países, sendo um dos mais activos o alemão Christian Dingler, construtor do prelo usado no séc. XX pelo holandês H. N. Werkmen. Os prelos Albion surgem em 1820, em Inglaterra, sendo o seu nome uma resposta óbvia ao americano Columbian. Criados pelo inglês Richard Whittaker Cope, o prelo foi sofrendo alterações mesmo após a morte deste (1828?), altura em que se viu firmemente lançado na sua carreira de sucesso. Como no caso dos Columbian, também os prelos Albion, ao se tornarem uma referência, tiveram muitos fabricantes a construir a sua própria versão, em vários tamanhos, tanto em Inglaterra como no exterior (Moran, 1973). Assim se passou também em Portugal, com a Fundição de Massarelos, no Porto, a fabricar a sua versão [Fig. 2]. Como relatava o jornal O commércio de 11 de Janeiro de 1855: “Ocupar-nos-emos hoje da Fundição de Massarelos, pois que a isso nos desperta a satisfação que sentimos diante do prelo que a empresa deste Jornal encomendara naquela fundição e que sairá tão primorosamente acabado, que o vemos rivalizar com os outros que a Empresa mandou vir de Inglaterra, por não saber ainda que tinha de casa obra igual e por menos dinheiro”.Com a rápida evolução tecnológica que se deu no séc. XIX, se os prelos de ferro depressa substituíram os de madeira, ainda estes mal tinham tomado a primazia e já estavam a ser suplantados por outro tipo de máquinas mais rápidas e eficientes (Jury, 2011). De facto, apesar do sucesso e longevidade de prelos como os Columbian ou os Albion (este último foi fabricado até 1940), no final do séc. XIX já estavam em grande parte relegados para o papel de prelos de provas e assim começaram a ser apresentados nos catálogos das empresas que os comercializavam. Actualmente, ainda é possível encontrar muitos prelos destes em funcionamento em estabelecimentos de ensino e nas já referidas private presses (Moran, 1973).

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Emery Walker, antigo companheiro do fundador das Arts and Crafts, com um papel im-

portante no processo que levou à criação da Kelmscott press. Contando também com um

tipo de letra próprio, a Doves type, o primeiro livro foi editado em 1901 e até ao seu encer-

ramento, em 1916, foram publicados cerca de cinquenta, de onde se destaca a Bíblia em

cinco volumes, a Doves Bible. Ao contrario da Kelmscott de Morris, os livros da Doves

Press eram caracterizados pela completa ausência de decoração e segundo Ranson (1929,

p. 56) “aproximavam-se perigosamente da perfeição absoluta em termos de composição,

impressão e paginação”.

Com a Kelmscott Press como inspiração, o Private Press Movement floresceu e depressa

alastrou a outros países. O destaque na Europa vai particularmente para a Alemanha, mas

também a Holanda e a Bélgica, por exemplo, foram locais de destaque (Jury, 2011). Nos

E.U.A., Morris rapidamente ganhou admiradores e uma particular aceitação, tendo tido

uma grande influência nas private presses norte-americanas nos primeiros anos do movi-

mento neste país (algumas chegaram mesmo a reimprimir trabalhos de Morris) (Vilain

& Farington, 2016).

[Fig. 1] Prelo Albion da Tipografia Damasceno, Coimbra

[Fig. 2] Exemplar português fabricado na Fundição de Massarelos, 1855

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Com a passagem para o século XX e o gradual declínio do movimento Arts and Crafts,

o interesse pelo fine printing e pelo private press movement não desapareceu. Ao invés,

muitos jovens impressores que tinham sido influenciados por William Morris e T.J. Co-

bden-Sanderson, já não se satisfazendo com o replicar do trabalho que inicialmente os

tinha inspirado, procuravam agora a sua própria linguagem. O número de private presses

foi, assim, subindo ao longo das décadas que se seguiram (Vilain & Farrington, 2016).

4.2. As private presses depois de Morris

As private presses - literalmente, oficinas tipográficas privadas - surgiram, então, em

Inglaterra no final do séc. XIX, atravessaram as suas fronteiras e chegaram aos nossos

dias, encontrando, no interesse que voltou a despertar a arte tipográfica, um terreno fértil

para florescerem. A sua definição não é consensual, não sendo certamente hoje a mesma

da época de Morris, mas a ideia essencial, a do proprietário imprimir para si próprio, pelo

seu próprio prazer e sem um objectivo comercial (o que imprime pode ou não ser vendi-

do), mantém-se. Para Paul Maravelas (2005) o termo é usado para descrever as oficinas

tipográficas que imprimem trabalhos dos proprietários ou de autores por eles estimados.

Simon Lawrence, criador, em 1980, da Fleece Press11, uma destacada private press ingle-

sa da actualidade, afirma que a definição deverá contemplar duas vertentes: por um lado,

deverá ter um editor ou um impressor que tem controlo absoluto sobre todos os aspectos

da produção dos livros e, em segundo lugar, esses livros deverão conter algo da persona-

lidade do seu criador. Will Ransom, no seu clássico de 1929, Private Presses and their

books (p.22), afirma que no fundo é uma questão de espírito aquilo que distingue uma

private press, não podendo estas ser definidas, mas apenas reconhecidas por inferência.

O autor, adianta, então, uma definição abrangente: “uma private press pode ser definida

como a expressão tipográfica de um ideal pessoal, concebida em liberdade e mantida de

forma independente”. Tratam-se, assim, de valores facilmente reconhecíveis por aqueles

de entre nós que se dedicam à TCM, cabendo claramente nestas definições projectos na-

cionais como a portuense Edições 50kg.

Assim, atravessando épocas de maior ou menor destaque, o movimento continuou até

11 http://www.fleecepress.com/ acedido a 12 Novembro de 2016

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hoje, podendo-se afirmar, desta forma, que independentemente dos avanços tecnológicos

a que se assistia na impressão comercial, a TCM era a escolha, nunca tendo deixado de

existir nestas pequenas oficinas tipográficas particulares.

Para Jury (2011), os anos 70 do séc. XX assistiram a um renascimento das private pres-

ses. Como justificação, aponta o facto de, segundo ele, esta ter sido a melhor altura para

comprar equipamento tipográfico12. Com efeito, muitas gráficas desfaziam-se, então, des-

te material a preços bastante acessíveis, de forma a ganharem espaço para instalarem

moderno equipamento de impressão. Assim, este material ficou acessível para aqueles

que, não o procurando para fins comerciais, o faziam com objectivos literários, artísticos

ou artesanais. Algumas destas private presses chegaram mesmo a adquirir máquinas Mo-

notype13, passando a ter a possibilidade de fundir os próprios caracteres usados nas suas

edições [fig. 3]. Uma das referências de entre as private presses actuais, a inglesa Whit-

tington Press14, data dessa década.

12 Em Portugal, a melhor altura terá sido pelo menos vinte anos mais tarde.13 Máquina fundidora, inventada pelo norte-americano Tolbert Lanston em 1896, e que funde letras ou tipos separa-dos, formando linhas na medida predeterminada. Compreende dois aparelhos distintos: o teclado e a fundidora (Porta, 1958, p.279)14 Criada em 1971 pelo casal John e Rosalind Randle na localidade inglesa com o mesmo nome, o primeiro livro foi impresso ao longo de um ano durante as férias e fins-de-semana, num prelo Columbian de 1848. O bom acolhimento da primeira edição, encorajou-os a fazer dessa uma actividade a tempo inteiro. Além da actividade editorial regular que já

[Fig. 3] Edição da Hill & Dale Private Pressand Typefoundry

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Nos E.U.A., uma das máquinas tipográficas que foram sendo descartadas pela chegada

dos novos processos de impressão e que teve um papel importante no renascimento das

private presses (assim como da impressão tipográfica em geral), foram os prelos Vander-

cook [fig. 4] 15. Nesta altura, as suas potencialidades para impressão de fine press books16

já eram conhecidas da comunidade impressora. Com efeito, Claire Van Vliet (n. 1933) da

Janus Press e Walter Hamady (n. 1940) da The Perishable Press Limited17 tinham sido

pioneiros na sua utilização, ainda numa altura em que a TCM era viável comercialmente.

Neste país, o domínio do mercado por parte dos prelos criados em 1909 por Robert Van-

dercook era de tal ordem que o seu nome tornou-se num termo genérico para designar

conta com mais de 250 títulos, imprimem ainda alguns posters e a publicação anual Matrix, referência para impressores e bibliófilos. Esta private press conta ainda com máquinas Monotype o que permitem produzir os próprios caracteres móveis que utilizam, possuindo uma das maiores colecções de matrizes existentes, incluindo as provenientes da Oxford University Press, quando esta encerrou o seu departamento de impressão em 1986.15 Fabricante norte-americano conhecida pelos seus prelos de provas de alta precisão. Fáceis de utilizar, permitem um registo perfeito da folha e uma impressão de alta qualidade, ideal para pequenas tiragens. Em 67 anos de produção, fo-ram lançados 90 modelos diferentes (Mitchell, 2012). Provavelmente devido ao seu elevado preço, estes e outros prelos semelhantes tiveram muito pouca implantação entre nós.16 Os livros produzidos pelas private presses são normalmente conhecidos por fine press books pela importância que costuma ser atribuída à qualidade da impressão. Sobre a diferença entre private presses e fine presses falaremos mais adiante. Pela inexistência de uma expressão consensual na nossa língua, iremos manter a terminologia em língua ingle-sa, ela própria nem sempre coerente. Manuel Pedro em A arte no livro (1953) utiliza a expressão livro artístico, que, no entanto, se pode tornar equivoca. Quanto ao tipo de impressão que produz estes livros, é normalmente designada por fine printing (é possível encontrar catálogos portugueses de tipos, do início do séc. XX que se referem à venda de caracteres para impressões artísticas). Em relação aos impressores deste tipo de edições, é comum encontrá-los referi-dos em língua inglesa como fine press printers ou simplesmente fine printers. No entanto, também é possível encontrar referência a este último, em literatura especializada, como sendo um termo alternativo a letterpress printers (este, facil-mente traduzível para português como impressores tipográficos) (Bright & Rathermel, 2012).17 Tratam-se de dois dos nomes mais importantes ligados às private presses pertencentes à geração que veio a seguir a Harry Duncan (1916-1997) (Bright & Rathermel, 2012). Este último é considerado o pai do private press movement do pós-2ª Guerra Mundial, época em que se assistiu a um florescimento de inúmeras destas pequenas oficinas tipográficas privadas.

[Fig. 4] Prelo Vandercook(http://findartletterpress.blogspot.pt)

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qualquer prelo de provas deste tipo (Kristensen, 2009)18. Com a TCM deposta, as máqui-

nas Vandercook deixaram de ser comercialmente viáveis. Se muitas foram para a sucata,

outras foram vendidas. Hoje, centenas de impressores tipográficos dos E.U.A. usam as

Vandercooks nas suas edições [fig. 5], seja em ateliers próprios, seja em centros de artes

ou universidades (Gordon, 2009).

Podemos constatar, assim, que as private presses, nunca tendo deixado de existir, en-

contraram, com o actual ressurgimento do interesse pela TCM, mais uma ocasião para

prosperarem, utilizando a técnica tipográfica sozinha ou conjugada com outras técnicas,

que podem ir até ao moderno desenho digital. Como afirmam Vilain & Farrington (2016,

p.90), enquanto durante o movimento Arts & Crafts do final do séc. XIX as private presses

18 Omnipresentes nas empresas gráficas norte-americanas quando a impressão em chumbo era o padrão, ainda desem-penharam um papel na transição para o offset. Com efeito, durante algum tempo, os textos continuaram a ser compostos em chumbo de forma a ser feita uma prova que era fotografada para posteriormente ser gravada a chapa de offset. Este processo foi passageiro, sendo depressa ultrapassado pela fotocomposição.

[Fig. 5] Against Fiction de Johanna Drucker, impresso num prelo Vandercook

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constituíram uma reacção à industrialização e despersonalização do processo de impres-

são com o consequente declínio na criatividade e qualidade, a geração actual de impres-

sores abraça as novas tecnologias assim como as antigas, colocando ambas ao serviço da

beleza do livro.

4.3. Os fine press books e as fine presses

A importância de Morris como editor e o seu papel no renascimento internacional da im-

pressão tipográfica não residiu no seu estilo, mas no seu exemplo, ao repensar o processo

com base nas melhores práticas, criando as raízes para uma forma totalmente nova de ver

a impressão (Jury, 2011). Como afirmou Manuel Pedro (1953, p.7): “William Morris e a

sua admirável plêiade de colaboradores não tardaram a provocar uma revolução artística

no livro (...) não deixando logo de ser imitada noutros países”.

O salto qualitativo que se deu na arte tipográfica no final do séc. XIX deveu-se em grande

parte ao private press movement e a pessoas que, como Morris, vinham de fora do ofício.

Foi o chamado renascimento da fine printing19.

Apesar da já referida associação que ainda hoje existe entre este tipo de impressão e as

private presses, o renascimento não ficou confinado a estas. Com efeito, impressores hou-

ve, que aplicaram os ideais do movimento ao trabalho comercial com composição me-

cânica e máquinas automáticas (Jury, 2011). Isto foi particularmente notório nos E.U.A.,

que deram um importante contributo para este renascimento a partir de estabelecimentos

que não podem ser considerados de maneira alguma private presses. A intenção, em mui-

tos casos, era manter a tradição destas, ocupando esses livros um meio caminho entre

o prazer estético e a necessidade comercial (Random, 1929). Entre nós, o já referido

Manuel Pedro (1953, p. 8) refere quais são as preocupações “do arquitecto do bom livro

moderno” e alude ao objectivo comercial do livro:

“Procurar os papeis mais preciosos e adequados; os formatos e os caracteres convenientes a determinados estilos e ao espírito da obra a publicar; estudar as dimensões de largura e altura do texto (mancha); o entrelinhado; as proporções das margens da cabeça, do pé, do medianiz e exterior (lados); eleger a posição e lugar conveniente das gravuras, se as tiver, e procurar

19 Manuel Pedro (1953, p.8) utiliza a expressão renascimento artístico do livro.

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uma estreita colaboração com os ilustradores. (...) Desprovido destes essenciais requisitos, o livro, evidentemente, deixa de ser estimado e não entusiasma o leitor a adquiri-lo, nem que seja de autores mundialmente consagrados.”

Com o declínio da utilização comercial da TCM, em muitos países esta passou a estar

associada aos fine press books. O mesmo não se passou em Portugal, onde a técnica ape-

nas subsistiu em pequenas oficinas que se dedicavam aos chamados trabalhos de fantasia.

Como já referia Susana Durão, em 2000 (p.6):

“Hoje quem desejar imprimir uma obra complexa, por exemplo um livro, com um bom tipó-grafo já não terá facilidade. Em Portugal, essa via possível de utilização das técnicas tipográ-ficas na produção de livros de luxo de escassa tiragem não singrou (veja-se o desmantelamen-to das oficinas tipográficas da Imprensa Nacional, outrora o mais importante centro formador de artes gráficas do país20) – ao contrário do que é prática corrente noutros países da Europa Central, berços da própria tipografia (Alemanha, Holanda, Inglaterra, França, etc.) onde a composição e impressão manuais se associaram a uma fabricação de prestígio”.

Um exemplo paradigmático de fine press, é o da norte-americana Arion Press, fundada

em 1974 na cidade de São Francisco por Andrew Hoyem. Em 1989 adquiriu a M&H

Type, a maior e mais antiga das typefoundries americanas ainda em funcionamento, o

que, a juntar à vastíssima colecção de tipos móveis que já possuíam, lhes permitiu passar

a fundir caracteres para utilizar nos seus livros. Estes, – editados numa média de três por

ano – contam com gravuras originais de renomados artistas plásticos contemporâneos,

como Jasper Johns, Raymond Pettibon, ou, mais recentemente, do sul-africano William

Kentridge [fig. 6]. São edições limitadas e assinadas, atingindo normalmente valores na

ordem dos milhares de dólares. Como afirma o seu proprietário21, tratam-se de livros

dispendiosos de fazer e caros de adquirir por serem feitos maioritariamente à mão, com

caracteres fundidos por eles e impressos e encadernados nas suas próprias oficinas.

As fine presses, contudo, não se resumem a esse segmento. Sob o seu nome é possível

encontrar uma vasta gama de projectos que vão do mais luxuoso e clássico, como a Arion

Press a projectos com um pendor mais contemporâneo e experimental.

20 De salientar o caso da Imprimerie Nationale, em França, que conta com um departamento denominado L’Atelier du Livre d’Art. Aqui, podem ser produzidas edições limitadas de livros de uma qualidade irrepreensível. O departamento possui capacidades que vão da gravação de punções à fundição de tipo, composição e impressão tipográfica, além da gravura e de outros ofícios relacionados com as artes do livro.21 http://www.metmuseum.org/metmedia/video/lectures/william-kentridge-in-conversation-with-andrew-hoyem (Acedido a 13 Novembro, 2016)

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A linha que separa as private presses das fine presses é fluida, encontrando-se mesmo li-

teratura em que as duas definições se confundem. Segundo David Jury (2011) as privates

presses normalmente dão grande ênfase à qualidade da impressão, afirmando por isso que

são também referidas como fine presses. Segundo David M. MacMillan22, uma fine press

coloca a ênfase na qualidade do seu trabalho em relação ao puro ganho comercial. Porém,

afirma com humor, tem de pagar as contas com as vendas do seu trabalho. Na perspectiva

de Vilain & Farington (2016) muitas das private presses com um trabalho mais experi-

mental ou com uma visão estética ou artística, acabam por cair na designação de fine pres-

ses. Para Paul Maravelas (2005), muita da TCM que se faz hoje em dia, nomeadamente

falando da impressão de livros, é considerada fine printing, sendo os seus impressores,

os fine printers, verdadeiramente artistas, à semelhança dos gravadores e dos litógrafos.

Também W. A. Dwiggins (1880-1956)23 no seu ensaio de 1922 que se tornou referencia

na área, New kind of printing calls for new design, refere (p.15) a “impressão como arte”

(printing as a fine art, no original) como uma das formas de impressão existentes, refe-

22 http://www.circuitousroot.com/artifice/letters/press/noncomptype/fine-and-amateur/index.html (acedido a 16 No-vembro, 2016)23 Importante designer de livros e autor de vários tipos de letra. Segundo Jury (2011) foi um dos criadores que encon-trou formas de levar para o trabalho comercial os ideais do ofício.

[Fig. 6] The Lulu plays da Arion Press, com gravuras de William Kentridge

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rindo os homens de refinado gosto artístico que existem por toda a indústria e que vêem

a impressão como uma arte. E se o trabalho que produzem é arte, é porque eles assim o

desejam, porque são artistas, afirma. Como exemplo, adianta o nome do seu contemporâ-

neo Bruce Rogers (1870-1957)24 e do seu trabalho para o Grolier Club25.

Uma categoria de livros com pontos de contacto com os fine press books são os livros de

artista. De facto, como afirma Farrington (Vilain & Farington, 2016), estas nem sempre

são categorias distintas, existindo livros de artista que se enquadram na categoria de fine

press books. Não existindo uma definição consensual, para Maravelas (2005), no entanto,

todos parecem concordar que um livro de artista pretende ser um trabalho artístico. Para

Johanna Drucker (2004), não há limites para aquilo que os livros de artista podem ser,

nem regras para a sua construção (e, felizmente, nem fim à vista para a sua produção). Na

sua perspectiva, o livro de artista era a forma de arte por excelência do século XX, estan-

do obviamente destinado a continuar a sê-lo neste século. Muitos são os autores que se

dedicam actualmente a este género (normalmente designados por book artists) sendo que

de entre estes, muitos recorrem à impressão com caracteres móveis nos seus trabalhos.

Russel Maret (2016) advoga que nos últimos anos surgiu mesmo uma nova classificação:

o fine press artist book. Esta, resultaria das duas tendências que se foram desenvolven-

do ao longo do século XX: de um lado, livros que tinham na sua principal motivação a

tipografia, sendo cromaticamente mais austeros, enquanto outros, da autoria de artistas

visuais, eram cromaticamente mais ricos, fazendo uso de técnicas de impressão como a

gravura. Com um percurso frequentemente isolado e por vezes mesmo em antagonismo,

acabaram por dar origem às classificações imprecisas de fine press books de um lado e de

livro de artista por outro. Nos últimos anos a fronteira entre essas duas classificações ter-

se-ia esbatido, dando então origem à nova classificação de fine press artist book.

Nos E.U.A., país de referência no que ao fine printing diz respeito, tem-se assistido nos

24 Designer de livros e de tipos de letra norte-americano, dos mais influentes do séc. XX. O seu interesse em produzir fine press books foi inicialmente influenciado por William Morris e pela Kelmscott Press. Segundo Ranson (1929), apesar de nunca ter tido uma private press inteiramente dele – não era, sequer, impressor – preservou, na maioria dos seus trabalhos, todos os valores importantes da tradição. Foi num dos seus períodos em Inglaterra que manteve, durante alguns meses, com o já referido Emery Walker – antigo companheiro de Morris e mais tarde de T.J. Cobden-Sanderson – uma private press: The Mall Press.25 Clube privado nova-iorquino de bibliófilos, dedicado às artes do livro. Foi fundado em 1884 e actualmente é o mais antigo do género existente nos E.U.A..

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últimos anos a uma grande divulgação do movimento por parte de museus, centros de arte

e bibliotecas. De salientar ainda a existência, em várias cidades, de centros dedicados às

artes do livro, como o The Center for Book Arts de Nova Iorque, que se dedica a “promo-

ver e explorar interpretações estéticas contemporâneas do livro como objecto artístico ao

mesmo tempo que preserva as práticas tradicionais da arte do livro” (Bright & Rathermel,

2012).

4.4. As vanguardas

Durante os anos vinte do século passado, ainda o private press movement estava no seu

auge e clamava por um retorno à ortodoxia, para outros, a TCM desempenhava um papel

essencial na revolta contra o que era ortodoxo. Uma série de movimentos artísticos – as

vanguardas – que ideologicamente se sobrepunham, estiveram envolvidos, todos com o

intuito de afrontar o conforto das normas sociais e culturais estabelecidas (Jury, 2011).

Desta forma, as páginas ornamentadas de Morris e do movimento arts and crafts, com os

seus padrões florais entrelaçados e excessos de sensualidade, passaram a sintetizar uma

estética retrógrada e antiquada contra a qual estes artistas se rebelaram (Drucker, 2004).

Mais uma vez, este incitamento ao uso da TCM de forma inovadora, chega de fora da in-

dústria impressora. Sendo o elo comum entre futuristas, construtivistas e dadaístas, entre

outros, a rejeição de resultados racionais, não é surpreendente que a produção destes artis-

tas tivesse sido diferente do que tinha sido feito até ali em matéria de TCM (Jury, 2011).

No início do século XX, os livros tornaram-se, então, numa parte essencial de uma visão

artística experimental, e veículo único para a sua realização (Drucker, 2004).

Digno de menção, são trabalhos como o Depero Futurista (1927), livro publicado em Mi-

lão pelo futurista italiano Fortunato Depero (1892-1960), que mostrava as várias facetas

da sua actividade como futurista. Estas, passavam pela pintura, escultura ou arquitectura,

mas especialmente pela tipografia, com grande parte das páginas do livro apresentando

complexas composições tipográficas [fig. 7]. Explorando os princípios tipográficos ex-

pressos nos manifestos futuristas, fazia uso de muitos tipos de letra diferentes na mesma

página sendo a ênfase dada pelas variações de tamanho (Camillini, 2015). Estes mani-

festos, de Filippo Marinetti (1876-1944), exortavam ao abandono das gramáticas tradi-

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cionais da tipografia, sintaxe, pontuação e formato e a fazer uso do potencial gráfico das

palavras na página para criar uma página tipográfica visualmente intensa. Criticando a

estética do movimento arts and crafts, Marinetti queria fluidez, movimento, variedade e

liberdade para usar quantos tipos de letra e de cores fossem necessários para se adequar

ao dinamismo dos textos das suas palavras em liberdade (Drucker, 2004).

A utilização dos caracteres era feita, então, de forma pouco ortodoxa, sendo a própria

identidade das letras explorada de forma a dar-lhes novos sentidos (Jury, 2011). Desta

forma, para combater o estatuto intocável da arte, a utilização do mais comum dos meios

– a TCM – como arte, parecia inteiramente apropriado aos artistas vanguardistas (Jury,

2011, p. 64).

4.4.1. Um caso particular: H.N. Werkmen

Figura controversa entre os seus contemporâneos vanguardistas, H.N. Werkman (1882-

1945) merece-nos um particular destaque pelo seu processo de trabalho e influência que

exerceu. Trabalhando essencialmente de forma solitária na sua oficina tipográfica, o im-

pressor holandês nunca alinhou em nenhum movimento em particular.

[Fig. 7] Composição tipográficado livro Depero Futurista

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Nome fundamental da técnica, começou a trabalhar como aprendiz de tipografia numa

editora, escrevendo também ocasionalmente para o jornal da mesma. Com interesse pela

fotografia, foi, ainda, fotógrafo amador (Purvis, 2004). Mais tarde, trabalhou como jorna-

lista, um trabalho mal pago mas que lhe fomentou a paixão pela impressão, acabando por

o levar a adquirir, em 1908, uma pequena oficina comercial de tipografia.

Trabalhando como impressor comercial, foi já depois dos 40 anos que Werkman começou

a utilizar a impressão como uma ferramenta artística. Salienta-se aqui a publicação The

Next Call, iniciada em 1923 e por si editada e impressa, que lhe proporcionava uma saída

para as suas experiências tipográficas e investidas poéticas [fig. 8]. Foram publicados

nove números, entre essa data e 1926 (Spencer, 2004). Tratando os tipos como elementos

artísticos por direito próprio, independentemente da sua função comunicativa, Werkman

começou a combinar a impressão tipográfica tradicional com uma técnica em que o papel

era colocado na cama do prelo com a face a imprimir virada para cima. Isto permitia que

os tipos e outros elementos gráficos previamente tintados pudessem ser manipulados

manualmente. A variação das impressões dada pelas diferentes tintagens e espacejamento

entre letras, fazia com que não existissem dois números iguais. O facto do seu trabalho ser

[Fig. 8] The next call, de H.N. Werkmen

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invariavelmente originado durante o processo de impressão (combinando, assim, numa

única etapa, o processo criativo e a impressão), distinguia-o de construtivistas como El

Lisitsky ou Piet Zwart, que trabalhavam a partir de ideias previamente definidas. Para

ele, fazia tudo parte do mesmo acto estético. Como o próprio afirmava em 1941 (Purvis,

2004, p.14): “Do you know the difference between me and others? They are designers

who do not work at a press and instead leave the production to others, while I produce

designs during the course of printing”. Para ele, o tema a imprimir ia-se afirmando por

si, nunca era procurado. Também na mesma altura iniciou a produção de impressões a

que chamava druksels (nome criado a partir do infinitivo holandês druken, imprimir)

para onde canalizava muita da sua energia criativa. Esta série de mais de 600 impressões

que duraram até ao início dos anos 30 do século passado, eram criadas essencialmente

a partir de material tipográfico. Manipulando a pressão utilizada no acto de imprimir, a

tintagem e a densidade, Werkmen obtinha uma elaborada combinação de tons e camadas.

Descrevendo o seu método (Purvis, 2004, p.19): “I use an old hand press for my prints;

so the impression is done vertically, and the impression can be regulated instinctively.

Sometimes you have to press hard, sometimes very lightly, sometimes one half of the

block is heavily inked, the other half sparsely. Also, by printing the first layer of ink on an-

other sheet of paper you then get a paler shade, which is used for the definitive version...

Sometimes a single print goes under the press fifty times.” Desta forma, a sua produção

era necessariamente pequena e as edições dos seus trabalhos raramente ultrapassavam as

40 cópias (Spencer, 2004).

Cativado pelo processo de impressão em si, Werkmen dava nova vida aos tipos usados

diariamente na sua oficina tipográfica comercial – apesar do desejo em contrário, a im-

pressão comercial nunca deixou de ser o seu sustento – , colocando-os a desempenhar

novas funções. Interessado na textura dos papéis, explorava ainda as texturas dos tipos

de madeira, fazendo deliberadamente sobressair as características do grão da mesma e

apreciando os arranhões e outros defeitos que os velhos tipos apresentavam, pela indivi-

dualidade que conferiam a cada um (Spencer, 2004). Werkmen via também com agrado

os acidentes e os imprevistos que aconteciam durante o processo de impressão.

Entre outras técnicas que desenvolveu, imprimia, ainda, com as costas dos tipos de ma-

deira ou utilizando o material branco. Tratava-se, no fundo, de um modo de actuação em

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que se revêem muitos dos impressores contemporâneos. Quebrando todas as normas do

ofício, o próprio Werkman parodiava, afirmando ter por isso a vida ameaçada pelos tipó-

grafos ultrajados (Purvis, 2004).

O último grande projecto em que esteve envolvido foi De Blauwe Schuit (A Barca Azul),

uma publicação que – ao contrario da The Next Call, em grande parte criada com material

tipográfico – tinha o seu enfoque na ilustração. Iniciada após a invasão da Holanda pela

Alemanha Nazi, a sua abordagem a temas judaicos levou, em 1945, à prisão de Werkmen

e posterior execução sem julgamento, apenas três dias antes da libertação da Holanda.

Nesse mesmo ano, foi instituído em Amesterdão um prémio com o seu nome e o museu

Stedelijk, na mesma cidade, apresentava uma retrospectiva do seu trabalho. Este foi, as-

sim, sendo divulgado, dentro e fora das fronteiras holandesas, influenciando gerações que

se seguiram. Já na década seguinte, por exemplo, a publicação do seu trabalho na influen-

te revista inglesa Typographica vai inspirar o jovem designer Robin Fior, que na altura

frequentava, em Londres, aulas de tipografia experimental numa oficina tipográfica, de

que se falará mais à frente (Bom, 2013).

4.6. Paulo de Cantos: um caso do modernismo português

Apesar da pouca relevância que o seu trabalho teve na época, pareceu-nos pertinente uma

breve abordagem à obra de Paulo de Cantos (1892-1979), um autor que vindo de fora do

ofício, usou a tipografia de uma forma particularmente interessante e original, estando

finalmente a ser recuperado e sendo já inspiração para alguns dos novos tipógrafos.

Figura singular, Cantos acumulou ao longo da sua vida vários diplomas - Ciências na

Universidade de Coimbra, Letras em Lisboa, Belas-Artes no Porto, contando no seu per-

curso até um curso em vitivinicultura (Gomes, 2013). Foi professor no Liceu Pedro Nu-

nes em Lisboa e Reitor no Liceu Eça de Queiroz, na Póvoa de Varzim. Foi ainda editor,

gráfico, filantropo ou filólogo, ocupações que contribuíram para a aura de excentricidade

que rodeia a sua figura.

Muitos foram os livros que editou ao longo da sua vida, num fervor editorial que se esten-

deu ao longo de 70 anos. Tratam-se de livros difíceis de classificar, manuais didácticos e

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opúsculos de pequena tiragem e sobre os mais diversos temas. Neles, evidenciava-se um

“entusiasmo pela tipografia, talvez o aspecto formal mais cativante dos seus livros” (Go-

mes, 2013, p.21), através da forma original como utilizou o material tipográfico (tipos,

vinhetas, filetes, etc.) de maneira a dar forma a esquemas, desenhos estilizados e mapas

antropomórficos [fig. 9] (Martins, 2013).

Autor, editor, ilustrador e distribuidor dos seus próprios livros, apenas não era o com-

positor dos mesmos. Consta, no entanto, que acompanhava de perto a sua composição,

passando muito tempo nas oficinas tipográficas e sendo conhecido no meio por ser meti-

culoso e impaciente (Gomes, 2013). Tratava-se de uma obra feita sem cliente nem objec-

tivo claro (Moura, 2013) próxima do que agora se poderia chamar auto-edição, ou edição

independente.

Para Gomes (2013), o seu trabalho é fruto do modernismo europeu, dos movimentos do

modernismo latino-ibérico, ou ainda do surrealismo tipográfico de António Pedro ao qual

[Fig. 9] Imagem do livroCentro de Profilaxia da velhice,de Paulo de Cantos

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a sua obra se aproxima. O seu método de composição, labiríntico, supra-sintético, torna-

va-o ainda, para Estrela (2013), um antepassado directo da poesia experimental e visual

portuguesa.

Segundo Fior (2005), em meados dos anos 20, Paulo de Cantos começou a utilizar o ma-

terial tipográfico para a criação de imagens e em 1936 começou a utilizar a fórmula de

António Pedro26 [fig. 10]. Alargou, ainda, o vocabulário gráfico de círculos e quadrados

deste último com a introdução de efeitos tonais e de gradações de cor ou ainda a simu-

lação de tridimensionalidade através da utilização de material de regulação horizontal e

vertical.

26 António Pedro (1909-1966), artista plástico, poeta e encenador, entre outros. Como poeta, foram dele algumas ex-periências pioneiras de poesia visual (Queirós, 2010). José-Augusto França (2007, p.8) refere os “poemas de expressão tipográfica em que o autor se comprazia, com um gosto de artes gráficas que seria sempre o seu”. Na perspectiva de Bom (2002), foi «pioneiro da tipografia moderna em Portugal, cujo trabalho (…) tem passado com alguma frequência despercebido» tendo sido “responsável pela introdução de um conjunto de novidades na junção entre a imagem e o tex-to tipográfico”. Segundo recorda o antigo parceiro Thomaz de Mello (1906-1990) pintor e artista gráfico, ele e António Pedro foram proprietários de “uma mini-tipografia equipada com o mais moderno que havia nas fundições tipográficas. (…) Foi nessa pequena oficina que muita coisa diferente realizámos” (1989, p.30). Passou ainda por diversas discipli-nas artísticas em que obteve notoriedade. Como afirmou Mello (1989, p. 31): “Ele fazia tudo o que lhe interessava, e fazia-o bem feito, só que durante pouco tempo”.

[Fig. 10] Primeiro volume: canções e outros poemas/1927/1935, de António Pedro

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De acordo com Moura (2013) ainda que se possa argumentar que os elementos modula-

res27 que Paulo de Cantos combinava para construir frases, mapas, retratos ou até dese-

nhos de meteoritos [fig. 11] podiam ser um exemplo da modularização e racionalização

típicas do modernismo, no entanto, essa racionalização não simplificava nem tornava as

coisas mais claras, ao invés, a linguagem do autor tornava-se hermética porque só era

usada pelo próprio. Tratava-se, assim, segundo Moura, de um modernismo alegre e sel-

vagem, não interdisciplinar mas indisciplinado.

27 Apesar dos primeiros tipos modulares terem aparecido ainda no século XIX (o Bauschrift da alemã Benjamin Krebs type foundry, 1853), estes nada tinham a ver com os ideais formais delineados pelos racionalistas do séc. XX. Não sen-do então uma invenção estritamente modernista, as imensas possibilidades de composição que permitiam, eram ideais para os aspectos formais e ideológicos da “Nova Tipografia”, que serviu de inspiração aos modernistas. Surgiu, assim, uma série de material tipográfico modular que ia – num continuum modernista e racionalista – de reconhecíveis carac-teres de composição modular até vinhetas modulares sem forma reconhecível mas com as quais era possível construir desde ilustrações a letras. Era nesta última classe que se encontrava o material tipográfico tão utilizado por Paulo de Cantos (e António Pedro). Este material geométrico e modular, explicitamente modernista e destinado a compor estru-turas, já abundava nos catálogos das fundições alemãs dos anos 1920 mas apenas nos anos 1930 começou a aparecer mais frequentemente nos catálogos de tipo do resto da Europa. Em 1930 surge o Dekora [fig. 12] da alemã Schriftguss AG, o primeiro sistema modular baseado numa grelha, que servia não apenas para montar cercaduras, pictogramas e ornamentos, mas também letras. Terão sido estas (entre outras) as vinhetas utilizadas por Paulo de Cantos em muitos dos seus livros, mas, numa altura de grande concorrência em que era comum as typefoundries lançarem designs simila-res, poderia ter sido outra, como a Fregio Gloria, da fundição italiana Fausto Gallico. O material tipográfico modular parece ter tido um sucesso razoável, tendo continuado a aparecer nos catálogo de tipo em quantidade e com designs actualizados até inícios dos anos 60 (Perondi, 2015). Em Portugal, este material seria comercializado por representantes de fundições estrangeiras. Nas duas fundições existentes, Imprensa Nacional e Manuel Guedes, apenas foi possível verificar nesta última a existência de vinhetas modulares claramente modernistas, a Fregio Mecano, da italiana Nebiolo, comercializada entre nós com o curioso nome de “vinheta mimosa”, e ainda presente no último catálogo de tipos, já dos anos 1990 e então propriedade da empresa J.O. Correia.

[Fig. 11] Elementos modulares tipográficos como os utilizados por Paulo de Cantos

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[Fig. 12] O sistema modular Dekora, de 1930

[Fig. 13] Paciência, de Manuel Filipe.Edição do Homem do Saco

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Incompreendido na sua época, foi um modernista esquecido. Na perspectiva de Fior

(2005, como referido em Gomes, 2013), Cantos foi desprezado pelos congéneres do de-

sign gráfico nacional, os modernistas da geração de 50, que o viam como um diletante

abastado mas descontrolado, empregando o bom senso das vanguardas modernistas mas

sem uma noção harmónica da composição tipográfica (p.31).

A sua obra, manteve-se, então, até há pouco tempo praticamente desconhecida, tendo

apenas nos últimos anos vindo a ser redescoberta e alvo de culto por parte de uma nova

geração de designers gráficos, servindo ainda de inspiração para trabalhos feitos actual-

mente em TCM [fig. 13]. Curiosamente, no entanto, já em 1955, Manuel Pedro se referia

elogiosamente no seu livro A Arte na Tipografia (p.57) ao trabalho do “Dr. Professor

Paulo de Cantos, ilustre tipógrafo amador” pelo “poder de imaginação e complicação de

manufactura artística”.

5. A TCM contemporânea

Nas últimas décadas tem-se assistido a um ressurgimento do interesse pela TCM junto de

uma geração que já não a conheceu enquanto técnica hegemónica da impressão comer-

cial. Tendo começado em países com uma grande tradição na indústria tipográfica, como

os E.U.A. ou a Inglaterra, também em Portugal, com algum atraso, o interesse se instalou.

As qualidades únicas da técnica, têm, com efeito, atraído para a TCM autores de diversas

origens, como designers gráficos, ilustradores, editores independentes ou simples curio-

sos.

Podemos afirmar que está em voga uma certa “estética tipográfica”, sendo frequente en-

contrarmos capas de livros, logótipos, embalagens, etc. [fig. 14], cujas letras pretendem

emular os antigos caracteres móveis, nomeadamente os de madeira, gastos pelo tempo.

Também as modernas typefoundries digitais têm na sua oferta uma série de fontes tipo-

gráficas perfect for that “letterpress” organic look [fig. 15]. Trata-se, quase sempre, de

exemplos daquilo que por vezes é apontado como o pior do estereótipo da TCM: “impres-

sões com a tinta em excesso ou por defeito, tipos gastos, e mistura de vários caracteres na

mesma palavra”28.

28 http://www.eyemagazine.com/blog/post/type-at-the-core acedido em 31 de Agosto de 2016

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Existe, então, uma geração que cresceu a utilizar as fontes do computador e que suja

agora as mãos de tinta procurando a expressividade e a fisicalidade que esta impressão

possibilita. Com a TCM as letras não são apenas vistas, mas podem ser fisicamente sen-

tidas, ao manusear a impressão (Rivers, 2010). A técnica permite ainda ao seu utilizador

um forte controlo criativo sobre o resultado final, ao permitir acompanhar, participando,

em todas as fases do processo.

Efectivamente, durante o processo de impressão, o trabalho de criação continua. Como

refere Barmettler (2017, p.5) a propósito do trabalho do designer e impressor suíço Dafi

Kühne, um dos mais destacados da impressão tipográfica contemporânea:

“Ele decide como o trabalho deverá ser impresso e imprime-o ele mesmo. Cria o grafismo mas pode rejeitá-lo quando a composição chega à máquina de impressão. Continua o proces-so de design enquanto faz a tintagem e a impressão. Por vezes, repentinamente, decide mudar de papel, ou abre uma lata de tinta diferente no último instante. Doseia a tinta, umas vezes usando mais, outras vezes menos, dependendo da opacidade, intensidade e impacto que pre-

[Fig. 14] Composição gráfica a simular impressão com caracteres de madeira[Fig. 15] Impressões de caracteres de madeira em ficheiro digital perfect for that “letterpress” organic look(https://www.t26.com/illustrations/Wood_Type_Impressions_2? acedido a 6 de Dezembro 2016)

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tende atingir. O seu processo de design acaba apenas quando a última folha é aparada, e não quando o ficheiro digital é enviado para a gráfica, como acontece no design feito actualmente com meios digitais”.

Para ele, Kühne mostra como pode ser simples produzir design gráfico de qualidade sem

estar dependente de tecnologias que permanentemente nos forçam a comprar os mais

recentes softwares e hardwares que depressa ficam desactualizados.

Na TCM não há duas impressões exactamente iguais. Cada uma é subtilmente diferente

(Rivers, 2010). A impressão a partir de tipos de metal ou de madeira resulta num objecto

original. A impressão comercial contemporânea, seja em offset ou digital, apenas fornece

cópias do objecto original, que frequentemente só existe em formato digital. Naturalmen-

te que alguma coisa se perde: um imediatismo, uma presença física que dá uma outra

autoridade às palavras e uma ligação física entre o autor e o leitor (Jury, 2011).

O número quase ilimitado de tipos de letra que os softwares gráficos colocam à nossa dis-

posição, contrasta com a quantidade restrita de caracteres móveis de uma oficina tipográ-

fica. Os impressores são, assim, frequentemente confrontados com a tomada de decisões

baseada na disponibilidade de caracteres e imagens existentes na oficina (Rivers, 2010).

Esta aparente desvantagem tem o benefício de obrigar o autor a adoptar uma abordagem

cuidadosa aos elementos da composição de forma a variar e enriquecer o seu trabalho

(Maravelas, 2005). Ou, como aludia Jim Sherraden29, impressor tipográfico e responsá-

vel pelo Hatch Show Print30: “a partir de alguns caracteres e imaginação, alcançar a uma

combinação nunca antes vista”.

Também Erik Spiekermann, o conhecido type designer alemão que nos últimos anos se

tem vindo a dedicar à impressão tipográfica31, refere como depois de 40 anos passados

29 http://woodtype.org/repository/1/3761/newimpressions2016.pdf (acedido a 20 de Julho de 2016)30 Famosa oficina tipográfica em Nashville, Tennesse, fundada em 1879 e conhecida pelos cartazes que produz desde essa altura, que vão de espectáculos de magia, circos e lutas até modernos concertos de conhecidas bandas de rock.31 Trata-se, no fundo, de um retorno. Tendo aprendido a técnica na juventude, Spiekermann reuniu nos anos 70 máquinas e tipos móveis com os quais efectuava alguns trabalhos. Em 1977 muda-se para Londres, levando o seu equipamento de tipografia. Na capital inglesa, pretendia estabelecer-se com a sua oficina tipográfica trabalhando como uma espécie de fine arts printer para artistas. Contudo, um incêndio no armazém onde guardava o material, destrui-o por completo. Os seus planos foram, assim, alterados e Spiekermann acabou por enveredar por uma carreira mais con-vencional na área do design gráfico, que acabou por se revelar numa das mais bem sucedidas da actualidade. https://www.myfonts.com/newsletters/cc/201412.html (Entrevista a Erik Spiekermann, Dezembro de 2014. Acedido a 9 de Julho de 2016)

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em frente a ecrãs de computador, voltou agora a usar as mãos sem ter todos os tipos do

mundo na ponta dos dedos e como esses constrangimentos o fazem melhorar32.

Um exemplo paradigmático é-nos por ele relatado33 e refere-se à impressão de um cartaz

na sua oficina tipográfica, a p98a. Habituado a produzir cartazes com ditados e aforismos,

com a sua vasta colecção de caracteres móveis, o designer alemão decidiu realizar um

com a frase: Better done than perfect. Para tal, escolheu um Akzidenz Grotesk Medium,

do qual julgava possuir seis caracteres com a letra “e” em caixa baixa. Ao compor a úl-

tima palavra, apercebeu-se, contudo, da existência de apenas quatro. Com a hipótese de

optar por outra alternativa, escolheu deixar a palavra perfect sem o primeiro “e”. Não

impossibilitando a leitura, a falta do “e” acabou por ilustrar da melhor forma a mensa-

32 http://3dprintingindustry.com/news/maker-stories-takes-us-printed-press-3d-printing-erik-spiekermann-31995/ (acedido a 22 de Julho de 2016)33 http://spiekermann.com/en/page/2/ (acedido a 23 Setembro de 2016)

[Fig. 16] Cartaz de Erik Spiekermann

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gem, ampliando perspicazmente o seu sentido [fig. 16]. De facto, por maior que seja o

número de caracteres que se possua, estes não são ilimitados. Também Allan Kitching34

detentor de uma das mais imponentes colecções de caracteres existentes em Inglaterra vê

benefícios nesta limitação. Kitching afirma que só usa o que está debaixo do seu telhado,

assim se lhe faltar um “e” em Helvética, substitui-o por algo parecido que poderá tornar

o projecto mais interessante. Tenta, então, conciliar a ideia com a tecnologia e deixar o

material fazer o trabalho (Baglee, 2016, p.30).

Além disso, com a escassez de material disponível, para a maioria das novas oficinas tipo-

gráficas os caracteres nem sempre são os que se desejam, mas os que se conseguem obter.

Um certo formalismo desaparece e os preconceitos esbatem-se. Caracteres cujo desenho

faria com que a sua utilização num trabalho feito num software gráfico não fosse sequer

ponderada, são usados com entusiasmo e tornam-se inspiradores.

Para uns, a TCM é um antídoto analógico para a rotina diária do digital, um lento e agra-

dável processo criativo que nos afasta da perfeição dos computadores (Marshall & Ellis,

2016). Outros, apontam a sensação de prazer que advém do acto de imprimir, semelhante

ao que se tem numa brincadeira ou num jogo, um prazer em sujar as mãos (Baines &

Dixon, 2014). Erik Spiekermann35 também alude ao factor jogo, na atracção que a TCM

exerce, e compara-a a um LEGO grande. Referindo-se aos designers, Spiekermann men-

ciona as gerações actuais, para quem os caracteres são algo virtual, ficheiros digitais,

pixéis, em nada diferentes de uma imagem, e como a TCM lhes permite tocar e manusear

a tipografia. Refere, ainda, a disciplina que a TCM pode dar a quem passa o tempo todo

à frente de um ecrã e tende a esquecer que há uma vida normal lá fora: “uma máquina

tipográfica pesa uma tonelada e não se pode meter na mochila ao final do dia para acabar

o trabalho em casa. É preciso ser realista e planear o dia”.

Com o interesse crescente que a TCM tem desencadeado, alguns preocupam-se com o

34 Designer e impressor tipográfico inglês (n. 1940), um dos mais respeitados da actualidade. Conhecido pelo uso expressivo dos caracteres de madeira e metal, tanto nos trabalhos em nome próprio como nos trabalhos para clientes. Expõe regularmente, dá palestras e workshops em algumas das mais importantes instituições de ensino artístico. Foi aprendiz de compositor de 1956 a 1961, quando a TCM ainda era o padrão na impressão comercial e criou a sua própria oficina tipográfica, The Typography Workshop em 1989, ajudando a reavivar o interesse pela técnica. Ali, dirige ainda reputados workshops. Afirma não estar interessado na impressão tipográfica em si mas naquilo que se pode fazer com as palavras e os caracteres (Baglee, 2016).35 https://www.myfonts.com/newsletters/cc/201412.html (acedido a 22 de Julho de 2016)

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correcto ensinamento dos fundamentos da técnica. Como refere Jim Sherraden, talvez já

não existam suficientes pessoas com experiência para transmitir os fundamentos desta, tal

como ensinar que os caracteres “beijem” o papel, em vez de o cravar. De facto, esta marca

deixada no papel que actualmente muitos procuram, era evitada pelos antigos impressores

e sinónimo de um mau trabalho. Manuel Pedro, no seu Dicionário Técnico do Tipógrafo

(1948, p.3), refere mesmo o termo assetinar: “prensar o papel de maneira especial para

tirar o relevo da impressão”. Digno de nota é o facto da procura actual pela técnica ter

levado fabricantes a desenvolver papéis específicos para TCM, com características como

a ”receptividade a uma impressão profunda”36.

É, assim, um lugar comum referir a fisicalidade da TCM, o toque, o cheiro, o peso dos

caracteres (Cooper, Gridneff, & Haslam, 2014). De facto, na perspectiva de Marshall &

Ellis (2016) a atracção inicial pela TCM é fácil de perceber: a possibilidade de sentir os

materiais, as antigas máquinas e os tipos com as marcas do tempo. Estes autores afirmam

que existe, sem dúvida, uma beleza característica da TCM a que é difícil resistir. Referem,

no entanto, o perigo que a nostalgia e o charme do passado podem constituir se não for-

mos cuidadosos, ao levar-nos para um decalque pouco imaginativo do que se fazia, como

a já referida mistura de tipos móveis numa mesma palavra e os caracteres gastos, em que

se baseia muita da prática contemporânea. Erik Spiekermann37 corrobora, afirmando não

procurar o letterpress look, pois para o obter já há filtros do Photoshop. Assim, no meio

de toda a nostalgia, existem aqueles que ao invés de olharem para trás, olham para a frente

e oferecem alternativas a este potencial beco sem saída, reinventando as suas práticas e

trabalhando de uma forma mais exploratória38.

Como referem David Marshall e Elizabeth Ellis (2016, p.12) da britânica The Counter

Press, ao abordarem o seu próprio trabalho: os caracteres móveis tradicionais, com as

suas frustrantes limitações, são utilizados para produzir novo trabalho, aliando técnicas

tradicionais a uma forma contemporânea de pensar o design. A TCM não é usada simples-

mente como uma técnica de impressão, nem como um fetiche, mas sim, como uma forma

de comunicar novas ideias.

36 https://www.letterpresspaper.com/lettra/ (acedido a 2 de Dezembro)37 http://woodtypecustoms.com/making-wood-type/ (acedido a 28 de Agosto de 2016)38 http://printinghistoricalsociety.org.uk/NEWS28a.pdf (acedido em 18 de Outubro de 2016)

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Actualmente, tecnologias como a impressão 3D ou o corte a laser estão já a ser combi-

nadas com as antigas técnicas tipográficas, produzindo resultados totalmente novos. São,

assim, desenvolvidos trabalhos que seriam impossíveis de fazer no passado, alguns deles

permitindo ultrapassar as tradicionais limitações da técnica que contribuíram para o seu

ocaso (Marshall & Ellis, 2016, p.12). São, ainda, feitas novas abordagens a materiais,

para lá dos comuns tipos de chumbo e de madeira (Barmettler, 2017).

A TCM é uma ferramenta criativa e, como outras ferramentas, a sua relevância e sucesso

depende inteiramente da forma como é usada, não sendo uma solução por si própria. Re-

quer ideias, criatividade e uma constante reinvenção para a tornar útil e relevante. Nem o

peso da sua grandiosa história deve impedir novas abordagens, nem o saber-fazer do pas-

sado deverá ser esquecido em favor das tecnologias do futuro: mas entre esta rica herança

e uma abordagem contemporânea à sua prática, a TCM pode, sem dúvida, ser usada para

oferecer algo que nenhum outro processo permite (Marshall & Ellis, 2016, p.12).

Como afirma David Jury (2011, p.24), só faz sentido continuar a fazer uso da TCM se esta

continuar a ser relevante e com uma função a desempenhar, não sendo apenas decorati-

va. Ou seja, não deverá ser um “pastiche” previsível do passado, mas sim revelar a sua

flexibilidade para abordagens contemporâneas de forma a estimular a melhor execução

técnica e o melhor design possível. Será a exploração das qualidades únicas que o meio é

capaz de oferecer que garantirá a sobrevivência desta técnica.

5.1. A tipografia de caracteres móveis e a auto-edição

Esta “corrente actual de resgate e de valorização do processo tipográfico” (Coelho, 2013,

p. 424) poderá ser integrada num movimento mais amplo ligado à auto-edição ou edição

de pequena tiragem. Efectivamente, como afirmam Quintela & Borges (2015), nos últi-

mos anos tem-se vindo a assistir a um ressurgimento de fanzines, livros de artista e outras

publicações editadas de um modo independente que seguem o princípio do do-it-yourself.

Este ressurgimento pode ser ele próprio explicado, pelo menos em parte, pela reemergên-

cia do craft, que, neste contexto, valoriza os aspectos relacionados com o carácter manual

e oficinal associados aos métodos tradicionais de concepção e execução de objectos edi-

toriais, isto é, uma produção cuidada e rigorosa numa pequena/média escala com tempos

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de trabalho lentos (Quintela & Borges, 2015, p.14). Esta reemergência é também o refle-

xo de uma certa aura que por vezes projectamos retrospectivamente sobre os ofícios do

passado (Freire, 2013).

Nos últimos anos tem-se verificado, assim, a existência de um número crescente de desig-

ners, ilustradores, etc., a trabalhar em projectos auto-propostos, assumindo-se plenamente

como autores, produzindo sem a encomenda de um cliente e tendo muitas vezes como

audiência outros designers, ilustradores e artistas (Quintela & Borges, 2015). Bártolo

(2012) refere que, num contexto contemporâneo marcado por uma severa mercantiliza-

ção da sociedade, tem-se assistido a um crescente protagonismo do design de iniciativa

própria, com muitos designers a explorar novos meios de produção mais autónomos, que

constituam uma alternativa ao modelo dominante.

Quintela & Borges (2015) aludem, ainda, a uma certa dimensão ética e política que pare-

ce existir na auto-edição. Esta dimensão estará patente na valorização do carácter manual/

artesanal destas publicações e na opção dos autores pelo recurso a modos de produção

que apelem claramente a um esforço físico na sua execução. A TCM contemporaneamen-

te praticada entre nós, quase sempre em máquinas manuais ou a pedal é um claro exemplo

deste esforço, tal como o “sujar as mãos impregnando-se do ofício”, aludido por Durão

(2002, p.234), referindo que as mãos sujas podiam ser sinónimo de maior profissionalis-

mo e motivo de orgulho entre os antigos tipógrafos, parecendo continuar a sê-lo nos dias

de hoje entre os novos impressores. Por detrás deste fenómeno, parece estar frequente-

mente uma certa saturação face ao papel preponderante da tecnologia e em especial dos

computadores e dos softwares gráficos nos seus processos de trabalho. Acresce, ainda,

a visão crítica do panorama editorial contemporâneo. Neste contexto, a valorização de

projectos gráficos independentes e de qualidade, desenvolvidos de forma lenta e rigorosa

constitui, de algum modo, uma forma de resistência e de liberdade para muitos dos seus

autores.

As fronteiras entre os diversos tipos de edições auto-editadas têm-se esbatido com a di-

versidade de abordagens actualmente feitas. A este propósito, e referindo a TCM, Triggs

(2010), refere o caso dos fanzines. Para esta autora, na primeira década do séc. XXI,

assistiu-se a um aumento da utilização da TCM e da serigrafia na sua produção, em de-

trimento, por exemplo, dos clássicos recortes e fotocópias. Esta mudança para técnicas

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mais morosas, levou a uma alteração na estética deste tipo de edições, que entretanto vão

perdendo a natureza caótica e a intensidade visual típicas das capas e das páginas foto-

copiadas. Os fanzines têm agora um aspecto semelhante ao de muitos livros de artista,

começando a aparecer em edições numeradas, que reflectem o tempo despendido e a

perícia artesanal dos seus produtores.

A impressão por caracteres móveis foi, assim, depressa adoptada por quem já se dedicava

à auto-edição ou à edição independente de pequena tiragem, quer pelos que se dedicam

ao mundo dos fanzines e dos livros de artista, quer pelos que apostam numa vertente mais

literária, ligada à poesia, por exemplo. Com efeito, as suas características expressivas e

a possibilidade de acompanhar todas as fases do processo de edição, permitindo manter

um forte controlo criativo sobre o resultado final, fizeram da TCM uma técnica aliciante

para ser usada isoladamente ou em conjugação com outras. A proliferação nos últimos

anos de encontros, conferências, feiras e cursos dedicados às publicações autorais contri-

buiu para a divulgação da técnica junto de um público que já não a conheceu quando era

comercialmente viável.

Acerca do prazer de conceber, imprimir e auto-editar um livro em TCM, fica o relato de

Anaïs Nin (1903-1977)39 que montou, em 1942, em Nova Iorque, uma pequena oficina

tipográfica, onde ela própria compôs e imprimiu o seu livro ”Winter of artifice” (Popova,

2012) [fig. 17]:

(…) O nosso corpo relaciona-se com a solidez das letras de metal, com o peso da caixa tipográfica, (…) com os tempos e o temperamento da máquina de impressão. Ganhamos um pouco do peso e da solidez do metal, a força e a potência da máquina. Cada triunfo é uma conquista do corpo, dos dedos, dos músculos. (…)

Testamos as nossas capacidades contra problemas concretos e as vitórias são concretas, de-finíveis, palpáveis: uma página impressa de forma perfeita. Pode-se tocar na página que es-crevemos. Entusiasmamo-nos com o que vamos dominando e descobrindo. Em vez de des-perdiçarmos as nossas energias de forma inútil com a frustração sentida e a raiva dirigida aos editores, eu uso-as na máquina de impressão, nos caracteres, no papel. A resolver problemas mecânicos e técnicos. (…)

Se eu não prestar atenção, se não apertar bem a composição, quando começar a imprimir, os caracteres podem cair todos para a máquina. As palavras, que apareceram pela primeira vez

39 Escritora nascida em França, viveu quase toda a vida nos E.U.A.. Conhecida pelo seu longo diário que cobriu a sua vida de 1914 a 1974, foi ainda autora de livros de ficção como “Uma espia na casa do Amor” ou “A casa do incesto”.

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na minha cabeça, vindas do nada, tomam corpo. Cada letra tem um peso e eu posso pesar cada palavra de novo, para verificar se é a correcta. (…)

A máquina mobiliza as nossas energias, e isso é um prazer. No final do dia podemos ver o nosso trabalho, pesá-lo. Ele está feito. Existe.”

[Fig. 17] Anaïs Nin a imprimirnuma máquina minerva a pedal

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6. Os recursos tipográficos contemporâneos: tipos móveis e outro material impres-

sor, máquinas de impressão e a sua aquisição

6.1. Os tipos de chumbo

A utilização de chumbo para o fabrico de caracteres móveis data do início da utilização

da técnica desenvolvida por Gutenberg, em meados do séc. XV. Além deste, o papel de

Peter Schöffer – seu associado juntamente com Johann Fust – parece ter sido essencial no

processo, assim como na criação do molde manual de fundição e dos punções e matrizes

(Marchetti, 1951; Silva, 1908).

O chumbo, pelo seu baixo ponto de fusão e pouco elevado custo, era a solução ideal. No

entanto, pela sua brandura, depressa se deteriorava com a pressão dos prelos. Após vá-

rias experiências à procura de um outro metal para se ligar a este de forma a conferir-lhe

maior dureza, optou-se pelo antimónio, sendo ainda acrescentado o estanho, de forma a

tornar a liga mais homogénea, conferindo-lhe fluidez, plasticidade e resistência. O chum-

bo é, então, a base de todas as ligas tipográficas, sendo secundado pelo antimónio e por

fim pelo estanho. A proporção dependia de fundição para fundição – sendo mantida em

segredo – e dentro de cada uma poderia variar consoante era utilizada em corpos peque-

nos ou grandes, devendo os pequenos ser fundidos com uma liga mais forte (com maior

quantidade de antimónio). De acordo com Vilela (1978), por exemplo, para tipos até

corpo 12, a proporção será: 67% de chumbo, 28% de antimónio e 5% de estanho. Já para

corpos maiores, a proporção será: 71% de chumbo, 24% de antimónio e 5% de estanho.

Dos tempos de Gutenberg até ao séc. XIX, os caracteres eram produzidos da mesma

forma: a letra era gravada na extremidade de uma pequena barra de aço, o punção, com

o qual, depois de temperado e enrijecido se cravava um pequeno bloco rectangular de co-

bre. Este, depois de rectificado, dava origem à matriz, que era então colocada num molde

manual ajustável, feito de aço temperado coberto lateralmente com madeira de forma a

proteger as mãos do fundidor da acção do calor [fig. 18]. O fundidor vazava, então, com

uma colher, a liga metálica derretida no orifício do molde (o gito). Quando esta arrefecia,

dava origem a um caractere que, após algum acabamento, estava pronto a imprimir.

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Na segunda década do séc. XIX, começam a ser dados os primeiros passos para a meca-

nização da fundição tipográfica, nomeadamente pelo francês Didot Saint-Léger, em 1815

(Canhão, 1941), mas só em 1838, David Bruce, Jr. de Nova Iorque, cria a primeira máqui-

na automática de fundição de caracteres comercialmente bem sucedida. A sua motivação

não era apenas o desejo de uma produção mais rápida de caracteres móveis, mas o de

ultrapassar a dificuldade que os moldes manuais levantavam na fundição das linhas finas

e elaboradas dos caracteres vitorianos tão em voga na época. A nova máquina, injectava

o chumbo fundido no molde, ao mesmo tempo que expelia o ar de forma a eliminar as

bolhas do tipo, produzindo uma média de cem caracteres por hora (Loy, 2009).

Um outro importante processo foi criado nessa altura: a obtenção de matrizes através de

galvanoplastia ou banho galvânico. A galvanoplastia foi inventada na Rússia por Moritz

von Jacobi em 1838 e logo foi adaptada às artes-gráficas. Nos E.U.A. o fundidor de tipos

Thomas W. Starr, de Filadélfia, patenteou em 1845 um método de gravar matrizes dessa

forma. Esta técnica permitia a obtenção de matrizes a partir de um caractere normal usado

para impressão. Esse caractere era colocado no chamado banho galvânico, que, atraves-

sado por uma corrente eléctrica, fazia com que partículas de cobre se fossem depositando

[Fig. 18] Molde manual de fundição de tipo (reconstituição contemporânea). Vêem-se aindauma matriz por rectificar, outra rectificada, um caractere já fundido mas ainda sem acabamento e um punção.(http://www.atelierpressandletterfoundry.com/ acedido a 16 de Junho 2016)

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sobre o olho da letra, dando assim origem a um molde. O corpo da letra é antecipadamen-

te coberto de cera, para que o cobre só adira ao olho (Silva, 1908). A espessura do cobre

ficava mais ou menos forte, conforme o tempo de imersão. À folha galvanizada assim

obtida, era aplicada, como reforço, uma base e montada sobre um calço para seu emprego

[fig. 19] (Loy, 2009; Marchetti, 1951).

O uso da galvanoplastia para produzir matrizes também veio a tornar mais fácil a produ-

ção de novos tipos de letra ornamentados. De facto, em vez do mais complicado método

de gravar punções, depressa ficou claro que as letras poderiam ser gravadas directamente

em metal macio. Com estas letras gravadas, eram depois produzidas matrizes através

do processo galvânico. Este novo método, contudo, veio dar origem a uma “pirataria”

generalizada de tipos de letra entre os E.U.A. e a Europa. De facto, uma typefoundry que

quisesse copiar um tipo de letra de sucesso de uma outra companhia, limitava-se a adqui-

rir o tipo de letra desejado e a fazer as matrizes através da galvanoplastia. Assim, muitos

catálogos de tipos do séc. XIX apresentam tipos semelhantes, sendo muito difícil deter-

minar a origem de um tipo de letra em particular. Ainda assim, as matrizes produzidas por

este processo nem sempre obtinham tão bons resultados como as fabricadas através de

[Fig. 19] Matriz produzida na Imprensa Nacionalatravés de galvanoplastia

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punção, nem tinham a sua resistência nem duração (Silva, 1908). Além disso, a produção

de matrizes com punções era menos demorada, especialmente quando se queria gravar

várias matrizes rapidamente.

Outro processo inovador na gravação de punções e matrizes data também dessa altura:

trata-se da utilização de pantógrafos de forma a que a gravação seja feita mecanicamente.

Estes, podiam ser utilizados tanto para a gravação de punções como para a gravação di-

recta de matrizes. Um dos modelos criados nessa altura e mais difundidos até aos últimos

dias da fundição comercial de caracteres móveis, foram os pantógrafos verticais do nor-

te-americano Linn Boyd Benton desenvolvidos nos anos 80 do séc. XIX de uma forma

considerada tão perfeita e trabalhando com uma precisão tão absoluta, que de poucas

modificações foi alvo desde essa altura (Rehak, 1993).

Em Portugal, a TCM foi introduzida em finais do séc. XV, mas durante largo tempo esteve

subordinada aos caracteres vindos de fora. Só no séc. XVIII o francês Jean Villeneuve,

fundidor e gravador puncionista se instala em Portugal, com a protecção de D. João V,

com o propósito de iniciar entre nós a produção de caracteres. A primeira fábrica de ca-

racteres passa a figurar como um elemento valioso da indústria portuguesa e é entretanto

proibida a introdução de tipos estrangeiros em Portugal (Canhão, 1941). No entanto, em

1756 é de novo permitida, por um período de dez anos, a introdução de caracteres vindos

do estrangeiro, presume-se que por incapacidade da produção portuguesa satisfazer as

necessidades crescentes do desenvolvimento da tipografia em Portugal

Em 1768, é criada a Impressão Régia, antecessora da Imprensa Nacional e a fábrica de

caracteres transita para a mesma, sendo dadas condições para a produção de grandes

quantidades de letras, não só para uso na Impressão Régia mas para as outras tipografias

do país. A este facto não é alheio a nova proibição de entrada de tipo estrangeiro, por ter

expirado o prazo em que este era permitido. Só em 1821 volta a ser permitida a importa-

ção de caracteres vindos do estrangeiro.

Em 1838, é lançado o primeiro catálogo de caracteres, vinhetas e ornatos tipográficos da

fundição da Imprensa Nacional.

A liberdade de importação aprovada pelo parlamento, contemplava também o fabrico

particular de caracteres e Alexandrino José das Neves, antigo director da fundição de

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tipos da – entretanto denominada – Imprensa Nacional, cria a sua própria oficina de fun-

dição tipográfica. A Revista universal lisbonense, de 1844, relata-nos assim, os feitos do

Sr. Alexandrino:

“O Sr. Alexandrino José das Neves acaba de nos prendar com varios aperfeiçoamentos da sua arte, entre outros o da fundição de três letras de um só jacto. Aperfeiçoou a fundição or-dinaria dos typos, consistindo a mudança na matriz, que ordinariamente é de cobre, e que foi substituída, por uma composição de metal brando mas muito maliavel e menos fuzivel que o metal comum dos typos. Tirou da sua idéa todo o proveito imaginável; pois que em vez de se servir de punção de aço, usa dos mesmos typos, que fazem muito bem as vezes de punção, e por meio de um aparelho, que inventou, consegue gravar com eles no metal, resultando disto uma matriz sem ajuda de punção, vantagem esta, que não é pequena, para os que sabemos quanto é trabalhoso gravar em aço, e quão subidamente se paga ao artista que o executa. D’esta forma todas as qualidades de letras, emblemas, ornatos etc., se fundem com a maior perfeição e esmero.

Apparecem typos inglezes ou francezes; queremos tel-os eguaes; forçosamente haviamos de comprar por exorbitante preço o jogo completo de punções ou de matrizes, ou abril-as cá mas com muita demora e custo: disso nos dispensou o invento do Sr. Neves, obtendo os typos de fóra, d’elles nos servimos em vez de punção: nova esta de que eles não ficarão muito contentes” (Frazão, 1844).

Pouco antes de 1850, surge uma nova oficina de fundição particular, a Silva & Bezan, a

trabalhar com “artistas estrangeiros” e que publica pouco depois uma prova de tipos em

que “aparecia bastante novidade” (Canhão, 1941, p.46) e a um custo mais módico que

os tipos da Imprensa Nacional, num claro propósito de fazer concorrência à fundição de

tipos da mesma. Entretanto, a Silva & Bezan dissolve-se passando a figurar como Silva

& Filhos, tendo como mestres três franceses: Muratet, Lallemand e Bezan. Após vários

incidentes, a fundição passa para a posse de Lallemant, com a qual fundou o seu estabele-

cimento, já não exclusivamente de fundição, mas também de impressão. Em 1854-1855,

uma prova de tipos causa profunda sensação na arte tipográfica, pelas impressões a cores

de grande nitidez.

A concorrência alarma a administração da Imprensa Nacional, que reforma métodos de

trabalho, adquire novas máquinas e matrizes. Vêm, então, de Viena e Munique, as “mais

perfeitas máquinas de fundir que se conheciam” e que “faziam, cada uma delas, a produ-

ção de quatro operários que trabalhassem com moldes manuais” (Canhão, 1941, p.49).

Um pouco antes, em 1851, a Imprensa Nacional tinha adoptado o ponto tipográfico ou

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Didot40, fixado 76 anos antes em França, por François-Ambroise Didot, vigorando na Eu-

ropa continental até ao final da produção comercial de caracteres móveis. Até aí, os cor-

pos das letras não eram ainda definidos por pontos, sendo o material tipográfico, tanto no

estrangeiro como no nosso país, fundido em grossuras arbitrárias e em diferentes alturas.

Foi, então, determinado a refundição geral de caracteres em corpos com pontos certos e

determinados (Canhão, 1941).

Em 1874, surge no Porto a Fundição Tipográfica Portuguesa, Lda. Em 1895 abre em

Lisboa outra fundição, propriedade do espanhol Emílio Porcel. Em 1900, Porcel liga-se a

Albino Cardoso Corvaceira, tendo o espanhol abandonado a sociedade em 1912.

Corvaceira forma entretanto sociedade com António Joaquim Afonso, dando origem à

Corvaceira & Affonso. Entretanto, Pietro Gini, italiano que tinha vindo para o Porto em

1904 para reorganizar a Fundição Tipográfica Portuguesa (Gini, 1929) abre em 1910 a

Funtipo, que alguns anos depois adquire os pertences da casa Corvaceira & Affonso.

Também na altura existiam algumas fundições privativas, como as dos jornais O Século,

O Mundo, ou a do Anuário Comercial. Na perspectiva de Manuel Canhão (1941, p.58),

esta concorrência “não motivou evolução sensível na forma dos caracteres, no sentido da

sua modernização”.

A seguir à I Guerra Mundial, a concorrência da indústria estrangeira rapidamente se re-

faz, nomeadamente devido à produção alemã, e toma grande impulso em Portugal, sen-

do evidente a inferioridade da produção nacional (representada pela Funtipo, Fundição

Tipográfica Portuguesa e Imprensa Nacional) para fazer face à capacidade criadora da

fundição estrangeira. Já em 1934, segundo Canhão (1941), na origem dos tipos estran-

geiros entrados em Portugal estava, em primeiro lugar, a Alemanha, seguida de Espanha,

Itália, França, Holanda, Inglaterra, Áustria, E.U.A. e Suíça. As cerca de 500 tipografias

existentes em Portugal continental, ilhas e colónias eram mantidas, portanto, com tipos

fabricados naqueles países e nas três casas que o faziam entre nós. A concorrência es-

trangeira, com os seus representantes em Portugal que visitavam as oficinas tipográficas

apresentando-lhes os seus produtos, estaria sempre presente até ao final da utilização

comercial da TCM [fig. 20].

40 No sistema métrico, corresponde a cerca de 0,376 mm.

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[Fig. 20] Anúncio aos tiposda Fundição Tipográfica Richard Gans,de Espanha. Revista Mercado Gráfico Português, 1928

[Fig. 21] Sede da Fundição tipográficaManuel Guedes (anos 40)

[Fig. 22] Pacote com tipo para venda

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Em 1933, após a morte de Pietro Gini, todo o equipamento deste foi adquirido pela firma

Manuel Guedes & Cª, Lda. dando origem à Fundição tipográfica Manuel Guedes, que irá

adquirir, em 1939, a Fundição Tipográfica Portuguesa, e será, até ao final da produção de

caracteres móveis na Imprensa Nacional, a sua única concorrente [figs. 21 e 22].

Em 1970, com a intenção de dar um novo fôlego à produção da Imprensa Nacional assu-

me o cargo de Director-coordenador da Produção Gráfica, António Guilhermino Pires.

Na altura, estava em andamento a execução de um novo catálogo de caracteres da fundi-

ção tipográfica, de forma a dinamizar a venda dos tipos41.

Sob a sua orientação, foi, então, criado um catálogo em formato pocket-book, com a no-

vidade dos caracteres serem apresentados segundo a classificação morfológica decimal

de Giuseppe Pelliteri42. A par do catálogo de tipos, foi feito um Catálogo de filetes, tarjas,

símbolos e vinhetas no mesmo formato [fig. 23].

41 A última edição já datava de 1933, um formato oblongo com folhas presas por parafusos extensíveis para substi-tuição e acrescento de páginas com provas de novos tipos, à medida que se iam produzindo. Estes aditamentos foram feitos precisamente até 1970.42 Segundo Marconi e Marinelli (1984, como referido em Reis, 2008), a classificação morfológica-decimal de Giu-seppe Pelliteri (1958) tem objectivos puramente didácticos e práticos, seguindo exclusivamente a referência da forma. De acordo com Reis (2008), “Pellitteri estabelece a sua divisão em dez grupos principais, cada um deles dividido em vários sub grupos (…) para nela se encaixarem todos os tipos de letra existentes”.

[Fig. 23] Catálogos de tipose de vinhetas. 1971,Imprensa Nacional

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A título de curiosidade, refira-se que na altura ainda se gravavam punções à mão para a

produção de matrizes [fig. 24], tendo sido o último punção gravado, o da vinheta que de-

cora a capa deste último catálogo. Também através da galvanoplastia se obtinham matri-

zes. Era, no entanto, um processo moroso e que implicava posteriormente muito trabalho

de rectificação. Foram, então, instalados pantógrafos para agilizar a produção de matrizes

[fig. 25].

[Fig. 25] Pantógrafo para gravação directa da matriz

[Fig. 24] Balancé para cravação de matrizes da Imprensa Nacional

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A produção de caracteres ganha um novo fôlego. Foram recriados três novos tipos de

letra: Bicentenário, em homenagem aos 200 anos da Imprensa Nacional; Lusitanas em

comemoração da publicação de Os Lusíadas e o Europa [fig. 26]. Este último, era um

redesenho do Eurostyle, de Aldo Novarese, por António Guilhermino Pires (que conhecia

Novarese dos tempos em que estudou em Itália) com a anuência deste. Para a obtenção

das matrizes, a partir das letras finalizadas a tinta da china, eram feitos fotolitos com os

quais eram gravadas chapas de zinco que seriam utilizadas para, com a utilização do

pantógrafo, se gravar com a máxima exactidão cada matriz, segundo a “força do corpo”

(tamanho do corpo) e espessura da letra pretendida.

O último catálogo de tipos, editado em 1978, já incluía nove corpos da versão Europa

fino. Com o sistema de folhas soltas presas por uma baguete, foi anexado mais tarde ao

catálogo uma folha com mais cinco corpos da versão negro.

A evolução das tecnologias, foi, no entanto, implacável. O offset tinha destronado de-

finitivamente a TCM e a redução da procura, leva, em 1986, à inapelável decisão da

administração de terminar com o fabrico de caracteres e fechar a oficina de fundição.

Esta, encerra então no ano seguinte, tendo o Europa sido a última série de tipos móveis

produzidos pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (A Imprensa Nacional e a Casa da

Moeda juntaram-se em 1972)43.

No que à fundição particular de caracteres diz respeito, em meados dos anos 90 a Fun-

dição Tipográfica Manuel Guedes encerra e o material é adquirido pela empresa de artes

gráficas J.O. Correia. Surge, então, o catálogo de tipos da Fundição tipográfica J.O.

43 Entrevista a António Guilhermino Pires.

[Fig. 26] Anúncio aos novos tipos de letra da Imprensa Nacional. Revista Prelo, 1977

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Correia. Além da capa diferente, também colocada no sistema de folhas soltas, presas por

uma baguete, quase nenhumas diferenças havia em relação ao último catálogo da Fundi-

ção Tipográfica Manuel Guedes. A empresa ainda mantém as máquinas activas durante

cerca de uma década (como curiosidade, refira-se que chegou a ser produzido o caractere

com o símbolo do Euro, a partir de uma matriz feita num gravador) até parar definitiva-

mente, com as máquinas e as matrizes a serem vendidas para sucata.

Em termos internacionais, actualmente, não resta nenhuma das grandes fundições tipo-

gráficas. A última terá sido a Neufville, em Barcelona, encerrada em 1995. Nos E.U.A.,

a M & H Type, fundada em 1915, continua em funcionamento mas ligada desde 1989

à Arion Press, que a adquiriu e para quem produz os tipos utilizados nas suas edições.

Apesar de produzirem caracteres móveis para venda, o funcionamento desta fundição é

apoiada por uma instituição, com o objectivo de preservar e continuar a actividade, in-

cluindo o patrocínio de um programa de aprendizes. Todas as outras fundições comerciais

desapareceram. Efectivamente, só a produção em grande escala permitia a obtenção de

lucro. Com o declínio da TCM o mercado deixou de absorver as grandes quantidades de

tipo que fazia anteriormente ficando as typefoundries sem hipóteses de sobrevivência.

Observa-se, no entanto, a existência de várias pessoas, particularmente nos E.U.A. mas

também noutros locais, que têm recuperado equipamento de fundição de caracteres mó-

veis – quase sempre máquinas Monotype – para produção, normalmente por passatempo

ou integrando a actividade numa private press. Algumas, auto-intitulam-se typefoundries

e comercializam caracteres. Uma das mais activas nos E.U.A., a Skyline Type Foundry,

por exemplo, pertence a um piloto de aviões reformado. Estes entusiastas da fundição de

caracteres reúnem-se numa associação informal criada nos E.U.A. denominada American

Typefounders Fellowship (ATF)44 cujo objectivo é a utilização e preservação de todas as

formas de fundição de caracteres. De entre estas, existem as que têm possibilidade de gra-

var matrizes para novos tipos de letra e vinhetas. Continuam, assim, a surgir novos tipos

de letra em chumbo, normalmente produzidos em edições limitadas. Um dos autores mais

activos nesta área tem sido o designer e impressor norte-americano Russell Maret, que

já conta com vários tipos de letra e vinhetas da sua autoria produzidos em chumbo. Uma

das vinhetas, chama-se, curiosamente, Lisbon Ornaments [fig. 27], produzida em 2011

44 Sigla que deliberadamente remete para outra ATF, a que chegou a ser a maior typefoundry norte-americana, encer-rada em 1993, American Typefounders Company.

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pela Dale Guild Type Foundry (entretanto encerrada). O nome vem do seu interesse pelo

trabalho do calígrafo português do séc. XIX, Joaquim José Ventura da Silva, sendo a vi-

nheta vagamente inspirada nos seus ornatos. Tendo sido pensada para funcionar de forma

a que as suas combinações criem padrões, estes lembravam-lhe os existentes nas calçadas

de Lisboa. O mais recente projecto que o designer procura levar a cabo é a criação de um

novo tipo de letra – Hungry Dutch – para ser fundido em máquinas Monotype, o primeiro

dos últimos 40 anos45.

Se os E.U.A. detêm o maior número de pessoas a dedicar-se à fundição de caracteres,

também na Europa se encontram fundições activas. Entre outras, destacam-se a alemã

Rainer Gerstenberg. O proprietário, com o mesmo nome, foi fundidor na antiga D. Stem-

pel AG, tendo, após o encerramento desta, ficado na posse de matrizes que pertenceram

não só à D. Stempel AG, mas também à suíça Hass, à francesa Deberny & Peignot ou à

italiana Nebiolo, entre outras, continuando a produzir caracteres a partir dessas matrizes

originais. Sem seguidores, não se sabe por quanto tempo mais continuará em actividade.

45 http://russellmaret.com (acedido a 23 Novembro 2016)

[Fig. 27] Lisbon Ornaments, de Russell Maret

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É Erik Spiekermann, o conhecido type designer alemão que nos últimos anos se tem vin-

do a dedicar à impressão tipográfica, quem deixa o apelo: “Buy as much as you can from

Rainer now. His foundry won’t be around forever”46. Destaque, também, para a holandesa

Westzaan, que tem a possibilidade de gravar matrizes para fundir novos caracteres, como

é o caso do tipo móvel Ziza, um projecto em colaboração com estúdio de design holandês,

Novo Typo47. Noutras latitudes, o relevo vai para a Ri Xing Typefoundry, em Taiwan, a

única no mundo que ainda produz caracteres chineses em tipos móveis.

6.2. Tipos de Madeira

A impressão de figuras, textos ou letras, a partir de blocos de madeira gravados em relevo,

precede, em muito, a invenção de Gutenberg. Mais facilmente disponível que qualquer

tipo de metal, e mais fácil e barata de trabalhar, a madeira tem um papel primordial na

história das artes gráficas. No entanto, a utilização de caracteres individuais de madeira

para compor só se tornou comum no séc. XIX, quase quatro séculos depois da invenção

da imprensa (Clough & Scattolin, 2014).

Aos primeiros impressores, deparava-se-lhes uma necessidade quase ilimitada de tipos

idênticos e em corpos relativamente pequenos (a Bíblia de Gutenberg, por exemplo, tinha

cerca de três milhões de letras impressas) sendo que, num contexto pré-industrial, as lim-

itações do trabalho em madeira em comparação com o metal eram bastante significativas.

De facto, na época, todo o trabalho da madeira teria que ser feito de forma manual pelo

que desde cedo deve ter ficado claro a Gutenberg – que se valeu deste material nos pri-

meiros ensaios tipográficos – que a produção de grandes quantidades de tipos móveis

idênticos em madeira seria impraticável. A utilização de tipos em metal tornou-se, assim,

no paradigma da impressão até meados da segunda metade do séc. XX, quando foi sub-

stituída pela impressão offset (Clough & Scattolin, 2014).

46 https://www.facebook.com/schriftgiesserei/posts/1191442867537791 (acedido em 8 de Dezembro de 2016).47 Estúdio de design de Amesterdão, criado em 2012, com forte ênfase na criação de novos tipos de letra, criativos e ecléticos. Afirmam gostar de criar tipos de letra imperfeitos, numa época em que há “uma geração de type designers demasiado perfeitos”. Como os próprios afirmam: “É lindo quando alguma coisa está errada, ou pelo menos é muito mais entusiasmante”. (http://www.novotypo.nl/about.html acedido a 18 de Dezembro de 2016)

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Se a maioria das impressões desta altura requeria tipos com corpos relativamente

pequenos, fáceis de fundir com os moldes manuais da época (apropriados para fundir

tipos até ao equivalente a aproximadamente 72 pontos48, a fundição de corpos maiores

já se tornava problemática. Foram, então, utilizadas várias técnicas que, contudo, não se

revelavam satisfatórias, nomeadamente porque os tipos grandes em metal tinham tendên-

cia a solidificar de forma desigual ocasionando superfícies côncavas, difíceis de imprimir,

ou que rachavam ao arrefecer. A estes factos juntavam-se o peso e custo que estes tipos

apresentavam (Moran, Style, Ichiyama, & Zauft, 2004). Contudo, a procura de tipos de

tamanho grande por parte dos impressores, manteve-se escassa até à primeira década do

séc. XIX. Esta foi uma altura de grande revolução nas artes gráficas, ocorrida na sequên-

cia da própria Revolução Industrial. Nesta altura, o desenvolvimento da publicidade e

dos folhetos e cartazes a ela associados levaram ao surgimento de novos tipos de letra

desenhados a pensar na reprodução em formatos grandes e apelativos para o público – as

chamadas display faces (Clough & Scattolin, 2014).

Com a crescente procura de tipos de grandes dimensões tornava-se uma questão de tempo

até à criação de um processo que permitisse a sua produção económica em massa. E a ma-

deira era o material lógico a utilizar devido à sua leveza, abundância e às qualidades para

a impressão há tanto tempo conhecidas. A indústria dos tipos de madeira surge, então, nos

Estados Unidos, local onde a grande expansão da indústria impressora e da publicidade

tornava os tipos de grandes dimensões tão procurados.

O primeiro catálogo conhecido de tipos de madeira surgiu em 1828 pelas mãos do no-

va-iorquino Darius Wells que criou uma máquina que se revelou bem-sucedida na pro-

dução económica em série de tipos de madeira (Moran, Style, Ichiyama, & Zauft, 2004).

Tratava-se de um tipo de fresadora que permitia gravar a letra no cimo de um único bloco

de madeira de forma mais rigorosa e diminuindo o tempo necessário para o fazer em

relação ao que sucedia quando esta gravação era feita manualmente. Em 1834, William

Leavenworth, do Massachussets, introduziu o pantógrafo no processo de fabrico dos ti-

pos de madeira (Loy, 2009). Tratava-se de um instrumento utilizado para a reprodução

mecânica de desenhos, em escala igual ou diferente da do original (Porta, 1958). Ao

48 Pouco menos que 3 cm (1 ponto Didot = 0,3759 mm)

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adaptar o pantógrafo à fresadora de Wells, era possível, a partir de uma única matriz, a

reprodução exacta e em massa dos tipos no tamanho que se desejasse. Apesar de terem

sido criadas e utilizadas outras formas para a produção comercial de tipos de madeira –

como o corte do contorno da letra através da cunhagem com lâminas de aço ou o recorte

da letra para posterior colagem sobre um bloco de madeira – a utilização do pantógrafo

foi o padrão para a produção em massa de tipos de madeira até ao final da sua produção

industrial, já no findar do séc. XX.

A madeira utilizada, à semelhança da gravura em madeira ou gravura a topo tinha que

ser compacta e regular, dura e resistente, pouco sujeita a quebra (Soares, 1951), como é

o caso da madeira de buxo, de pereira (usada em Itália) ou madeira de bordo (usada nos

Estados Unidos) [fig. 28]. Cortada a topo (discos obtidos pelo corte no sentido perpendic-

ular ao eixo da árvore) evitava a resistência da fibra à gravação e o empenamento, sendo

sujeita a cura e a posterior tratamento antes de ser utilizada (Kelly, 1969/2010) [fig. 29].

[Fig. 29] Madeira de buxo cortadaa topo, proveniente de um antigogravador lisboeta.Com a altura tipográfica (23,56 mm),está preparada para gravarcaracteres móveisou gravuras tipográficas

[Fig. 28] Caractere de madeira sem uso, onde é possívelperceber o corte a topo através dos anéis da madeira

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A nova tecnologia não tardou a chegar à Europa tendo a indústria dos tipos de madeira

criado raízes em países como a Inglaterra, Itália ou Suíça. Tendo características com-

pletamente diferentes da tecnologia utilizada no fabrico de tipos de metal, os tipos de

madeira eram normalmente fabricados por empresas distintas. Acontecia, usualmente, as

grandes typefoundries comercializarem tipos de madeira fornecidos por estas casas, como

já acontecia por exemplo, em 1865 com a casa Eglington, de Londres, que fornecia a con-

hecida fundidora de tipos H.W. Caslon and Co. (Kelly, 1969/2010). Outras vezes, ainda,

os fabricantes de tipos de madeira eram adquiridos pelos grandes fabricantes de tipos de

chumbo, ficando desta forma integrados nestas casas, que alargavam assim a sua área de

negócios. Foram os casos, por exemplo, da conhecida typefoundry inglesa Stephenson,

Blake que começou a produzir tipos de madeira autonomamente na primeira década do

séc. XX (Millington, 2002), ou da suíça Haas, que, em 1966, adquiriu o fabricante de

tipos suíço Roman Scherer (Kühne, 2009).

Em Portugal, não há registos de uma produção em massa especializada de tipos de ma-

deira. A Imprensa Nacional, por exemplo, chegou a produzir tipos de grandes dimensões

– é possível encontrar nos seus catálogos tipos de corpo 600 (cerca de 22 cm) – mas com

base em madeira, sendo a letra propriamente dita feita em chumbo, rectificada e montada

na base [fig. 30]. Era também de características semelhantes outro exemplo de entre nós

[Fig. 30] Tipos para cartaz produzidos pela Imprensa Nacional (espólio do Instituto Politécnico de Tomar)

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que foi possível termos conhecimento. Tratam-se dos tipos saídos da oficina de gravura

artística de Augusto Moreira Júnior (1904-1972), da Figueira da Foz49. Da sua oficina de

gravura, onde trabalhou durante muitos anos, além de inúmeras zincogravuras usadas

em tipografia, saíram tipos de letra. Não se sabe ao certo quantos – nem se terão sido

criados por ele – mas foi possível até agora identificar três diferentes. Com o topo em

zincogravura e a base em madeira, os seus tipos de letra são identificados graças ao cunho

que ostentam. De facto, à semelhança do hábito dos fabricantes de tipos de madeira dos

E.U.A. já desde o séc. XIX (Kelly, 1969/2010), a madeira era cravada lateralmente com o

nome do fabricante – Moreira Júnior – escrito em arco e, por baixo, o local, Fig. da Foz

[figs. 31 e 32].

49 Poucas ou nenhumas referências existem na literatura acerca deste autor. Sabe-se que foi desenhador dos Caminhos de Ferro da beira Alta e dedicava-se à “publicidade artística”, tendo desenhado inúmeros ex-libris, ilustrado jornais locais e capas de livros.

[Figs. 31 e 32] Tipos de Moreira Júnior (em cima) onde é possível visualizar o cunho e, à esquerda, exemplo de cunho em tipo norte-americano do séc. XIX V.W. & Co. 18 Dutch St. NY (http://www.letterpress.dwolske.com/page/27/ acedido a 28 de Agosto 2016)

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Entre nós, encontravam-se casas gravadoras que, entre outros trabalhos, faziam tipos de

madeira. Também se encontravam nas tipografias tipos gravados à mão de forma mais

artesanal – e mais toscos – provenientes de artesãos locais [fig. 33].

Estes tipos de grandes dimensões eram particularmente utilizados em cartazes de festas

populares, casas de espectáculos, circos, lutas ou corridas de touros50 [fig. 34].

Em Lisboa, existiam estabelecimentos especialistas nestes trabalhos, como a Tipografia

Freitas Brito, já encerrada, que fazia os cartazes para os espectáculos do Coliseu de Lis-

boa e outros eventos festivos na cidade.

Assim, exceptuando os produtores pontuais de tipos de madeira, a maioria dos tipos encon-

trados nas tipografias portuguesas eram importados. A Manuel Reis Morais & Irmão, por

exemplo – empresa já encerrada e uma das mais importantes que comercializou material

gráfico entre nós – vendia tipos de madeira da alemã Bauer. Também de Inglaterra, por

exemplo, provinham muitos destes tipos, produzidos na conhecida casa Delittle, de York.

50 A título de curiosidade, refira-se que, classicamente, os cartazes das touradas tinham uma base colorida litográfica – uma técnica mais cara – com motivos alusivos à tauromaquia, deixando áreas reservadas para a tipografia. Com a técnica tipográfica, era impresso o programa da tourada, sendo que diferentes corridas partilhavam a mesma imagem. Tecnicamente, o acto de imprimir no cartaz já existente era designado por “rubricar”. Os cartazes eram então impressos em máquinas como as Marinoni ou as Heidelberg cilíndricas, adequadas para estes grandes formatos.

[Fig. 33] Tipo de madeira produzidopor artesão da zona de Tomar

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Tal como na produção de tipos de chumbo, à medida que a tipografia de caracteres móveis

foi sendo abandonada com a consequente quebra na procura, as fábricas que produziam

tipos de madeira foram encerrando ou deixando de os produzir. Algumas, contudo, ti-

veram uma longevidade inesperada, como a inglesa Delitlle que encerrou as suas portas

em 199851 ou a norte-americana American Wood Type Mfg que produziu tipos de madeira

até 200152.

Actualmente, com o interesse que voltou a despertar a tipografia de caracteres móveis,

começa-se a assistir a um ressurgimento da produção de tipos de madeira numa pequena

escala. Alguns destes projectos têm fins comerciais, outros são de índole pessoal, tratan-

do-se de impressores que produzem tipos para seu próprio uso. No modo de fabrico, uns

são mais fiéis à forma tradicional com a utilização do pantógrafo, outros fazem uso de

51 http://www.woodtyperesearch.com/robert-james-de-little/ (acedido a 13 Junho de 2016)52 http://www.woodtyperesearch.com/american-wood-type-mfg-co/#identifier_8_662 (acedido a 13 Junho de 2016)

[Fig. 34] Cartaz de festaspopulares (anos 80 do século passado)

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tecnologias recentes que facilitam o processo, como sejam as fresadoras controladas por

computador ou o corte a laser. Salienta-se, nos E.U.A. a Virgin Wood Type. Criada em

2010 pelo casal Bill Jones e Geri McCormick após a compra de um pantógrafo e de várias

caixas com padrões originais de tipos de letra outrora pertencentes à já referida American

Wood Type Mfg. Apresentando na sua oferta vários tipos de letra clássicos de que pos-

suem os direitos – como, por exemplo a Gill Sans – a Virgin Wood Type propôs-se ainda,

desde o seu início, a produzir tipos que nunca antes tinham sido produzidos em madeira.

No que à produção para próprio uso diz respeito, salientam-se dois nomes que se têm

destacado na moderna impressão tipográfica, como são os casos do suiço Dafi Kühne do

estúdio Babyinktwice53 e de Pat Randle da inglesa Nomad Letterpress54, que têm vindo a

produzir alguns tipos de letras para os seus projectos. Destaque também para o projecto

Typewood, do já referido estúdio de design holandês Novo Typo, centrado no tipo de letra

Bixa [fig. 35]. Originalmente desenvolvida como uma web font multicolorida e destinada

apenas a uma existência digital, foi depois desenvolvido em madeira. Cada caractere tem

quatro cores, o que requer a necessidade de quatro impressões, remetendo-nos para os

caracteres cromáticos do século XIX ou ainda para os tipos de letra modulares modernis-

tas constituídos por partes separadas55.

Refira-se ainda o caso do Hamilton Wood Type & Printing Museum, que detém espólio

daquela que outrora foi a maior fábrica de tipos de madeira dos E.U.A., a Hamilton Wood

Type Manufacturing (que produziu tipos até 1995). Considerado um “museu vivo”, de-

tém toda a maquinaria necessária para a produção de tipos de madeira a funcionar em

perfeitas condições, contando com a colaboração de antigos trabalhadores na preservação

53 Estúdio criado em 2009, em Zurique, pelo designer gráfico e impressor tipográfico suiço Dafi Kuhne. Combinando design gráfico contemporâneo e técnicas digitais com antigas técnicas, é particularmente conhecido pelos seus cartazes para teatro, música, filmes, etc, desenvolvendo também outro tipo de peças. Além dos caracteres de metal e madeira que possui, ele próprio produz os seus tipos de madeira. Como refere Barmettler (2017, p.8): “Quando Dafi não tem o tipo de letra em madeira adequado para um dado projecto, ele mesmo o produz. Antes utilizava o laser, agora usa o seu próprio pantógrafo”. Utiliza ainda linogravura, fotopolímero e outras técnicas que considere adequadas para os trabalhos que estiver a desenvolver e de forma a ter controlo total sobre todo o processo de produção. Dá ainda cursos e workshops em várias escolas e universidades na Europa e nos E.U.A., além de ser presença regular em palestras e conferências em locais de referência como a St. Bride Library, em Londres, ou o Wayzgoose do Hamilton Wood Type and Printing Museum, nos E.U.A..54 Criada em 2011, em Inglaterra, por Pat Randle (filho de John Randle, da Whittington Press). Tem por objectivo dar continuidade à tradição da impressão tipográfica de alta qualidade, tanto nas edições próprias como no trabalho para clientes, assim como na formação de uma nova geração de impressores tipográficos.55 http://www.novotypo.nl/expo/Typewood.html (acedido a 18 de Dezembro de 2016)

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e transmissão a novas gerações dos segredos de uma arte que de outra forma se perderia

(Moran et al., 2004). Com uma actividade que varia entre a organização de workshops,

demonstrações, encontros de tipografia e exposições, o museu iniciou em 2002 o projecto

Wood Type Legacy. Trata-se de um projecto de colaboração com reputados type designers

a quem são encomendados tipos de letra originais para serem produzidos em madeira no

museu. O projecto iniciou-se com o conhecido type designer britânico Matthew Carter

que criou o tipo Van Lanen Latin. Erik Spiekermann, o internacionalmente reconhecido

designer alemão, foi outro dos autores, tendo criado o Artz (os nomes são atribuídos em

homenagem a antigos trabalhadores e a apoiantes do museu)56.

6.3. O fotopolímero

Desde finais do séc. XIX, com o desenvolvimento da zincogravura e a descoberta dos

processos fotomecânicos, quando havia necessidade de imprimir um logótipo, uma ilus-

tração, uma foto ou qualquer imagem que não pudesse ser obtida com o material tipográ-

fico de que uma oficina dispunha, recorria-se à zincogravura ou à fotogravura. Os jornais

56 http://woodtype.org/about/woodtypelegacyproject (acedido a 13 Junho de 2016)

[Fig. 35] Type specimen do tipo de letra Bixa

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e outras publicações dispunham de oficinas de gravura onde as realizavam. Já as restantes

casas tinham que recorrer a empresas especializadas para as produzirem. Tratava-se de

um processo caro e pouco imediato.

No início dos anos 60 do séc. XX aparecem as primeiras chapas fotopolímeras de nylon

(daí o processo também ser conhecido por nylonprint). Tratam-se de chapas fotossensí-

veis que, ao serem expostas à luz – e com a sobreposição de um fotolito com a imagem

pretendida em negativo – provocam o endurecimento do polímero, enquanto a parte não

exposta, pouco resistente, é removida. Este processo dá origem, assim, a uma superfície

com a imagem pretendida em relevo, semelhante à que se encontra no material tipográfi-

co [fig. 36]. Aplicando essa chapa a um calço57, pode depois ser usada para imprimir em

qualquer máquina tipográfica.

Já em 1972, a revista Prelo (publicada pela Imprensa Nacional), escrevia que as chapas

fotopolímeras tendiam a substituir os clichés de chumbo e borracha, elogiando a qualida-

de das impressões que era possível fazer se efectuadas as adaptações correctas nas máqui-

nas de imprimir. De facto, alguns jornais portugueses adoptaram este processo como uma

fase intermédia entre a impressão tipográfica e o offset (António Ruella Ramos, entrevista

com Fragoso, 2012, p. 162). No início, o método foi então considerado um meio de com-

bater a impressão offset – permitindo que se continuassem a usar as máquinas utilizadas

na impressão tipográfica – mas depressa se percebeu que era uma luta perdida.

No final dos anos 80 do século passado começam a surgir no mercado as chapas de

57 Suporte de determinada altura e dimensão (normalmente de metal ou madeira) sobre os quais se fixam as chapas, para elevá-las à altura do tipo (Marchetti, 1959, p. 269).

[Fig. 36] Placa de fotopolímero

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fotopolímero como as conhecemos hoje, com o processo de revelação simplifica-

do, sendo apenas necessário utilizar água (ao contrario dos mais complicados processos

utilizando solventes, que eram usados até aí)58 . Assim, com recurso a uma máquina de

preço acessível (é mesmo possível realizar o processo de forma manual) o fotopolímero

começou, então, a ser um auxiliar precioso para muitas tipografias.

Com o renovar do interesse pela TCM, o processo depressa foi adoptado pelos novos

impressores de países como os E.U.A., por exemplo, que viram nele a possibilidade de

imprimir – dentro dos limites da impressão tipográfica – qualquer criação feita num sof-

tware gráfico. Assiste-se, contudo, a um debate acerca da validade do uso do fotopolímero

em relação aos tradicionais tipos móveis. De facto, encontram-se frequentemente traba-

lhos feitos com esta técnica – nomeadamente convites de casamento, cartões de visita,

etc. – que não recorrem a qualquer dos elementos clássicos da tipografia (tipos, filetes,

vinhetas…), procurando-se unicamente o relevo característico das impressões tipográfi-

cas, sendo este normalmente exagerado de uma forma que seria reprovada por qualquer

impressor clássico [fig. 37]. É possível, inclusivamente, em sites internacionais, encon-

trar empresas que disponibilizam kits completos de impressão em fotopolímero, como

o Letterpress at home kit. Estes, incluem todo o material necessário, desde a máquina

de impressão a chapas de fotopolímero já gravadas com motivos decorativos e toalhetes

para limpeza das tintas. Apesar da frase publicitária Get everything you need to start off

your letterpress projects like a total pro!, é difícil encontrar nestes kits semelhanças com

o material existente numa oficina tipográfica59 [fig. 38 e 39].

58 Gerald Lange 2007 http://www.briarpress.org/7499 (acedido dia 22/05/2016)59 https://www.brit.co/shop/catalog/letterpress-ultimate-kit_34060/ (acedido dia 14/09/2016)

[Fig. 37] Convite de casamaneto feito com recursoa uma chapa de fotopolímero

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6.4. Experiências com novos materiais e texturas

O final da produção em grande escala de tipos móveis, com a consequente crescente

dificuldade que se encontra actualmente na sua aquisição, tem levado a inúmeras expe-

riências de fabrico por parte dos impressores tipográficos contemporâneos. Referimo-nos

aqui à produção de tipos em tamanhos grandes, normalmente bastante utilizados e alvo

de grande procura. Além dos já referidos tipos em madeira que são feitos actualmente

replicando os métodos de produção clássicos, outros materiais têm sido utilizados.

Salienta-se aqui, que já desde o séc. XIX se procuravam materiais alternativos à madeira

no fabrico de tipos para cartaz. Além dos já mencionados com a letra em metal e a base

em madeira – que eram comuns nas nossas oficinas tipográficas – também se encontra-

vam com a mesma base mas com a letra em plástico (já em 1886, nos E.U.A., havia referên-

cias a tipos com o topo em celulóide montados numa base de madeira (Kelly, 1969/2010).

[Fig. 38] Letterpress at home kit

[Fig. 39] Imagem do anúncio promocionalem que a apresentadora mostra os postaisque é possível fazer com recurso ao kit

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A suíça Haas fabricou até aos anos 80 do século passado tipos feitos totalmente em plástico,

sendo fabricados com a utilização do pantógrafo, tal como os tipos de madeira, com a

vantagem de serem mais robustos e duradouros (Kühne, 2009). A alemã Berthold, que foi

uma das maiores e mais importantes typefoundries do mundo comercializava tipos numa

resina que designava como Plakadur. Também em Itália, a Xilografia Adige, de Verona,

fabricava tipos em plástico (Clough & Scattolin, 2014). Estes, também por cá eram co-

mercializados e se encontravam nas nossas oficinas tipográficas. Menos comuns eram os

tipos em acrílico ou os que eram feitos em alumínio – metal leve mas resistente – como

os fabricados pela Haas até meados dos anos 80 do século XX (Kühne, 2009).

Actualmente, também se assiste ao experienciar de soluções originais com materiais ou

texturas naquela que é uma vertente mais experimental da impressão tipográfica. Utili-

zam-se, assim, uma série de texturas de objectos estranhos ao universo da tipografia –

como dados de jogar, antigos discos de vinil ou peças de Lego [fig. 40] – aproveitando o

[Fig. 40] Impressões com dados de jogar e peças de Lego

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seu relevo para criar impressões com a técnica tipográfica (por vezes, nestes casos, nos

sites em língua inglesa verifica-se a utilização do termo relief printing ao invés de letter-

press). Estas impressões, tanto se apresentam isoladas, como em conjugação com tipos

móveis clássicos. Salienta-se, aqui, a tese do já referido designer gráfico e impressor

suíço Dafi Kühne (2009). Com o título Woodtype now! A current investigation of the use

of wood type for poster printing in the twenty-first century, o projecto explora diferentes

métodos experimentais de produção para a impressão tipográfica contemporânea, tanto

para tipos móveis como texturas. Explorando as suas potencialidades e limitações, este

designer vai utilizar desde a madeira, o linóleo ou o acrílico, até ao cartão, a película ade-

siva ou outros mais inusitados, como a criação de texturas lineares ou cruzadas ao enrolar

linha ao redor de uma placa de impressão.

Na actualidade, entre muitos outros casos de experiências com materiais na produção de

tipos móveis, referimos o caso do já citado Erik Spiekermann, renomado type designer

alemão que nos últimos anos se tem vindo a dedicar à impressão tipográfica no seu estú-

dio P98a, em Berlim.

Com o objectivo de pesquisar como a impressão tipográfica pode ser redefinida na era

digital60, o estúdio tem estado envolvido em várias experiências, tanto a nível dos ma-

teriais utilizados, como das ferramentas para os trabalhar. Entre estas, da forma mais

convencional com a utilização do pantógrafo, à utilização de fresadoras e do corte a laser

e impressão 3D, várias foram as técnicas utilizadas61. Entre os materiais, além de dife-

rentes tipos de madeira, foram feitas letras em acrílico (letra em acrílico montada numa

base de madeira), formica, magnésio, resinas, entre outras [fig. 41]. A partir dos ficheiros

digitais de Spiekerman, foram, assim, experimentadas várias possibilidades de fabrico de

tipos, analisando a qualidade da sua impressão e a sua durabilidade (e resistência a óleos,

soluções de limpeza e outros solventes usados em tipografia62, além de procurar qual o

material certo para cada tipo de letra, tendo em conta as características desta e os pontos

fortes e fracos de cada método63. O estúdio procura, assim, produzir tipos com qualidade

60 https://www.fontshop.com/content/printing-with-real-wood-type (acedido a 15 Julho de 2016)61 https://www.p98a.com/collection/making-our-own-type (acedido a 15 Julho de 2016)62 http://woodtypecustoms.com/making-wood-type/ (acedido a 15 Julho de 2016)63 http://creativepro.com/redefining-letterpress-digital-age/ (acedido a 15 Julho de 2016)

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para a nova vaga de impressores, sejam eles novas criações, sejam tipos já existentes 64.

Erik Spiekermann procura, desta forma, fazer da tipografia um processo viável e signifi-

cativo na era digital65.

6.5. A impressão 3D

Nos últimos anos, com o desenvolvimento e vulgarização da impressão 3D – anunciada

como a “segunda revolução industrial” – rapidamente a nova geração de tipógrafos ante-

viu o seu potencial para fabrico de tipos móveis. Com esta tecnologia, também conhecida

por additive manufacturing (AM), é possível materializar objectos a partir de modelos

tridimensionais em ficheiros digitais. Sendo os polímeros e as resinas o material mais co-

mum em que os modelos podem ser materializados, a sua constante evolução já permite,

por exemplo, o uso de metais, alargando, de uma forma difícil de prever, as possibilidades

de fabrico de tipos móveis no futuro.

Para Erik Spiekermann, no entanto, o óbice ao fabrico de tipos através de impressão 3D,

na actualidade, ainda é o elevado custo da matéria prima. Afirma, no entanto, aguardar

que o processo se torne uma alternativa razoável66.

64 http://woodtypecustoms.com/making-wood-type/ (acedido a 15 Julho de 2016)65 http://creativepro.com/redefining-letterpress-digital-age/ (acedido a 15 Julho de 2016)66 http://woodtypecustoms.com/making-wood-type/ (acedido a 9 Julho de 2016)

[Fig. 41] Vários exemplos de materiais utilizados por Spiekermann

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De entre as experiências desenvolvidas com tipos móveis produzidos a partir de impres-

são 3D, um exemplo paradigmático foi desenvolvido pela britânica New North Press.

Criada em Londres em 1986, é um atelier especialista em impressão tipográfica e empe-

nhado na divulgação da técnica e sua manutenção no séc XXI 67. Com o final da produção

de tipos móveis em larga escala e a vulgarização da tecnologia de impressão 3D, este

projecto, financiado pelo Arts Council, pretendia entender o que a nova tecnologia podia

trazer ao processo, suas capacidades e limitações68. Foi, então, encomendado o desenho

de um novo tipo de letra a Scott Williams e Henrik Kubel, conhecidos type designers do

estúdio londrino A2-Type. Surgiu, assim, a A23D, uma fonte tipográfica com um desenho

deliberadamente complexo – remete para uma estrutura em wireframe, típica do desenho

tridimensional e referencia à natureza do projecto – e que, ao mesmo tempo que desa-

fiava a noção daquilo que a impressão tipográfica poderia ser, testava as capacidades da

impressão 3D e o nível de detalhe que pode atingir. Após a escolha – que não se afigurou

fácil – de uma empresa especialista neste tipo de impressão que garantisse a qualidade

da impressão final, foram, então, produzidos em resina acrílica os tipos móveis da A23D

com a exacta altura tipográfica, prontos para serem impressos como se de tipos de chum-

bo ou madeira se tratassem69 [figs. 42 e 43]. Em 2014, quase dois anos após o seu início, o

projecto teve, assim, um desfecho gratificante, e a A23D faz agora parte do vasto espólio

de tipos à disposição da New North Press.

67 http://www.new-north-press.co.uk/about-us.html (acedido a 9 Julho de 2016)68 http://www.new-north-press.co.uk/A23D.html (acedido a 9 Julho de 2016)69 http://www.chalkstudios.co.uk/project/a23d-3d-printed-letterpress/ e http://www.chalkstudios.co.uk/2014/09/12/a23d-typeface/ (acedido a 9 Julho de 2016)

[Figs. 42 e 43] O tipo de letra A23D no prelo, e depois de impresso

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6.6. A procura de material tipográfico para as actuais oficinas de TCM

Nos últimos anos, com o interesse que voltou a despertar a TCM, um considerável núme-

ro de pessoas procura adquirir equipamento tipográfico. Esta não é, todavia, uma tarefa

fácil. De facto, ao contrário de outras técnicas de impressão, como a serigrafia ou a gra-

vura, o material de tipografia já não é produzido70. Por outro lado, a constatação deste

interesse tem levado a que o pouco material ainda existente seja com frequência alvo de

especulação por parte de quem o tem e pretende comercializar, atingindo normalmente

preços bastante elevados, como se pode verificar em sites de vendas na internet, normal-

mente procurados pelos interessados.

Ainda assim, muito material tipográfico foi e continua a ser comercializado para ser ven-

dido ao quilo para sucata, sendo então já bastantes aqueles que procuram resgatá-lo para

o colocar de novo a funcionar, numa nova vida sem os objectivos comerciais de outrora.

Efectivamente, com a passagem para o offset e mais recentemente para o digital, muitas

tipografias foram-se desfazendo do material considerado obsoleto que possuíam. Sendo a

falta de espaço quase sempre um problema, libertaram-se de máquinas e de cavaletes com

os seus tipos. As poucas casas que se modernizaram e que continuam a manter material

antigo, fazem-no quase sempre por razões afectivas, sendo vários os casos de tipografias

que têm esse material organizado como se de um museu se tratasse [fig. 44]. Outras,

70 Na realidade, como já foi abordado, verifica-se em nalguns países uma produção numa escala quase residual de caracteres móveis, tanto de chumbo como de madeira, em boa parte dos casos da responsabilidade de pessoas que são elas próprias entusiastas da impressão com caracteres móveis. Também é ainda possível encontrar prelos de provas em produção. Este fabrico quase artesanal, contudo, origina preços normalmente bastante elevados, que, acrescidos do valor do envio, faz com que a sua compra praticamente não seja ponderada pelos nossos impressores.

[Figs. 44] Antigas máquinas tipográficasem exposição na Uniarte Gráfica, Porto

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ainda, não se tendo chegado a modernizar, acabam inevitavelmente por encerrar portas.

Com efeito, se durante décadas, com a TCM, era possível ser rentável sem mudar de eq-

uipamento, nas últimas tem-se assistido a uma rápida evolução, levando ao encerramento

de inúmeras casas. Comerciantes especialistas nestas transacções compram os recheios

destas oficinas. O chumbo é vendido ao quilo para ser derretido com fins tão inusitados

como o fabrico de munições para tiro aos pratos. Quanto aos tipos de madeira, à primeira

vista sem valor comercial, vêem os seus anos de contacto com o petróleo e outros líquidos

inflamáveis torná-los numa óptima alternativa à lenha para lareiras e fogareiros. Como re-

lata Durão (2003, p.219) a propósito da tipografia onde efectuou o seu trabalho de campo

em antropologia:

“Aquando das obras de 1997, os velhos e raros tipos em madeira que serviram outrora para compor os cartazes, que deram fama e reconhecimento à tipografia, foram usados pelos operários construtores para fazerem a lenha dos churrascos de Verão (...)”

Também os cavaletes ou as bases em madeira das zincogravuras (às quais anteriormente

é retirado o metal, destinado à venda ao quilo) acabam muitas vezes da mesma forma. As

máquinas sem valor comercial são desmanteladas e o metal é vendido a peso.

O material vai assim desaparecendo sem ser reposto. Paradoxalmente, à medida que a

oferta diminui, o interesse pela TCM vai crescendo e aumentando o número de interessa-

dos em possuir este tipo de equipamento, que vai aparecendo frequentemente nos sites de

vendas com o inflacionado rótulo de vintage.

A aquisição de material, é, então, um obstáculo com que se depara quem pretende ini-

ciar-se na TCM com equipamento próprio (e para aqueles que, já o tendo, pretendem

aumentar o espólio). Apesar das dificuldades, contudo, a demanda continua. Não obstan-

te, o futuro de uma técnica que usa material que se desgasta e não tem hipótese de ser

substituído, torna-se uma incógnita.

6.7. As novas oficinas tipográficas e o seu equipamento

Neste renascimento da TCM no século XXI, verifica-se que as máquinas de impressão

mais usadas e procuradas são os antigos prelos de provas, encontrando-se também em uti-

lização máquinas manuais do tipo minerva. Tratam-se de máquinas com uma tecnologia

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simples e puramente mecânica. A sua manutenção requer poucos conhecimentos técnicos

e baseia-se, em boa parte, numa questão de senso comum (Jury, 2011).

Os prelos, eram as máquinas que nas oficinas tipográficas serviam para tirar provas [fig.

45], seguindo a composição tipográfica, após as correcções, para impressão em máqui-

nas como as minervas automáticas ou as plano-cilíndricas, mais complexas e preparadas

para a impressão em grande escala. Tratam-se de máquinas fáceis de usar e que requerem

pouca manutenção, não representando perigo para a integridade física de um utilizador

menos cuidadoso e experiente. Também o facto da composição a imprimir ser montada

no próprio prelo (na cama do prelo) e na posição horizontal, ajuda o tipógrafo amador,

que conta com a preciosa ajuda da gravidade, para que uma composição mal ajustada

não se despenhe no chão ao ser colocada na posição vertical, utilizada, por exemplo, nas

máquinas minerva. A grande área de impressão destas máquinas, permite-lhes imprimir

vários formatos, desde postais e plaquettes71 a cartazes. Já durante os 48 anos que durou

71 Pequenas publicações de conteúdo literário, normalmente poesia ou contos. As plaquettes são um formato comum na produção de boa parte das associações e ateliers que entre nós se dedicam à TCM.

[Figs. 45] Tiragem de prova com prelo (imagem do filme Os tipógrafos, 1978, de António de Macedo, cortesiaCinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)

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a ditadura em Portugal, estas máquinas eram usadas na imprensa clandestina pela fac-

ilidade de utilização (e mesmo de construção de modelos rudimentares), ideal para os

muitos compositores e impressores que não eram oriundos da profissão, sendo os funda-

mentos da actividade transmitidos pelos elementos mais experientes (Pires, 2011). Apesar

de muitos dos modelos que eram comercializados entre nós serem de origem estrangeira,

também por cá se fabricavam, nomeadamente no Porto, na conhecida firma de artes gráfi-

cas (já desaparecida) Manuel Reis Morais & Irmão e na Fundição do Campo Alegre.

Variando em complexidade, os modelos mais comuns tinham um único rolo ou cilindro

impressor, sendo a tintagem feita folha a folha com um rolo de mão, podendo existir, ou

não, registo para a folha72. Outros, mais complexos, incorporavam rolos de tintagem,

permitindo uma maior facilidade e rapidez na tiragem de provas. Pouco comuns em Por-

tugal, eram os prelos cilíndricos de precisão como os já mencionados Vandercook ou os

suíços FAG, alguns com motor para tintagem automática, que tiravam provas nítidas e em

perfeito registo, fosse de texto ou de fotogravuras, tanto a preto como a cores. Com uma

qualidade de impressão pelo menos tão boa como as máquinas automáticas, estes prelos

eram ideais para pequenas tiragens. Muito comuns noutros países e presença habitual

em ateliers estrangeiros que se dedicam actualmente à técnica, o preço destas máquinas

afastava-as das nossas oficinas tipográficas mais pequenas, apenas se encontrando nas

grandes casas impressoras. A Imprensa Nacional, por exemplo, tinha um modelo do fab-

ricante suíço FAG. Ali, eram utilizados – numa primeira fase do offset – para tirar provas

tipográficas com a qualidade necessária para, através de processo fotográfico, gravar a

chapa destinada à máquina de impressão offset73. Ainda assim, em dois dos locais estu-

dados nesta dissertação, foi possível encontrar dois exemplares de fabrico alemão, um

Korrex na Tipografia Dias e um Asbern no Atelier Artes & Letras, este último vindo

recentemente da Alemanha.

O outro tipo de máquina encontrado em quase todos os locais que foram alvo da nossa análise,

são as máquinas de tipo minerva, normalmente de bancada, mas também a pedal. Esta é a de-

nominação usual das máquinas de platina, bastante comuns nas oficinas tipográficas portugue-

sas. Na origem do nome está a marca da primeira máquina desse género construída na Europa.

72 A criação do primeiro modelo de prelo deste tipo é normalmente atribuída a Stephen Tucker, da firma norte-ameri-cana R. Hoe & Co. que os comercializou a partir de 1844 (Moran, 1973).73 Entrevista a António Guilhermino Pires

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Inventada nos Estados Unidos, o protótipo dessas máquinas, a Gordon, causou grande en-

tusiasmo quando foi exposta na Exposição de Londres em 1862 e não tardou a ser imitada.

A empresa H.S. Cropper & Co. de Nottingham começou, então, em 1867 a comercializar

o modelo Minerva sendo seguida em 1869 pelo parisiense Berthier que afrancesou o nome

para Minerve. A difusão alcançada por essas marcas generalizou o hábito de se chamar mi-

nerva a todas as máquinas desse tipo e minervista ao seu operador (Porta, 1958).

Nas antigas oficinas tipográficas, estas máquinas eram as preferidas para pequenos tra-

balhos comerciais, por serem de manejo fácil e de preço mais acessível. Necessitando de

pouca força motriz, o espaço que exigiam era pequeno e trabalhavam com um pessoal

limitado (Marchetti, 1960).

De marginação manual74 estas máquinas podiam ser accionadas a pedal ou manualmente

(nos modelos mais pequenos) através de um braço e a área de impressão podia variar en-

tre pouco mais que um cartão de visita e o tamanho de uma página de jornal. O engenho

de muitos tipógrafos levava-os frequentemente a adaptarem um motor – de máquina de

lavar, por exemplo – às máquinas a pedal, tornando a tarefa de impressão menos árdua.

Posteriormente, surgiram modelos que já vinham com os motores incorporados, sendo

estas máquinas conhecidas por semi-automáticas. A marginação, contudo, continuava a

ser manual [fig. 46].

74 Acto de colocar a folha, uma a uma, na máquina, encostando-a nas balizas, de forma a ser impressa, retirando-a a seguir.

[Figs. 46] Máquina minerva manual de bancada(espólio O Homem do Saco)

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Mais tarde, surgiram então as máquinas com marginação automática sendo a mais conhe-

cida a produzida pela marca alemã Heidelberg. Efectivamente, o modelo conhecido entre

nós por Heidelberg de pinças era omnipresente nas tipografias portuguesas75. O nome

pelo qual era conhecido deve-se ao engenhoso sistema que possuía, no qual, através de

um mecanismo de sucção, um braço mecânico retirava a folha de papel da pilha colocan-

do-a na platina da máquina. Após ser impressa, outro braço retirava a folha depositando-a

no local destinado às folhas impressas. Nas tipografias mais pequenas, era comum ser

este o único tipo de máquina de impressão existente. Já em 1954, a conhecida empresa

de material gráfico Manuel Reis Morais & Irmão, representante da marca, anunciava na

sua publicidade “mais de 325 unidades a trabalhar em Portugal, Ilhas e Províncias Ultra-

marinas” [fig. 47].

Robustas e feitas para durar, ainda é frequente encontrá-las em modernas gráficas, já não

para impressão mas para fazer corte e vinco ou numeração.

75 O protótipo desta máquina data de 1916, tendo estado em produção, com sucessivos melhoramentos até 1985.

[Figs. 47] Publicidadeà máquina Heidelberg de pinças.Jornal O Gráfico, 1954.

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Dos casos que abordamos nesta dissertação, o único que possui uma Heidelberg são as

publicações Serrote, nos outros exemplos, tratam-se de máquinas manuais, accionadas a

alavanca ou a pedal. Comparando com os já referidos prelos, estas máquinas permitem

um registo mais perfeito, além de uma impressão normalmente com maior qualidade e

mais rápida (ao ser accionada a máquina, os rolos vão buscar a tinta ao prato de tintagem

e passam-na sobre a composição, que, depois de tintada, vê a folha de papel – deposit-

ada numa zona denominada “platina” – ir ao seu encontro e ser impressa, sendo então

a tintagem e a impressão feitas de uma vez, tudo num único movimento cíclico, que

com a experiência se pode tornar bastante rápido). Uma das desvantagens destas máqui-

nas é o tamanho da área de impressão. Apesar de variar, nas mais comuns esta área é

pequena (eram máquinas normalmente utilizadas para pequenos trabalhos tipográficos,

por exemplo, cartões de visita). Os tamanhos maiores, usualmente accionados a pedal,

não costumam passar do formato A4, tamanho normalmente ultrapassado pelos prelos

mais pequenos. São, ainda, máquinas mais complicadas de afinar por um tipógrafo pouco

experiente, não sendo incomum a obtenção de impressões com uma tintagem desigual.

Para além do processo de limpeza após a utilização e a própria manutenção serem mais

morosos, há ainda a necessidade já referida atrás de uma maior perícia aquando da com-

posição, de maneira a que esta fique ajustada firmemente não correndo o risco de se soltar

aquando do transporte para a máquina ou durante o seu funcionamento (correndo neste

caso o risco de danificar o tipo).

Também a maioria das máquinas por cá utilizadas era de origem estrangeira, apesar de

também terem sido aqui fabricadas, nomeadamente pela firma Luiz Maceira, do Porto,

que se destacou na produção de minervas de prato e eléctricas76. Nas novas oficinas tipo-

gráficas que estamos a abordar, estas máquinas são normalmente utilizadas para imprimir

postais ou as já mencionadas plaquettes.

De referir, como já foi dito anteriormente, que tanto os prelos como as máquinas minerva

têm-se tornado cada vez mais difíceis de obter, tendo as poucas máquinas que aparecem

à venda, os preços cada vez mais inflacionados. As pequenas minervas de bancada são

particularmente procuradas como decoração, sendo um adorno comum nas recepções de

muitas gráficas modernas.

76 Augusto Monteiro (comunicação pessoal, Dezembro 21, 2016)

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7. O ensino da TCM e a sua evolução

7.1. O panorama nacional

Quando a TCM era a técnica dominante na impressão comercial, o acesso à profissão

era feito em escolas profissionais [fig. 48]77 ou, mais vulgarmente, nas próprias oficinas

tipográficas. Começando normalmente bastante novo como aprendiz – muitas vezes em

tarefas subsidiárias à produção e sem salário – o futuro tipógrafo tinha à sua frente um

percurso lento e bastante hierarquizado, onde ia aprendendo a conjugar regras e habili-

dade (Durão, 2003). No mínimo, eram necessários cinco anos para se chegar ao posto

seguinte, o de auxiliar e mais quatro para se chegar a oficial78.

77 Até há algumas décadas atrás, a tipografia era um ofício normalmente ensinado nas escolas profissionais – fosse no ensino oficial, fosse no particular – ao lado de ofícios como a marcenaria, alfaiataria, etc. No ensino particular, eram de salientar as instituições ligadas à igreja, com destaque para as Oficinas de São José, dos Salesianos. Também instituições de solidariedade social, como a Casa Pia, dispunham de formação profissional em tipografia. Eram cursos de cinco anos, saindo os alunos com a categoria da meios-oficiais. A título de curiosidade histórica, refira-se que as escolas profissionais de “casas de caridade, cadeias civis, reformatórios...” eram acusadas pelos industriais gráficos de produzirem trabalho para o exterior ao arrepio das normas vigentes para as tipografias comerciais, constituindo um “sério e desleal concorrente” para estas (Moita, 1941).78 Tratava-se, pois, de um mínimo de nove anos para progredir de aprendiz a oficial, número fixado pelo Estado Novo, sendo que nas últimas décadas do século XX apenas baixou para sete (Durão, 2000).

[Fig. 48] Alunos do curso de Composiçãoe Impressão das Oficinas de S. José,Salesianos (anos 60 do século passado)

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Para passar de categoria, o operário era legalmente obrigado a submeter-se a exame de

provas (realizado pelos sindicatos corporativos em colaboração com os grémios e o Ins-

tituto Nacional de Trabalho e Previdência) ficando dessa forma a sua categoria averbada

na sua carteira profissional [fig. 49], obrigatória para exercer o ofício de tipógrafo desde

1942 até pelo menos 1974 (Durão, 2000, 2003).

Tratava-se de um nível de exigência e de rigor necessário para a complexidade e minúcia

do trabalho diário ao longo de uma vida nas oficinas tipográficas. Preparava os operários

para dar resposta a situações em que era necessário encontrar uma série de estratégias

para que o trabalho saísse com a maior perfeição possível. O fazer bem era o lema de

uma técnica com uma dimensão essencialmente funcional. Ao tornar-se comercialmente

inviável, deixou de haver aprendizagem da técnica num sentido profissionalizante. Esta,

começou entretanto a ser procurada por estudantes de design, artistas, pessoas dedicadas

à auto-edição, ou simples curiosos. Com objectivos de aprendizagem bem distintos, aque-

les que procuram a técnica actualmente já não vão desenvolver uma relação de prática

quotidiana com ela, procurando-a normalmente para uma utilização menos convencional

e mais experimental. Sem o nível de exigência outrora exigido, boa parte procura apenas

as regras básicas da técnica que lhes permitam explorá-la de forma autónoma através do

aprender fazendo.

[Fig. 49] Carteira profissional de um tipógrafo compositor (meados do século passado)

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Paradigmático no que diz respeito ao confronto entre estas duas realidades de aprendiza-

gem é o caso relatado por Susana Durão (2003). Quis o acaso que esta investigadora esti-

vesse a fazer o seu trabalho de campo em antropologia na oficina tipográfica lisboeta onde

Jorge dos Reis – à época estudante de Design de Comunicação e de quem se falará mais

adiante – se propôs como aprendiz. São-nos, assim, relatadas, algumas tensões entre este

e o oficial sexagenário responsável pela sua aprendizagem. Querendo aprender a técnica,

Jorge dos Reis rapidamente passou pelas etapas tradicionais de aprendizagem. Estava, no

entanto, longe de ser o clássico aprendiz das oficinas de tipografia. Com o seu background

em design gráfico, depressa criou algumas composições que reflectiam essa origem, de-

monstrando originalidade no uso das ferramentas dos tipógrafos. Numa profissão em que

a experimentação estava reservada para os elementos mais experientes da hierarquia, este

via a sua liberdade criativa ser criticada (Marques & Durão, 2001). Segundo o seu mes-

tre “um aprendiz, antes de ser um bom profissional demora cinco anos. Não o é em duas

semanas” (Durão, 2003, p.251) ou “isto é como na tropa, não se vai logo para capitão”

(Durão, 2003, p.252). Ao pretender assinar um dos seus trabalhos como tipógrafo, Jorge

dos Reis também não encontrou concordância na oficina, onde afirmaram que este não era

tipógrafo. Ressalve-se que estas atitudes, contudo, não impediam que o mesmo aprendiz

fosse louvado e ajudado pelos tipógrafos pelo seu desejo de aprender as técnicas manuais.

Curiosamente, a fase de aprendizagem de Jorge dos Reis chegou a coincidir com o iní-

cio da sua actividade como professor da mesma técnica numa escola de artes, de que se

falará mais adiante. Neste último papel, Jorge filtrava aquilo que considerava ser o mais

importante de apreender pelos novos aprendizes da técnica. Por exemplo, a memorização

da caixa tipográfica79, que é exigida aos aprendizes numa fase inicial, não o era por Jorge

aos seus alunos, que dispunham de uma folha com a indicação do local das letras. Estes,

eram avaliados pela criatividade e originalidade do projecto pessoal que resultava da

integração de conhecimentos conceptuais, ao invés de serem avaliados pela sua destreza

79 Utensílio, vulgarmente em madeira, onde se colocam os caracteres tipográficos, em ordem pré-estabelecida; divide-se em caixa alta e caixa baixa; sofrendo várias transformações com o evoluir da arte de compor, a que presentemente é utilizada na maioria das oficinas de composição, divide-se em parte superior (caixa alta), com 68 compartimentos e parte inferior (caixa baixa), com 61 compartimentos; na parte superior, à esquerda encontramos as letras maiúsculas simples e acentuadas; à direita situam-se os diversos sinais auxiliares de acentuação, e as acentuadas minúsculas; na parte inferior, e mercê de uma prática corrente que permite um trabalho racional com o mínimo de busca por parte do compositor, encontram-se as letras minúsculas e os sinais de pontuação, espaços e material de enchimento de linhas (Vilela, 1976, p.23).

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de execução. Ou seja, na fase da composição valorizava-se sobretudo a concepção. Já não

se tratavam, pois, de aprendizes integrados numa estrutura empresarial, mas de alunos que

eram incentivados a utilizar a técnica para fins cognitivos, para que, através do manusea-

mento dos tipos, compreendessem a estrutura das letras, a sua dimensão e desenho e que uti-

lizassem os espaços brancos das folhas, que soubessem fazer o balanço entre a informação

escrita e a criatividade da imagem (Durão, 1999). Esperava-se, assim, que os alunos (can-

didatos a designers) apresentassem qualidades individuais ou que, pelo menos, integrassem

na sua experiência de vida os conteúdos temáticos ensinados (Durão, 2003).

No que diz respeito ao ensino da TCM após a técnica se ter tornado comercialmente ob-

soleta, destaca-se a escola Ar.Co, em Lisboa. Em meados dos anos 90, esta escola criou a

sua oficina tipográfica, tendo proporcionado nos seus workshops o primeiro contacto com

a técnica a muitos interessados. Entre eles, alguns dos que mais tarde viriam a constituir

associações e ateliers que fazem actualmente uso dela. No Porto, a Escola Soares dos Reis

mantém em uso a sua oficina tipográfica do tempo em que, como escola profissional, a tipo-

grafia era uma das saídas. Em Tomar, também o Instituto Politécnico possui uma oficina de

tipografia. Das oficinas tipográficas destas três escolas se falará, pela sua importância, mais

adiante. Em termos de instituições de ensino, no escasso panorama português destacam-se,

assim, estas três80. Actualmente, com o interesse que tem voltado a despertar a tipografia de

caracteres móveis, outras instituições têm procurado adquirir equipamento que lhes permita

dispor de uma oficina de tipografia. Destaca-se, aqui, a ESAD - Escola Superior de Artes e

Design de Matosinhos, que se prepara para contar também com este equipamento. A escas-

sez e dificuldade de encontrar este material, aliada à frequente especulação de preços que a

sua procura fomenta, é um obstáculo a que surjam novos espaços do género.

Exceptuando o caso das referidas escolas, nos últimos anos o papel da divulgação e ensino

da tipografia de caracteres móveis tem estado sobretudo a cargo dos ateliers e associações

que se têm vindo a dedicar à sua recuperação e utilização. De facto, algumas delas têm-se

evidenciado pela regularidade com que promovem workshops e demonstrações da técnica.

É o caso da Oficina do Cego, desde 2010 [fig. 50], do Homem do Saco, ou, mais recente-

mente, da Tipografia Dias. Também em Coimbra, o Clube dos Tipos promove regularmente

workshops em colaboração com a Tipografia Damasceno.

80 Há, ainda, referência a pequenas escolas profissionais que possuem este tipo de equipamento.

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7.1.1. A oficina de tipografia do Ar.Co

Apesar do primeiro workshop de tipografia ter tido lugar em 1998, a ligação da escola

à arte tipográfica vem praticamente do seu início. Autónoma e independente, com uma

forte ênfase na experimentação prática, a escola foi criada em 1973 com a “ambição de

construir uma alternativa para a situação do ensino artístico em Portugal” (Caldas, M.C.,

Cabral, M.C., & Costa, J.B., 1998, p. 34). Destaca-se aqui o papel do já referido Robin

Fior, que ali iniciou a sua actividade como docente do Departamento de Design em 1974.

Habituado à tradição inglesa da existência de oficinas de tipografia nas escolas de arte e

da sua importância no ensino do design, Robin – que pouco demora a tornar-se respon-

sável de sector – introduziu uma pedagogia que resultava da sua própria experiência. O

ensino da tipografia, aqui no sentido mais lato da palavra – considerado por si uma das

bases de sustentação do design gráfico – foi uma das prioridades (Bom, 2013).

No ano lectivo de 1977/78, Robin leccionou o workshop “Artes Gráficas”. O programa

comtemplava a Introdução à Tipografia (composição manual e impressão) como meio de

concepção e organização do texto [fig. 51].

Apesar da escola ainda não possuir uma oficina tipográfica, a colaboração com a Ti-

pografia Proença – Cooperativa Operária de Artes Gráficas (onde Robin imprimiu

[Fig. 50] Demonstração de TCM na XVI Feira Laica, Julho de 2010, pela Oficina do Cego

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também alguns dos trabalhos de divulgação gráfica que fez para a escola) permitiu que

os alunos tivessem acesso à técnica (Bom, 2013).

Em 1980, Robin Fior deixa o Ar.Co., para voltar a leccionar na escola em meados dos

anos 90. Em 1994, a pedido da direcção do Ar.Co, elabora um relatório sobre aquilo que

seria a estrutura ideal do Departamento de Desenho Gráfico. Afirma, então, que “a expe-

riência de manusear tipos – contra o imaterial do ecrã – é essencial”. Considera, assim,

como sendo uma peça-chave a criação de uma oficina tipográfica. Esta, tornar-se-ia “o

coração de um departamento renovado. Um centro de comunicação visual digno do ar.co”

(Fior, 1994).

A ideia tem receptividade e a oficina tipográfica vai ser implementada por Nuno Vale

Cardoso, responsável de departamento. Também professor na FBAUL, Vale Cardoso ti-

nha como aluno Jorge dos Reis, estudante do curso de Design Gráfico com grande inte-

resse pela TCM, sendo na altura aprendiz na já referida antiga tipografia lisboeta. Com a

sua colaboração, foi então adquirido o material considerado necessário para a criação da

oficina. Na altura, além do material tipográfico ainda se encontrar disponível comercial-

mente, muitas tipografias encerravam ou se desfaziam do material considerado obsoleto,

[Fig. 51] Folheto de divulgação da oferta formativa do Ar.Co (capa e pormenor da descrição da Oficina Gráfica)

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tendo a escola conseguido reunir um interessante espólio tipográfico. Em 1998, tem por

fim lugar o primeiro workshop de tipografia, dirigido por Jorge dos Reis, que se manteve

vários anos a orientar as ditas aulas [fig. 52].

As aulas de tipografia faziam parte do curso de Design Gráfico ou podiam ser frequenta-

das nos workshops que ocorriam periodicamente. Com a descida continuada do número

de inscrições, o departamento é extinto em 2013, mantendo-se a oficina de tipografia81,

que presentemente tem um funcionamento irregular.

7.1.2. A escola Soares dos Reis

No Porto, a Escola Artística de Soares dos Reis é outro dos estabelecimentos de ensino que dispõe de oficina tipográfica. Esta, ao contrário da oficina do Ar.Co, vem do tempo em que a técnica era procurada como saída profissional.

Escola criada oficialmente em Janeiro de 1884, a sua área de artes gráficas começa a de-senvolver-se em 1948 a partir da publicação do Estatuto do Ensino Técnico Profissional.

81 http://www.arcoabecedario.pt/entries/63?locale=pt (acedido a 22 de Julho de 2016)

[Fig. 52] Cartaz de divulgaçãode workshop de tipografia no Ar.Co, 2001

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Na área da tipografia existiam os cursos de Compositor Tipógrafo e Impressor Tipógrafo [fig. 53]. Tratavam-se de cursos de cinco anos – como era normal nos cursos profissio-nais da área – com parte teórica e oficinal. Os professores tinham que ser profissionais inseridos no mercado de trabalho, havendo preferência por aqueles que tivessem sido formados na escola. É este o caso do actual professor da técnica, Flávio Romoaldo e do seu antecessor, Casimiro Martins, que durante vários anos conciliaram a docência com o trabalho em oficinas gráficas.

Muito dos alunos já trabalhavam no ofício, frequentando os cursos nocturnos. Isto por-que de acordo com o contrato colectivo de trabalho, aqueles que quisessem estudar para aumentar as habilitações, teriam de o fazer na sua área de trabalho, só assim tendo direito a regalias por parte da entidade patronal. Os mestres imprimiam ainda o material gráfico da escola, como os impressos, etc. Com o declínio da TCM, os cursos profissionais na área encerram no início dos anos 1980, surgindo então o “Curso de Artes Gráficas”, onde a TCM era abordada já sem um objectivo profissionalizante. Actualmente, com o estatuto de Escola Especializada de Ensino Artístico, a instituição mantém o rico espólio de tipos e maquinaria tipográfica, sendo a oficina utilizada pelos alunos de Design de Comunica-ção do 11º e 12º anos, numa vertente histórica e “num sentido mais artístico, estético e visual que técnico” (Martins, 2000).

[Fig. 53] Caderno de apoio para os alunos do cursode Compositor Tipografo, 1969

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7.1.3. Instituto Politécnico de Tomar

O Instituto Politécnico de Tomar, é actualmente o único no ensino superior público que

possui uma oficina tipográfica. A oficina surgiu com a criação do Curso de Artes Gráficas

em 1987 por António Guilhermino Pires – à época na direcção da Imprensa Nacional

– que conseguiu para o estabelecimento um importante espólio proveniente maioritaria-

mente dessa instituição, além de doações de conhecidas empresas de equipamento gráfi-

co. De prelos produzidos na Imprensa Nacional a tipos de letra, máquinas Linotype e de

impressão que já não estavam ao serviço da produção da empresa, a escola pôde contar

desde o início com um importante espólio tipográfico que ia da fundição de tipo (para a

qual também recebeu a doação de cerca de uma tonelada de liga metálica em barras) à

composição manual e mecânica e à impressão82 [fig. 54].

Sendo um curso com uma importante componente prática, proporcionando aos alunos

uma aprendizagem em design gráfico e simultaneamente em tecnologia gráfica, o labora-

tório de tipografia, como é designado, é um dos disponibilizados aos alunos, juntamente

com laboratórios de offset, digital e serigrafia, entre outros.

82 Entrevista a António Guilhermino Pires.

[Fig. 54] Prelo do I.P.T. provenienteda Imprensa Nacional

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Actualmente, os alunos têm contacto com o Laboratório de Tipografia logo no primeiro

semestre do primeiro ano da licenciatura, sendo a Impressão Tipográfica uma das três

componentes da Unidade Curricular Tecnologia Gráfica. A abordagem é feita numa pers-

pectiva de introdução ao panorama geral das várias tecnologias da impressão, tanto numa

vertente histórica como prática. A frequência deste laboratório não termina, no entanto,

por aí, tendo os alunos acesso livre ao mesmo ao longo de todo o seu percurso académico,

podendo lá desenvolver trabalhos em qualquer altura. Um exemplo é o Projecto Final,

Unidade Curricular do final do percurso académico, onde o aluno tem total liberdade para

desenvolver um trabalho pessoal, estando as oficinas e seus responsáveis abertos para

que aí possa trabalhar. Também os alunos do Mestrado em Design Editorial têm acesso

às mesmas, tanto para utilização, como para aulas, nomeadamente na UC de Tipografia,

onde são ministradas aulas práticas em que tomam contacto com a génese da tipografia

“para melhor compreenderem a lógica e as limitações originais dos caracteres e a sua

influência na tipografia dos dias de hoje”83.

7.2. Referências além-fronteiras

Ao contrário do que se passa em Portugal, no Reino Unido – uma referência no ensino

da TCM – muitos estabelecimentos de ensino superior possuem oficinas de tipografia.

Estas são, essencialmente, o legado da formação de técnicos da época em que a tipografia

de caracteres móveis era a principal forma de produção. De facto, até à segunda metade

do séc XX, a maioria das faculdades de artes e design – assim como algumas escolas

comerciais – contavam com oficinas tipográficas. Estas, serviam de apoio ao ensino da ti-

pografia e da composição e como forma de preparar futuros profissionais para a industria

impressora, além disso, produziam material para as escolas, como diplomas, catálogos e

material promocional. Com o declínio do uso comercial da TCM, o propósito para o qual

estas oficinas foram criadas foi evoluindo de forma a actualmente se terem tornado numa

ferramenta de investigação e experimentação, ao terem sido progressivamente assimila-

das pelos departamentos de design gráfico como parte essencial no ensino dos designers

(Cooper, Gridneff, & Haslam, 2014, 2015).

83 Prof. Paula Pinto, I.P.T. (comunicação pessoal, Outubro 24, 2016).

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Tradicionalmente, o ensino da tipografia nestas instituições era feito através de um mo-

delo de formação que tinha em vista a impressão comercial. As próprias oficinas mimeti-

zavam aquilo que os aprendizes iriam encontrar no mundo profissional. A formação tinha

como prioridade a aquisição de competências que permitissem a produção de todo o tipo

de material impresso (livros, jornais, revistas, folhetos, embalagens...). À frente das ofici-

nas, a transmitir os seus conhecimentos, estavam profissionais experientes. Os aprendizes

de composição e impressão eram, assim, treinados segundo padrões bem definidos e re-

gulamentados pelas associações profissionais.

A industria para a qual estas oficinas foram concebidas – através da criação de uma força

de trabalho preparada para compor eficientemente com tipos móveis e operar com segu-

rança as máquinas de impressão – entrou em declínio vertiginoso e foi dramaticamente

reduzida. As pequenas casas que continuaram a trabalhar comercialmente com TCM,

fazem-no de uma forma muito mais próxima do craft do que da produção industrial. Dos

antigos responsáveis pelas oficinas das instituições de ensino, praticamente todos se re-

formaram. Entrámos, assim, num período, dentro das escolas de design, em que a prática

da tipografia de caracteres móveis continua, mas já não está nas mãos daqueles que apren-

deram o ofício na sua forma clássica. Uma geração mais nova, com formação em design,

apropriou-se dos espaços revigorando os valores tradicionais da TCM sob uma perspec-

tiva do design. A técnica passou, assim, exclusivamente para as mãos de pessoas que não

tiveram uma formação clássica de aprendizes. Isto veio alterar não só o seu ensino, mas

também o trabalho produzido. O estudante de design passou a ocupar um lugar que nunca

poderia ter sido ocupado pelo aprendiz, tendo autonomia criativa em cada etapa do seu

processo de criação. Com a passagem do tempo, o desafio vai ser assegurar que o legado

ofícinal e de perícia associado ao processo não se perde à medida que o conhecimento

técnico diminui (Cooper, Gridneff, & Haslam, 2013).

As escolas que optaram por manter as suas oficinas de tipografia, fizeram-no, maiorita-

riamente como forma de apoio ao ensino de estudantes dos cursos de design gráfico e

ilustração. Esta mudança de finalidade das oficinas de tipografia, da formação de operá-

rios tipográficos para o ensino de estudantes dentro das escolas de arte, demorou tempo

para criar o seu espaço dentro do sistema de ensino. Todo um corpo de conhecimento da

técnica tipográfica que antigamente era incutido durante a formação, deixou agora de ter

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lugar. Houve uma mudança fundamental na experiência do pessoal técnico que ensina a

arte tipográfica nas escolas. O conhecimento que estes e os alunos têm da tipografia digi-

tal alterou radicalmente a experiência das velhas oficinas tipográficas e a sua relação com

o design tipográfico.

As raízes desta reorientação dos propósitos da TCM no Reino Unido remontam já aos

anos 60 do século passado. Tratou-se de uma década em que as escolas de arte foram

alvo de mudanças na sua política cultural e académica. Uma nova formação em artes e

design foi recomendada e algumas escolas experimentaram um novo modelo em que os

estudantes de arte eram ensinados nos mesmos locais que os aprendizes de composição e

impressão, mas em cursos completamente separados.

Com a chegada dos anos 80, dá-se a grande revolução com o advento da composição

digital e a indústria muda irreversivelmente. A TCM é em grande parte substituída pela

nova tecnologia e muitas escolas prontificam-se para se desfazer dos seus equipamentos

tipográficos. De referir, nesta fase, a importância do poder que os sindicatos de artes

gráficas tinham nalgumas escolas, onde uma defesa firme dos postos de trabalho ligados

à arte tipográfica permitiu a manutenção das oficinas de tipografia (Cooper, Gridneff, &

Haslam, 2015). Mas fundamental para travar esta tendência, foi o reconhecimento da im-

portância da manutenção de áreas oficinais nas escolas de arte e design pelo The Council

for Higher Education in Art & Design. Pesquisas realizadas por este organismo centra-

ram-se no ensino (e aprendizagem) de competências básicas relacionados com aspectos

não digitais e que envolviam a fisicalidade dos processos. Estas áreas incluíam, além da

tipografia, a cerâmica, os têxteis ou a encadernação. De resto, os benefícios da utilização

da TCM no ensino de estudantes de design como uma forma de obter uma compreensão

mais profunda da tipografia, estão documentados (Cooper, Gridneff, & Haslam, 2014).

Também nos E.U.A., outra referência no ensino da TCM, a chegada da tecnologia digital

nos anos 80 ameaçou a existência de oficinas de tipografia nas escolas. Também aqui,

no entanto, se verificou um renascer do interesse pela técnica e o reconhecimento da sua

importância no ensino. Um inquérito realizado por Robert Kelemen (2013) junto de uma

amostra de escolas pertencentes à National Association of Schools of Art and Design,

concluiu que 73% têm instalações de tipografia ou acesso a equipamento tipográfico, sen-

do que 30% já o possuiam há 20 ou mais anos enquanto 39% tinha passado a contar com

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essas instalações nos cinco anos anteriores. Das escolas que dispunham de instalações

de tipografia, em 46% essas instalações estavam situadas no departamento de gravura,

enquanto 40% estava no departamento de design. A tipografia de caracteres móveis era

usada nos anos iniciais dos cursos de design na sua vertente histórica, na compreensão de

termos usados em tipografia, na compreensão dos sistemas de grelhas e construção da pá-

gina e, numa percentagem um pouco menor, na compreensão do sistema de pontos/picas.

Na sua tese Teaching design concepts through letterpress, Kelemen (2013) concebeu uma

série de projectos que envolviam a utilização da TCM no ensino de princípios básicos do

design a estudantes da licenciatura em design gráfico. Afirmando, com a sua experiên-

cia como professor, que muito do que era ensinado na sala de aula era feito através de

leituras e discussão, interrogava-se se a interacção física com os materiais melhoraria a

experiência de aprendizagem. Focou-se, então, em quatro conceitos base: a cor, a escala

tipográfica, as medidas em pontos e paicas e o sistema de grelhas. Em relação à cor, uma

série de demonstrações explicavam aos alunos o funcionamento das cores subtractivas,

ou CMYK, salientando o autor a vantagem que existe para a compreensão do processo,

o facto de os alunos o verem acontecer à sua frente, ao invés de simplesmente lhes ser

explicado. No que à escala tipográfica diz respeito, a experiência de Kelemen como pro-

fessor, levava-o a considerar que os alunos, habituados aos projectos feitos com softwa-

res gráficos, perdiam a noção do tamanho real das letras (o zoom, de uso habitual, pode

fazer com que um corpo de letra pequeno ocupe todo o ecrã...) só se apercebendo deste

no momento em que imprimiam, o que, segundo a sua experiência com os alunos, só é

habitualmente feito numa fase mais avançada dos projectos. Salienta, assim, a diferença

que existe entre ver uma letra corpo 6 no ecrã ou manusear um tipo de corpo 6, não o

vendo apenas, mas sentindo a sua escala. O terceiro conceito a demonstrar com o recurso

à tipografia de caracteres móveis foi o das medidas tipográficas em pontos e picas e a sua

relação com as polegadas (unidade de comprimento utilizada nos E.U.A.) como forma de

ajudar a aumentar a precisão dos estudantes nas medidas que efectuam nos seus projectos.

Por fim, vinha a demonstração do sistema de grelhas. Como o próprio autor percebeu da

sua experiência com a TCM, uma boa impressão requer um bom planeamento e um bom

planeamento requer tanta atenção ao espaço à volta dos tipos e dos restantes elementos

gráficos, como a dada a esses próprios elementos.

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De facto, um dos benefícios frequentemente referidos do uso da TCM nos cursos de de-

sign, é a forma como se passa a entender o espaço branco dos projectos. Enquanto num

software gráfico este surge-nos automaticamente, na oficina tipográfica o espaço branco

é manuseado como o resto da composição. Como afirma Rúben Dias na sua entrevista,

ao referir os aspectos que destaca aos seus alunos quando visitam a Tipografia Dias: “o

branco é igualmente uma medida, uma unidade, uma peça, um bloco que tem uma dimen-

são, que tem uma relação com o resto das partes”. Trata-se, pois, de material físico, que

tem que ser pensado na sua relação com a composição e sem o qual esta não se sustém,

impossibilitando a sua impressão. Como refere Kelemen (2013, p.7) a propósito das suas

experiências iniciais em tipografia:

“But for the first time, I was regarding negative space as a physical entity—because it had to be for my design to be stable enough to print on the letterpress equipment. The concept that the negative space was every bit as important as the positive space was drilled into me as a student, and I continued the drilling with my students. But the seeing, and holding, of physi-cal negative space in my hands drove this principle home in a way that all the years of talking about grid structure and manipulating imaginary “whitespace” had not.”

Também Cooper & Gridneff (2010, citados por Cooper, Gridneff, & Haslam, 2013) ref-

erem a importância do ensino da TCM pelas competências com que esta vai municiar os

alunos e que se irão reflectir no seu trabalho como designers. Além do já referido espaço

branco, apontam a lenta velocidade do processo, que vai estimular a reflexão e a exper-

imentação durante o trabalho do designer. Steve Rigley (citado pelos mesmo autores)

refere a importância do processo de tomada de decisões inerente ao processo tipográfico.

Aponta o dedo às configurações padrão dos softwares gráficos, que afastam os estudantes

de um olhar atento e de tomarem genuínas decisões no que ao design diz respeito, refer-

indo como as limitações da técnica se podem tornar libertadoras.

A importância que nos últimos anos tem sido reconhecida ao ensino da TCM em escolas

do Reino Unido, levou à criação do 6x6 Collaborative Letterpress Project. Iniciado em

2012 por Alexander Cooper (London College of Communication) e Rose Gridneff e An-

drew Haslam (Brighton University), incluiu seis faculdades do Reino Unido que possuem

oficinas de tipografia. O projecto envolveu técnicos de tipografia, professores de design

e estudantes. Tratando-se de escolas que já estavam envolvidas em pesquisas acerca do

ensino da TCM, não tinha havido até à data nenhum mecanismo que permitisse rever e

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partilhar colectivamente esta pesquisa, criando laços entre as diferentes oficinas. Estas

seis escolas reuniram-se, então, para explorar um modelo alternativo de aprendizagem: a

aprendizagem através de uma experiência imersiva e partilhada.

O projecto combinou um entendimento tradicional da composição tipográfica com uma

abordagem contemporânea ao ensino do design. Isto foi concretizado através da criação

em conjunto de: uma publicação impressa em tipografia, ensaios, uma exposição itine-

rante, apresentações em conferencias e a fase inicial de construção de um inventário de

tipos e equipamentos existentes nas oficinas de tipografia das escolas de arte e design do

Reino Unido.

As seis escolas participantes responderam a um conjunto de instruções, tendo contribuido

cada uma com seis impressões realizadas por todos os elementos envolvidos em cada

escola.

Embora tematicamente existam alguns fios condutores entre o trabalho produzido, este

demonstra um conjunto diversificado de abordagens à prática contemporânea da TCM,

com grande variedade de métodos utilizados para a produção dos conteúdos. Ficaram,

assim, claramente delineadas as diferentes abordagens ao processo por parte das várias

instituições, quer através dos conteúdos, quer através da forma como foram executados.

Os trabalhos foram ainda condicionados pelas limitações de cada uma das oficinas em

que foram criados, tal como os tipos de letra disponíveis em cada uma delas, que reflec-

tem escolhas feitas no passado (algumas destas oficinas têm mais de um século).

O 6x6 Collaborative Letterpress Project continua a avançar de modo a incluir todas as

faculdades do Reino Unido que possuam equipamento tipográfico, documentar esses re-

cursos, gravar as suas histórias e garantir que o dialogo continua enquanto o processo

decorre (Cooper, Gridneff, & Haslam, 2013).

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8. A TCM em Portugal e os seus actores

8.1. Robin Fior

Para abordar o renascimento da TCM em Portugal, consideramos essencial referir Robin

Fior, que, quanto a nós, teve a primeira abordagem à TCM no sentido em que ela é utiliza-

da contemporaneamente. Referimo-nos, em particular, aos trabalhos de divulgação que

o designer fez para a escola Ar.Co em meados dos anos 70 [fig. 55]. Apesar da técnica,

na altura, já estar na sua fase descendente, ainda era correntemente utilizada de forma

comercial. Tal como acontecera frequentemente em Inglaterra, Fior fazia uso dos tipos

disponíveis na gráfica onde os projectos eram impressos (Bom, 2013). Em muitos casos,

no entanto, utilizava-os já de uma forma que contrariava as normas do ofício, nomeada-

mente através da utilização de tipos de madeira que seriam certamente recusados num

trabalho convencional. Tratavam-se de velhos tipos, gastos pelo uso e tintados de forma

irregular, tirando desta forma partido das qualidades expressivas que estas imperfeições

deixavam na página impressa (Bom, 2013). Robin utilizava a técnica tipográfica sozinha

ou em conjugação com outras como a serigrafia. Tratavam-se, no fundo, de trabalhos com

[Fig. 55] Cartaz de Robin Fior para o Ar.Co(meados dos anos 70)

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características formais muito semelhantes a alguns dos que são desenvolvidos actualmen-

te pelas associações e ateliers que utilizam a TCM [fig. 56 e 57].

O primeiro contacto de Robin Fior com a técnica tinha acontecido em Harrow, um pres-

tigiado colégio interno inglês que frequentou de 1948 a 1953. Ali, foi aluno da oficina

de Composição Tipográfica Manual. Criada dentro do espírito do movimento Arts and

Crafts, foi lá que Robin adquiriu os conhecimentos básicos e desenvolveu o seu gosto

pela tipografia, tendo composto as primeiras palavras e frases com tipos de chumbo. Esta

experiência contribuiu, de forma substancial – juntamente com as aulas de caligrafia, que

também frequentou – para o acentuar da sua apetência pelo design (Bom, 2013).

Mais tarde, numa altura em que a decisão de ser designer já estava tomada e ciente da

importância da TCM para a sua formação, Robin resolve aprender mais sobre a técnica.

[Fig. 55 e 56] Cartaz de Robin Fior para o Ar.Co(meados dos anos 70) e do Homem do Saco (2014). TCM sobre serigrafia

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Inicia, assim, em 1955, a frequência das aulas nocturnas de tipografia experimental mi-

nistradas por Edward Wright (1912-1988) – referência do design gráfico inglês do pós-

guerra – na Central Scholl of Arts & Crafts. Nestas aulas – trabalhando com um prelo

Albion – nasceu o seu gosto pela exploração das possibilidades construtivas da impressão

com letras de madeira. Uma das suas inspirações foi o já referido Hendrik N. Werkman.

A postura desinibida e informal do holandês e o uso que fazia de velhos tipos de madeira

impressos com a tinta com uma consistência espessa e irregular – parodiando os padrões

profissionais do ofício – atraía o jovem Robin. Já como designer, Robin vem a utilizar

inúmeras vezes estas letras nos seus projectos (Bom, 2013), sendo o referido material

promocional feito para o Ar.Co, exemplo modelar. A influencia de Robin Fior, no entanto,

não se reduz aos trabalhos que o próprio produziu, mas também, como já vimos atrás, ao

contributo fundamental que teve para a criação da oficina tipográfica do Ar.Co, na década

de 90.

8.2. Jorge dos Reis

Cerca de duas décadas depois, destaca-se o trabalho de Jorge dos Reis, pioneiro, entre

nós, na utilização da TCM numa altura em que esta já tinha sido praticamente abandonada

como técnica comercialmente viável. Estudante de Design de Comunicação na Faculda-

de de Belas Artes da Universidade de Lisboa, com interesse pela letra impressa e pela

componente de manualidade da TCM, propõe-se, em 1995, nos anos finais do seu curso,

como aprendiz de compositor numa antiga oficina tipográfica lisboeta. Na aprendizagem,

que durou quase dois anos, com um Primeiro-Oficial de Tipografia da Imprensa Nacional,

Jorge dos Reis teve o primeiro contacto com a técnica, tendo aí adquirido as bases para a

sua prática, numa experiência que considerou fundamental para o seu percurso. Em 1996,

e com a TCM em mente, um intercâmbio académico deu-lhe oportunidade de consolidar

os seus conhecimentos em Norwich, Inglaterra, no Letterpress Studio da Norwich School

of Art & Design. Na mesma cidade, teve ocasião de realizar um trabalho de pesquisa

e exploração tipográfica no John Jarrold Printing Museum, um museu de tipografia, à

época praticamente encerrado, onde um conjunto excepcional de caracteres tipográficos

de madeira e chumbo lhe permitiu dedicar-se a um trabalho intensivo de exploração,

composição e impressão (Matos, 2000). Data também dessa época o papel importante que

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teve na criação da oficina tipográfica da escola Ar.Co, como já referimos atrás, começan-

do também a dirigir os primeiros workshops na mesma [fig. 57]. Entretanto, uma bolsa

permite-lhe voltar a Inglaterra, para frequentar o conhecido The Typography Workshop

de Alan Kitching, figura modelar da TCM contemporânea e outra das suas referências

fundamentais.

Explorando as capacidades expressivas dos caracteres tipográficos, conciliava a prática

da técnica com a investigação no campo da tipografia, o que o levou a diversas paragens

portuguesas e além-fronteiras. Apesar do mesmo gosto pela exploração das qualidades

expressivas da impressão com tipos de madeira que também caracterizou muito do traba-

lho de Robin Fior, os trabalhos de Jorge dos Reis tinham, no entanto, uma vertente mais

experimental e quase artística (Bom, 2013). De facto, essa vertente leva o seu trabalho a

ser exposto a partir de 1997 (Reis, 2001), passando pela Biblioteca Nacional, universida-

des e galerias de arte. Nalguns desses projectos, Jorge dos Reis explorava ainda a tipo-

grafia gutenberguiana enquanto meio de expressão visual em que relacionava a palavra

impressa com o seu contraponto sonoro e fonético (outro dos seus interesses era o canto,

tendo frequentado aulas na Escola de Música do Conservatório Nacional).

Actualmente, apesar de considerar a TCM essencial na formação de um designer, sobre-

tudo dos type designers, Jorge dos Reis apenas a utiliza nos trabalhos que faz no campo

das artes plásticas, a que também se dedica.

Actualmente é professor na FBAUL e coordenador do mestrado em “Práticas Tipográfi-

cas e Editoriais Contemporâneas”, dirigindo as aulas de TCM do mesmo.

[Fig. 57] Cartão de Boas Festaspara o Ar.Co da autoriade Jorge dos Reis (1997)

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93

8.3. Publicações Serrote

Já neste século, nos primeiros dias de 2005, surge o primeiro caderno impresso em TCM

das publicações Serrote. Constituídos por Nuno Neves e Susana Vilela, oriundos, res-

pectivamente, dos cursos de Pintura e de Design de Comunicação da FBAUL, a ideia de

imprimir um caderno com a antiga técnica era um dos vários projectos que a dupla tinha

em mente84. Não dispondo de equipamento próprio, procuraram uma antiga oficina tipo-

gráfica que estivesse disposta a embarcar num trabalho desses. Com uma maqueta onde

dispuseram os elementos da forma como os tinham imaginado e a ideia de aproveitar os

materiais que encontrassem na oficina, o processo não se afigurou fácil. Além de já serem

poucos os estabelecimentos que dispunham da antiga técnica (os encerramentos suce-

diam-se, na altura), os existentes não mostravam interesse no projecto – chegaram mesmo

a ser aconselhados a optar pelo offset, com a justificação de que ficaria um trabalho mais

perfeito. Por fim, conseguiram fazer o projecto numa tipografia do Bairro Alto (além

desta, trabalhariam ainda com mais duas tipografias). Com o caderno pronto, procuraram

lojas em Lisboa e no Porto interessadas em comercializá-lo. Conseguido o objectivo,

pouco tempo depois surgem referências elogiosas na imprensa e em blogues. Com uma

boa parte da edição de 500 exemplares vendida, apercebendo-se da boa receptividade da-

quela experiência e com o retorno vindo do primeiro projecto, avançam para um segundo.

A boa aceitação confirmou-se e as críticas positivas ao trabalho da dupla chegam inclusi-

vamente de publicações fora de portas, como a Wallpaper ou a Monocle, transformando o

trabalho das publicações Serrote num importante contributo para a divulgação da técnica.

Com o passar dos anos, a oferta estende-se, e, além dos cadernos, as publicações Serrote

passaram a fazer cartões, blocos e gravuras com a antiga técnica gutenberguiana. Entre-

tanto, chegam encomendas de trabalhos para clientes nacionais e internacionais, como

o Museu Reina Sofía [fig. 58], em Madrid, ou a editora brasileira (entretanto encerrada)

Cosac Naify. Vale a pena referir, também, as embalagens para a centenária fábrica de chá

açoriana, Gorreana [fig. 59], em 2015. Tratou-se de um trabalho feito em colaboração

com o designer Nuno Coelho e impresso na Tipografia Micaelense – de que falaremos

mais adiante – inserido no festival de arte pública Walk & Talk.

84 Entrevista Nuno Neves

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Pouco depois do início do projecto, a dupla começou a adquirir material tipográfico,

culminando, em 2013, com a aquisição do equipamento de uma antiga oficina tipográfica

lisboeta da zona da Sé, que tinha encerrado. Instalaram, então, a sua própria oficina numa

aldeia da serra da Lousã, passando a contar com a possibilidade de imprimir os seus tra-

balhos. Nuno, que já acompanhava os projectos nas tipografias e ajudava na composição,

passou a ocupar-se da oficina, aprendendo a trabalhar com a Heidelberg de pinças e fa-

zendo de mecânico quando se depara com algum problema na máquina. Auto-suficientes

com a técnica tipográfica, a dupla utiliza ainda o offset noutro tipo de projectos.

8.4. Edições 50kg

Também em meados da década passada, surgem as Edições 50kg. Por detrás, está Rui

Azevedo Ribeiro, poeta e editor. Tendo trabalhado como guia no Museu da Imprensa, no

Porto, entre 2001 e 2004, teve aí o seu primeiro contacto com a técnica. Com a ideia em

mente de escrever um livro, começa nessa altura a reunir material tipográfico. Ainda an-

tes de ter tido alguns contactos com tipógrafos, aprendeu a técnica sozinho, consultando

manuais e livros e vendo vídeos na internet85.

Na época, Rui fazia parte de um projecto artístico independente que se destacou na cidade

do Porto, o “Salão Olímpico”. Outro dos elementos, o artista plástico Renato Ferrão, teve

85 Entrevista Rui Azevedo Ribeiro

[Fig. 58] Caderno Flamenco para o Museu Reina Sofia, Madrid, 2007

[Fig. 59] Embalagens para os chás Gorreana, com Nuno Coelho, 2015

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a ideia de uma edição conjunta para uma exposição que iria realizar na galeria Quadrado

Azul, “Quem tem olho é rei”. Nasce, então, em 2006 e com o mesmo nome, a primeira

edição da 50kg. O nome da editora, deve-se ao suposto peso do prelo – máquina com que

imprime os seus livros – adiantado, aquando da sua compra, por um funcionário da Poló-

nio Basto, conhecida casa de material gráfico do Porto, entretanto extinta.

A 50kg não aceita encomendas de trabalho nem se dedica à formação, embora não co-

loque, no entanto, de lado, esta última hipótese. Já imprimiu cartazes e marcadores de

livros, mas dedica-se essencialmente à impressão de pequenos livros e plaquettes de poe-

sia, de sua autoria ou de autores com quem sente afinidades, como Vitor Silva Tavares.

Além da TCM, já recorreu pontualmente à risografia e à serigrafia – como no caso da capa

do livro Púsias – quando estas técnicas se revelam as mais adequadas para o objectivo

pretendido [fig. 60 e 61].

[Fig. 60 e 61] Capa e pormenor de livros das Edições 50 kg.

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8.5. Oficina do Cego

Fundada em 2009 em Lisboa por um grupo de ilustradores e de pessoas com interesse

pela auto-edição. Dedicando-se a várias técnicas de impressão, a TCM esteve em des-

taque desde o seu início. Alguns dos seus elementos, que partilhavam um atelier, já an-

teriormente publicavam juntos fanzines e outras edições com forte componente gráfica.

Planeando uma nova edição – Canções usadas – um dos elementos fundadores, Luís

Henriques, ilustrador com formação em Pintura, querendo utilizar uma técnica diferente

daquelas que usavam até aí, pensou na utilização da TCM. Procurando um local onde

pudesse fazer o trabalho, a abertura de um workshop da técnica na escola Ar.Co levou-o à

frequência do mesmo com o intuito de aí imprimir o livro. Com a anuência da formadora,

Helga Vieira da Silva, assim foi feito. Nascia, dessa forma, o livro Canções usadas, com

poemas impressos em TCM, ilustrados em serigrafia [fig. 62 e 63]. Mais tarde, começam

a adquirir material tipográfico a antigas tipografias, tornando-se auto-suficientes com a

técnica86.

86 Entrevista Luís Henriques

[Fig. 62 e 63] Canções usadas,primeiro trabalho em TCMda Oficina do Cego

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A poesia continua a ser o género dominante nos trabalhos seguintes, como Isilda ou a

mudez dos códigos de barras de Manuel de Freitas ou Chama-lhe o que quiseres de Rui

Caeiro.

Sendo a formação uma valência importante da associação desde o seu início, o primeiro

workshop da técnica teve lugar em 2011, ministrado pelos dois elementos da associação

que se dedicavam à TCM. Em 2012, aproveitando a presença na Europa do impressor

norte-americano Amos Paul Kennedy, Jr.87, foi organizado um workshop com o conheci-

do impressor.

Além dos workshops, começou também a ser organizado anualmente um curso de auto-

-edição, onde a TCM é uma das técnicas ministradas.

Em 2012, uma cisão leva à saída dos dois elementos que se dedicavam à técnica. Nes-

se mesmo ano, entra para a associação João Sebastian, impressor tipógrafo de profis-

são. Iniciado na arte (como era habitual dizer) em 1980 em máquinas minerva manuais,

Sebastian ainda trabalha actualmente com máquinas tipográficas, mas já adaptadas para

corte, vinco e cunho. Antes de entrar para a Oficina, já tinha iniciado, em 2008, um projecto

87 Impressor tipográfico norte-americano (n. 1950), de Detroit. Aos 40 anos abandonou o seu trabalho como progra-mador informático para se dedicar à TCM. Expõe, lecciona workshops e participa em palestras em alguns dos mais destacados locais dedicados à arte tipográfica, como o Hamilton Wood Type and Printing Museum ou o The Center for Book Arts, em Nova Iorque. O seu percurso foi tema do documentário Proceed and be bold, em 2008.

[Fig. 64] O elogio da cabeça oca, 2014.Texto impresso em TCM, imagens em linóleoimpresso tipograficamente.

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pessoal, que ainda hoje mantém, A tipografia do papeleiro doido. Ali, reuniu um conjunto

de material tipográfico que utiliza para desenvolver trabalho próprio. É o actual formador

de tipografia da associação, ministrando também workshops de papel artesanal. Divide,

ainda, com outro elemento, a coordenação do curso de auto-edição88.

Não se dedicando só à tipografia, a conjugação de várias técnicas no mesmo trabalho é

comum na associação [fig. 64]. A TCM é usada essencialmente em livros e cartazes e não

aceitam encomendas de trabalhos, fazendo projectos do colectivo ou de algum associado.

8.6. Júlia Garcia e a Tipografia Micaelense

O percurso da designer gráfica Júlia Garcia cruzou-se, fortuitamente, com a Tipografia

Micaelense e o mestre tipógrafo Dinis Botelho em 201189.

Uma primeira experiência de impressão de um cartão de visita em TCM criou uma em-

patia que deu origem a uma parceria que se mantém até hoje, fazendo, como afirma Dinis

Botelho (Dias, 2016): “trabalhos modernos com técnicas antigas”.

Fundada em 1957, a Micaelense está nas mãos de Dinis Botelho e Eduardo Furtado desde

1996.

Após o primeiro trabalho, o gosto pela técnica levou Júlia a propor fazer ali um estágio,

sendo neste momento aprendiz de tipógrafo. Interessando-se por todo o processo, da ideia

aos acabamentos, Júlia participa em todas as etapas e já é completamente autónoma na

composição.

Além dos projectos conjuntos, como a agenda anual [fig. 65], que já é editada desde

2014, Júlia, assim que acha pertinente, encaminha os seus trabalhos como designer gráfi-

ca para serem compostos e impressos em tipografia. Estes, podem ir de cartões de visita

ou postais, a embalagens para queijadas [fig. 66]. Por vezes, utiliza tipografia sobre offset,

técnica também disponível na Micaelense, além da vasta colecção de tipos e de máquinas

tipográficas.

88 Entrevista João Sebastian89 Entrevista Júlia Garcia

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Com a visibilidade que o trabalho foi obtendo, outros criadores têm recorrido à Tipografia

Micaelense para concretizar projectos. Destaca-se a parceria com o festival Walk & Talk,

que deu origem às já referidas embalagens para os chás Gorreana das publicações Serrote

com Nuno Coelho ou, mais recentemente, um guia alternativo da ilha de São Miguel com

o colectivo de design lisboeta Vivóeusébio.

8.7. Joana Monteiro (Clube dos Tipos) e a Tipografia Damasceno

O primeiro contacto da designer gráfica Joana Monteiro com a TCM foi em Londres,

quando foi para esta cidade fazer um mestrado em design gráfico. As escolas que frequen-

tou, na boa tradição inglesa, dispunham de oficina tipográfica que podia ser frequentada

de forma livre, podendo o trabalho aí desenvolvido ser incluído no projecto individual90.

A abordagem ensinada, já era de experimentação, sem o rigor e as regras da aprendiza-

gem clássica. Seduzida pela técnica, ao voltar a Portugal, em 2011, contacta com Rui

90 Entrevista Joana Monteiro e Rui Damasceno

[Fig. 65] Agenda 2017

[Fig. 66] Embalagem de queijadas impressa em TCM

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Damasceno – proprietário da Tipografia Damasceno, de Coimbra, fundada em 1969 pelo

seu pai – que já conhecia, falando-lhe da ideia de criar um clube de tipografia, para o qual

precisava da ajuda deste. As reticências iniciais depressa desapareceram, e nasce, assim,

o Clube dos Tipos, criado por Joana e pelo designer gráfico inglês Paul Hardman (que

entretanto já abandonou o projecto). A ideia era manter o acesso à tipografia tradicional

para o trabalho individual, abrindo também as portas para a comunidade, sobretudo a

estudantil. Fizeram, assim, um primeiro workshop, a pedido do curso de Design e Mul-

timédia da Universidade de Coimbra. O interesse suscitado superou as expectativas e os

workshops começaram a ser organizados com regularidade. Estes, são ministrados por

Joana e Rui Damasceno, estando este particularmente activo na parte mais técnica do

trabalho, incluindo a impressão.

A necessidade de dar aos formandos alguma informação acerca de termos essenciais utili-

zados nas oficinas, leva à ideia da criação do Manual Prático do Tipógrafo [fig. 67 e 68],

a que se juntou também Rúben Dias, da Tipografia Dias.

Apesar da paixão que afirma ter pela técnica, nos seus trabalhos comerciais como de-

signer gráfica usa a TCM quando considera que a sua utilização faz sentido e imagina o

resultado a funcionar, não a tentando “encaixar” forçosamente ao que realiza.

[Fig. 67 e 68] Manual prático do tipógrafo

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A visibilidade do trabalho da Tipografia Damasceno com o Clube dos tipos tem levado

ao aumento de solicitações de trabalho em TCM o que fez com que o material tipográfico

– incluindo um velho prelo Albion – voltasse a ter um uso regular (um dos cavaletes com

tipo já tinha mesmo saído da tipografia, tendo entretanto voltado).

8.8. O Homem do Saco

Em 2012, na sequência da cisão na Oficina do Cego, os elementos que saíram juntam-se

com outras pessoas com interesse pela edição e formaram uma nova associação: O Ho-

mem do Saco. O nome, alude à rua onde tiveram a primeira sede: Rua do Saco91.

Sendo os elementos saídos da Oficina do Cego aqueles que se dedicavam à TCM, e já

existindo equipamento, esta técnica começou naturalmente a ser utilizada nas edições do

colectivo. Também a poesia continuou a ser um género privilegiado devido a afinidades

e cumplicidades com autores, havendo mesmo um poeta entre os membros da associa-

ção. Surgem, então, uma série de pequenos livros, ou plaquettes, sempre diferentes entre

si, mudando, em cada edição, o formato, a letra e o papel [fig. 69]. São edições de 30 a

50 exemplares, cosidos à mão, com um pequeno aforismo, poema, ou texto curto e uma

ilustração nas mais variadas técnicas. Além destas edições mais artesanais, de pequena

tiragem, a associação também recorre ao uso do offset ou da impressão digital em tira-

gens maiores, existindo muitas vezes uma intervenção em TCM na capa. A impressão de

capas nesta técnica, é, de resto, um trabalho frequente no Homem do Saco, por vezes para

editoras próximas, com quem mantêm ligação. É o caso das capas para a Obra escrita

de João César Monteiro da editora Letra Livre [fig. 70], ou de várias capas para a & etc.,

entretanto desaparecida.

Em 2013, aquando da vinda a Portugal do conhecido tipógrafo e editor italiano Alberto

Casiraghi, das edições Pulcinoelefante92, o Homem do Saco recebe-o, o que resultará na

impressão de quatro livros com a chancela da editora italiana.

91 Entrevista Luís Henriques92 Editora italiana, de Alberto Casiraghi (n. 1952), criada em 1982. Edita livros de quatro a seis folhas (praticamente todos com o mesmo formato e papel) com um aforismo ou um pequeno poema impressos em TCM e acompanhados de uma ilustração (que pode ir da xilogravura à impressão digital, passando pela água-forte, colagem, ready-mades…). As tiragens vão normalmente de 15 a 35 exemplares. Alberto Casiraghi apresenta-se como um “padeiro dos livros” por editar livros diariamente. De facto, desde 1992, edita em média mais que um título a cada 24 horas. Ultrapassa actualmente os 9000 livros editados.

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A par dos livros, os cartazes são outra das peças a que a associação mais se dedica, além

de outro tipo de material gráfico, que pode ir dos postais às máscaras de carnaval.

A conjugação de várias técnicas de impressão sempre foi comum, com particular desta-

que para a serigrafia, de que a associação dispõe de equipamento desde há algum tempo.

Mas também outras são frequentes, estejam estas disponíveis na associação ou recorren-

do ao exterior, como a linogravura, gravura em acrílico, fotocópia, riso ou monotipias.

Destaque, ainda, para a possibilidade de gravar chapas de fotopolímero, o que permite

a gravação de qualquer tipo de matrizes para serem impressas com a técnica tipográfica

(dentro das limitações da técnica).

8.9. Artes & Letras Atelier

Fundado em 2014 por Inês Caria, ilustradora, e Luís Gomes, conhecido livreiro e alfar-

rabista de Lisboa.

O atelier tipográfico nasce como complemento natural da livraria, com mais de 25

anos, e da relação com os livros93.

93 Entrevista Luís Gomes e Inês Caria

[Fig. 69] Pormenor da capa de Autocataclismos, de Alberto Pimenta

[Fig. 70] Impressão da capa da Obra escrita de João César Monteiro, para a editora Letra Livre

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Com um grande espólio de material tipográfico que vem a ser reunido quase desde o

início da livraria, o espaço de trabalho é um atelier-loja, aberto ao público. Os dois de-

dicam-se ao trabalho de composição e impressão, tendo Inês, quando planeavam abrir o

atelier, estagiado durante um ano numa antiga oficina tipográfica. O resto, veio do apren-

der-fazendo.

Desde o início dos anos 90, Luís Gomes dedica-se também à edição, publicando sobre-

tudo poesia [fig. 71]. Com a possibilidade de imprimir os livros que editavam, a poesia

passou a ser naturalmente um género em destaque na produção do atelier. Para lá dos

pequenos livros, destaca-se também a impressão de postais. Os projectos são pessoais,

escolhidos segundo a satisfação que proporcionam e o atelier não aceita encomendas de

[Fig. 71 e 72] Letra-a-Letra de Nuno Júdice.Edição do Artes & Letras Atelier

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trabalho. Além da TCM, Inês e Luís Gomes usam ocasionalmente outras técnicas como a

linogravura, a xilogravura ou a impressão digital.

Não se dedicam à formação, deixando, contudo, essa porta aberta para o futuro.

8.10. Tipografia Dias

Para Rúben Dias, designer gráfico, o fascínio pela tipografia – no sentido lato da palavra

– remonta aos tempos da faculdade. Na altura, um emprego de Verão numa gráfica que

ainda possuía algum material tipográfico, leva-o ao primeiro contacto com a TCM. É

nessa época que começa a reunir material. A aprendizagem da técnica fê-la em inúmeras

conversas com tipógrafos em gráficas que visitava e através do aprender-fazendo94.

Considera que a Tipografia Dias – nome que é uma espécie de homenagem às tipografias

que ostentavam o nome do seu proprietário – nasceu algures entre a faculdade e os tempos

mais recentes. Em termos mais efectivos, a oficina tipográfica ganha forma e visibilidade

em meados de 2015, com as sua instalação em Lisboa, na zona de Alvalade. Rúben começa,

então, a desenvolver trabalho de forma mais activa.

94 Entrevista Rúben Dias

[Fig. 73] Cartazes impressos na Tipogrfia Dias

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A formação começa também a ter lugar nessa altura, sendo os workshops organizados de

forma regular. Como professor (este ano passou da ESAD de Caldas da Rainha para a de

Matosinhos) procura levar os seus alunos à Tipografia Dias, dando ênfase ao que se pode

tirar da técnica para o trabalho em design.

Na oficina, entre outras peças, produz essencialmente cartazes. Aceita encomendas de

trabalho em que não se limite a ser apenas impressor, mas que deixem espaço para poder

trabalhar com os caracteres móveis.

Dedica-se à tipografia num sentido mais alargado, incluindo ainda as aulas que lecciona,

o design de tipos ou a investigação.

Foi autor, juntamente com Joana Monteiro do Clube dos Tipos, do Manual prático do

tipógrafo.

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9. Uma análise à prática nacional

Dos vários exemplos que observámos, por considerarmos serem aqueles que se dedicam

à TCM de forma mais activa e visível, podemos verificar, numa primeira análise, a ex-

istência de duas tendências: por um lado, um grupo que tem como denominador comum

a auto-edição ou edição de pequena tiragem, do outro, o design gráfico. O primeiro está

representado em maior número, tratando-se de um grupo heterogéneo constituído por

pessoas oriundas de diversas áreas, sendo a profissão, ou a formação académica, quando a

há, pouco relevante. Apesar de vários terem formação em Belas-Artes, encontram-se, por

exemplo, farmacêuticos ou matemáticos, como no caso do Homem do Saco, em que dos

seus dez elementos, nenhum é designer. Também Rui Azevedo Ribeiro, das Edições 50kg,

tem formação em economia, ou Luís Gomes do Artes & Letras Atelier, tem formação em

antropologia e é livreiro. O gosto pela edição é, então, o denominador comum.

Como já se viu atrás, as particularidades da técnica depressa atraíram quem já se dedicava

à auto-edição ou edição de pequena tiragem, cativando ainda novos elementos. Dentro

desta, podemos ter uma vertente mais gráfica, ligada ao mundo dos fanzines e outra, com

uma forte presença, ligada à poesia. As fronteiras entre as duas, no entanto, diluem-se

frequentemente. A poesia, de resto, é um género recorrente em edições estrangeiras de

ateliers e editoras que se dedicam à impressão tipográfica (Jury, 2011). Além dos seus tex-

tos normalmente curtos se revelarem ideais para os novos tipógrafos, amadores e pouco

experientes, alguns autores, estão envolvidos em associações ou projectos que se dedicam

à técnica – como Rui Azevedo Ribeiro, da 50Kg ou Rui Miguel Ribeiro, do Homem do

Saco – havendo outros casos de admiração ou afinidades entre editores e autores. O facto

das editoras tradicionais terem praticamente abandonado a publicação do género, por não

o considerarem um mercado atractivo, não constitui um problema quando – como afirma

Luís Henriques, do Homem do Saco – “a preocupação não é conquistar mercado, mas sim

produzir edições, de pequena tiragem, controlando todos os passos, desde a escolha do

papel, à composição e à impressão” (Henriques, 2013).

Para os designers gráficos, a tipografia aparece como um contraponto ao trabalho feito no

computador, e referem as mais-valias que retiram para a sua prática profissional do con-

tacto com a técnica. Além de Rúben Dias, da Tipografia Dias, temos Joana Monteiro – do

Clube dos Tipos – e Júlia Garcia, que desenvolvem trabalho com duas antigas oficinas

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profissionais. Trata-se de um trabalho conjunto que nasceu da empatia entre as duas de-

signers e dois tipógrafos (Rui Damasceno, da Tipografia Damasceno e Dinis Botelho, da

Tipografia Micaelense). Um caso mais atípico será o de Jorge dos Reis, designer gráfico

e pioneiro entre nós na utilização da TCM, tendo – como já se viu atrás – sido aprendiz

de compositor nos anos 90. Apesar de considerar a técnica imprescindível na formação

de um designer, Jorge dos Reis actualmente não a utiliza no seu trabalho profissional, em-

bora a explore nos projectos que desenvolve em artes plásticas. Também as publicações

Serrote, com os seus emblemáticos cadernos com a capa impressa em tipografia (apesar

de não ser o único material que produzem com a técnica) escapam um pouco a estas duas

tendências.

O gosto pelo trabalho manual e oficinal, a experimentação que permite, as características

únicas das impressões que não se obtêm com outras técnicas, as suas imperfeições, pare-

cem ser factores que agradam a uns e outros.

Em relação à aprendizagem da técnica, há ainda o caso de quem teve uma aprendizagem

clássica, oficinal, como acontece com João Sebastian, da Oficina do Cego. Outros, ainda,

passaram por workshops no Ar.Co, por exemplo, onde tiveram o primeiro contacto com a

técnica e aprenderam as bases que desenvolveram com a prática do trabalho. O aprender

fazendo parece, de facto, ser comum, como no caso de Nuno Neves, que acompanhava

os projectos das publicações Serrote nas tipografias e passou depois a ocupar-se da com-

posição e impressão na máquina Heidelberg quando adquiriram equipamento. De referir,

ainda, o caso de Inês Caria, do Artes & Letras Atelier e Júlia Garcia que estagiaram em

oficinas tipográficas ou ainda Joana Monteiro, que aprendeu a técnica na oficina tipográ-

fica da faculdade inglesa onde fez um mestrado. O contacto com antigos tipógrafos e com

os ensinamentos que dai advêm também parece recorrente.

As abordagens à TCM variam. Rúben Dias, por exemplo, afirma procurar “uma impressão

fidedigna e pouco prensada e pouco borrada de tinta, uma coisa mais perfeita (...) em que

eventualmente só algumas pessoas é que percebem que é tipografia mesmo, não é offset”.

Já para Rui Azevedo Ribeiro, isso é esconder a técnica de impressão, afirmando gostar, e

assumir, a “gravação e aceitáveis excessos de tinta”. Como resume Luís Henriques, “há

espaço para muita coisa” dentro do trabalho interessante que se tem vindo a fazer, refer-

indo duas vertentes distintas: “perfeccionistas, atentas à história da prática e da criação

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tipográfica, ou rudes, inclinadas para um lado mais cru e mais imperfeito.”

João Sebastian, que, de entre as novas associações, ateliers e editoras, é o único tipógrafo

profissional, conhecendo as duas abordagens à técnica (a tradicional, com intuito comer-

cial e a actual) sublinha o facto de serem radicalmente diferentes. Frisa, ainda, não con-

hecer ninguém que se dedique a “recuperar” a técnica, mas sim, quem a “usa” para atingir

os seus objectivos. Luís Gomes, afirma que a TCM que se pratica actualmente, é uma

técnica contemporânea, tendo muito pouco a ver com a tipografia clássica.

Em relação à conjugação de várias técnicas, aqueles que se dedicam à auto-edição, pare-

cem não só estar mais receptivos a esta prática, como inclusivamente a fomentam nos

seus trabalhos. O expoente máximo será o livro A faca romba, publicado em 2012 pela

Oficina do Cego: trinta colaboradores com textos e ilustrações em tipografia, serigrafia,

linogravura, offset, stencil e impressão a laser.

No que diz respeito a parcerias e trabalho conjunto entre estes novos tipógrafos, até agora

têm sido bastante reduzidas e têm nascido de afinidades entre trabalhos, como é o caso de

uma edição conjunta do Homem do Saco com as Edições 50kg e do Clube dos Tipos com

a Tipografia Dias no Manual prático do tipógrafo.

Em relação aos trabalhos produzidos – total ou parcialmente – com esta técnica, o des-

taque vai para pequenos livros ou plaquettes e cartazes. Também os postais são comuns,

encontrando-se ainda gravuras nas publicações Serrote ou material mais inusitado, como

as embalagens de queijadas de Júlia Garcia. A venda destes trabalhos é feita, na maioria

dos casos, quase sempre pela internet ou nas próprias sedes. As publicações Serrote têm

ainda as suas edições à venda em várias lojas. As feiras de edição independente, que têm

proliferado nos últimos anos, são outro dos locais onde é possível encontrar bancas de al-

gumas das associações e editoras que temos estado a analisar, nomeadamente do Homem

do Saco, Oficina do Cego, Edições 50kg e Serrote. Também em algumas livrarias menos

comerciais, que apreciam particularmente este tipo de trabalhos e com cujos livreiros se

vai estabelecendo uma certa cumplicidade, é possível encontrar estas publicações. Os

compradores vão desde aqueles que apreciam artes gráficas e este tipo de edições, até

bibliófilos que procuram um autor específico que seja publicado. Se alguns produtores

normalmente numeram os exemplares do material que publicam – como as edições Ser-

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rote – sublinhando o carácter único e conferindo um cariz de objecto de colecção, outros,

optam por não o fazer. No entanto, consoante os trabalhos, podem ocorrer as duas situ-

ações. Curioso, é o caso do Manual prático do Tipógrafo, do Clube dos Tipos e Tipografia

Dias, que não se encontra disponível para venda. Quem desejar ter um exemplar, deverá

fazer uma troca com os editores.

Outra fonte de receitas são os workshops, a quem se dedicam a Tipografia Dias, a Oficina

do Cego e o Clube dos Tipos (e, esporadicamente, o Homem do Saco). Além do impor-

tante retorno económico, a formação parece ser uma vocação destes espaços. A aborda-

gem à mesma, contudo, parece variar. João Sebastian afirma privilegiar a experimentação

de materiais. Já nos workshops ministrados por Rúben Dias e Joana Monteiro, designers

gráficos, parece ser colocado ênfase naquilo que os formandos podem levar da técnica

para o seu trabalho pessoal.

Em relação a encomendas de trabalhos comerciais, a Oficina do Cego, Edições 50kg e Ar-

tes & Letras Atelier afirmam não as aceitar. Os outros, fazem normalmente trabalhos que

deixem lugar a uma margem criativa, não se querendo limitar a ser apenas impressores.

Esta actividade não parece ser lucrativa para nenhum dos casos referidos, em particular

nos que têm despesas fixas a pagar. Algum retorno financeiro que exista, serve para aju-

dar nestas despesas e na aquisição de mais material gráfico, papel, tintas, etc., de forma

a que novas edições sejam possíveis. Aqui, impõe-se uma distinção entre as associações,

ateliers e editoras que têm vindo a reunir material e o trabalho do Clube dos Tipos e o

de Júlia Garcia, feito em parceria com duas tipografias já existentes. Neste caso, Júlia e

Joana Monteiro recorrem à TCM para os seus trabalhos comerciais como designers gráfi-

cas, quando consideram que assim se justifica. Como adianta Júlia Garcia: “sempre que é

pertinente, encaminho projectos que tenho entre mãos para serem compostos e impressos

em tipografia”. Ou, ainda, Joana Monteiro: “em termos de trabalho comercial (...) uso

quando faz sentido. (...) Não é mais importante que um lápis ou do que o computador.

(...) Quando eu percebo que faz sentido (...) venho para aqui, mas não tento encaixar”. De

salientar, o caso das referidas tipografias (Damasceno e Micaelense), talvez aquelas que

entre nós mais trabalhos em impressão tipográfica efectuam. Mesmo tendo visto aumen-

tada a procura pela técnica, com a visibilidade trazida pelo trabalho com Joana Monteiro

e Júlia Garcia, não deixa de ser sintomático que ainda assim não consigam subsistir só

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com o trabalho em TCM. Ambas possuem impressão offset e desenvolvem nessa técnica

grande parte do trabalho.

Não se tratam, pois, de empreendimentos comerciais, mas de projectos movidos pelo gosto

e que são quase sempre conjugados com outras actividades – estejam elas mais ou menos

próximas das artes gráficas – de forma a permitir uma sustentabilidade e a manutenção do

atelier como um espaço onde não se fazem concessões. Ou, como afirma Luís Henriques

na sua entrevista, referindo-se ao espaço da sua associação como “um lugar de sorte, onde

se podem fazer coisas porque se quer fazer coisas, e não por obrigação”.

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Conclusão

Como foi mostrado ao longo desta dissertação, nas últimas décadas tem sido notório um

aumento significativo do interesse pela TCM junto de um público que já não foi con-

temporâneo da sua utilização comercial. Se esta corrente começou em países com forte

tradição na impressão tipográfica, também a Portugal, com o habitual atraso, ela chegou.

No entanto, apesar do trabalho pioneiro de Robin Fior nos anos 70 e de Jorge dos Reis

nos 90, só na segunda década do século XXI se pode afirmar que o fascínio pela antiga

técnica gutenberguiana se afirmou definitivamente.

Assim, além dos exemplos que abordámos, outros projectos ligados à TCM têm surgi-

do, como o Quadratim Letterpress, na margem sul, We came from space, no Porto, Miss

Print, em Lisboa, ou A prensar morreu um burro, nas Caldas da Rainha, entre outros.

Com o interesse que a técnica tem despertado, é provável que os próximos tempos nos

tragam outros ou que surja trabalho estimulante vindo de escolas que têm a técnica à dis-

posição dos alunos (além das já existentes, recordamos o caso da ESAD de Matosinhos

que se prepara para passar a contar com uma oficina tipográfica).

Se é verdade que uma parte da atenção que tem sido dedicada à TCM se pode dever a

uma tendência actual de valorização de saberes tradicionais de carácter manual e oficinal

de produção não massificada, que, como todas as outras tendências, tenderá a dissipar-se,

parece inegável o genuíno interesse que os sujeitos abordados neste trabalho devotam à

técnica. Como afirma um dos entrevistados: “algumas das pessoas que fazem isto estão a

borrifar-se para a moda e para as correntes do design”95. A TCM parece, assim, nesta sua

nova vida, ter chegado para ficar, passando a ser mais uma técnica de impressão ao dispor

de designers, ilustradores, artistas plásticos e de todos os interessados na auto-edição ou

edição de pequena tiragem.

As suas especificidades, contudo, distinguem-na das suas congéneres. Se a passagem de

testemunho em termos de aprendizagem da técnica não parece constituir um problema, a

aquisição de material, ou a sua reposição, já parece mais problemática. De facto, assiste-

se ao já referido paradoxo de uma maior procura por equipamento, precisamente num

momento em que a oferta se torna mais escassa. A produção actual de tipos de chumbo

e de madeira é de tal forma residual e consequentemente tão dispendiosa que a sua aqui-

95 Entrevista a Luís Henriques, membro do Homem do Saco

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sição poucas vezes é ponderada. Assim, o desgaste natural a que tipos e máquinas são

sujeitos, são uma clara preocupação, se não a curto, pelo menos a médio/longo prazo.

Os nossos praticantes de TCM não parecem variar muito daquilo que se encontra referido

em literatura estrangeira acerca dos novos praticantes: são um grupo heterogéneo, com

diversas formações e motivações e que se sentem atraídos pela expressividade dos carac-

teres móveis e pelas características únicas da técnica.

Sem terem tido uma aprendizagem formal, estes novos tipógrafos exploram caminhos

alternativos para a TCM no séc. XXI. De facto, como lembra Durão (1999, p.107) os

antigos tipógrafos reproduziam ao longo da sua carreira os conhecimentos técnicos que

adquiriam numa escola fundamentalmente normativa. A sua postura relativamente ao cor-

po de saberes instituído era de relativa passividade, uma vez que não era esperado deles

que contribuíssem para o avanço desse corpo, mas sim que o aplicassem na prática do

trabalho. Libertos destes constrangimentos, os novos tipógrafos podem ajudar a trilhar

caminhos estimulantes e contemporâneos – sem esquecer o saber-fazer do passado – que

contribuam para uma utilização continuada e pertinente desta técnica. Já não será a TCM

que se fazia outrora mas, como afirma Ewing (2010, p.7), actualmente a definição de

TCM expande-se e altera-se constantemente.

No fundo – e estabelecidas as devidas diferenças – tal como em épocas passadas com o

já referido caso das private presses e das vanguardas, pode-se dizer que estamos apenas

a assistir a mais uma reinvenção, por parte de autores que vêm de fora do ofício, da velha

técnica criada há mais de 500 anos por Gutenberg.

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ANEXOS

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Entrevista a Luís Gomes e Inês Caria (Artes & Letras Atelier)

Data: 26 de Agosto de 2016.

(…)

Luís Gomes - (…) primeiro nasceu a livraria (…) vai fazer 27 anos... e isto é um comple-

mento natural da livraria, da relação com os livros.

Manuel Diogo - E como é que surgiu o interesse especifico na tipografia de caracteres

móveis, como é que foi o primeiro contacto?

O primeiro contacto surgiu.... Enfim, eu nasci aqui neste bairro, nesta rua, e esta rua tinha

pelo menos cinco tipografias. Eu cresci ao som das máquinas tipográficas. Depois saí e

quando retornei aqui ao bairro percebi que isto estava tudo a desaparecer e enfim... Como

eu sempre tive a ideia de ter uma tipografia, de chumbo e tal, foi a altura certa. Entretanto,

apareceu a Inês na minha vida, que precisava de um atelier e embarcou nisto também e

integrou isto na sua criatividade artística.

Ainda chegaram a estar no outro espaço, ao pé do Chiado?

Na Misericordia, como tipografia não. Era só livraria. Eu tinha móveis, sempre tive cava-

letes, sempre tive tipos, sempre tive prelos, sempre tive coisas assim, mas nada sistemá-

tico, no fundo, para trabalhar seriamente. Há anos que eu tenho esta colecção. Está aqui

uma parte que tem anos... Tem quase tantos anos como a livraria.

E como é que aprenderam a técnica? Metem os dois ”as mãos na massa”?

Pomos os dois as mãos na massa.

E tiveram algum tipo de formação?

Eu tinha uns amigos tipógrafos, com quem fazia muitas coisas antigamente. Nós já editá-

vamos em tipografia antes de ter a tipografia.

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Por curiosidade, qual é que era a tipografia com que trabalhavam?

Tínhamos várias... Desde os Silvas à Gráfifacil , que era aqui na rua. Tínhamos várias

com quem trabalhávamos. Mas entretanto, quando pensámos de facto em fazer uma coisa

mais séria em termos de tipografia, a Inês foi estagiar durante um ano para uma tipografia

de uns amigos nossos que já fechou. E foi assim... A nossa formação depois vem daí, da

curiosidade e de mexer…

Como já disse, isto foi um complemento natural da livraria...

Uma extensão da livraria e da editora. Portanto, nós temos uma editora desde o princípio

dos anos 90. Editámos poesia, sobretudo... Não sei se conhece umas edições pequeninas

chamada LG. Publiquei o Barahona... Publiquei poetas contemporâneos..

O Rui Caeiro...

Sim, sim

E o que é que mais vos atrai na utilização da tipografia. O que é que encontram na

técnica que não encontram nas técnicas contemporâneas?

É assim, eu acho que isto é uma técnica, tal como nós usamos, é uma técnica contem-

porânea. (…) A técnica tradicional exige conhecimento (…) Com menos conhecimento

da técnica tradicional e com algum conhecimento das técnicas mais recentes, adaptámos

isto a uma técnica contemporânea. Tem muito pouco a ver com a técnica tradicional. Em

princípio, hoje, se fossemos ver aquilo que fazemos... Se eu perguntar a um tipógrafo da

velha guarda, isto é tudo uma grande merda. Tudo muito mal feito. É tudo com muita

pressão ou pouca pressão. Ou muita tinta ou menos tinta ou a paginação está mal feita ou

a imposição é estranha porque tem muito espaço branco, muito espaço tinto, muito espaço

azul. Portanto, é uma técnica contemporânea.

Portanto, vocês já editaram vários pequenos livros, ou plaquettes, de poesia em ti-

pografia. Mesmo lá fora, a poesia é um género que tem sido bastante editado por

ateliers como o vosso que se dedicam à técnica. Como é que vêem esta relação entre

a poesia e a tipografia?

São folhas menos preenchidas…

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Sim, mas essa é a parte mais prática não é… Mais funcional. Mas vêem mais alguma

razão…

Alguma razão... Eu não sei. Eu acho que se romantiza muito, mas é justamente para

fugirem à realidade de que dá menos trabalho, é preciso saber menos... Só por isso. Em

termos de classificação qualitativa a tipografia está mais perto das artes superiores do que

a prosa e portanto dá jeito à tipografia e aos ateliers juntarem-se a coisas que dão mais

prestigio e menos trabalho. É por isso que nós fazemos mais poesia do que outra coisa.

Portanto, não é aquela composição “de cheio”, como se dizia dantes…

“Cheio” era muito difícil de compor, de impor, de distribuir, de partir as palavras…

Muitas vezes era feito em Linotype e Monotype…

E continua a fazer-se. No estrangeiro, o que se faz é tudo em Linotype e Intertype, não é

composição manual.

Já me falou de contactos que tiveram e que continuam a ter com antigos tipógra-

fos... Que feedback é que eles vos costumam dar do trabalho que fazem?

É assim... Eles são sempre... É gente muito simpática. Primeiro ficam muito contentes

porque alguém dá importância (…) Porque eles foram perdendo importância pelo cami-

nho. Os tipógrafos sempre foram gente muito importante. Até ao evento do digital, sem-

pre foi gente com muita importância, muito informada e sabiam da importância do seu

trabalho, do valor do seu trabalho. Depois foram perdendo. Hoje, quem usa a suas técni-

cas... Eles acham isso muito engraçado e tal, mas depois… somos sempre uns curiosos na

profissão, a fazer umas coisas… Como eu lhe disse, para eles está tudo errado, quer dizer,

não se misturam aqueles tipos com os outros... As regras clássicas da tipografia, que eles

aprenderam, não se aplicam à tipografia contemporânea.

Já agora, como é que vocês se classificam? Editores, tipógrafos, o que é que diriam

que são...

Eu acho que somos especialistas em assuntos gerais… Não… a Inês é ilustradora e é cria-

tiva. Eu sou livreiro, sobretudo, e antropólogo de formação. E portanto… tipógrafo não...

Gosto de mexer com tipografia, mas não sou propriamente tipógrafo...

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Portanto, além dos livros e das plaquettes, que outro tipo de material têm produzido

aqui no atelier e como é que o têm divulgado?

Nós produzimos tudo. Não, não divulgamos. Nós produzimos tudo aquilo que nos dá

gozo. Agora estou a fazer por exemplo um origami... Estou a inventar aqui um foguetão...

Por causa de uma canção que ouvi no outro dia e vou fazer uma coisa para oferecer a uns

amigos. Eu produzo aquilo que me dá gozo. Isto no fundo é o nosso atelier. Isto tem que

ser uma diversão, sobretudo. Se não for uma diversão não faz sentido para mim. Porque a

minha profissão não é esta… Portanto, a divulgação é feita aqui, com os nosso amigos…

Mas têm site, Facebook...

Sim, sim a Inês tem. Na livraria também temos. Eu tive que ter, mas eu não mexo nisso.

Também dá para fazer compras, se a pessoa quiser fazer alguma compra...

Sim, no site sim. Eu estou na net desde que há net em Portugal. Isso aderimos logo, eu era

muito jovem na altura, portanto facilmente entrei naquilo.

E tem retorno?

O que é possível ter em Portugal. Porque as pessoas, em livros antigos, gostam de ver o

objecto na mão, não é? E agora cada vez há menos as pessoas se interessam por livros …

Mas enquanto eu puder, vamos resistindo.

Dedicam-se só a estas vossas edições ou aceitam encomendas de trabalhos?

Não, por enquanto não. Nem sei se aceitaremos porque é uma responsabilidade e depois

deixa de ser... Se não nos apetece fazer deixa de ter graça. É uma chatice. Já tenho feito

coisas para amigos mas não é com o objectivo de rentabilizar. Fiz convites de casamento

para um tipo que conheço e que acho graça. Mas não são encomendas, são coisas que

digo: “olha, eu vou-te fazer, depois usa se quiseres, se não quiseres deita fora”... Porque

é muito difícil. Até porque tipografia é uma coisa muito complicada. A tipografia como

ela é hoje... Nós é que conhecemos as colecções que temos. Aparece aí alguém com uma

coisa que tira da net, com uns tipos que nós não temos, porque as colecções de chumbo

são limitadas e portanto, é difícil as pessoas pensarem coisas com aquilo que nós temos.

Talvez numa fase mais adiante, se fizermos alguns ateliers, aí sim...

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E vocês acompanham o que se vai fazendo lá por fora nestes ateliers que se dedicam

à técnica, têm alguma influência, alguma referência...

A Inês acho que segue mais atentamente isso… Eu não tenho ninguém em particular ...

Gosto de coisas muito dispares Eu sou muito eclético no meu gosto da tipografia. Depen-

de da maneira como a pessoa conseguiu agarrar e transmitir a ideia com aquela técnica…

Toda a gente tem coisas muito boas e toda a gente tem coisas muito más... Não me parece

que haja assim ninguém dono da verdade, da técnica...

E dedicam-se ou pensam vir a dedicar-se à formação, no futuro?

Eu gostava, especialmente para crianças.

Há algum plano mais concreto?

Sim, temos ainda um bocadinho muito embrionário nas nossas cabeças, mas temos sim.

Nos vossos trabalhos, usam outras técnicas além da tipografia?

Usamos técnicas que vão com a tipografia, a linogravura, a xilogravura... Eventualmente

usamos, misturamos as técnicas, quando os objectos nos pedem. Já fiz coisas em digital

que depois terminámos com tipografia e também uns convites... Uns postais de Boas

Festas para uns amigos. Fizemos uma parte em digital e depois tipografámos em cima.

E como é que têm adquirido o equipamento?

Ou gente que vem ter connosco a dizer que tem e que lhe quer dar um destino... Ou gente

que sabe de alguém que tem... É assim....

E que máquinas é que usam mais na impressão dos vossos trabalhos? As minervas,

os prelos... têm ali aquele prelo extraordinário...

Este extraordinário não veio de cá. Este extraordinário comprámos na Alemanha.

Eu, por coincidência, vim cá no dia em que ele tinha acabado de chegar...

Estávamos quase com medo que ele não entrasse na porta.

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Eu faço ideia, teve que se parar a rua, não?

Parou-se, parou-se, mas curiosamente ninguém apitou o que não é normal…

Foi o com um guindaste?

Não, não (risos). Isto veio um homem sozinho entregar. Uma camioneta com uma báscula

e tal... Porque ele, coitado, não sabia o que vinha fazer. Depois, veio o homem do talho...

Vieram todos ajudar a meter isto cá dentro. Mas ninguém apitou... Estava tudo tão vara-

do…

“O que há-de ser aquilo?” (risos)

E ele é fantástico. Já fizemos umas experiencias engraçadas. Alguns até com técnica

mista no sentido de impressão e caligrafia, por exemplo. É um Asbern. Um Asbern dos

primeiros. Deste só há dois registados.

(…)

E depois temos noutro sítio, porque isto não acaba aqui. Isto aqui é apenas um bocadi-

nho... Temos uma Heidelbeg “de pinças”. Na realidade, neste momento até temos duas.

Não sei, acho que vamos só por uma a funcionar... E pronto, temos mais uns prelos pe-

queninos, manuais. Temos este prelo aqui que também é optimo.

Sim, este tem um tamanho muito bom.

Temos um mais pequenino ali dentro. Este tem 70x50 cm.

Este deve ser bom para fazer a várias cores, tem estas molas para o registo…

-É, é… mas é mais difícil acertar o registo. O registo daquele (Asbern) já é feito no

distribuidor de papel. E este não. Tem umas garras que o vai buscar direitinho, e este

não...

Portanto, basicamente, os trabalhos mais pequenos fazem na minerva, é isso?

Nas várias minervas, sim. Tenho uma paixão…

Vocês têm o Atelier aberto ao público, funciona como loja também…

Isto tem o horário de trabalho da Inês. Isto é o atelier da Inês. Ela precisava de um sitio

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para estar a desenhar e a trabalhar e nós, uma vez que temos que pagar renda, abrimos...

Eu tenho aí livros e vai-se tentando ajudar a pagar o espaço.

Como é que justificam o interesse que existe actualmente pela técnica, acham que se

vai manter no futuro ou que é uma coisa passageira e tem a ver com esta moda dos

crafts que há agora... Das encadernações e tudo o que sejam manualidades…

Eu acho que isto tem, são várias coisas... Primeiro é as pessoas que estão ligadas às artes

gráficas, sejam gráficos, sejam publicitários, enfim, gente que trabalha com grafismo, que

encontra aqui uma expressão interessante e que valoriza o trabalho (…) Isso por um lado.

Por outro lado, é aquele fenómeno que não há trabalho, não há nada... E as pessoas tentam

fazer as suas vidas e isto pode ser uma coisa engraçada para tentar... É como os livreiros,

não se vendem livros mas cada vez há mais livreiros... Uns ficarão, outros não ficarão...

Mas da parte do público em geral, já não digo de quem faz, as pessoas que procu-

ram… Toda a gente mostra interesse quando há demonstrações destas técnicas, por

exemplo...

Sim, mas isso e depois? E depois, isso manifesta-se em quê, em termos de ajudar a vi-

ver? Portanto, quem trabalha com essas coisas ou novos que venham para trabalhar com

estas coisas... Isto depois implica ter espaço, e implica gastar luz. Implica não sei quê...

Depois as questões burocráticas e legais também não ajudam nada. É caro ter uma porta

aberta. Só podemos ter esta porta aberta porque isto é Artes e Letras isto é a livraria Artes

e Letras. Eu como já pago pela outra, enfim... É a mesma coisa, pouco mais e a Inês tem

um sitio para trabalhar simpático e tal... Porque se não, não podíamos. Porque ter uma

porta aberta implica um pagamento de uma série de coisas: contabilidade, impostos...

Pagamentos por conta... Não dá...

Que outros ateliers, associações ou editoras conhecem que se estejam também a de-

dicar à TCM?

-Conheço os mesmo que você conhece. Isso eu aí… Conheci toda a gente que anda aí a

mexer em tipografia porque numa altura ou noutra passaram pela livraria e nós conversá-

vamos. O Rúben quando estava a pensar fazer o doutoramento... As pessoas iam sabendo

que eu era um tipo interessado nestas coisas e passavam por lá... (…) Oficina do Cego, O

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homem do Saco, o Rui (Edições 50kg), o Rúben e pouco mais. Depois há ali para a outra

banda uma...

A Quadratim Lettepress....

Sim, sim…

Mas relações em particular ou algum tipo de projectos com alguém…

Não. Pontualmente... Agora convidei o Rúben para escrever numa revista que está neste

momento na forja. Eu gostava que ele escrevesse um artigo sobre tipografia, mas são as-

sim tudo coisas pontuais...

E para finalizar, que planos têm para o futuro da Artes & Letras...

Primeiro, estamos a pensar sair de Lisboa. Essa é a primeira, ainda não está perfeitamente

definido... Mas há grandes possibilidades, apesar de ainda não estar definido, de abrirmos

a Artes e Letras e o atelier em Óbidos. Um projecto novo de Óbido

Sim, a Vila literária, não é...

Eu acho que se se juntarem várias sinergias, várias coisas, talvez... Há experiências boas

dessas no estrangeiro, portanto, não vejo porque cá não possa dar alguma coisa.

E formação, alguma coisa?

Formação, eventualmente uma parceria com a ESAD, não sei... Estão em aberto várias

coisas... Sobretudo, para já, gostava de começar a intervir ao nível da instrução primária.

Isso era o que mais gozo me dá. (…) Eu próprio visitei, aqui na escola 8, que agora é um

hotel, um hostel… fazíamos todos os anos pelo menos uma visita a uma tipografia de um

jornal aqui do Bairro Alto. (…) Hoje em dia isso é mais complicado. Por causa das ques-

tões de segurança e chumbos e não sei quê, nada disso é possível nas escolas. Portanto

a impressão e os ateliers têm que passar por outras coisas... tintas... há regras ambientais

que são impossiveis... Nós vamos juntando os trapos de limpeza e tal... mas custa uma

batulada de dinheiro desfazer-se daquilo...

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Até o desperdício é proibido…

E as tintas são ilegais. Portanto... para fazer isto para crianças hoje em dia tem que se ter

cuidado. Contornar. Contornar, não a lei, mas as técnicas.

E é tudo, agradeço-vos...

Nada…

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Entrevista a Joana Monteiro (Clube dos Tipos) e Rui Damasceno (Tipografia

Damasceno)

Data: 5 de Dezembro de 2016

(…)

Joana – Conheci o Rui, através do João Bicker, com quem trabalhei na FBA, que me

introduziu à tipografia, mas não à tradicional, necessariamente. E depois, quando fui para

Londres, acabei por fazer lá entrar na escola, no Royal College e no Camberwell Press.

(…) Pronto, no Royal College eles têm lá a tipografia inserida dentro – aliás é muito

comum em Inglaterra haver tipografias nas escolas – e, portanto, tanto no Royal College

como no Camberwell College of Arts. Aliás, o Camberwell College of Arts tinha mesmo

a Camberwell Press que existia há uns anos e depois mantiveram a tipografia sempre

activa e portanto, eu acabei por me apaixonar pela tipografia tradicional quando estava

lá de uma forma muito mais espontânea, livre e experimental porque era um contexto

académico, não é?

Manuel Diogo – Tinhas aquilo aberto, como é que era? Era alguma disciplina?

Joana – Não, não era em nenhuma disciplina em particular, simplesmente tu tinhas acesso

livre às tipografias e podias inclui-lo no teu trabalho. E aliás eu até já fazia coisas para

fora, mesmo para clientes lá. Cheguei a fazer cartazes para a English Touring Opera só

com fotografia dos tipos. Pronto. Portanto, eu comecei sempre… a minha bordagem com

a tipografia tradicional foi sempre muito nunca me foi ensinado como uma técnica em

que era necessário sempre o rigor e cumprir as regras todas porque já é uma abordagem,

sempre foi uma abordagem mais de experimentação e, pronto, e de usufruto para aquilo

que servisse, que fosse interessante para o meu trabalho como designer gráfica, sem

preciosismos, não é? E, portanto, sempre foi essa a minha abordagem e quando vim para

Portugal, em 2011, para aí, foi quando eu contatei o Rui e disse: “Pá, eu gostava de criar

um clube de tipografia, mas não consigo fazer isso sem ti. Estás para aí virado? Interessa-

te? Queres ter aqui o pessoal a entrar e eventualmente chatear-te um bocado...”

Rui – Sobretudo…

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Joana – Sobretudo (risos) a empastelar-te as caixas… “Ou não estás para aí virado?”. Ele

disse: “Eh pá, ‘bora lá, vamos lá fazer isso”. Mas ele no início estava um bocado reticente,

estava assim um bocado “olha, agora”…

Rui – Lá vêm estes chatos, fogo

Joana – Um bocado, pronto. E depois lá percebeu qual era a onda e relaxou um bocado e

pronto. É um bocado chato às vezes, de facto desarrumam muito as coisas como tu sabes

Mas depois foi engraçado porque eu comecei – eu com o Paul Hardman, foi quando

criei o clube foi com o Paul – começámos a organizar oficinas numa de pronto, o nosso

interesse era nós mantermos a ligação com a tipografia tradicional e termos acesso aqui

à tipografia para o nosso trabalho, mas começámos a abrir a coisa para a comunidade,

sobretudo comunidade estudantil. Aliás, o primeiro curso que nós fizemos aqui foi mesmo

do curso de Design e Multimédia que nos pediram para fazer um workshop, já depois do

clube criado...

Qual curso? De que escola?

Joana – Design e Multimédia, é da Universidade de Coimbra que tem uma componente,

portanto, de design gráfico mesmo. Tem lá o (…) a dar aulas, tem a Alice Geirinhas, o

António Olaio, o João Bicker, o António dos Barbara Says, o Nuno Coelho… portanto

tem uma componente da parte gráfica muito forte e têm tipografia e dão tipografia nas

aulas, têm uma disciplina de tipografia mesmo e vieram cá fazer esse curso e depois

continuámos. E o que é verdade é que temos tido sempre muitas pessoas interessadas e

continuamos a ter. Para mim foi inesperado. De facto, não estava a contar que houvesse

tantas pessoas interessadas em entrar para aqui.

Rui – Sim, sim, houve uma procura muito grande. Vem aqui muita malta nova. Estudantes…

Joana – Às vezes organizo cursos porque as pessoas me contactam: “quando é o próximo

curso?”. Pronto, ok, tenho de organizar outro curso senão o pessoal...

Rui – Vem aí muita malta nova ver, estudantes de design e não só, também de outras áreas

também aparecem por aí.

Joana – Sim, pessoal ligado à ilustração também, também gosta de... A Ana Biscaia, por

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exemplo, também tem feito coisas. Ela tem sempre essa componente também das letras

no trabalho dela, mais caligrafia, letras desenhadas à mão, mas também anda muito por

aqui.

Os workshops são dados pelos dois?

Rui – Somos os dois. Aqui a Joana dá assim aquela parte mais teórica, aquela coisa mais

(…), que eu não tenho grande hipótese aí, e eu é mais a ferrugem, a classe operária (risos).

Sou eu que lhes dou uns calduços na cabeça e tal, para os gajos atinarem. Eu é que faço

esse serviço. O pior serviço calha-me a mim, claro! (Risos)

Joana – Não, nós complementamo-nos muito bem. Porque, pronto, eu também, eu criei,

nós fizemos o Manual Prático do Tipógrafo precisamente porque eu senti essa necessidade

de dar alguma coisa às pessoas logo do início. Costumava ter umas folhas A4 com os

termos essenciais utilizados aqui nas oficinas e, portanto, eu começo por isso, começo por

dar um manual a cada pessoa: “e agora peguem no vosso manual e vamos passar aqui”.

Uma introdução breve, meia hora no máximo, as pessoas querem mesmo é por as mãos

no chumbo, e pronto. Depois, estou ali a espicaçar o pessoal, a incitá-los a iniciar, que é

sempre aquela coisa que demora mais tempo. Faço sempre um bocado… tento sempre

que usem os componedores e que componham um bocadinho de texto mesmo com o

componedor para perceberem como a coisa funciona e depois, então, dou sempre aquele

contraponto de poderem usar mais livremente também os tipos maiores, de madeira, e

o Rui entra sempre sobretudo na parte quando se passa para a imposição, ainda ali na

galé de paginação Nós temos essa prática, pronto, o pessoal anda aí a compor, usa galés,

usa componedores e depois quando é... Nos workshops mesmo de dia inteiro, eu gosto

sempre que o material passe pelas máquinas impressoras e não só pelos prelos Porque

acho que é importante acho que é importante eles perceberem o porquê do material ter de

ficar bem acondicionado, de criar a chapa…

(…)

Joana – Portanto, eu acho importante mesmo que depois é sempre a mesma velha história,

perceber as regras para depois as quebrar, não é? E acho que é muito importante de facto

eles passarem por essas fases todas, quanto mais não seja... Ah, para já há uma coisa

que eu acho muito interessante, que é... Obviamente, que muitas das pessoas que vêm

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cá já têm conhecimentos de tipografia do uso dos computadores (...) e eu acho sempre

interessante eles perceberem que alguns dos termos que aprenderam vêm de coisas físicas,

das entrelinhas, os espaços. Eu começo logo por lhes dizer que aqui qualquer espaço

branco não é impresso, mas existe. E isso é... O que é que eu acho mais interessante? É

depois passar... é quando recebo algum feedback a dizer que as pessoas incorporaram

algumas das... do que aprenderam aqui no seu trabalho ou também que ficaram a perceber

e a respeitar um bocadinho mais, porque o computador às vezes permite fazer asneiras,

para mim são asneiras, em termos de como se trata a tipografia que aqui, mesmo que tu

queiras fazer não consegues, não é? E isso é interessante. Portanto, depois o Rui entra

mais na parte de imposição

Rui – Sim, imposição e impressão, mas costumo dar aí umas ajudas às vezes na composição.

Porque às vezes também ouço o pessoal que vem fazer aqui as coisas deles começam a

complicar aquilo tudo porque pensam que pronto que aquilo que então aquilo é: espaços

de ponto misturados com espaços de dois pontos, espaços de um quadratim misturado

com meio quadratim e aquilo depois querem meter uma letra querem pôr uma letra

suponhamos de (…) tudo aquilo complica e eu tento sempre chamar a atenção para esso

tipo de coisas, para simplificarem e não complicarem, porque querem fazer aquilo de tal

maneira fora do comum, não é, que acabam por complicar tanto a coisa que às vezes

aquilo dá em nada. Acaba-se por ter de desmanchar e refazer e dou essa ajuda e pronto o

meu trabalho é mais com esta maquineta aqui, com esta minerva. Tentar imprimir aquilo

que eles compõem, é esse o meu trabalho.

Joana – Mesmo nessa parte depois é importante eles perceberem que às vezes é necessário

alcear uma letra, não é? Eu acho que mesmo isso, é assim, eu até podia logo de início

limitar e dizer: “não podem fazer isto, não podem fazer aquilo”, mas eu, mesmo isso que

acontece acho que é interessante eles perceberem que estão a tentar fazer uma coisa e o

porquê daquilo não funcionar.

Rui – Pois, por isso é que eu tenho aí as caixas todas empasteladas também... (risos)

Joana – Não é? Tentar pôr uma letra na diagonal, por que é que não dá? Quer dizer, dar dá,

mas dá uma trabalheira! Perdes uma manhã inteira para pôr aquilo bem, para conseguir

fazer aquilo... E para quê? Qual é que é a necessidade quando estás simplesmente a

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aprender E eles depois acabam, lá está, acabam por respeitar muito mais quando vêem

trabalhos de profissionais e de pessoas que já trabalham na área há muitos anos e ficam

tipo: “uau, como é que ele conseguiu fazer aquilo?” Coisa que antes de experimentarem a

técnica não dão importância porque acham que é muito fácil, não é? Porque no computador

é muito fácil tombar a letra.

Além dos workshops há mais algum tipo de trabalho que façam a dois... Fizeram

aqui o Manual…

Rui – Às vezes fazemos uns cartões para amigos, não é?

Joana – Sim, sim, mas quando há alguma coisa mais ligada à tipografia tradicional, eu

tento sempre que possível...

Rui – Ah, ainda agora fizemos aí aquela coisa dos castelos!

Joana – Ah, pois foi, o salvo-conduto que era com o Jorge Valente do Centro de Artes

de Papel de Montemor-o-Velho que faz papel artesanal, papel de arroz, e pronto, como

aquilo era aquele tipo de papel ele achou que era importante usar tipografia artesanal. (…)

É tipo um passaporte para conhecer os monumentos do baixo Mondego.

Rui – Isso vai ser repetido.

(…)

Joana – Pois vai. Pronto, isso também fizemos cá os dois É engraçado, porque... diz-me

tu Rui, mas tenho ideia que há mais, acaba por haver também mais solicitações... apesar

de obviamente não são muitas porque é uma técnica que já está um bocadinho obsoleta

Pois, eu ia perguntar isso também...

Joana – Mas há mais solicitações, e mesmo comerciais...

Rui – Para este tipo de trabalhos. Sim, sim…

Sentiste [Rui] que depois da Joana apareceram mais…

Rui – Apareceu, apareceu, exato.

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Mas são trabalhos mais… experimentais, é isso? Não aquele trabalho clássico de...

Rui – O quê? O normal? Aquele trabalho normal? Não, é mais esse género de trabalho

que aparece, pessoas que querem uma coisa assim...

Joana – Sim, porque se justifica neste caso. Primeiro, é papel que não entra nas máquinas

(...) tinha que ser tipografia tradicional, pronto, mas é muito difícil as pessoas perceberem

o que é que implica o trabalho e fazermo-nos cobrar convenientemente, não é? É muito

difícil, as pessoas não entendem. Eu inclusivamente tenho o hábito, por exemplo,

a eles enviei fotografias das chapas, ainda, nos galeões, para perceberem o que é que

estávamos a fazer, à medida que ia trabalhando, pronto. As provas fizeram-nas em... eu

tirei fotografias, inverti no Photoshop, trabalhei o contraste e eles fizeram as provas nas

imagens diretamente no tipo... pronto, também há as vantagens do computador nesse

aspecto. Nem sequer fiz provas impressas para eles reverem, foi tudo feito através de

fotografia e também mais uma vez para eles perceberem o que é que aquilo implica, não

é, em termos de...

Então o material estava mais ou menos parado antes da Joana chegar… o material

de tipografia. Fazias [Rui] mais offset?

Rui – Sim, sim, até tinha um fora daqui. Aquele cavalete estava fora daqui. Há coisas que

tinha noutro sítio, mas depois...

Joana – E arranjaste agora isto.

Rui – Pois, fiz aqui... tirei uma estante que estava aqui e pu-la lá em baixo e pus aqui esta

espécie de tipografia.

Então, mas tu próprio estás contente com esta nova...

Rui – Sim, claro, então. Isto por acaso, isto dá-me pica. Gosto de trabalhar com a Joana.

É uma pessoa… De vez em quando desatinamos, mas é só uma vez É muito raro! (risos)

Em termos de retorno, a tipografia não dá, não é? Para sustentar…

Rui – Não, a tipografia não (...) Não, não, não dá, não posso fazer só isso Era bom, era.

Joana – Era bom, mas quer dizer… o problema… para te conseguires sustentar com

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isto… Nem sequer era nosso objetivo, mas para isso tinhas que ter…

Rui – Tinha que ter pessoal a trabalhar nisto e que soubesse disto e…

Joana – E as pessoas também, os clientes também perceberem como é que as coisas

funcionam.

Rui – Por enquanto nem tinha muita dificuldade em arranjar pessoal, ainda, para trabalhar

aqui.

Joana – Então, o José Lage...

(...)

Joana – O José Lage trabalhou na Tipografia Nocamil.

Rui – E o irmão está lá também, qualquer também dia mete os papéis.

Joana – O José Lage já está reformado, mas vem ajudar nalguns workshops. E ajudou na

composição do Manual…

Rui – Ah sim, o José Lage, sim. Deu uma boa ajuda. Oh, oh…

Joana – Na composição, na impressão, na imposição...

Rui – Na imposição sobretudo, na imposição deu uma ajuda bestial.

Joana – Aquilo são muitos anos de prática.

Pois, eu cheguei a ver uma série de pessoas... Também houve voluntários não houve?

Joana – Sim, eu acabei por abrir... uma forma de não pagarem workshops e de estarem

a trabalhar num projeto real e, portanto, acabei por abrir a tipografia a isso, foi isso, a

ajudantes, não é? E houve pessoal que acabou por vir experimentar a técnica...

Rui – Na base do voluntariado. É assim que se diz agora. Na base do voluntariado (risos).

Joana – Eu podia ter criado um workshop e as pessoas pagarem o workshop e pô-las a

fazer aquilo, não é? Ao invés disso, pronto… E depois obviamente tiveram direito ao

Manual…

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Estava impecável o Manual. Tenho lá um…

Joana – Sim, algumas coisas... tecnicamente que... e mesmo na capa, aquela distância

entre o “A” e o “T”. Sempre que olho para a capa fico: “isto podia ter ficado melhor!”

(risos)

(…)

Tu [Joana] és freelancer, não é?

Joana – Sim.

Mas não usas só tipografia…

Joana – Uso quando faz sentido.

Tens uma ideia da percentagem de trabalhos em que usas a tipografia?

Joana – Ah, não sei. Oh pá. Pronto, a minha relação com a tipografia tradicional, apesar

de obviamente que tenho uma paixão muito grande, mas acaba por ser quando é para

trabalhar, em termos de trabalho comercial, para mim é uma técnica que eu uso quando

faz sentido, ok? Não é mais importante do que um lápis ou do que o computador ou

qualquer outra técnica que se possa utilizar. Quando, por exemplo, quando eu consigo...

Pronto, obviamente que eu gosto muito de estar aqui, não é? Quando eu percebo que faz

sentido e imagino um resultado a funcionar usando a tipografia tradicional eu venho para

aqui, mas não tento encaixar, não é? Não tento fazer com que... Há coisas que de facto não

fazem sentido. Quer dizer, eu tenho clientes tão variados e muitas das vezes eu trabalho

com clientes com avenças e, portanto, com materiais que têm de estar sempre a sair, que

não dá tempo sequer para trabalhar de uma forma tão pausada e tão relaxada. Não sei, não

sei a percentagem. Dez por cento no máximo, no máximo! (Risos)

Tenho visto também outras coisas feitas aqui na tipografia, por exemplo, o Poemas

do conta-gotas…

Rui – Isso são ilustrações da Ana Biscaia e texto do João Pedro Mésseder.

Joana – A capa, foi só a capa que foi feita cá, não foi? Não, foi impresso tudo cá, mas foi

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impresso em offset.

Ah ok, o interior em offset e a capa…

Rui – O interior em offset e a capa é que imprimi em tipografia.

Pois, eu vi à venda lá em Lisboa e achei muito bonito.

Joana – É feito também com o Paul Hardman, que é designer…

(…)

(…)

Joana – Oh pá, eu queixo-me... Obviamente que gostava de ter mais material [tipográfico],

mas com aquilo que eu tenho consigo fazer tudo. Claro que tenho sempre as limitações,

as restrições, mas isso faz parte da técnica. E pronto, trabalho com aquilo que tenho. Nós

temos... tipos de madeira grandes não temos, agora, tipos de estante, estão ali... oh pá há

coisas fantásticas, Art Deco, Futura, tipos serifados, condensados, coisas muito giras.

Eu já te vou mostrar... Oh pá, e só isso para mim... Como eu uso a tipografia, que muitas

vezes venho aqui, imprimo no prelo, levo para o scanner e trabalho no Photoshop... tanto

faz... Aliás até às vezes fica mais engraçado, fica com aquela ampliação, nota-se muito

mais as fibras do papel a interferir com o limite da letra. Portanto, a forma como eu uso a

tipografia, consigo trabalhar com tipos pequenos...

Pois, mesmo essas limitações acabam por ter piada, a pessoa acaba por ir buscar

ideias que de outra forma…

Joana – Sim, eu não sei trabalhar sem restrições. Em qualquer coisa, em qualquer coisa.

Se me disserem: –”faz o que tu quiseres” eu não faço nada. “Faz o que tu quiseres” e tens

todo o dinheiro que precisares. Bloqueio, total. (risos)

(…)

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Entrevista a João Sebastian (Oficina do Cego)

Data: 20 de Dezembro de 2016 (via e-email)

Manuel Diogo - Pelo que sei, foste tipógrafo de profissão. Qual era a tua área especí-

fica e como foi a tua formação?

João Sebastian - A minha profissão é impressor tipógrafo. Na verdade, ainda hoje trabalho

com máquinas de impressão devidamente adaptadas para fazer corte e vinco, cunho, meio

corte. Aprendi numa oficina tipográfica onde se fazia trabalho comercial, faturas, cartões

comerciais, cartas, envelopes e outros trabalhos do género. O Oficial que me ensinou era

também o chefe da oficina e eu não me apercebi na altura de que era um mestre tipografo.

Chamava-lhe apenas chefe.

Depois de algum tempo a varrer a oficina e a dar uma ajuda nos acabamentos, comecei a

trabalhar com maquinas manuais minervas, mas depressa passei para as máquinas auto-

máticas e de formatos maiores. Hoje trabalho com uma tipográfica Heidelberg Cilíndrica

54 x 72.

Antes de Oficina do Cego, já tinhas um projecto teu, a Tipografia do Papeleiro Doi-

do, é verdade? Quando e como é que surgiu esse projecto e que tipo de trabalho lá

desenvolvias?

A Oficina do Cego e a Tipografia do Papeleiro Doido, têm na minha vida e na minha

carreira pesos e papeis completamente diferentes.

A Tipografia do Papeleiro Doido, é um projeto pessoal onde faço os meus trabalhos de

forma solitária sem ter de prestar contas a ninguém sobre o que faço nem sobre a forma

como faço. Trabalho ao ritmo que entendo e experimento tudo o que me ocorre. Disponho

de um espaço de trabalho relativamente pequeno, mas funcional e de equipamento tipo-

gráfico suficiente para lhe chamar uma tipografia. Foi equipamento comprado ao longo

de uma serie de anos no qual me revejo e onde revejo também quem mo deu ou vendeu.

Na Oficina do Cego eu procuro sobretudo ligações. Eu sozinho não existo, integrado num

grupo eu aprendo, eu ensino. Sou responsável pela tipografia e formador em workshops

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de tipografia e papel artesanal. No curso de auto-edição, para alem de formador em tipo-

grafia, divido a coordenação com o José Feitor.

Actualmente concilias os dois projectos?

Não foi fácil a minha entrada na Oficina do Cego. A OC não está verdadeiramente inte-

ressada em ter sócios, o que eu compreendo, no entanto com persistência fui mostrando

que não estava interessado no equipamento da OC, mas sim nas relações com as pessoas.

Faço questão de não pertencer à direção para não me ver envolvido em nenhum conflito

de interesse.

Quando dás formação na Oficina do Cego, o que é que privilegias naquilo que trans-

mites aos formandos?

Nas minhas formações, seja na Oficina do Cego, seja em outro qualquer lugar, privilegio

muito a experimentação de materiais. Nem toda as pessoas têm em casa tipos de chumbo

ou madeira, mas todas as pessoas podem fazer impressões rudimentares com tinta e um

rolo. Na verdade hoje há imensos materiais com os quais podemos fazer letras ou textu-

ras, procuro pois nas minhas formações alertar as pessoas para esse facto.

O que é que encontras na tipografia de caracteres móveis que não encontras nas

técnicas de impressão contemporâneas

Para mim a tipografia tradicional é uma técnica cheia personalidade, difícil de repetir

noutras técnicas de impressão

Como justificas o interesse que existe actualmente pela técnica? Pensas que se vai

manter no futuro ou tratar-se-á de algo passageiro?

Provavelmente o interesse pela impressão tipográfica que se vive atualmente é passageiro

e temporário, o que não quer dizer que no futuro não haja algumas pessoas que mante-

nham o uso da técnica com um nível artístico, como se passa ou passou com a gravura.

Qual achas que é a grande diferença entre a tipografia que se faz agora, pelas pes-

soas que se têm dedicado a recuperar a técnica e a que fazias profissionalmente?

O uso que se faz agora da técnica é radicalmente diferente. Profissionalmente o objetivo

era produzir muito e rápido.

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Na maior parte dos casos que conheço, as pessoas ou grupos que fazem impressão tipo-

gráfica agora, apreciam sobretudo os defeitos da técnica. Usam-se e aceitam-se letras feri-

das e estragadas, não se olha uma boa cobertura de tinta ou então usa-se tinta em demasia,

não se controla a pressão das maquinas, enfim não se faz um bom uso da técnica.

Na verdade, eu não conheço ninguém que se dedique a “recuperar” a técnica, conheço

muita gente que “usa” a técnica para atingir os seus objetivos.

Que tipo de materiais produzes actualmente em tipografia na Oficina do Cego?

Na Oficina do Cego e na Tipografia do Papeleiro Doido produzimos sobretudo livros e

cartazes

Nos trabalhos que fazes, conjugas a tipografia com outras técnicas, ou usas isolada-

mente?

Não tenho qualquer preconceito em misturar técnicas, faço-o sempre que posso e quando

é necessário.

Dedicam-se unicamente a edições próprias ou também aceitam encomendas?

Não aceitamos encomendas!

Na OC, fazemos trabalhos do colectivo ou de algum associado.

Na Tipografia do Papeleiro Doido, faço os meus trabalhos e agora, pela primeira vez es-

tou a fazer dois trabalhos em colaboração com um escritor e com uma ilustradora.

Nada de encomendas.

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Entrevista a Júlia Garcia

Data: 14 de Dezembro de 2016 (via e-email)

Manuel Diogo - Quando e como o teu percurso se cruzou com a Tipografia Micaelen-

se?

Júlia Garcia - A minha relação com a Tipografia Micaelense começou em 2011, quando

lá entrei com o intuito de cortar papel e reparei que a oficina estava recheada de tipos e

máquinas tipográficas. Era mesmo uma oficina tipográfica de outro tempo que se tinha

conservado até aos dias de hoje.

Estava naquela altura a iniciar o desenho de um cartão de visita e perguntei se o poderia

fazer ali com caracteres móveis. O Dinis Botelho, mestre tipógrafo da Micaelense, mos-

trou-se muito receptivo e deixou-me à vontade para vasculhar todo o material. Foi um

trabalho muito experimental e criativo, misturámos cores, testámos tipos, e criou-se logo

uma empatia entre nós, até porque o Dinis mostrou-se muito disponível em partilhar o seu

conhecimento e a sua oficina.

Percebi que gostava daquilo e pedi-lhe para fazer um estágio. Neste momento sou apren-

diz de tipógrafo.

Já conhecias ou já tinhas trabalhado antes com a técnica?

Já conhecia, mas nunca tinha experimentado.

Como designer gráfica, o que é que mais te atrai/motiva na utilização da tipografia?

O que é que encontras nesta técnica que não encontras nas técnicas de impressão

contemporâneas?

Para mim o interessante na tipografia como técnica de impressão, é o facto de construíres

com as tuas próprias mãos as matrizes num puzzle complexo de espaços e tipos. O design

faz-se longe do computador, com as mãos sujas, num ambiente de oficina a cheirar a di-

luente, sujo e barulhento em contraponto com o ambiente de escritório.

Não existe o comand Z. Quando alguma coisa corre mal é mesmo necessário desfazer

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tudo e começar de novo, o que muda completamente o ritmo do trabalho em comparação

com o trabalho no computador.

Depois do trabalho impresso as matrizes são desmontadas, o material é distribuído e

reutilizável em novas composições, o que por um lado é uma limitação, mas também um

desafio interessante.

Como é o teu processo de trabalho? Participas na composição e na impressão ou é

apenas o sr. Dinis que se ocupa dessa parte? Interessa-te o processo de trabalho em

si ou apenas os resultados que a técnica permite?

Interessa-me todo o processo, da ideia aos acabamentos e participo em todos as etapas.

Hoje em dia sou completamente autónoma na composição e quando passamos para a

impressão, o Dinis comanda a Heidelberg e eu estou sempre presente. É um trabalho de

equipa.

Que tipo de trabalhos tens produzido na Tipografia Micaelense? E são projectos

teus ou também encomendas de trabalhos? Quando são os teus projectos, como é

feita a divulgação/venda?

Sempre que é pertinente encaminho projectos que tenho entre mãos para serem compos-

tos e impressos em tipografia, como cartões de visita, uma embalagem para queijadas, um

selo/etiquetas de produtos de economia solidária, postais, capas de livros, etc. Entretanto,

também já recebo encomendas especificamente para serem compostas e impressa em

tipografia.

Depois temos os nossos projectos. A agenda, por exemplo, é um projecto de um grupo

de amigos que começou em 2014. Neste caso, como vêm muitos amigos participar na

encadernação da agenda e, por fazerem parte do processo, acabam por divulgar bastante

o projecto. Como a agenda tem saído todos os anos, também já existe uma fidelização.

Nos lançamentos da agenda abrem-se as portas da Micaelense e quem aparece pode ficar

a conhecer um pouco do processo.

Como designer, que técnicas mais utilizas nos teus trabalhos? Usas a técnica tipográ-

fica sozinha ou misturas várias técnicas no mesmo trabalho?

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Como tenho muito para aprender e explorar no que diz respeito à técnica da tipografia,

ainda não me aventurei muito na mistura de técnicas, apenas tipografia sobre offset, mas

de uma forma muito contida.

Há quantos anos existe a tipografia Micaelense?

Existe deste 1957, há 60 anos. O Dinis Botelho e o Eduardo Furtado estão lá desde 1996.

Antes de começares a colaborar com a Tipografia Micaelense, o material tipográfico

ainda era usado regularmente ou já só usavam o offset?

Era utilizado na impressão de blocos de facturas, fitas têxteis, guardanapos, alguns convi-

tes de casamento e baptismo, etc.

As tuas ideias foram logo bem acolhidas na tipografia?

Sim, muito bem acolhidas. Hoje em dia temos muito projectos em conjunto.

Com a visibilidade do trabalho que tens desenvolvido, sentes que houve um aumento

da procura de trabalhos em tipografia na Tipografia Micaelense? Não só trabalhos

de designers mas também trabalhos comerciais?

Sim.

Em S. Miguel as pessoas têm-se interessado pela técnica ou sentes que o interesse

vem mais de pessoas de fora da ilha?

Há interesse das pessoas da ilha, mas há mais gente de fora a ir à Tipografia concretizar

projectos.

Dedicam-se ou pensam vir a dedicar-se à formação (com workshops, por exemplo)?

Nunca organizámos workshops, embora o Dinis acabe por ensinar a técnica, quando, por

exemplo, recebe as residências artísticas do walk & talk.

Como justificas o interesse que existe actualmente pela técnica? Pensas que se vai

manter no futuro ou, pelo contrario, achas que se trata de algo passageiro?

Acho que as pessoas ficam fascinadas, em primeiro lugar, porque é uma técnica de outro

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tempo e ao entrarem numa oficina tipográfica é como fazerem uma viagem no tempo. Por

outro lado, todo o processo, manual e mecânico, que vai completamente no sentido con-

trário às tecnologias dos dias de hoje, como os softwares e a internet penso que também

é motivo de fascínio. O resultado final, imperfeito, fruto de todo aquele processo moroso,

sem o excesso de imagens com que hoje somos bombardeados, faz com que os objectos

tipográficos sejam diferentes da maioria dos objectos impressos.

Acho que se vai manter pois há sempre pessoas que gostam da técnica e vão preservá-la

e passa-la aos próximos.

Acompanhas o que se vai fazendo lá por fora nos inúmeros ateliers que se dedicam

à técnica? Tens alguma referência/influência ou contactos?

Vou acompanhando, sim.

Referências/influências: Paulo de Cantos, Alan Kitching, Romano Hanni, Archivo Tipo-

grafico, Eduardo Palaio, Serrote, Oficina do Cego, Homem do Saco, Clube dos Tipos,

Jorge dos Reis, etc.

Que outros ateliers/associações/editoras conheces entre nós que se dediquem à tipo-

grafia de caracteres móveis? Manténs algum tipo de relação/projectos com algum?

Conheço aqueles que referi acima. Talvez por estar numa ilha, ainda por cima pequena,

estou bastante sozinha e infelizmente não tenho relação com outros projectos.

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Entrevista a Luís Henriques (O Homem do Saco)

Data: 24 de Outubro de 2016 (via e-email)

Manuel Diogo - Começando por falar dos tempos da Oficina do Cego e do primei-

ro livro usando tipografia de caracteres móveis (“Canções usadas”), como surgiu a

ideia de utilizar a técnica em complemento à serigrafia utilizada nas ilustrações? Já

tinham conhecimento da Oficina de Tipografia do Arco?

Luís Henriques - Na altura, passavam por um atelier colectivo que partilhei, em Santa

Justa, muitas das pessoas que vieram a formar a Oficina do Cego. Fazia-se algum traba-

lho em conjunto, nomeadamente nas Feiras Laicas, na publicação de fanzines e de outras

edições com forte componente gráfica. Era forte o espírito de fazer as coisas por meios

próprios, com o máximo de autonomia possível, trabalhando cada fase da edição. Mas es-

távamos um pouco cansados da impressão em fotocópia laser e queríamos experimentar

técnicas de impressão pouco usuais. Quando planeámos as Canções usadas, ocorreu-me

utilizar a tipografia de caracteres móveis. Procurei saber onde poderia encontrar material

e formação. Por sorte, abriu a inscrição para a Oficina de Tipografia do ARco. Inscrevi-me

e pedi à Helga Vieira da Silva, a formadora, que me deixasse seguir um programa próprio

e que me desse acesso ao atelier, fora de horas. Gentilmente, ela aceitou e facilitou-me a

vida. Em vez de fazer os exercícios programados imprimi o texto do miolo da edição e a

capa. Foi uma excelente maneira de começar. Ou seja, comecei pelo que eu queria real-

mente fazer, sem tangas, sem cangas, sem as banhas da cobra que tantas vezes entopem

os cursos disto e daquilo, com citações e bibliografias sonantes, em nome do bom verniz

académico. Ela foi realmente perspicaz e ajudou, deixando campo livre.

O que é que mais te atrai/motiva na utilização da tipografia? O que é que encontras

nesta técnica que não encontras nas técnicas de impressão contemporâneas?

Balançar entre o plano e a surpresa dos resultados, entre o labor paciente e a riqueza das

irregularidades e mesmo das imperfeições do que te sai das mãos (mesmo quando nos

esforçamos o mais possível, retirando o excesso de tinta, alceando, apertando, substi-

tuindo um tipo demasiado batido por outro, um pouco menos desgastado, etc.). Aprecio

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o trabalho manual e a oficina. Aprecio a possiblidade de, a todo o momento, intervir,

alterar, trocar as voltas ao papel e à composição, misturar tintas e jogar com os materiais.

Com um acrescento fundamental: em vez de um trabalho atomizado e chato, submetido

ao chavão da eficiência e da produtividade, tenho a sorte de praticar uma actividade que

tem uma pequena e quase imperceptível aura de excesso e de dispêndio (para quê perder

tempo com isto? que trabalho doido). Isto atrai gente para a nossa oficina. É como um

radar da ficção científica (com a particularidade de atrair alguns amigos com uma panca

razoável, como bem sabes). Trabalhamos em conjunto e fazemos as coisas uns dos outros.

Quando os meios de produção são colectivos, como diria o César das Neves (ou seria o

Kroptkine? já não me lembro) podes dispensar patrões e escalões. Bom, vou reformular

o que acabei de dizer para isto não parecer o soviete de Santos: o Homem do Saco não é

propriamente do povo. É uma associação sem fins lucrativos formada por uma dezena de

amigos de classe média (tão falada ultimamente) que encontrou uma forma de trabalho

colectivo, embora circunscrito, pouco usual neste país. Os materiais de tipografia que te-

mos reunido fazem o gaúdio desta pequena comunidade. Fujo à questão da especificidade

técnica propositadamente. Não a consigo isolar, até pelo facto de ter sido ultrapassada por

meios industriais mais eficientes, de um desejo ou de uma vontade política (ou micro-

micro-política). Quando se olha para o que nos sai das mãos, adivinha-se como foi feito,

adivinha-se em cada letra a escala de produção e o método dedicado de trabalho. Adivi-

nha-se que nada daquilo poderia ter sido feito sem vontade. Nada daquilo seria assim se

o imperativo fosse a eficiência e o aval do cliente da grande empresa.

Como justificas o interesse que existe actualmente pela técnica? Pensas que se vai

manter no futuro ou tratar-se-á de algo passageiro?

Acho que, entre as hordas de licenciados e profissionais dos designs e das artes, haverá

alguns que não querem limitar-se ao computador e ao lustro impessoal dos meios gráficos

convencionais. Aconteceu-me a mim, que não sou designer; certamente acontecerá a outros.

Por outro lado, numa escala bastante mais modesta há uma mania comparável à infesta-

ção de lojas «retro» e «vintage» e merdas do género (ou devo dizer «shit like that»?). Há

mesmo quem diga «letterpress», em vez de tipografia. Há quem olhe para a gaveta dos tipos

e diga: «esta «font” é altamente». Não conheço assim tão bem o «panorama», mas aposto

que já há em Portugal quem componha umas frases e uns pregões só em inglês. Porque su-

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postamente «soa melhor» e dá para fazer uns trocadilhos saloios com ar cosmopolita - po-

deria dizer uns «puns» mas isto está a ficar demasiado escatológico e, como diria o César

Monteiro, o que é demais cheira mal. É evidente que há merda dessa. Há merda dessa es-

palhada por todo o país (basta ler os letreiros nos toldos do comércio da baixa citadina, que

oferecem «juice» em vez de sumo e «snacks» em vez de petiscos). Mas também sabemos

que há malta que gosta verdadeiramente disto e que faz trabalho muito interessante. Por

exemplo, editando poesia e textos singulares que não têm lugar noutro lado. Por exemplo,

reactivando a arte dos cartazes. E dentro deste trabalho interessante, haverá mesmo

vertentes distintas: perfeccionistas, atentas à história da prática e da criação tipográfica, ou

rudes, inclinadas para o um lado mais cru e mais imperfeito. Há espaço para muita coisa.

Mais: de há duas ou três décadas para cá, os filhos da classe média (de que falava há

pouco) aprendem profissões e ofícios que depois não podem exercer - porque, já se sabe,

«o mercardo não dá para todos». Alguns, mais ou menos fora de horas, mais ou menos

em jeito amador, acabam por explorar meios alternativos, passíveis de utilização em

trabalhos de pequena escala, ostensivamente artesanais ou artísticos. A geração do recibo

verde inclina-se para a tipografia, a risografia, o stencil, e o diabo a quatro. Como o

panorama do trabalho não parece em vias de mudar, são coisas que provavelmente não

desaparecerão nos próximos tempos. Porque permitem diferenciar significativamente o

trabalho (já não tem nada a ver com o trabalho regular produzido pela casta do operariado

que constituía a classe tipógrafos). A dada altura, isto pode enjoar as gentes e passar um

pouco de moda. Mas não creio que desapareça completamente. Em todo o caso, algumas

das pessoas que fazem isto estão a borrifar-se para a moda e para as correntes do design.

Qual achas que é a grande diferença entre a tipografia que se faz agora, por quem,

como vocês, tem recuperado a técnica e a que se fazia antigamente?

Não me alongo muito porque já avancei no assunto mas repostas anteriores. Antigamen-

te era um ofício sério, laborioso e rigoroso. Não havia cá gente preguiçosa que gosta do

«erro» e da «imperfeição» e dessas frescuras.

A poesia acaba por ter um peso muito grande nos trabalhos que fazes em que utilizas a

tipografia, tanto quando estavas na Oficina do Cego como agora no Homem do Saco. De

resto, é um género recorrente na produção de ateliers estrangeiros que também se estão

a dedicar à técnica. Além do aspecto mais pragmático da facilidade de compor poesia em

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relação a outros géneros, como vês esta afinidade/relação entre a poesia e a tipografia?

Na verdade acho que a afinidade não se prende particularmente à técnica (ou à forma de

texto). Até porque podemos recorrer ao cruzamento da impressão convencional em offset

com o trabalho em tipografia. Já o fizemos várias vezes. Mandamos imprimir o miolo do

livro fora e imprimimos a capa ou os encartes em tipografia de caracteres móveis. A afi-

nidade é de outra ordem. Posso tentar explicá-la começando por dizer que os poetas que

mais admiro editam em editoras paralelas e andam por ruas que não vão dar às grandes

empresas da edição. Não fazem carreira. O Vitor Silva Tavares, editor da &etc dizia que a

poesia não é tricot literário. É a expressão de uma vivência. Por outras palavras, retomava

um poema do Pedro Oom que tem este verso: Pode-se sem escrever escrever plume. E

também este: pode-se não escrever. Todas essas acções, resumindo, podem ser poéticas.

Eu juntaria outra: podes fazer tipografia com poemas escritos por outros. E por aí andará

a afinidade.

Que tipo de material é produzido pelo Homem do Saco? De que forma é feita a di-

vulgação/venda?

Cartazes, plaquetes com poemas e ilustrações, pequenas edições artesa-

nais, livros de maior dimensão (feitos em gráfica convencional com algu-

ma intervenção nossa), ementas de restaurante, cartões de visita, convi-

tes de casamentos, postais para tabernas, máscaras de carnaval, etc., etc.

A distribuição depende do número de exemplares e da natureza específica das edições.

Se forem pequenas e artesanais, vendemos pela internet, em feiras ou no nosso espaço.

Quando a tiragem é maior e o formato é um livro distribuímos por livrarias. Privilegiamos

as livrarias «independentes» (perdoa, uso este termo equívoco por facilidade; afinal ape-

nas porque se tornou sinónimo de estabelecimentos singulares com livreiros a sério e an-

tónimo de supermercado de tijolos e outras bestas céleres). A Letra Livre, O Paralelo W, a

Linha de Sombra, a Pó dos Livros, O Sr. Teste, A Utopia, etc [(...) POSSO ESTAR A ES-

QUECER-ME DE ALGUÉM). Quando as tiragens são da ordem dos 300 ou 400 também

vão para a Almedina e para a Fnac (lá terá que ser, ao encontro das massas distraídas...)

Como toda a gente, a associação tem facebook e blog e instagram e todas essas virtuali-

dades que eu pessoalmente não tenho (posso gabar-me disso - todo oportunista - porque,

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felizmente, não sou eu que trato dessa divulgação na internet, bem hajam amigos!).

Dedicam-se unicamente às vossas edições ou também aceitam encomendas de tra-

balhos?

Aceitamos pois: convites de casamento, ementas, mapas, cartões de visita, etc., etc. .Só

não recebemos ainda encomendas de facturas. Nem da lotaria do jogo do bicho (também

não queremos, porque somos gente honrada). Evidentemente, preferimos fazer o quere-

mos fazer. Aceitamos as encomendas para ganhar extras e pagar as rendas... Por outro

lado, muitas vezes as encomendas são bastante interessantes e aceitamo-las com entusias-

mo, quase como se tivessem nascido de uma vontade comum.

Acompanham o que se vai fazendo lá por fora nos inúmeros ateliers que se dedicam

à técnica? Têm alguma referência/influência ou contactos?

Conhecemos alguma coisa, mas tu é que acompanhas mais. Já nos arranjaste alguns en-

contros muito interessantes. Já tivemos visitas do Kennedy Jr, e do Alberto Casiraghy.

Mas acho que não nos ocupamos muito com isso. Não vamos a muitos encontros e quan-

do vamos é cá em Portugal (tirando uma excepção, em Salamanca, acho). Mas temos

algumas coisas a circular no Brasil. Acho eu.

Têm contacto com antigos tipógrafos? Que feedback dão do vosso trabalho?

Contactos temos sobretudo com os tipógrafos que nos vendem material. E aí as reacções

variam. Alguns olham-nos com curiosidade e apreciam a invenção (com alguma compla-

cência no que toca ao primor técnico). O comentário mais azedo veio de um paranóico que

nos queria vender o material calculando rigorosamente a taxa de inflação de várias déca-

das. Brindou-nos com este epíteto: «isto é tipografia rasca». Confesso que, nesse caso, te-

ria preferido uma expressão em inglês: «punk» ou ««grunge» talvez? Mas não deixa de ser

justo. É isso mesmo: somos tipógrafos rasca. Está bem visto, está bem visto. Ou talvez não.

Um das pessoas mais simpáticas, O Sr. Francisco de Santarém, chegou a aprovei-

tar uma excursão e veio ter connosco a Lisboa. Almoçou bem, bebeu melhor e parti-

cipou numa demonstração dada na Rua do Saco, no primeiro espaço que tivemos.

O «Che Guevara» de Emiliano Torres, como se auto-intulou um tipógrafo que co-

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nhecemos na Pontinha, conversou connosco longamente sobre o trabalho, o fabri-

co de fotolitos, os materiais, o sexo da vizinha, o comunismo (que exemplificou da

melhor maneira, cortando e distribuindo pelos presentes o pão que trazia de casa).

O Sr. Prudêncio, de Algés, vendeu-nos muito material e fez-nos linhas de linotype por

encomenda, por um preço muito simpático. Fizemos com elas uma das edições artesanais

mais bonitas da Pianola (uma das editoras do Homem do Saco): Autocataclismos do Al-

berto Pimenta. Impresso com caracteres móveis conjugados com as linhas da linotype.

Os tipógrafos de uma tipografia de Nisa que estava em vias de fe-

char, conversaram sobre os cartazes que fizeram (belíssimos carta-

zes a anunciar festas) e sobre o trabalho que entretanto escasseou...

Resumindo, o maior feedback é a atenção e a disponibilidade espontânea de muitas das

pessoas que encontrámos, em vários lugares. Passamos algum tempo a ouvir e a aprender

muito.

Que classificação se encaixa melhor na vossa actividade: são tipógrafos? Editores?

Designers? Artistas...

Homens dos sete instrumentos? (lápis, pincel, mesa digital, rodo, rolo, goiva, prensa,

x-acto, etc. etc.). Homens do Saco. Um saco grande. Cabe lá tudo.

Dedicam-se à formação?

Nem por isso. Mas não enjeitamos a hipótese. Eu fartei-me (em todos os sentidos) de

dar aulas. Mas não coloco de lado a hipótese. Aliás, por vezes, fazemos uns workshops,

descontraídos.

De que equipamento dispõem e como o têm adquirido?

Dois prelos, duas prensas minerva, uma mesa de impressão manual de serigrafia para

formatos razoáveis (dá para imprimir um formato próximo do A1), um prensa de gravura,

quatro caveletes de tipos de metal e algumas gavetas e caixas de tipos de madeira, uma

caixinha de vinhetas, uma máquina de nylonprint (não sei se me estou a esquecer de al-

gumas coisas)... Fomos adquirindo aos poucos, sobretudo graças aos contactos estabele-

cidos por ti, um pouco por todo o país: Santarém, Manteigas, Pontinha, Algés, Penacova

(bela lampreia), Nisa (belo feijão de festa), etc., etc...

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Que outras técnicas usam para além da tipografia?

Serigrafia, linogravura, gravura em acrílico, fotocópia, riso, monotipias, pinceladas avul-

sas, passagens selvagens com o rolo, etc.

Que outros ateliers/associações/editoras conheces entre nós que se dediquem à tipo-

grafia de caracteres móveis? Mantêm algum tipo de relação/projectos em particular

com algum?

Gosto sobretudo do Rui Azevedo Ribeiro e da 50 kg. Por uma enorme simpatia e porque

faz um tipo de trabalho que eu compreendo e que aprecio muito. Já fizemos coisas com

ele (uma plaquete; uma capa para um livro dele) e gostaria de fazer mais. Mas ele está no

Porto e não é fácil.

Que papel ocupa o Homem do Saco no dia-a-dia dos seus membros?

Varia. Às vezes é sempre a abrir. Outras, não dá tempo para ir lá. Eu vou lá mais vezes

porque sou sortudo e tenho a vida airada. Todos nós temos outros trabalhos (da hotelaria

à farmacêutica hospitalar, passando pela agricultura biológica, pela osteopatia e, já agora,

pelos correios). Posso estar enganado,mas parece-me que mesmo quando um de nós não

pode estar lá com maior frequência, pensa sempre naquele espaço como um lugar de sor-

te, onde se podem fazer coisas porque se quer fazer coisas, e não por obrigação. Foi uma

sorte que nos aconteceu.

Para finalizar, que planos/projectos existem para o futuro do Homem do Saco?

Imprimir uma lotaria do jogo do bicho que nos faça, finalmente, milionários. Depois, ob-

viamente, planear a candidatura à presidência dos Estados Unidos. Pomos o Luís França

como testa de ferro (já tem experiência: é o nosso presidente vitalício). Estamos a pensar

nisto lá para o ano dois mil e vinte e quatro...

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Entrevista a Rui Azevedo Ribeiro (Edições 50 kg)

Data: 11 de Novembro de 2016 (via e-email)

Manuel Diogo - Quando surgiu o teu interesse pela tipografia de caracteres móveis?

Como foi o primeiro contacto?

Trabalhei como guia no Museu da Imprensa no Porto de 2001 a 2004. E foi aí que tive o

meu primeiro contacto com a tipografia de caracteres móveis.

E onde aprendeste a técnica? Tiveste algum tipo de formação?

Não tive nenhum tipo de formação. Consultei manuais e livros, vi vídeos na internet e

mais tarde, quando já tinha algumas noções, conversei com tipógrafos e visitei algumas

tipografias que ainda usavam impressoras Heidelbergs com composição em caracteres

móveis, mas imprimiam sobretudo livros de recibos porque para terem numeração usa-se

um numerador que fica à mesma altura dos tipos... Ainda hoje as minervas Heidelberg são

muito usadas para isso.

Como e quando surgiu a ideia da criação das Edições 50kg? De onde vem o nome?

E o primeiro livro, quando foi editado?

Tinha esta ideia de fazer um livro com escritos meus e como me encantei com as possibil-

idades da tipografia móvel e sabendo que ainda existia um espólio tipográfico interessante

e cujo destino mais provável era a sucata ou a fundição onde seriam derretidos. Comecei

a comprar, por volta de 2001, algum material tipográfico. Um desses materiais foi um

prelo de provas que quando perguntei o peso dele, já que nessa altura vivia num terceiro

andar sem elevador, o funcionário da extinta Polónio Bastos disse-me que pesaria cerca

de cinquenta quilos, foi assim que encontrei o nome para a editora. Demorei mais alguns

anos a adquirir tipos de letras e espaços (material branco) até que por volta de 2004 come-

cei a fazer um pequeno livro que fui suspendendo e voltando ao sabor da minha disponib-

ilidade. Sabendo que andava algo empenhado nestas coisas tipográficas. O artista plástico

Renato Ferrão teve a ideia de fazer comigo um pequeno fólio para a inauguração de uma

exposição sua na galeria Quadrado Azul no Porto em 2006 chamado “Quem tem olho é rei”

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e foi esse fólio a primeira coisa que saiu cá para fora e que deu o mote à editora 50kg.

O que é que mais te atrai/motiva na utilização da tipografia? Como editor (e tam-

bém autor de alguns dos livros que editas), o que é que encontras nesta técnica que

não encontras nas técnicas de impressão contemporâneas?

O que me fascina nesta técnica, além das provas dadas da sua durabilidade, coisa que os

métodos de impressão digitais ainda não garantem, é desde logo um palpável, isto é, um

relevo, que me diz muito quer ao meu tacto quer ao meu olhar. Com esta técnica há uma

gravação com tinta nas páginas e isso para mim é muito mais do que píxeis e dpi’s pois

apela a mais sentidos do que o visual. Passar os dedos pelo papel e sentir essa gravação é

algo que me fascina.

Nesta “nova vida” que a técnica tipográfica está a ter um pouco por todo o mundo,

a poesia é um género recorrente nas edições que se vão fazendo por ateliers como o

teu. Como explicarias esta relação entre a poesia e a tipografia?

É visível ao longo da História, pelo menos da nossa história ocidental, e dos movimen-

tos artísticos que aí se vincularam, que a tipografia e a poesia criaram sempre uma boa

parceria. No movimento Dadá, no do Futurismo, do Surrealismo até chegarmos à poesia

Concreta eis exemplos mais do que suficientes para termos em conta que estes movimen-

tos viram na tipografia uma boa maneira de se expressarem ou seja uma plasticidade.

Existe, a meu ver, qualidades plásticas na tipografia ou seja qualidades de concepções es-

téticas e poéticas e que ainda hoje ao usarmos a tipografia de caracteres móveis dialogam

referencialmente com esses movimentos artísticos. É algo que não se pode ignorar. No

entanto temos de ter em conta que a tipografia ao ver-se tecnicamente livre dos “monos”

enciclopédicos, da produção de grandes volumes e em massa, pode voltar a concentrar-se

mais na parte artística com produções mais criteriosas de livros de artistas ou de poesia de

pequena tiragem que lhes dá o carácter de rarefacção que é inerente ao objecto artístico.

A diminuição do número de leitores visível na redução das tiragens dos livros de poesia

já permite que se volte a pensar no livro de poesia também enquanto objecto. O que de

alguma forma volta a validar a opção da tipografia de caracteres móveis e que é um em-

preendimento demoroso e dispendioso. A conjugação disto que referi: a plasticidade da

tipografia de caracteres móveis; a redução das tiragens em consonância com a redução de

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leitores; e a rarefacção do objecto livro – compõem o ramalhete que permite o ressurgi-

mento ou desta “nova vida” para a tipografia de caracteres móveis.

Tens contacto com antigos tipógrafos? Que feedback te dão do teu trabalho?

Tem-se revelado sempre uma desilusão o contacto com antigos profissionais desta área.

E passo a explicar porquê. Os antigos tipógrafos, exímios profissionais e mestres, sempre

tentaram obter impressões o mais “limpas” possíveis, isto é, sem aquele ruído do excesso

de gravação ou de tinta. Pois foram formados assim. Dizem mesmo que se houver esses

excessos que referi é uma má impressão. Daí terem de certa maneira aceitado bem, ou en-

carado como natural, a substituição da tipografia móvel pelo Offset e depois pelo digital

que reduz a gravação e o empastamento de tinta. Ora para mim isto sempre foi esconder a

técnica de impressão. Eu assumo a gravação e aceitáveis excessos de tinta. Gosto mesmo

desse efeito. Caso contrário faria livros digitais onde esses factores não ocorrem. Por isso

o diálogo com antigos profissionais é sempre pouco prolífero para mim centrando-se mais

no meu respigar por tecnologia que eles acham já obsoleta e tentar adquiri-la.

Tens-te dedicado só à impressão de livros ou tens produzido também outro tipo de

material? De que forma é feita a divulgação/venda?

Fiz também alguns cartazes e marcadores de livros. Mas a impressão de livros, brochuras

e plaquetes é a actividade onde mais me centro. Coloco essas publicaçöes em algumas

livrarias menos comerciais. A venda pela internet também é contemplada.

Na tua oficina tipográfica, dedicas-te unicamente às Edições 50kg ou também aceitas

encomendas de trabalhos?

Dedico-me unicamente às Edições 50kg.

Acompanhas o que se vai fazendo lá por fora nos inúmeros ateliers que se dedicam

à técnica? Tens alguma referência/influência?

Não acompanho muito. Gosto de ver as coisas da Pulcino Elefante do Alberto Casiraghi.

Como te classificas: tipógrafo? Editor? Designer?

Um tipógrafo nos termos convencionais não posso ser. E um designer realmente não sei

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o que é. Por isso direi um editor-faz-tudo mas muito amador nos dois sentidos que esta

palavra “amador” tem.

Dedicas-te ou pensas vir a dedicar-te à formação?

Não me dedico, mas quem sabe. Não será é certamente na Fundação Ricardo Espírito

Santo.

Usas outras técnicas para além da tipografia de caracteres móveis?

Sim, já usei a serigrafia e a risografia.

De que equipamento dispões e como o tens adquirido?

Tenho três prelos de provas e alguns cavaletes com tipos. Estou limitado em termos de

espaço físico e também financeiramente já que estas coisas tipográficas já tem grande

procura e já não se conseguem as pechinchas de outrora. Comprei o meu material quase

todo em tipografias que iam fechando.

Que papel ocupam as Edições 50 kg no teu dia-a-dia? É a actividade principal?

Olha, eu vivo com isto. Literalmente. Partilho a minha casa com cavaletes e prelos e estou

sempre a tropeçar em algo que faz parte da tipografia. Porém não pode ser a minha activ-

idade principal porque para não fazer concessões de gosto ou até para não ser um escravo

não posso. Tenho de fazer outras coisas para pagar as minhas contas.

Como justificas o interesse que existe actualmente pela técnica? Pensas que se vai

manter no futuro ou trata-se de algo passageiro?

Há uma necessidade no “pôr as mãos na massa” que a informática na sua vertente digi-

tal reduziu quase ao grau zero e que ainda faz falta a muita gente. Materialistas ou não,

existe uma satisfação que se obtém no manuseio deste material gráfico havendo claro

essa propensão para deitar mãos à obra. Com a vulgarização do digital seja no livro, na

fotografia ou no vídeo abriu-se um lugar para uma artesania que as tecnologias analógi-

cas que resistiram vão permitindo. É claro que não será para criar objectos para fins de

comercialização massiva e maciça mas antes objectos artísticos, com ou sem aura Ben-

jaminiana, que contempla a raridade, o restrito, o reduzido. Havendo estas condições de

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haver pessoas que necessitam de “apalpar” algo que fazem, e desta tecnologia obsoleta

ainda estar acessível e capaz de produzir objectos interessantes poderá, no meu entender,

vir sempre a gerar bons encontros ao longo do tempo e não ser só algo passageiro e ao

sabor das modas.

Que outros ateliers/associações/editoras conheces entre nós que se dediquem à tipo-

grafia de caracteres móveis? Manténs algum tipo de relação/projectos em particular

com algum?

Conheço bem e acompanho o colectivo Homem do Saco. E pretendo no futuro colaborar

mais activamente com eles talvez com publicações de poesia e cartazes

Para finalizar, que planos tens para o futuro das Edições 50kg?

Um império à Citizen Kane!

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Entrevista a Rúben Dias (Tipografia Dias)

Data: 10 de Agosto de 2016

Manuel Diogo – Como é que surgiu o teu interesse pela TCM e onde aprendeste a

técnica?

Rúben Dias – Eu não sei muito bem de onde é que isto veio, na realidade, eu já na fac-

uldade tinha um fascínio muito grande por tipografia, tipografia em geral… vasculhava

tudo o que havia sobre tipografia, queria saber tudo, a internet não tinha assim tanta coisa

na altura, embora já desse pano para mangas para uma pessoa se perder à procura, mas

não era assim tão fácil de encontrar, estávamos no tempo do Altavista… e vasculhava,

vasculhava tudo o que havia pelo caminho. Depois, houve um Verão que fui trabalhar

para uma gráfica que tinha alguns tipos e algumas coisas e se calhar já tinha visto algumas

coisas online, não sei… Comecei a escavar um bocadinho por ali, à procura. Comecei a

juntar algum material, o meu primeiro prelo, um Vandercook, uma data de tipos que vi-

eram dessa gráfica em Leiria, a gráfica do Seminário, que pertencia à Igreja. Tinham mu-

dado de instalações recentemente e tinham deixado muitas coisas para trás nas velhas in-

stalações, que já não iam usar, aquilo ia para o lixo e acabei por juntar muita coisa dali…

Lamentavelmente, deixei lá uma Monotype Caster Machine, com imensa pena… se eu

soubesse… Não sabia na altura, e lá ficou uma Caster Machine. Hoje não teria deixado

lá, de maneira nenhuma, embora para mim, na altura, fosse quase impensável mover uma

coisa daquelas. Hoje não seria um problema, mas na altura acabei por lá deixar. Depois

daí fui juntando mais coisas, em Leiria e um bocado por todo o lado. Fui procurando

aprender com essas pessoas que vais conhecendo nessas gráficas que vais visitando. Mui-

tas conversas. Nessa primeira gráfica do Seminário aprendi com pessoas de lá… depois

mais tarde fui conhecendo mais pessoas das gráficas que ia visitando, por carolice ou à

procura de mais tipos. Ia falando… Tardes, dias inteiros com eles na conversa e aprendia

muito daí… Mais recentemente, tenho mantido contacto mais ou menos regular com o Sr.

Godinho, Benjamim Godinho, que trabalhava na Imprensa Nacional e que tem vindo aqui

a alguns workshops inclusivamente a dar-nos uma mão e a ensinar-nos uma série de cois-

as espectaculares que não aparecem em livro nenhum de tipografia, nem no Libânio, nem

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no Frederico Porta, nem no Apto de Oliveira… Não aparecem em lado nenhum. Vêm da

prática e nunca chegaram a aparecer em livro nenhum e que são incríveis. É um bocadi-

nho isto, a aprendizagem vem um bocadinho destas pessoas e outras vêm de conversas

com pessoas como tu que também metem a mão na massa e vamos partilhando... com o

Rui Damasceno em Coimbra... Vem de fazeres, que era como se aprendia a tipografia não

é? Na oficina ia-se aprendendo, fazendo, com algum mestre. Não houve essa aprendiza-

gem com um mestre mas foi muito de meter a mão na massa.

E o que é que mais te motiva na técnica, o que é que encontras nela que não encon-

tras nas técnicas de impressão contemporâneas?

Acho que o que me atrai é... eu não me considero uma pessoa nostálgica, presa no pas-

sado, o que me atrai é essa relação do que é que a tipografia nos deu, ao mundo digital

e ao mesmo tempo o que é que eu posso aprender ali que me permita recuperar algumas

coisas que se estão a perder no mundo digital. Para além de que a minha forma de pensar

um layout no computador, enquanto designer, é brutalmente influenciada por aquilo que

eu pratico na oficina enquanto compositor tipográfico. E portanto é essa analogia, essa

aprendizagem que me torna de alguma forma mais conhecedor do processo e da técnica,

de um lado e do outro, que me dão esta vontade de continuar. Depois, claro, meter a mão

na massa, sair do computador e mexer na tinta, a imperfeição. Ainda que eu procure eli-

minar ao máximo a imprecisão natural de cada print ser diferente e ter alguma irregulari-

dade em comparação com o offset. Atrai-me mas é um complemento, não é esse o meu

mote. Eu procuro uma impressão fidedigna e pouco prensada e pouco borrada da tinta,

uma coisa mais perfeita, uma impressão mais regular, e portanto não é esse efeito mais

plástico que está agora na moda que eu estou à procura, mas sim, como é que isto se pode

preservar como era, não é? Com a técnica, com a lógica, com um cuidado de impressão

muito subtil, muito delicado, em que eventualmente só algumas pessoas é que percebem:

“olha, isto é tipografia mesmo, não é offset...”

Como e quando surgiu a Tipografia Dias, e já agora, como surge o nome do espaço?

Tipografia Dias era uma – era e é – uma espécie de homenagem àquelas oficinas que ga-

nhavam o nome do seu fundador... e eu com este nome Dias, que não podia ser mais tuga,

achei que tinha algum interesse em brincar com isso, brincar com essa ideia e homenagear

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todas essas oficinas... dando à minha oficina esse mesmo nome. Apesar de no Facebook

a Tipografia Dias só aparecer este ano, dois mil e... não mentira, só aparecer em 2015...

já ia fazendo alguns cartazes algumas coisas em que dizia que era a Tipografia Dias,por

brincadeira, por graça. Ela surgiu algures durante estes anos, desde a faculdade até agora,

sem pensar muito quando é que ele começou exactamente. Foi surgindo... pareceu-me

que era o nome adequado... Mas ganhou mais forma desde que veio para aqui para Al-

valade, mais ou menos há um ano, em Julho de 2015, ganhou mesmo forma e comecei a

fazer coisas de forma mais activa, dantes era um bocadinho uma coisa escondida, quase

um projecto de garagem, quase off the record. As pessoas quase que nem sabiam e fica-

ram todas espantadas porque eu tinha estas coisas todas e tudo o mais. Portanto, acho que

surgiu assim de uma forma oficial no ano passado, mas já era uma ideia que andava aí a

acontecer, underground (risos)...

Esta questão agora, já respondeste um bocado atrás... portanto, tens contactos com

antigos tipógrafos. Que feedback é q eles te dão do trabalho que fazes?

Não será por acaso com certeza... o sr. Godinho era uma pessoa muito cuidadosa, muito

delicada com os trabalhos e preocupada. Desde o amarrar da composição, desde a com-

posição em si mesma até à impressão. Ter realmente uma boa qualidade e tudo o mais e

eu acho que me vou juntando a essas pessoas porque reconheço nelas alguma coisa que

eu ambiciono também, portanto, ele é muito crítico com as coisas que nós fazemos, o que

me deixa muito satisfeito porque me permite continuar a evoluir. E é crítico com o mais

ínfimo pormenor, desde a pressão à hifenização, à partição das linhas, que tem muito a

ver com a minha formação enquanto designer gráfico que se concentra na tipografia, no

uso da tipografia, seja no computador seja aqui na oficina e isso permite-me evoluir, sem

dúvida. Essa crítica é muito do pormenor, do detalhe é por isso que eu acho que procuro

essas pessoas, para poder aprender um bocadinho mais com isso e ainda bem. Não sei se

respondi, ou se me perdi por completo... (risos)

Que tipo de material é que produzes aqui na Tipografia Dias?

Eu acho que o facto de ter procurado sempre os prelos de mesa ou prelos planos, horizon-

tais, que têm um formato normalmente A3 ou mais, me tem encostado para o formato car-

taz de forma natural. O facto de ter algum receio de juntar máquinas motorizadas fazem

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com que eu trabalhe esses objectos de tiragem limitada que é o cartaz, mais do que outro

tipo de objecto. Mas também vamos fazendo cartões-de-visita, convites de casamento...

Já fizemos dois por encomenda. Já fizemos... sei lá... já fizemos algumas experiencias

com capas de livros também... Mas o poster é sem dúvida a peça que acabamos por tra-

balhar mais.

E de que forma é que fazes a sua divulgação/venda... estás no Facebook por exemplo...

O Facebook é o maior divulgador.

Costumas participar naquelas feiras que existem muito agora, auto-edição, edição

independente… ou tencionas vir a participar?

Confesso que não, confesso que não tenha essa ambição embora às vezes pense que se

calhar devia ir. Mas as feiras acabam por calhar ao fim-de-semana e ao fim-de-semana eu

tenho familia. Não é que não gostasse de ir, mas ao fim-de-semana tenho uma família...

se eu já roubo à minha família os dias em que faço workshops, por exemplo, que são

fundamentalmente ao fim-de-semana ou à noite, fora do horário de trabalho, se ainda vou

roubar mais dias, daqui a nada, tenho familia para quê, não é? Se quero estar com eles

tenho que excluir algumas dessas coisas e essas feiras são as coisas que eu acabo por ex-

cluir. Eu acho que acima de tudo serve pelos contactos, pelas pessoas que se conhecem

ali, mais do que as vendas. Questiono-me se rende um dia inteiro ali para vender meia

duzia de peças, não é... mas não testei, também não sei, estou a falar de cor, questiono-

me: “não, prefiro estar com a minha família. Vou lá vender três ou quatro posters não vai

valer a pena... depois ainda regateiam os preços”… Penso em meter online, montar uma

loja online e quem quiser, quer, quem não quiser, não quer... aquilo tem um preço não há

regateio não há nada, é assim e acabou.

Acompanhas o que se vai fazendo lá por fora, em ateliers como o teu, que se dedicam

à técnica? Tens alguma referência, influência?...

Acho que acompanho. Vou acompanhando... Em Inglaterra há várias oficinas. Mais ofi-

cinas do que ateliers. Acompanho a oficina do Spiekermann, a p98a ou a do Allan Ki-

tching. Procuro pôr-me a par daquela malta toda. Comprei o livro dele, que saiu agora

recentemente e tudo mais. Vou estando mais ou menos atento, mas não sou pessoa... sou

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uma pessoa analógica que não ando tanto na internet como deveria, se calhar, e o Face-

book perde, todos os dias perde por isso, por estar menos online. Ainda hoje fotografámos

varias coisas e acabámos por não postar lá nada. Estávamos a pensar que íamos postar...

Estivemos a imprimir várias coisas e acabamos por não pôr nada no Facebook, que é pena

porque fizemos, fotografámos... agora para lá pôr... Acabo por fugir um pouco da internet.

Dedicas-te só aos teus projectos de tipografia ou também aceitas encomendas de

trabalhos? E que tipo de trabalhos é que te interessam?

Eu costumo brincar e dizer: eu não quero ser impressor, portanto, procuro aceitar projectos

quando há espaço para nós podermos trabalhar com os caracteres móveis. As pessoas têm

um conteúdo, querem um cartaz e se pudermos ser nós a planear esse cartaz e a compor…

Sermos nós a compor e a imprimir, no fundo é como se eu fizesse aqui umas impressões

no atelier. Se aquilo que me estão a pedir é para fazer design eu posso fazer ali no compu-

tador e imprimir na impressora digital, ou posso ir ali para a oficina e ser designer com os

caracteres móveis e imprimir com os tipos e com os prelos. Portanto, as encomendas que

procuro são essas, não é? As encomendas que aceito são essas, geralmente. Perguntam-

nos para fazer as coisas e se nós estamos interessados. A intenção não é: “agora somos

impressores e vou imprimir um cartão feito em formato digital e faz-se um fotopolímero

ou um zinco e imprime-se a partir dali”. Isso não nos interessa, claramente.

Como é que te classificas? Além de designer achas que és tipógrafo também?

(risos) Essa pergunta é uma das que se têm mesmo tornado recorrentes. Eu acho que

primeiro que tudo sou designer. Como eu dizia agora mesmo, quando alguém me pede

um cartaz em tipografia eu penso logo como designer, portanto, eu sou designer. Sou um

designer que trabalha com tipografia e se recuarmos um bocado no tempo, aquele que

compunha em tipografia e era criativo, era tipógrafo. Portanto, de alguma forma, acho

que também sou tipógrafo, mas perante a pergunta, eu acho que sou designer. Penso numa

série de outras coisas que não sei se um tipógrafo na altura pensava, pelo menos não há

registo sobre isso, não é… pensava no layout, pensava como é que este layout comunica e

tal, e nós pensamos um bocadinho mais para além disso também, não é? Como é que vai

ser aceite, recebido, como é que as pessoas vão receber, o que é que vão fazer com este

objecto, vão reagir na internet, vão ter outra reacção qualquer… Portanto, pensamos um

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bocadinho mais para além daquilo que era apenas o objectivo do compositor tipógrafo

que era criativo também. Portanto, acho que primeiro que tudo sou designer tipográfico.

Acho que podíamos inventar a categoria do designer tipográfico quando componho com

as letras e do designer dos tipos de letra quando desenho tipos de letra quer para madeira

quer para o mundo digital, que é uma coisa que se confunde com alguma frequência, de-

signer tipográfico e designer de tipos de letra, não é...

A formação é uma vertente importante aqui da Tipografia Dias não é? É mesmo

vocação ou apenas uma forma de obteres um retorno económico?

É um bocadinho das duas. É uma forma de colmatar, no fundo, quase de assegurar que

isto tem um custo não é… e portanto se eu posso ir de uma forma regular colmatando

esse custo, quer do espaço quer de continuar a adquirir material, porque ele tem desgaste

e precisamos de mais, quer porque há pouco e nem todo está nas melhores condições e

tem que ser recuperado e também melhorado e portanto esse income permite manter esta

oficina viva, limpa e pronta a usar. Por outro lado, eu dou aulas há mais de uma década e

isso dá-me muito gozo. Essa partilha de conhecimento e o retorno que isso trás, de uma

forma não pensada à partida tem-me trazido muita coisa de volta também, amizades e

muitas pessoas que voltam: “olha descobri isto, encontrei aquilo, conheces isto, conheces

aquilo”, isso é muito enriquecedor também, portanto... Tem sido uma coisa que me dá

prazer, dar aulas, quer na faculdade, sem o caracter de oficina, são aulas de tipografia do

mundo digital, quer nos workshops aqui na oficina, muito mão-n-massa. Cada um na sua

medida são muito enriquecedores. São experiências muito ricas.

E tens trazido os teus alunos aqui...

Sim, este ano trouxe para cá a oficina e procurei trazer uma série de alunos. Primeiro,

comecei a pensar trazer todos indiscriminadamente, mas depois comecei a fazer contas

e tinha 180 alunos num ano lectivo e isso era uma coisa um bocadinho louca pensar tra-

zer cá os 180 alunos. Eu partilho atelier com arquitectos e esse trazer dos alunos estava

a influenciar muito o resto das pessoas que estão aqui a trabalhar e não era correcto da

minha parte. Então, dividi isso em pequenas visitas de 15 alunos no máximo. O espaço é

contíguo e estava a dificultar bastante essas visitas e a incomodar muita gente aqui, e aca-

bei por dividir isto. Ia trazendo aqueles que mais rapidamente poderiam perder a hipótese

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de vir, mas isso é um contra e comecei a trazer a trazer os alunos que estavam realmente

interessados, depois das aulas acabarem e depois de eles não serem mais meus alunos...

Quem quiser pode vir. Isso permitiu no fundo que aqueles que estivessem realmente inte-

ressados pudessem vir. Quem só vinha porque era chato não ir e porque o professor podia

achar mal ou não sei quê… No fundo esse convite vinha durante as aulas como uma coisa

que era só feita à posteriori e ninguém tinha que se sentir minimamente coagido a ter que

ir, portanto, acho que mantenho cada vez mais essa predisposição... quem quiser vir, vem.

E que mais valia é que achas que os alunos tiram para o seu trabalho do contacto

com a tipografia de caracteres móveis?

Não sei… Foi o primeiro ano que trouxe esses alunos, trouxe a meio do ano e não sei

até que ponto isso se reflectiu realmente. De forma geral, toda a gente gostou muito da

experiência de vir cá e experimentar, de ver a composição... Como é que era feita a im-

pressão, como é que se imprimia. A diferença de ter vários prints com pequenas variações

e tudo o mais. A própria explicação do uso dos brancos: no computador abrimos um

documento e pronto, já está, o branco já lá está… É A4 ou A3… O branco já está feito.

Podemos lavar as mãos do branco e já está, é um disparate. Aqui, temos que o pôr lá, não

é… Fisicamente. Isso obriga-nos a pensar também no branco. Da mesma maneira como

arrumamos a composição, arrumamos os brancos também e esse pensamento que era o

que eu dizia há bocadinho é um dos principais factores. Quando penso no mundo digital

estou a pensar nos brancos também, ainda que não os coloque lá. O branco é igualmente

uma medida, uma unidade, uma peça, um bloco que tem uma dimensão, que tem uma

relação com o resto das partes. É uma coisa que eu foco muito quando trago aqui alguém,

que realço bastante. A importância que isso tem, quer para uma consciência de que se está

a pensar design, um layout qualquer e que ali é uma necessidade mais até do que uma

consciência. E essa consciência permite realmente trabalhar o objecto a um outro nível,

muito para além de apenas as letrinhas não é?

Nos teus trabalhos usas mais alguma técnica além da tipografia de caracteres mó-

veis, ou pensas vir a usar?

Até aqui temos usado unicamente os caracteres móveis, mesmo os zincos e os fotopolí-

meros temos quase fugido deles... Acho que tinha que seleccionar e não conseguia juntar

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tudo e portanto resolvi juntar só tipos. Zincos e fotopolímeros era mais um investimento

que tinha menos interesse. Era entrar no mundo da ilustração, e estamos mais interessados

no mundo da tipografia em si mesmo. Daí a achar que não é saudosismo. Interessa-me

os tipos da tipografia e não tanto a ilustração. E nesse sentido acabo por ter muito pouca

coisa. Volta e meia penso que se calhar devia abrir um bocadinho e usar alguma... por

exemplo usar-se linóleo e isso fazer parte de um workshop. Para abrir espaço a que as

pessoas que chegam possam usar outras coisas também. É outra coisa que tenho falado e

tenho pensado. Pode ser uma boa abertura, um bom alargar de oferta e com isso possa ter

algum retorno para comprar mais tipos e mais letras. No fundo é para isso que serve não

é? Em vez de acharmos que vamos ganhar algum dinheiro com isso porque não vamos.

Se a ideia é ganhar dinheiro então não é este o caminho, claramente...

De que equipamento dispões e como é que tens adquirido o material?

Muito de andar por aí. A falar com uma oficina e depois com outra e ir aparecendo, ir

falando com tipógrafos... o passa-palavra. As pessoas conhecem-me. O último armário

veio por troca com manuais de tipografia, naquele conjunto de trocas que fizemos com os

manuais. Depois, já chega ao ponto que as pessoas me ligam a dizer “ah, eu sei que está

a juntar algumas coisas de tipografia, eu tenho aqui material que se calhar está interes-

sado...” Vem um bocadinho daí... No meio disto reuni essencialmente tipos de madeira e

de chumbo e para já três prelos de provas, planos. Este Korrex alemão dos anos 60, um

Vandercook nº0 que eu creio que seja do 2º quartel do século XX e uma Atlantic também.

Creio que seja americana... e penso que seja mais recente, do 3ª quartel. De momento não

tenho referência, não consegui ainda referências da data. Os dois primeiros no formato

A3+, um pouco maior e este último um bocadinho maior. Estamos a testá-lo agora…

40x70cm... um formato um bocadinho mais generoso, ainda estamos a polir e a afinar.

Que papel é que ocupa a Tipografia Dias no teu dia-a-dia? Não é a actividade prin-

cipal…

A minha actividade… Se pensarmos que a minha actividade principal é a tipografia, então

está enquadrado. Depois, dentro da tipografia divido-me em muita coisa, desde o design

de tipos à investigação, às aulas que lecciono na faculdade, aos workshops, ao atelier que

trabalha com tipografia, seja no formato digital ou analógico. Portanto, a tipografia tem

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um papel presente, activo no meio destas todas. Acho que todas me vão roubando um

bocadinho, ora agora estou a fazer um artigo, ora agora estou só no atelier... Vou andando

um bocadinho nestas todas e tentando levar tudo o que se passa na tipografia para a frente

e não sei quantificar a percentagem. Há meses em que quase só estamos ali a fazer coisas

para tipografia e há outros em que só estamos no atelier e há alturas em que as aulas e

os workshops acabam por ocupar muito mais tempo. É muito variado de mês para mês,

felizmente, o que me permite uma liberdade de espírito muito boa.

E como é que justificas o actual interesse que existe pela técnica? E achas que se vai

manter no futuro ou trata-se de algo passageiro, inserido nesta moda dos crafts...

Eu acho que o craft está moda, não é? Não há dúvida nenhuma e vai ter altos e baixos mas

nunca vai sair de moda. Há-de ter picos, como todas as modas, mas nunca vai sair, vai

sempre andar por aqui. E estas máquinas estão a adquirir um bocadinho o estatuto de um

carro antigo, que nunca vai sair de moda, vai estar sempre na moda, assim ele funcione. E

eu acho que estas técnicas, estas máquinas, isto tudo tem esse cariz também e as pessoas

acham muito interessante, tem piada e tudo o mais. Isto veio para ficar, o facto de estar

em vias de extinção, dos tipos se estarem a estragar, faz com que se esteja ainda a recupe-

rar muita coisa que ficou de oficinas que tiveram uma laboração natural de oficina, para

pequenos espaços como a Oficina do Cego, o Homem do Saco, a Tipografia Dias... que

estão a recuperar essas coisas, mas a tendência natural é que elas vão desaparecendo com

o tempo, precisamente porque o material se vai desgastar e vai envelhecendo. Não é uma

coisa que vá acontecer nos próximos 50 anos, se calhar nem em 100 mas se pensarmos

em 100 ou 200 anos... Mas os tipos que essas pequenas oficinas têm vão ficando cada

vez mais gastos e mais batidos e mais desgastados e partidos e estragados e por aí fora

e portanto, a tendência será para que eles vão reduzindo para pequenos nichos cada vez

mais pequenos, preservando uma técnica quase impossível de preservar. Se hoje a ASAE

já ficaria em pânico por estarmos a fundir tipos, imagina daqui a 100 anos, não é? Daqui

a 100 anos é um assassinato, é um terrorismo qualquer estar a fundir tipo... portanto, é

uma técnica que eu acho que o facto de existir muito pouco, serem pequenos nichos de

mercado, nunca vai desaparecer, por um lado... por outro, vai ter tendência a ir encolhen-

do, gradualmente, com o passar dos anos. Irá encolhendo, encolhendo, encolhendo, um

bocadinho à semelhança dos anos passados, quando uma oficina fechava eram os outros

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tipógrafos que iam comprar aquela oficina, não é? E eu acho que eventualmente é isso

que vai acontecer quando estas oficinas… Esta geração, o Homem do Saco, a Oficina do

Cego, a Tipografia Dias e outra malta do Porto que tem cavaletes… Portanto quando as

coisas começarem a fechar vão ser estas mesmas que vão adquirir isto, mas também vai

passar para as próximas, o que é uma coisa curiosa (risos). Já não estaremos cá para as-

sistir, portanto essa historia não sou eu que vou contar.

Falaste agora numa serie de outros ateliers... que outros ateliers, associações é que

conheces entre nós que se dediquem à tipografia de caracteres móveis? Manténs al-

gum tipo de relação, projectos de colaboração em particular com alguma?

Olha, mantenho mais ou menos alguma colaboração com o Clube dos Tipos em Coimbra.

Acabamos por ir falando com outras. Com a Quadratim, fizemos um cartaz com eles. Eu

acho que vai surgindo quase deste interesse que vamos tendo uns com os outros e em

qualquer momento vai surgir, vamos fazer alguma coisa em conjunto também. Com o

Homem do Saco... No fundo porque estou predisposto para isso e mais dia menos dia vai

haver um projecto qualquer: “olha vamos fazer isto em conjunto”… Portanto estou muito

aberto a essas colaborações e estou a preparar alguns workshops, espero eu, não sei se

isto vai avançar ou não, até a tese ser publicada já isto deve ter avançado ou então não

avançou e pronto (risos) fica o registo: com o Museu da Imprensa no Porto, também. Com

a ESAD de Matosinhos, onde penso ajudá-los a montar uma oficina. Portanto, há aqui

muitas parcerias relacionadas com a tipografia. Portanto tudo o que seja mesmo, mesmo

tipografia e a coisa não se disperse por outras coisas à volta, eu estou interessado. Quando

a coisa entra noutras técnicas já me desinteressa um bocadinho, mas se for uma parceria

com outra tipografia e alguém trás a outra parte então também está bem. Essas parcerias

têm sido muito gratificantes. Procuro-as claramente.

E em relação a outros sítios que se estejam a dedicar à tipografia de caracteres mó-

veis, o que é que conheces mais?

Para além daqueles que já fomos falando, Quadratim, Homem do Saco, Oficina do Cego...

Esta última não conheço pessoalmente…

O Luís Gomes da Artes & Letras...

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Luis Gomes, sim, conheço também e também já se falou em fazermos algumas parce-

rias. Eu sei que há mais pessoas que têm coisas que não estando... o Clube dos Tipos em

Coimbra, depois há outros, outra malta, que eu sei que tem coisas e que fazem. Sei de

oficinas que estão a funcionar, lá em cima no Porto existem uma serie delas. Agora não

sei os nomes de cor, mas sei que existem no Porto, e na Guarda, ali para cima, algumas

tipografias que ainda fazem realmente activamente composiçao tipográfica, ainda que não

seja como há anos atrás, depois há malta nova que tem em casa um armário, dois armá-

rios, três armários, um prelo, uma minerva, coisas do género e que vão fazendo pequenas

coisas para eles, uns cartões, umas coisas. Não estando com um espaço comercial aberto

ao público, vão fazendo as coisas deles... por exemplo o Pedro Amado... uma rapariga

ali de setubal que eu sei que também tem umas coisas, um rapaz de Setúbal que volta e

meia nos pergunta coisas também... sei que são pessoas que têm algumas coisas e fazem

para eles não necessariamente para por à venda mas por carolice, não sei, por prazer, puro

prazer. Outros que metem online à venda, malta lá de cima do Porto, Arminho... vão fa-

zendo também umas coisas... ja algum tempo que não..

São um casal, não sei se são de belas-artes, de tipografia... e que têm feito uma série de

coisas. Começaram a vender no Etsy, mas acho que entretanto se desviaram um bocadi-

nho da tipografia embora tenham lá esse material, creio eu, desviaram-se um bocadinho

da tipografia e começaram a utilizar outras técnicas. Agora vou para cima e vou aprovei-

tar e falar com eles. E são assim esses que me recordo... não sei se haverá mais... haverá

com certeza mas....

E escolas cá, além do Ar.Co, Instituto Politécnico de Tomar, a Soares dos Reis...

agora em breve há-de ser a ESAD de Matosinhos, conheces mais alguma que tenha

tipografia de caracteres móveis?

Activa, não conheço mais. Sei que já houve escolas, mesmo primárias, do ensino especial

que tinham... Tenho aí um livrinho, não sei onde é que pára, do Manuel Pereira da Silva

sobre essas escolas. Uma lá em cima no norte... outras ali para os lados de Cascais ou na

linha, não sei bem onde, sei que houve várias escolas dessas que tinham essa actividade

como parte integrada do ensino… Algumas já procurei saber e desapareceram... Se calhar

ainda existem mas não estão online e portanto também não fui fazer uma investigação

muito profunda.Mas vasculhei online e não consegui encontrar nada, para saber se ainda

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estão activas, se ainda fazem coisas, se não fazem, se la há material, espólio, algumas

dessas coisas e as pessoas sabendo facilmente nos dão mais coisas. Isso é muito curioso.

E para finalizar: que planos ou projectos tens para o futuro da Tipografia Dias?

Os planos que estão neste momento em cima da mesa, assim mais prementes, mais ime-

diatos é fazer um website (risos) que é procurar, no fundo, mostrar o que fazemos de uma

forma mais controlada que o Facebook, que é uma cronologia, as coisas vão ficando mais

perdidas, não é… tem uma cronologia interminável. Também para podermos por alguns

cartazes que temos feito e que queríamos disponibilizar e isso permitiria tornar-nos agora

mais activos e com algum retorno para podermos investir em mais coisas e continuar

esta procura de preservação da tipografia. Não só para termos mais letras para fazer mais

coisas mas porque as letras estão a desaparecer e se não as guardarmos entretanto, elas

vão mesmo desaparecer ou vão ficar a um preço completamente inacreditável e impen-

sável e portanto é quase uma busca incessante. Estamos agora à procura dessas coisas...

Em termos de projectos, nunca pensaste num livro, por exemplo…

Specimens, pequenos livrinhos? Tenho algum receio de explorar esse mundo do livri-

nho pelo livro, o livro de artista, porque eu não me considero um artista, portanto tenho

algum receio em meter a mão nesse caminho, sempre me considerei um designer e não

um artista, portanto quanto a fazer um livro... É uma coisa que tenho várias ideias que

quero amadurecer calmamente… Tem que ser um livro que interesse a alguém, não seja

apenas o meu statment enquanto artista, entra aspas, não é? Este Manual do tipógrafo

é um exemplo de uma tentativa em que, enfim... “aqui estou eu como designer, como

investigador, como docente que partilho um bocadinho deste conhecimento que se está

a perder”… de uns livros que são raros ou difíceis de encontrar, mesmo em alfarrabistas

e procuro ir buscar um bocadinho desse conhecimento e trazê-lo para aqui para a oficina

e há ideias de continuar e fazer mais variantes deste manual, com mais conteúdo, com

maior densidade, para pessoal mais interessado, ainda que este faça realmente mais sen-

tido para muito mais gente, porque é uma introdução à tipografia e não uma coisa muito

profunda, muito densa. Interessava-me explorar um bocadinho mais porque acho que esse

conhecimento está a desaparecer e é dificil de encontrar essas edições, Libânio, Apto de

Oliveira, Joaquim dos Anjos, e acho que isso podia-se pensar. Pelo menos em português,

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estamos a perder como é que se usam esses termos, essas expressões... E era importante

irmos preservando essas coisas, essa cultura. Portanto, coisas que vou descobrindo no

doutoramento e que confronto com o contexto internacional: quando o Smeijers fala de

abrir punções, ao contrário do gravar punções… Fui vasculhar e descubro expressões do

próprio Villeneuve, escritas pela mão do Villeneuve, sobre a casa de abrição de punções.

Isto valida estas ideias que o Smeijers estava a falar, está a apontar as diferenças entre

gravar punções ou abrir punçoes... quando descobrimos isto na nossa língua, tudo isto

ganha um outro sentido, não é? Dá mais força para realmente recuperarmos estas expres-

sões e não as deixar cair no «font”. Não, temos uma expressão que é nossa, que é “tipo

de letra” e está lá, temos isso escrito no séc XVIII vezes sem conta, porque é que lhe pas-

samos a chamar fonte? Como se de uma fonte que deita água se tratasse. Ou passamos a

usar um estrangeirismo… temos tantos… Podemos manter algum patriotismo. Não deixo

de ler em inglês, não deixo de achar relevante ler em inglês, mas deve-se preservar esta

cultura para que não desapareça por completo, com uma globalização cada vez maior…

São pequenas coisas que devemos tentar preservar. Afinal, é uma das características dos

tipógrafos, não é? Estarem muito activos, politicamente, socialmente, culturalmente. Os

tipógrafos sempre foram peças muito activas nesse nível. Portanto, acho que é importante

que nós que mexemos com a palavra impressa tenhamos esse papel de procurar manter

isso em cima da mesa.

E lembras-te de mais alguma coisa que querias abordar?

Uma coisa que eu acho que é importante abordar é o... acho que já falámos nisso, o difícil

que é manter estas coisas, e depois parece que estamos a vender o nosso peixe, e estamos,

na realidade. Tenho algum receio em falar nisto porque parece muito mercantilista, mas a

verdade é que estas coisas todas são caras e difíceis de encontrar e depois quando fazemos

um workshop as pessoas acham caríssimo. Isto é uma tarefa muito árdua, muito difícil de

manter, uma coisa mesmo completa. Portanto as pessoas não têm noção quando me di-

zem: “epá este workshop é muito caro, há aí workshops a 10€ e a 5€ e este custa uma pipa

de massa”… pois... mas... só para pôr este material todo aqui... só cobrir o custo destes

materiais já para não falar na mão de obra de fazer estes workshops, é um investimento

mesmo muito grande. Claramente não se vai enriquecer com estes workshops porque não

vai, é evidente, mas eles têm que ter um valor um bocadinho mais simpático porque se

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não, fico em casa com a família, não é? Com os miúdos, com a minha mulher, a gozar a

vida. Gosto muito da tipografia mas tem que ter algum retorno, nem que seja para poder

comprar mais letras e continuar a fazer crescer este espólio de forma a tornar-se mais

interessante, não só para fazer workshops como para eu próprio fazer os meus projectos.

Portanto acho que é uma coisa delicada de se falar, difícil de se falar, mas é uma coisa

que eu acho que é importante. Portanto, somos nós que organizamos isto que falamos,

e parece que nos estamos a queixar. Não é um queixar é mais para as pessoas pensarem

no assunto… Porque acho que o workshop tem um valor e deve ser pago e ponto final.

Acho que é importante assumir essas coisas, essas dificuldades e o facto de estar quase em

extinção, do material se ir degradando e estragando-se e ter um custo muito elevado de

reposição, cada vez mais elevado. Implica que este workshop não pode ter o mesmo custo

que um workshop de tricot com umas agulhas e umas linhas que cada um leva, não é? Não

tem comparação possível com um workshop com tudo o que está aqui... Digamos num

contexto nacional onde os salários são muito baixos… é verdade e temos todos que lutar

um bocadinho para que tudo isto evolua, não é? Não são só os workshops é um conjunto.

Há-de evoluir, espero eu, tudo isto há-de melhorar nas várias frentes, não é? É um assunto

que eu tenho sempre algum receio da falar mas acho que é importante pormos em cima

da mesa, discuti-lo abertamente para as pessoas poderem pensar sobre isso e discutir sem

acharem que nós estamos a querer subir… Para as pessoas perceberem o que é que está

em cima da mesa e quantas horas é que estamos ali, que custo é que isto tem efectivamen-

te: desde uma renda ao trabalho que é estar lá e fazer o workshop, a arrumar e limpar tudo

isto, ao manter isto livre, com o custo que os rolos têm, as tintas, os materiais, os papéis e

tudo o mais... se as pessoas pensarem um bocadinho, se calhar não é assim tão caro, mas

é importante que pensem um bocadinho sobre isso também...

Rúben, muito obrigado...

Nada, Manel. Dispõe!

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Entrevista a António Guilhermino Pires (Director-coordenador da Produção Gráfica da

Imprensa Nacional nos anos 70)

Nota: O entrevistado quis rever a entrevista. Por motivos que nos são alheios, não nos

foi entregue em tempo útil.

Contamos entregar a entrevista final ao júri antes da defesa da dissertação.