a terra nao pode suportar suas palavras reflexao e estudo sobre amos

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MILTON SCHWANTES

"A TERRA NÃO PODESUPORTAR SUAS

PALAVRAS" (Am 7,10)

Reflexão e estudo sobre Amós

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Schwantes, Milton"A Terra não pode suportar suas palavras" (Am 7,10): reflexão e

estudo sobre Amós / Milton Schwantes. - São Paulo: Paulinas, 2004.- (Coleção Bíblia e história)

Bibliografia.ISBN 85-356-1434-6

1. Bíblia. A.T. Amós - Crítica e interpretação I. Título. 11. Título:Reflexão e estudo sobre Amós. Ill. Série.

04-7171 CDD-224.806

Índice para catálogo sistemático:

I. Amós : Livros proféticos: Bíblia: Interpretação e critica 224.806

Direção-geral: Flávia Reginatto

Editora responsável: Noemi DarivaCopidesque: Anoar Jarbas Provenzi

Coordenação de revisão: Andréia SchweitzerRevisão: Ana Cecilia Mari

Direção de arte: Irma CiprianiGerente de produção: Felicio Calegaro Neto

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© Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2004

A paz só visita o povo

que antes justiça hospedou.

Daquela só sabe a bênção

quem esta primeiro abraçou.

A ira abrasa a cidade

que à miséria seu povo forçou.

Silvio Meincke

Para Naor e Marina

em família e na fé,

em gratidão pela amizade.

Apresentação

Com muita alegria apresentamos "A terra não podesuportar suas palavras" (Am 7,10) - Reflexão e estudo so­bre Amós. Fiz várias alterações no texto da edição de 1987,publicada pela editora Sinodal, e sei que outras mais seriamrecomendáveis. Todavia, neste caso, eu teria de reescrever olivro. Por isso, as mudanças não foram substanciais ao lon­go dos caps. 1-6. No capítulo 7, introduzi um novo artigo,que se refere a Amós 7-9.

Originalmente, a maioria dos ensaios contidos nestapublicação foi formulada com vistas ao 7Q CongressoLuterano Latino-Americano, realizado em Caracas (Vene­zuela), em abril de 1986. Seu tema era "Renascer e crescerna esperança e na paz". Agradeço pela atenção dos congres­sistas. Aprendi com suas perguntas e críticas.

Para dentro desses ensaios apresentados no Congresso,fluíram nossas experiências latino-americanas, marcadas poropressão secular e pelo contínuo e teimoso renascimento liber­tador. Neste nosso contexto,Amós foi muitas vezes lido e reli­do. Busquei manter-me em sintonia com essa leitura situada elatino-americana de nosso profeta. Os seis primeiros ensaiosquerem ser uma contribuição nessa caminhada com Amós.

No sétimo capítulo estão acrescentados dois trabalhosescritos em outro contexto. Em algumas partes repetemtemáticas abordadas nos outros seis capítulos.

9

Cada um dos seis primeiros ensaios tem seu tema es­pecial, afinal, foram preparados tendo em vista estudos ereflexões no decorrer do congresso. Embora cada reflexãoseja completa em si mesma, juntas constituem um todo, ex­pressando uma interpretação de todo o livro de Amós.

São Paulo, janeiro de 2004

Milton Schwantes

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1. "Nos dias de Jeroboão"

Vede quantos oprimidos no centro de Samaria. I

Assim diz Amós: "Jeroboão morrerá à espada".'

A teologia cristã rechaça a ilusão.Nem merece ser designada de teologia cristã

quando não persegue essa intenção.Pois o lugar do Evangelho é a realidade humana. 3

Todo dia é dia...Deixa o tatu-bola no lugar.

Deixa a capivara atravessar.Deixa a anta cruzar o ribeirão.

Deixa o índio vivo no sertão.Deixa o índio vivo nu.

Deixa o índio vivo.Deixa o índio.

Deixa."

I Am3,9.

2 Am 7,11.

3 KASEMANN, Emst. Vom theo1ogischen Recht historisch-kritischer Exegese. Zeitschriftfiir Theologie und Kirsche, v. 64, Tübingen, Mohr Siebeck, 1967, p. 259.

4 JOBIM, Antônio Carlos. Borzeguim. Rio de Janeiro, 1986/1987.

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As "palavras de Amós" (Am I, I) são contextuais.Dialogam com o ambiente do qual são parte. Assimilam ascircunstâncias. O conceito hebraico de "palavra" (dabar)inclui também a realidade. Não há "palavra"-dabar semcontexto! Meditemo-lo.

Por que começamos pelo contexto?

Começamos, pois, pelo contexto. Ao assim proceder­mos, nesta série de reflexões e estudos, enveredamos porum dos caminhos possíveis. Por certo, também poderíamostrilharoutros. Se privilegio a situação como porta de entra­da, faço-o por certos motivos. Convém explicitá-los.

Habituamo-nos a antepor a experiência da realidadeàs definições teológicas. Assim o fomos aprendendo peloscaminhos da vida. Amigos e amigas de jornada nos falamdas "línguas de um fogo revolucionário que arde nas pro­fundidades".' Entendem "teologia como reflexão crítica so­bre a práxis"." Formulam a eclesiologia segundo as "práti­cas pastorais", segundo a militância;7 vivenciam Igreja comoeclesiogênese, como "reinvenção"." Incorporam decidida­mente à hermenêutica a "realidade de cada dia" e "as disci­plinas que explicam o presente"," Teologia é entendida como

5 SHAULL, Richard. A revolução. In: Alves, R. et alii. De dentro do furacão; RichardShau\l e os primórdios da Teologia da Libertação. Rio de Janeiro, Cedi, 1985. p. 54.

6 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologiada Libertação; perspectivas. Petrópolis, Vozes, 1975. p. 18.

7 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder; ensaios de eclesiologia militante. 3. ed.,Petrópolis, Vozes, 1982 (veja, por exemplo, pp. \3-14).

8 Idem. Eclesiogênese - As Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja. Ca­dernos de teologia e pastoral, v. 6, Petrópolis, Vozes, 1977.

9 SEGUNDO, Juan Luis. Libertação da teologia. São Paulo, Loyola, 1978. pp. 9-10 (veja,em especial, pp. 9-43).

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ato segundo! A novidade desse jeito de experimentar a féestá em seu método, o qual prioriza as mediações históricas.

A experiência que nos leva a Amós é vida vivida, dia adia. É "pé-no-chão"." Afinal, um profeta como Amós ouOséias ou Miquéias e outros não conhecem as entranhas dopoder, a desfaçatez nos corredores palacianos. Vivem cená­rios cotidianos. Por isso, trazem à luz do dia horrores dasesquinas da vida, as violências que ocorrem em quartos es­condidos, como aquela a que fica submetida a "menina" vio­lentada pelo "homem e seu pai" (2,7b). Profetas como Amósnão são alto-falantes de escândalos públicos, mas antes "pa­lavra" de dores do dia-a-dia.

Contudo, uma leitura de Amós com base na vida é nãosó nosso jeito, mas também o que se costuma praticar naexegética bíblica. La hora de Amós é o título de um doslivros muito difundidos sobre nosso profeta. lI Dois dos co­mentários de maior solidez exegética - o de Hans WalterWolff e o de Wilhelm Rudolph - introduzem suas volumo­sas obras descrevendo o contexto de Amós." Outros comen­tários igualmente se dedicam ao tempo do profeta. 13

Por mais que me alegre com essa feliz convergência,penso que dela não advém razão suficiente para fazer da vida

10Veja BOFF, Clodovis. Teologia de pé-na-chão. 4. ed., Petrópolis, Vozes, 1984. 227 p.

11 WOLFF, Hans Walter. La hora de Amós. Salamanca, Sígueme, 1984.200 p. (NuevaAlianza, 92).

12Idem. Dodekapropheton 2; Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 105­106 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2); RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos­Obadja-Jona. Gütersloh, Gütersloher Verlag, 1971. pp. 95-96 (Kommentar zum AltenTestament, 13/2).

13 Veja ANDERSEN, Francis I. & FREEDMAN, David Noel. Amos; A New Translation withIntroduction and Commentary. New York, Doubleday, 1989. pp. 18-23 (The AnchorBible, 24A).

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ponto de partida para meditarAmós. Decisivo é que o própriolivro de Amós exija, para si, uma abordagem contextual. É oque nos impõe seu título (Am 1,1), sua porta de entrada:

Palavras de Amósque viveu entre os criadores de ovelha de Técua,que viu contra Israelnos dias de Ozias, rei de Judá,e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel,dois anos antes do terremoto.

Duas alas abrem caminho ao livro, de acordo com otítulo. Primeira: as "palavras" são mediadas por uma pessoaconcreta, chamada Amós, um vidente. Segunda: foram ditasnuma situação específica e política. Focalizaremos a primeiraala no segundo estudo. A segunda ala será, agora, nosso tema.

Portanto, o próprio cabeçalho do livro de Amós exigede nós uma leitura situada. Entendem-se seus nove capítu­los quando se está com os pés fincados "nos dias de Jero­boão". Que dias eram esses?

Época de Jeroboão 11

Encontramo-nos em tomo de 760 a.c. Há bons argu­mentos para essa datação da atuação de Amós. 14

Amós é, pois, em termos históricos, o primeiro dentreos chamados "profetas clássicos". Com ele começa algonovo. A profecia ingressa em seu momento mais radical.

14 Veja KIRST, David Noel. Amós; textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teo­logia, 1981. pp. 11-12 (Exegese, 111).Compare, por exemplo, também RUDOLPH, Joel­Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 114-115 e ANDERSEN & FREEDMAN, Amos; A NewTranslation with Introduction and Commentary, cit., pp. 18-23.

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Na época, dois Estados se sobrepõem à vida do povode Deus: no Sul, em Judá, comanda um (Ozias 787-735); noNorte, em Israel, Jeroboão II detém o poder. Amós atuousob Jeroboão lI.

Jeroboão 11é da dinastia de Jeú, um general que ­com algumas boas intenções e por meio de muitos massa­cres (cf. Os 1,4! 2Rs 9-10) - galgou o poder em 842.

Jeroboão II mostrou serviço. Atesta-o seu longo go­verno de quarenta e um anos, desde 787 até 746.

Os anais reais, citados em 2Rs 14,23-29, nos dão umaidéia de seus grandes "sucessos". Ampliou as fronteiras deIsrael. Impôs o interesse do Estado israelita em Damasco eem Emat, vizinhos ao norte. No sul, alargou as fronteiras atéo Mar Morto (cf. 2Rs 14,25.28).J5 Não é possível que osEstados de Damasco e Emat tenham sido mantidos sob ocu­pação, durante todo o governo de Jeroboão. Afinal, de acor­do comAm 1,3.13; 6,13 houve lutas fronteiriças em Galaade(na Transjordânia). Nesses combates muitos civis forammassacrados, "trilhados com trilhos de ferro" (Am 1,3). Porsobre defuntos os Estados tratavam de ampliar sua área deinfluência. Nos dias de Jeroboão, o Estado de Israel levava amelhor na disputa contra seus vizinhos. 16

A ampliação de fronteiras em direção ao norte (Da­masco e Emat) e ao sul (Mar Morto) tinha seus objetivos.

15 Quanto à interpretação desses dois versículos, confira WÜRTHWErN, Emst. Die Bücherder Kônige 1; Kônige 17 - 2. Kônige 25. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1984.pp. 374-376 (Das Alte Testament Deutsch, 11/2).

16Cf. BRIGHT, John. História de Israel. 2. ed., São Paulo, Paulus, 1981. pp. 341-356(Nova Coleção Bíblica, 7); NOTH, Martin. Historia de Israel. Barcelona, Garriga, 1966.pp. 237-250; TRAPELLO, J. G. Situación histórica dei profeta Amós. Estudios bíblicos,v. 26, Madrid, Facultad de Teologia "San Dámaso", 1967, pp. 249-274.

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Serviapara aumentar a arrecadação de tributos. E, em especial,garantia e alargava em muito o controle de rotas comerciais.Para o Estado de Israel estas últimas eram de importânciavital. Detinha o controle da principal via que interligava asterras do Rio Nilo e as do Eufrates e Tigre. Comerciantesegípcios e mesopotâmicos necessariamente passavam pelaPlanície de Jezrael, um verdadeiro entroncamento comer­cial. E ela se situava em território israelita. Além de deter ocontrole desse vale - situado praticamente no coração doEstado de Israel-, Jeroboão II soube fazer valer seus inte­resses em direção ao norte, em Damasco e no acesso a Emate.Também as ferozes lutas em torno de Galaade ea extensãodas fronteiras rumo ao sul obedecem primariamente a intui­tos mercantis, pois a rota transjordaniana permitia participardo trânsito das mercadorias oriundas do Golfo de Elat (en­tão em mãos de Judá; 2Rs 14,22).

Amós não se defrontou com um Estado frágil. Depa­rou-se com o vigor militar e comercial de um soberano bem­sucedido e de uma economia florescente. Sua análise críticacertamente não era compartilhada por toda a opinião públi­ca, como se a opinião do profeta fosse consenso. O que osolhos que se detinham na superfície viam era esplendor. Oque Amós dizia contradizia a opinião promovida pelo Esta­do e pela religião. Podemos verificar isso até mesmo num"colega" de Amós. A passagem de 2Rs 14,25-27 mencionaum profeta chamado Jonas, um cortesão que aplaudia ossucessos de Jeroboão lI. Jonas era a voz da situação, bemacolhida e aplaudida na corte de Samaria." Amós era a voz

I7 Veja CRUESEMANN, Frank. Kritik an Amos im deuteronomistischen Geschichtswerk ­Erwãgungen zu 2. Kõnige 14,27, em Probleme biblischer Theologie. München,Christian Kaiser, 1971. pp. 57-63.

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que trazia à tona a realidade vivida pelo povo. Sua profeciaera um contradito. Sua ótica vem marcada pela vida. Seucontradito parte do dia-a-dia. No avesso nasce seu verso.

As dores, porém, que em Amós são ditas não são frutodas ações dos pequenos. Não que dores não possam ser ge­radas entre os pequenos. Por todos os lados experimenta­mos em nossa própria vida que pobres também são capazesde não crer em pobres, de mutuamente se guerrearem, semdó nem piedade. Nas periferias de nossas cidades atuais, asmulheres conhecem muito bem essa cruel realidade.EmAmós,todavia, esse não é o interesse maior. Seu foco recai no senho­rio de Samaria e lá vê a origem das calúnias contra mulherese homens empobrecidos. Por isso, nossa atenção primeiravolta-se a esse senhorio e aos conflitos que produzem.

As dores que vêm do senhorio

Víamos que, para o Estado de Israel, o controle dasrotas comerciais era de importância capital. Por quê? Osmotivos, por certo, hão de ser buscados na organização so­cial de então. Como se produzia naqueles tempos? Quemdetinha os produtos? Qual era o papel do Estado? A temáticaé complexa. Restrinjamo-nos ao elementar,"

Trabalho e sobrevivência obedeciam, nos dias deAmós, a relações peculiares. São distintas das de hoje, acomeçar pela predominância cabal da atividade agrícola.Quase todas as pessoas viviam do plantar e colher. Peque-

IS Veja HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo,Paulus, 1982. 250 p. (Pesquisa & Projeto, I) e GEBRAN, Philomena, org. Conceito demodo de produção. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 275 p. (Coleção PensamentoCrítico, 24).

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nas eram as cidades, incomparáveis com a moderna urbani­zação. Ao lado de nossas cidades, nem merecem tal nome.Não passam de burgos ampliados.

Cidade e campo eram, na época, duas realidades so­ciais bastante distintas.

No campo vivia a grande maioria da população. Con­centrava-se em pequenas vilas, militarmente mais ou menosdesprotegidas (sem muros). Convivia-se de acordo com oscostumes clânicos e tribais. Sobrevivia-se pelo trabalho naroça. Cada clã produzia o necessário para os seus. Por meiode trocas, eram cobertas necessidades imprevistas. Clã e vilacamponesas eram quase autárquicas. Raramente aconteciacomércio. Quando aparecia, seu efeito tendia a ser desesta­bilizador para o modo de vida familiar-clânico. A terra, daqual os camponeses retiravam seu sustento, era posse grupal.Não se costumava vendê-la. Era herança.

Na cidade ou, se assim quisermos, nesses burgos am­pliados, viviam poucos. Nela se agrupavam a "classe"-Esta­do, os segmentos sociais que detinham o controle do con­junto social. Tratava-se da corte e de seu funcionalismo, dossacerdotes do templo citadino e dos comerciantes que, viade regra, confundiam-se com o próprio funcionalismo esta­tal. A parte mais considerável das cidades era ocupada peloexército, seus soldados e suas armas (carros de combate).Afora estes, a cidade e seus arredores imediatos tambémcomportavam escravos e gente empobrecida (viúvas e ór­fãos) que prestavam serviço ao senhorio. De fato, a cidadeera uma espécie de burgo que exercia controle sobre seusmoradores mais empobrecidos e, principalmente, sobre oscamponeses circundantes e, em conexão com as outras ci­dades, constituía um estado territorial. Este acelerava a do-

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minação sobre o campo, valendo-se para tal tanto da coer­çãodasarmas quanto do fascínio dareligião, ambos emmãoscitadinas, bem como de aliados dentro das próprias vilascampesinas.

Pelo visto, campo e cidade nãosó eram distintos, comotambém viviam em conflito." Em cada momento da histó­ria, a luta entre campo e cidade apresentava suas peculiari­dades. Nos dias de Jeroboão lI, suasprincipais facetas eramaproximadamente as seguintes:

Em disputa estava a taxa do tributo. O Estado reivin­dicavaseu aumento. A função primeira dessas arrecadaçõeseracobrir as despesas crescentes do aparelho estatal em suapolítica expansionista. Esses tributos confluíampara a capi­tal, Samaria," por isso é plenamente compreensível que osprofetas não morram de amores por essa central de arreca­dação (cf. Am 3,3-4,3 e Os 14,1). Contudo, Jeroboão II ne­cessitavado produto agrícola não só para manter seu Estadoexpansionista, mas também para participar ativamente docomércio internacional quecirculava pelaPlaníciede Jezraele pela via transjordaniana. Nesse comércio, Israel concorriacom produtos agrícolas. Adquiria ferro, ouro e preciosida­des (cf. Am 3,12-15). Para Israel, essas trocas eram desvan­tajosas: os produtos de exportação eram de valor menordo

]9 "No âmbito das cidades israelitas também existia a distinçâo de classes, comum naAntigüidade: o patriciado citadino era credor, e os camponeses ao redor das cidadeseram os devedores." Embora essa afirmação de Max Weber (Das antike Judentum.4. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr, 1966. p. 26 [Gesammeite Aufsátze zur Reli­gionssoziologie, 3]) careceria de diversos reparos quanto aos detalhes, certamenteconfere quanto ao principal.

20 Veja NOTH, Martin. Das Krongut der israelitischen Kõnige und seine Verwaltung, emAufsiitze zur biblischen Landes- und Altertumskunde. Neukirchen, Neukirchener, 1971.pp. 152-182. Sobre o assunto, veja também DONNER, Herbert. História de Israel e dospovos vizinhos. São Leopoldo/Petrópolis, SinodalNozes, 1997. pp. 318-329.

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que os de importação. Por isso, em Estados economicamen­te "dependentes", como Israel e Judá, o ingresso nas trocas,no "mercado" internacional, costumava ser catastrófico parao povo trabalhador. Antes, porém, de realçar a dimensãocrucial da questão, devemos acompanhar, por instantes, ofluxo das mercadorias oriundas do exterior.

Seu consumo principal acontecia nas cidades. Ates­tam-no diversos textos proféticos (por exemplo, Am 3,12; Is2,6-9 e 3,16--4,1). Contudo, uma parte ainda que pequenadessas mercadorias internacionais era repassada ao campo,seja para gerar lucros para a cidade (pensemos no ouro), sejapor corresponder à necessidade dos próprios camponeses(pensemos no ferro). A participação no comércio internacio­nal não deixava de ter seus efeitos nas vilas palestinenses.Amós o anota em 8,4-6.

Sobre essa troca entre pessoas e povos, convém acres­centar aqui mais algumas intuições. A sociedade da época éde trocas. Trocam-se produtos e serviços, ajudas e amizadesprincipalmente entre famílias, clãs e tribos. A arqueologiamostra quão cotidianas eram tais trocas. Afinal, os própriostextos bíblicos originam-se do intensivo intercâmbio entregrupos sociais. Entre cidades, até mesmo de povos diferen­tes, as trocas assumiam contornos peculiares. Pois as cida­des só podiam obter produtos para troca à medida que osretirassem, muitas vezes à força, da produção aldeã. Alémdisso, centros urbanos estavam conectados entre si sob a tu­tela de algum centro urbano hegemônico. Ora, no século VIIIa hegemonia encontrava-se na Mesopotâmia, em terras assí­rias. Para lá "convergiam" trocas, intercâmbios, "comércios".Quando dizemos que nas terras mesopotâmicas concentra­vam-se as cidades que centralizavam o comércio, então issonão significa que houvesse muitas rotas comerciais que con-

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duziam "diretamente" a esses centros mesopotâmicos. Na­queles tempos, prevaleciam amplamente as trocas mais ime­diatas nas relações entre os povos. É como se as relações detroca funcionassem em forma de corrente. A corrente dosintercâmbios comerciais era acionada a partir das cidadesmesopotâmicas, mas factualmente as trocas e o comércioeram feitos nas imediações, dentro dos elos da corrente.Lembremo-nos de que o horizonte internacional de Amóscorresponde, emAm 1-2, precisamente aos povos vizinhos,aos elos mais próximos das correntes de relações entre ospovos.

Portanto, dentro de seu espaço específico, em seu elo,o senhorio do Estado arrecadava para sua auto-manutenção,para financiar sua política expansionista e para realizar seusprojetos comerciais nas rotas internacionais em direção aoEgito e, em especial, à Mesopotâmia, onde se concentravamas potências da época. A ampliação da tributação certamen­te tinha sua origem principal no projeto político e comercialde Jeroboão lI. Convém destacá-lo, pois pode-se ser levadoa crer que os tributos tão-somente serviam para satisfazer aganância e a luxúria dos ricos. Alguns textos do livro deAmós até poderiam favorecer essa interpretação (cf. Am3,12.14-15; 4,1; 5,11; 6,4-6). E não raras vezes optou-se poressa leitura. Dizia-se, então, que nosso profeta somente cri­ticava a insaciável ganância dos ricos; restringia-se a inves­tir contra as pessoas luxuriantes, não contra as estruturas deopressão que, a partir do Estado, propiciavam ostentação.Tal abordagem é insuficiente por moralizar o luxo, desen­raizando-o de sua origem social, descolando-o da opressão.Requintes luxuriantes, em parte, acompanham a extração demais tributos e rendas dos camponeses (cf. Am 4,1) e, emparte, são reflexo das atividades comerciais internas (cf. Am

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8,4-7) e, em especial, externas (cf. Am 3,12). As "camas demarfim" de alguns (cf. Am 6,4) e sua vida fácil estão naconseqüência do expansionismo de Jeroboão lI.

E o povo? Qual era a situação das mulheres, dos ho­mens e das crianças do campo nos dias de Jeroboão?

A realidade do povo

A realidade das pessoas era exatamente o inverso doesplendor das elites e dos que usufruíam as benesses doscentros urbanos de então. A gente do campo era convocadaa gerar, com seu suor e sua fome, os produtos e as riquezasnecessários para o expansionismo comercial e militar. Area­lidade do povo era, pois, marcada por dura exploração."Atenhamo-nos a alguns pormenores e ao funcionamentodessa espoliação.

Houve aumento na tributação. O Estado acelerou aconcentração dos frutos do trabalho, dos produtos da roça. Areligião desempenhava papel central em tais aumentos dearrecadação, como podemos ver emAmós (cf. 4,4-5) e tam­bém em Oséias. Como não havia uma rede estatal apta paraarrecadar os tributos, ou seja, suficientemente organizada(era recente o sistema estatal persa de eficiente tributação),recorria-se acima de tudo à religião, aos templos, aos luga­res altos locais. Nas festas religiosas era entregue parte sig­nificativa do excedente agrícola e nelas, simultaneamente,era criado um clima propício para a produção cada vez maior

21 "A prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da socieda­de que Am6s contemplava e na qual trabalhava... Os pobres eram realmente pobres edesavergonhadamente explorados" (MOTYER, J. A. O dia do leão; a mensagem deAm6s. São Paulo, 1984. p. 1).

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de excedentes. A religião, suas festas e seus ritos, incre­mentavam tanto a produção quanto a arrecadação tributária.Por isso é plenamente compreensível que Amós, que expe­riment, I essa prática a partir dos camponeses, oponha-se jus­tamente à religião (cf. Am 2,7-8; 4,4-5; 5,21-27; 8,1-3 e9,1-4). Para ele, as idas ao templo "multiplicam as trans­gressõe s" (Am 4,4), o que - entre outras coisas - tambémsignifie a que empobrecem e subjugam as pessoas. Contudo,não paiece que os donos das instituições somente tenhamrecorrido à religião para intensificar seu intuito de acúmulo..

A violência fisica não faltou. De acordo com Amós, acoerçãe brutal foi amplamente usada para manter a hege­monia dos homens e para acelerar a criação de riqueza. Po­demos' ê-lo em vários textos (cf. Am 2,7; 3,9-10; 4,1 e 8,4).Em 3,9-10, a violência é parte das estruturas de Samaria.Em 2,7 a violência é sexual, de homem contra mulher. Naconcep .ão das elites do Estado e dos que o mantinham, ha­via "ne: :essidade" de criar tal riqueza "nacional". Diviso trêscausas principais para esse processo de acúmulo.

Primeiro: há uma causa interna. À medida que Israelse milit arizava e se fazia conquistador, cresciam os gastosadminis trativos e militares. Quanto mais forte era um Esta­do tribu tário, mais intensos eram seus tributos.

Segundo: há uma causa externa. Sob Jeroboão lI, fo­ram ampliadas as fronteiras comerciais. Nessas trocas, Is­rael ingiessava com produtos agrícolas. Por conseguinte, parapoder trocar e "comercializar", Jeroboão II tinha de tributarseus roeerros,

T,rceiro: a elite de Israel- um pequeno Estado depen­dente no Antigo Oriente de então - internacionalizava-se.Seu con sumo seguia padrões novos. Requinte e luxo davam

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charme (cf. Am 3,12; 6,4). Alguém tinha de fornecê-lo. O"fornecedor" do luxo eram os camponeses (cf. Am 4,1) e ascamponesas (cf. Am 2,7; 8,3). O povo camponês de Israelera pisado (cf. Am 2,7a), estuprado (cf. Am 2,7b), aterrori­zado (cf. Am 3,9), esmagado (cf. Am 4,1), destruído (cf. Am8,4) pela tributação estatal. Através de seus quarenta e umanos de bem-sucedidas conquistas, Jeroboão II transformouas pessoas em não-gente. Amós fala à luz desse reverso dahistória.

O povo, porém, não só sangrava em prol do regimejeroboânico. Se assim fosse, esse soberano talvez não tives­se podido manter-se por tão longos decênios. A opressão te­ria sido demasiado evidente. A contradição - classe-Esta­do versus camponeses - seria deveras patente.

Essa confrontação era cotidiana. Afinal, no dia-a-diadas casas, homens se impunham a mulheres, adultos a jo­vens. Uns tinham menos participação social que outros. Semtais estruturações e vivências cotidianas de espoliação, difi­cilmente se manteria um aparato militar urbano. O livro deOséias - próximo aos dias de Amós - dá-nos uma idéiamuito viva da exploração à qual mulheres eram expostas.Grandes poderes não funcionam sem que crianças e mulhe­res sejam submetidas, como se lê emAm 2,7.

Tais confrontações, nas quais o Estado jeroboânicoestava inserido, eram vivenciadas nas vilas. Por lá certossetores sociais desempenharam papel decisivo. Refiro-meaos que tradicionalmente representavam os clãs interioranose aos que, sob os auspícios do novo elã comercial, sobres­saíam-se dentro dos vilarejos por deter certo controle sobreos metais preciosos (ouro, ferro) e sobre pequenas parcelasdo excedente de produção. Penso principalmente nos anciãos.

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Eles eram as autoridades clânicas. Eram os juízes. É possí­vel que dentre eles alguns se dedicassem a formas incipientesde comércio nas vilas. Os interesses de tais anciãos e dosque lhes eram próximos (sacerdotes, funcionários, merca­dores, militares," agricultores mais poderosos") podiamconflitar com os da corte (lRs 12), mas não raro conver­giam com os desta (lRs 21). Tais setores intracampesinosdiluíam a confrontação entre Estado tributário e campesinatotributado. Essa sua função veio particularmente à tona nosdias de Jeroboão 11, devido a circunstâncias específicas.

Lembremo-nos da decisiva importância da atividadecomercial. A ela se deve o avanço dos limites do Estado.Contudo, ela não só teve implicações para fora. Teve conse­qüências internas. Ampliou, por assim dizer, as fronteirascomerciais internas. O comércio internacional, por certo, foichegando até as vilas. Embora nelas continuasse a vigorar atroca interfamiliar, também se iam constituindo algumas prá­ticas comerciais. Prata e ouro passavam a assumir papel dedestaque (cf. Am 8",4-6 e Is 2,7). Os interesses do Estadoingressavam no âmago do campesinato. Implantavam-se nasrelações intraclânicas." Amós atesta essa situação. Consta­ta a manipulação das práticas processuais nas vilas; a prata

22 A respeito, confira Mq 2,1-5 (HAHN, Noli Bernardo. Miquéias 2,1-5; profecia e lutapela terra - Uma leitura da influência da situação histórico-social nas últimas décadasdo século VIII a.C., em Judá na vida da antiga ordem tribal. São Paulo, Faculdade deTeologia Nossa Senhora da Assunção, 1992. 156 p.; A profecia de Miquéias e meupovo; memórias, vozes e experiências. São Bernardo do Campo, UniversidadeMetodista de São Paulo, 2002, 283 p.).

23 A respeito de agricultores - de "homens livres" - de posses mais abastadas, veja,por exemplo, Ex 21-22.

24 Cf. FENDLER, Marlene. Zur Sozialkritik des Amos - Versuch einer wirtschafts- undsozialgeschichtlichen Interpretation alttestamentlicher Texte. Evangelische Theologie,v. 33, München, Christian Kaiser, 1973, pp. 32-53.

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passa a ditar sentenças (cf. Am 2,6 e 5,7-12). Os juízes, quesão os anciãos, executam em nível local os interesses dosoberano nacional. Em Am 8,4-6, são os comerciantes osque, no dia-a-dia, efetivam o que Jeroboão II prevê para oconjunto. À semelhança de Amós, também Oséias, que atuoude 755 até 722, igualmente em Israel (= Norte), dá destaqueàs mudanças em andamento nas vilas camponesas. Contu­do, Oséias não se atém a observar tanto as corrupções dajurisprudência (veja, porém, Os 5,1) ou as falsificações co­merciais (veja, porém, Os 12,7), como Amós, quanto a prá­tica religiosa. Constata que nas eiras e nos vilarejos há gran­de entusiasmo pelos ritos de fertilidade. Estes visam ativar areprodução humana e a produção, ambos mui necessáriospara o expansionismo de Jeroboão II e de seus sucessores."Pode-se, pois, dizer que tanto Amós quanto Oséias enfocamas profundas transformações locais que se vão processandodevido ao expansionismo nacional.

A realidade do povo camponês dos dias de Amós era,pois, marcada por espoliação e violência (cf. Am 3,9-10).Para manter-se e para ativar as rotas comerciais, o Estado deJeroboão II extorquia sua gente e, provavelmente, criava umincipiente comércio nas vilas. O povo empobrecia. E, alémdisso, o projeto jeroboânico encaminhava a todos para umfuturo incerto e obscuro. Afinal o sonho expansionista nãopassava de uma alucinação generalesca. Era uma aventura.

25 Veja WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 1; Hosea. Neukirchen, Neukirchener,1965 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 1411); MEJiA, Jorge. Amor, pecado,alianza; una lectura deI profeta Oseas. Buenos Aires, Patria Grande, 1975. 155 p.(Teologia, Estudios y Documentos, 1). Sobre a interpretação de Oséias, veja agora,em especial, SAMPAIO, Tânia Marta Vieira. Movimento do corpo prostituido da mulherna beleza do cotidiano; uma aproximação da profecia atribuída a Oséias. São Bernardodo Campo, 1997,236 p.

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Para bem entendê-lo, faz-se necessário dar algumas pince­ladas na caracterização da conjuntura internacional da pri­meira metade do século VIII.

Lembremo-nos, inicialmente, da real insignificânciade Israel no concerto dos povos da área. Os avanços terri­toriais obtidos por Jeroboão II em nada alteravam essa situa­ção. As mais significativas concentrações de poder encon­tram-se no norte (Urartu, Emat e Damasco) e, em particular,na Mesopotâmia. (No século VIII, o Egito não se sobres­saía.) Na região siro-mesopotâmica, não havia, porém, urnapotência hegemônica. Lutava-se pela supremacia. Logo após747 a.C. - isto é, após Arnós -, a Assíria rapidamente tornapara si, sob o general Tiglate-Pileser, o controle da Mesopo­tâmia e da Siro-Palestina. Emat e Damasco são subjugadas.Em 732 a.C., as partes mais ricas e comercialmente maisinteressantes de Israel, em particular a Planície de Jezrael,são feitas províncias assírias. Em 722 a.C., Samaria é ane­xada, com o que termina o Estado de Israel dos temposveterotestamentários.

Portanto, a expansão jeroboânica ocorre sob o signoda indefinição da hegemonia na região. Naqueles dias, Is­rael se beneficia da disputa pelo mando. Embora Jeroboão IIevidentemente não tivesse fôlego para aspirar a direção dosacontecimentos, as indecisões propiciavam-lhe alguns es­paços. Contudo, à medida que ingressava ativamente noâmbito das trocas comerciais internacionais, também criavaas condições da futura invasão assíria. A rota que, sob Jero­boão Il, levou os cereais israelitas trouxe, alguns anos de­pois, os soldados assírios. A invasão assíria é urna espéciede refluxo da expansão jeroboânica. Por conseguinte, a po­lítica de Jeroboão II não só pauperizou os camponeses

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israelitas, mas também preparou as condições para sua sub­jugação pelos assírios. Preparou a catástrofe, da qual Israel(= Norte) jamais se recuperou. A glória jeroboânica foi otúmulo do povo.

A deterioração das condições de vida do povo era pal­pável em toda parte. Violência e maus-tratos, religiosidadeformalista e templos interesseiros, enriquecimento fácil esuborno, enfim a justiça transformada em veneno (cf. Am6,12) e o caos social dominavam a cena. Detalhá-lo aquiequivaleria a antecipar estudos subseqüentes. Voltaremos,pois, ao enfoque pormenorizado das dores e dos clamoresdo povo em Amós.

Retrospectiva

Quisemos delinear o contexto das "palavras de Amós"(Am 1,1). Em retrospectiva, podemos constatar o seguinte.

Encontramo-nos por volta de 760 a.C., em Israel(= Norte), na segunda metade do longo reinado de Jeroboão II(787-746).

Trata-se de uma época de certo vácuo de poder. Nãohá poder hegemônico no cenário dos povos vizinhos.

Êxitos significativos marcam a política de Jeroboão lI.A expansão territorial e o controle de rotas comerciais diri­gem-se principalmente ao norte (Damasco, Emat).

Formas já existentes de dominação são radicalizadase novas são agregadas. A dominação de mulheres e criançasé radicalizada, como se verifica no próprio livro de Amós(cf. 2,7), mas principalmente em Oséias, profeta conterrâneoe praticamente contemporâneo de Amós. A defesa das crian-

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ças é um dos temas de Isaías (cf. 10,1-2). A essas domina­ções já históricas são agregadas principalmente aquelas so­bre a gente que produz no campo. Aumentam a injustiça e aexploração, seja mediante a tributação seja mediante certamercantilização das trocas, no âmbito das vilas interioranas.

Violência e espoliação perfaziam o dia-a-dia das pes­soas. Na linguagem de Miquéias, dir-se-ia que elas estavamsendo "devoradas" (cf. Mq 3,1-14).

Tal descrição de circunstâncias é de alguma serventiapara nós que - nesses estudos - queremos avaliar nossa fée nossa prática com base em Amós? Afinal, não é a Palavrao que importa? De que serviriam tais incursões no nível docircunstancial?

Não resta dúvida, não podemos permanecer no con­texto. Ele ainda não é a Palavra. Por isso, anseio por avançarpara além dessa sondagem do histórico. Nesse sentido, esta­mos perdendo tempo ao analisarmos a realidade dos dias deJeroboão II?

Sim, nosso intuito é o de dar destaque ao que não émeramente situacional. Contudo, isso não pode implicar emdescartar o contexto. Afinal, a Palavra jamais se descuida darealidade. Ela "acampou entre nós" (Jo 1,14). Épresença real,efetiva, corpórea, concreta, factual. Nesses termos, a Palavra,além de criar contexto, também se faz contexto.

E em Amós isso é muito patente. Expressa-o o cabe­çalho de seu livro. Ele afirma que no texto que lhe segue selêem "palavras de Amós". Esta expressão chama a atenção,ainda mais quando a comparamos com os títulos de outros

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livros proféticos. Lá nos são anunciadas "palavra de Javé"(Os 1,1; Jll,l; Mq 1,1 etc.). Como meditar e entender nossolivro, sem atentarmos para as condições reais de sua profe­cia? Sem nos fixar em sua pessoa? No estudo do livro deAmós - mas certamente não só dele -, a contextualidadeé um requisito teológico. Espiritualidade por suposto nãoprescinde de historicidade. Se prescindisse, Amós diria quenosso entusiasmo religioso só serve para multiplicar o peca­do (cf. Am 4,4-5; 5,5.21-27), para reproduzir alienação eilusionismo.

Avancemos em nossa tarefa. Meditemos adiante so­bre esse Amós de Técua. Quem é esse pastor, vaqueiro, tra­balhador sazonal?

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2. "O Senhor Javé me fez ver"

o outro estudioso escondeu-se, de noite, num canto da casa.Viu o povo entrar, sem pedir licença, para dançar e brincar,falar e cantar, para sentir-se à vontade e encontrar-se comos outros. Gostou de ver essa alegria na casa e esqueceu­se, por um momento, das riquezas antigas. Gostou tanto,que entrou na roda e dançou. Dançou e brincou, falou ecantou, a noite inteira. Coisa que de há muito não mais fa­zia. Nunca se sentira tão feliz na vida. Descobriu, naquelahora, que tudo aquilo que tanto estudara tinha sido feitopelo povo, para o povo poder alegrar-se na vida... Passavaa ser conhecido e acolhido pelo povo que não distingue aspessoas que nele se misturam. Era um do povo. 1

Na sua origem, o profetismo não surge tanto do lado dopoder... Surge muito mais do lado da poesia, da inspiração,do transe, da música, do sonho, da visão, da beleza, do po­pular, da arte, da intuição, do oráculo, da religião, da divin­dade, da oração, da mística.'

Contactamos, no primeiro capítulo, o contexto. Essafoi nossa primeira tarefa. As "palavras de Amós" também

1 MESTERS, Carlos. Por trás das palavras, 3. ed., Petrópolis, Vozes, 1977. v. I, pp. 17-18.

2 GRUPO DE REFLEXÃO DA CRB. A leitura profética da história. São Paulo, CRB/Loyola,1992. p. 17.

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são seu contexto. Mas não só: são também de Amós. Se fos­sem de outro, seriam diferentes. Podemos comprovar issoem Oséias. Fala conforme o mesmo contexto, alguns pou­cos anos depois. Sua linguagem é outra. Sua ótica é especí­fica. Não é, pois, indiferente que nosso livro nos apresente"palavras" oriundas de um tal de Amós, uma pessoa especí­fica, um grupo profético distinto de outros. Também, por­que esse Amós, de jeito nenhum, foi recitador de liturgia.'

Nem todos viam o que ele via. Amós nos apresenta arealidade dos "dias de Jeroboão" em uma ótica muito pecu­liar. O profeta Jonas de 2Rs 14,25 via as coisas de outromodo. O sacerdote Amasias, que denunciara Amós junto àcorte (cf. Am 7,10-17), fazia outra análise dos fatos. Amósperscrutava, pois, o que Jonas, Amasias e outros não enxer­gavam. Para Amós, essa diferença tem origem em sua expe­riência de Deus: "Falou o Senhor Javé, quem não profetiza­rá?" (Am3,8). Javé o "fez ver" (Am 7,1.4.7; 8,1; 9,1). Nissoreside a alteridade de nosso Amós. Sua visão da realidade éteológica, é mística.

Não se trata de querer repetir o culto ao individualis­mo, como por vezes se fazia em outros tempos.' Nem pre­tendo adentrar na alma de nosso profeta. Não conhecemossua psique, só temos seus textos. Contudo, também não po­demos desalmá-lo, nem só objetivá-lo em seus textos. Amós

3 A relação entre Amós e a liturgia templar é estudada por Hennig Grafvon Reventlow. Vêem nosso profeta uma espécie de recitador, de liturgo de agenda. Veja REVENTLOW, HennigGrafvon. Das Amt des Propheten bei Amos. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962(Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments, 80).

4 Veja DUHM, Bernhard. Israels Propheten. 2. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr, 1922 (a 1.ed. é de 1916). Confira também KRAUS, Hans-Joachim. Geschichte der historisch­kritischen Erforschung des Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwart.4. ed., Neukirchen, Neukirchener, 1988. pp. 275-283.

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porcerto tinha seujeito e suas emoções. Imaginemo-lo pro­ferindo aquelas palavras de Am 4,1 sobre os senhores' deSamaria: "Ouvi, vacas de Basã!" Não as terá dito sem tre­mor e emoção. Imaginemo-lo em sua confrontação comAmasias (cf. Am 7,10-17). Ojavismodo sacerdote de Beteldivergia do javismo do pastor de ovelhas de Técua. Amóstinha um jeito muito peculiar de articular a fé em Javé e deconfessá-loem público. Esse profeta é diferente.

Nãohádúvida, o contexto fezcomque Amós falasse. To­davia, igualmente, é evidente que Amós fezcomque o contextofalasse. Tentemos percebê-lo neste nosso segundo estudo.

As visões

As visões, contidas emAm 7-9, permitem-nos conhe­cer algo de Amós. Porcerto, não foram anotadas para bio­grafar o profeta. Seu objetivo é outro. Querem-nos testemu­nhar os conteúdos e as conseqüências das palavras proféti­cas. Mas, enquanto perseguem essa meta, nas entrelinhastambém deixam transpirar algo dapessoadeAmós.Atente­mos para essas entrelinhas.

Cincosão as visões espalhadas porAm 7-9. São elas:7,1-3; 7,4-6; 7,7-8.9; 8,1-2.3 e 9,1-4. 6 Certamente se

5 Ressalto que em Am 4,1-3 a maioria dos sufixos alude a um masculino, e não a umfeminino. Logo, as tais "vacas de Basã" não hão de ser mulheres, mas senhores.

6 O texto original dessas visões não está bem preservado. Persistem muitas incertezas.Não posso pormenorizá-Ias. Sugiro uma comparação com comentários especializados.Os problemas estão bem trabalhados em: KiRST, Nelson. Amós; textos selecionados,São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981. pp. 41-92 (Exegese, 111). Veja tambémmeu próprio ensaio: Jacó é pequeno - Visões em Amós 7~9. Revistade InterpretaçãoBíblicaLatino-Americana, v. I, Petrópolis, Vozes, 1988,pp. 81-92. Este v. I foi reeditadoem 2. ed. em 1990. O ensaio em questão encontra-se, agora, no Anexo do presente livro.

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correlacionam. Formam um só ciclo.' No atual texto deAm7-9 estão separadas, ao meu ver, porque foram usadas pelosredatores para estruturar o conjunto desses três últimos ca­pítulos do livro.' Inicialmente nos interessa enfocar o ciclodas cinco visões à parte de seu atual contexto literário. Numsegundo passo, também perguntarei pelas intenções queorientaram a composição de Am 7-9.

O ápice do ciclo é a quinta visão (9,1-4). As quatro ante­riores compõem dois pares. Juntas estão, por um lado, 7,1-3 e7,4-6 e, por outro, 7,7-9 e 8,1-3.A disposição é, pois, 2 +2 + 1.A progressão entre os conjuntos é evidente. A última visãoconstitui o auge. Entre o primeiro e o segundo par há um cres­cendo. Constato, pois, que a disposição e a seqüência dessenosso ciclo de visões de modo algum são fortuitas. Ao medi­tá-lo, temos de fazer jus a essa sua peculiaridade, temos deintegrar-nos em seu fluxo. Vejamos o que Amós viu.

7 Não pretendo comprová-lo uma vez mais. A esse respeito há várias pesquisas a com­parar, por exemplo: SElERSTAD, Ivar P.Die Offenbarungserlebnisse der ProphetenAmos,Jesaja und Jeremia; eine Untersuchung der Erlebnisvorgãnge unter besondererBerücksichtigung ihrer religiõs-sittlichen Art und Auswirkung. Oslo, Uni ver­sitetsforlaget, 1965; WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joel und Amos.Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 337-394 (Biblischer KommentarAltes Testament,14/2); BARTCZEK, Günter, Prophetiec und Vermittlung; Zur literarischen Analyse undtheologischen Interpretation der Visionberichte des Amos. Frankfurt, Peter Lang, 1980(Europãische Hochschulschriften, 23); TOURN, Giorgio. Amós; profeta de la justicia.Buenos Aires, 1978. pp. 49ss; KIRST, Amós; textos selecionados, cit., pp. 41-92; LETE,Gregorio dei Olmo. La vocación del lider en el antiguo Israel; morfología de losrelatos bíblicos de vocación. Salamanca, Univ. Pontificia, 1973. pp. 179-207 (Biblio­teca Salmanticensis, 3/2); ANDERsEN, Francis I. & FREEDMAN, David Noel. Amos; ANew Translation with Introduction and Commentary. New York, Doubleday, 1989.pp. 609-860 (The Anchor Bible, 24A); PAUL, Shalom M. Amos; A Commentary on theBook of Amos. Minneapolis, Fortress Press, 1991. pp. 226-281 (Hermeneia).

8 Veja ANDINACH, Pablo Rúben. Amos - Memoria y profecia - Análisis estructural yhermenéutica. Revista Biblica, ano 45, v. 12, Buenos Aires, Sociedad Argentina deProfesores de Sagrada Escritura, 1983, pp. 239ss.

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o primeiro par de visões está em 7,1-3 e 7,4-6. Focalizaa vida no campo. Trata de planta (7,1-3) e de "herança"/roça(7,4-6), do lavrador e também do pastor. Em jogo está a so­brevivência da gente do campo. Amós vê ameaças terríveis:praga de gafanhotos (7,1-3) e seca (7,4-6). Os gafanhotosameaçam liquidar os camponeses. O tributo real já os ex­plorara, ao se assenhorar da primeira colheita, isto é, da co­lheita mais rentável (v. 1). Agora, gafanhotos estavam pordevorar a segunda, a que sobraria para a gente do campo.Haveria fome. Além dessa praga, está a caminho uma secaarrasadora. O manancial de águas subterrâneas estava sendoconsumido por um fogo terrível, cósmico (v. 4). Haveria sede.Fome e sede ameaçavam, pois, a sobrevivência no campo.

Amós intercede e é atendido. Seu argumento, à pri­meira vista, surpreende. Recorre à pequenez de Jacó (v. 2 ev. 5). A fragilidade dos lavradores - afinal, estes são Jacó,no concreto - é o argumento decisivo para a suspensão daameaça. Para o campo empobrecido, há perdão. As ameaçasda natureza - pragas e secas -, por mais terríveis que se­jam, não aniquilam. O Deus criador não é tão mesquinho.Nem secas e nem pragas "pisam", "eliminam" (Am 8,4) e"devoram" (Mq 3,1-4) os pobres. Suas dores têm outras ori­gens. E é disso que nos fala o segundo par de visões.

As próximas duas cenas (7,7-9 e 8,1-3) são especialmen­te dificeis de interpretar. Referem-se a um prumo? (7,7-9) e aum cesto (8,1-3). O prumo certamente tem a função de veri­ficar a estabilidade do muro. Este está prestes a ruir. O cestocontém frutas de verão (figos, azeitonas, uvas). Ambas as

9 A respeito de 7,7-9, veja a leitura de Haroldo Reimer em seu valioso livro: Richtet aufdas Recht!; Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 1992.pp.175-189.

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visões predizem o fim de "meu povo Israel" (7,8; 8,2). Paraentendê-las, não basta fixar-se nos objetos (prumo/muro ecesto). É preciso atentar para as conseqüências concretas daameaça, isto é, proponho interpretar a terceira e quarta visãosegundo 7,9 e 8,3, respectivamente. 10 As conseqüências con­cretas das ameaças simbolizadas nas visões de um prumojunto ao muro e de um cesto de frutas são: aniquilamentodos "altos" (isto é, dos locais de culto a Baal), dos santuá­rios estatais, da dinastia no poder (cf. 7,9) e morte no palá­cio (cf. 8,3). Generalizando podemos dizer que a terceirae quarta visão ameaçam os poderosos, sua religião ("altos" e"santuários") e seus representantes (dinastia e palácio).Quando Amós se refere, pois, a "meu povo Israel", nãopensa no conjunto de todas as pessoas, mas especificamentenas instituições de poder do reino do Norte. 11 A partir daí,também as coisas vistas tomam sentido. Não é por acasoque Amós vê um cesto de frutas de verão (cf. 8,1-2). Isso háde aludir ao cenário da principal festa da colheita, realizadano final do ano agrícola palestinense. Na oportunidade, ossantuários arrecadavam seus tributos (cf. 9,1-4 e 2,13). Igual­mente, não é por acaso que Amós vê um muro prestes a ruir(cf. 7,7-8). Afinal, o poder opressor era, naqueles tempos,um poder citadino. Para a cidade e o Estado, seus muros epalácios, suas festas de colheitas e espoliações não há futuro.

Portanto, esse segundo par de visões (7,7-9 e 8,1-3) éoposto ao primeiro (7,1-3 e 7,4-6). Aquele se refere ao cam-

10 Para Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 131-135, 340­341 e 367), Am 7,9 e 8,3 são adendos posteriores. Veja também KIRST, Amós; textosselecionados, pp. 58-59 e 70-71.

11 Veja KIRST, Amós; textos selecionados, cit., p. 63; WOLFF, Dodekapropheton 2; Joelund Amos, cit., p. 348.

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po, este, à cidade-Estado. Para a fragilidade de Jacó, há fu­turo. Para a opressão citadina, haverá morte. Campo conju­ga com vida. Cidade-Estado caminha para a morte. A últimavisão (9,1-4) formulará a conseqüência mais radical dessesantagonismos.

Novamente deparamos com uma passagem complica­da, quando nos voltamos para 9,1-4. Os problemas começamcom o texto original; sua preservação não é das melhores.Ainda assim é possível reconhecer seu conteúdo principal.Trata-se da ameaça ao templo e aos que dele se beneficiam.A cena chega a ser chocante e grotesca. Javé como que estáparado sobre o altar de holocaustos (localizado em frente aotemplo); de lá golpeia os capitéis. Demole o santuário, fa­zendo-o ruir sobre seus ocupantes. Nessa quinta (cf. 9,1-4),culmina o conjunto das visões (7,1-3; 7,4-6 e 7,7-9; 8,1-3).O próprio Javé se volta contra o lugar e os ritos que maisquerem prestigiá-lo.

Por quê? Porque esse santuário é serviçal aos muroscitadinos (cf. 7,7-8), tanto a seus idolatrismos quanto às suasdinastias (7,9). Serve ao acúmulo tributário por meio dasfestas da colheita (cf. 8,1-2), em favor dos palácios e contraas escravas (cf. 8,3). O santuário é a coroa da opressãoexercida contra o campo e as escravas. Nas visões de Amós,ele coroa as ameaças. O templo seria lugar predileto da pro­moção da vida; por meio de suas amarras citadinas e pala­cianas foi feito lugar privilegiado da morte.

O ciclo das visões, por certo, não é biografia. Tem comoobjetivo não a pessoa de Amós, mas sim o conteúdo de suamensagem. Ainda assim é evidente que essas visões tam­bém nos permitem entrever a pessoa de nosso profeta. Antesde mais nada, no-lo apresentam como um vidente, um visio-

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nário (confira tambémAm 1,1; 7,12). Essa é por assim dizersua especialidade. O vidente enxerga o que está na raiz dascoisas e em suas conseqüências. Olha para a frente e vai aofundo. Ao ir à raiz, Amós constata opressão de cidades e doEstado sobre a gente pobre do campo. Ao olhar o futuro,vislumbra o fim dos totalitários. A visão profética não é, pois,nenhum jogo fortuito com símbolos indecifráveis. Ela re­vela e des-vela, com perspicácia e radicalidade, o que está aíe o que está por vir. Toma as coisas transparentes. Tamanhaperspicácia, porém, não é só fruto de exercícios de êxtase oude sábia reflexão pessoal. É também episódio sociorreligioso,cujo controle situa-se além da própria pessoa. Situa-se notempo e espaço religiosos que, simultaneamente, estão inse­ridos no comunitário e social. Em tal visão ocorre um en­contro entre a experiência pessoal de Amós e o ambiente dedor comunitária de sua gente aldeã. É o que se pode desig­nar de dádiva. Javé faz ver, vocaciona Amós a ser vidente.Não fosse essa perspectiva vocacional, as visões de nossoprofeta poderiam não passar de sensacionalismo e soberbia.Só o próprio Javé, com quem Amós dialoga em relação pes­soal, poderia denunciar que os templos a ele dedicados nãoeram de seu agrado. Essa dádiva divina da visão não pareceter tomado nosso profeta de sobressalto, de uma hora paraoutra. Trata-se de uma trajetória vocacional. Amós percorretodo um caminho visionário. As próprias visões deixam en­trever isso, com bastante nitidez. A visão dos gafanhotos (cf.7,1-3) cabe no início do ano agrícola. A da seca (cf. 7,4-6),em pleno verão. A do cesto (cf. 8,1-3) dá-se no outono. Es­tas visões cobrem, no mínimo, meio ano. Talvez seja o perío­do em que Amós é preparado, de modo incisivo, para seuministério." O ciclo das visões leva-no a perscrutar os si­nais dos tempos: a dor dos camponeses e o luxo de palácios

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e templos. Essas coisas não se clareiam, miraculosamente,de um dia para o outro; clareiam-se na caminhada.

Essas visões têm um sentido como conjunto. São per­tinentes também à pessoa de Amós e a seu meio ambientesocial. Mas também assumem um sentido específico dentrode seu atual contexto literário, constituído por Am 7-9. Sãoo lastro sobre o qual estão assentados estes capítulos. Aqui,não posso deter-me a meditar os alcances dessa composi­ção. Restrinjo-me a assinalar dois aspectos.

Por um lado, o ciclo é amplificado. Em 8,4-14, a amea­ça também passa a incluir o comércio. Este igualmente de­vora os camponeses pauperizados, o Jacó enfraquecido.Contra o povo estão não só cidades muradas, templos, palá­cios e Estado, como acentuam as visões, mas também oscomerciantes.

Por outro lado, o ciclo é radicalizado. Ao incluírem aconfrontação com Amasias (cf. 7,10-17) entre a terceira (cf.7,7-9) e a quarta (cf. 8,1-3) visão, os redatores exemplificamnuma cena o antagonismo entre a profecia que vem do cam­po e o sacerdócio amarrado aos interesses do Estado e deseu templo oficial. A mesma critica à conjugação entre po­der e religião é tematizada em 9,7-8 e nas utopias messiânicasde 9,11-12 e 9,13-15. Desse modo os compiladores de Am7-9 quiseram denunciar o caráter funesto das alianças entretemplo e palácio. Ao proceder assim, evidenciam-se comobons discípulos de Amós.

12 Assim KIRST, Amós; textos selecionados, cit., pp. 42 e 90. Sobre a questão, confiratambém TOURN, Amós; profeta de la justicia, cit., pp. 67-69.

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"Rugiu o leão - Javé me agarrou"

Algumas outras passagens focalizam a dimensão voca­cional da atuação de Amós. Assemelham-se ao que viemosa conhecer por meio do ciclo das visões. Penso em Am 3,8 eemAm 7,14-15.

Em ambas, o tema não é Amós, mas sua mensagem ea autoridade desta. Por um lado, a passagem em questãoautentica a ameaça à Samaria (cf. 3,8), por outro, evidenciaa necessidade da confrontação com Amasias (cf. 7,14-15).

Am 3,8 reveste-se de importância especial à luz de seucontexto literário. Acontece que Am 3,3--4,3, provavelmen­te, compõe um antigo panfleto, contendo cinco ditos profé­ticos de Amós (cf. 3,3-8; 3,9-11; 3,12; 3,13-15 e 4,1-3).13Todos eles afrontam explícita (cf. 3,9-11; 3,12; 4,1-3) ouimplicitamente (cf. 3,13-15) Samaria. Seu conteúdo é es­pantoso. Afinal, a capital é denunciada como berço de terrore horror. Sua destruição perpassa cada dito, como grandeanseio. Um tal panfleto deve ter escandalizado e espantado.Fazia-se necessário embasar seu conteúdo. E essa é a fun-

13 Essa tese ainda carece de uma verificação detalhada, na qual se comprovaria que 3,1­2 é, ao menos em parte, uma introdução secundária (deuteronomistica?) e que o apeloà atenção de 4, I poderia tanto ser do próprio Amós (confira 3,13 e 8,4) quanto estarinfluenciado pela linguagem redacional de 3,1 e 5,1. Indicios importantes que auxi­liam a embasar a tese, segundo a qual Am 3,3-4,3 é um antigo panfleto, podem serencontrados em KOCH, Klaus. Amos untersucht mit den Methoden einer strukturalenFormgeschichte. Neukirchen, Neukirchener, 1976 (Alter Orient und Altes Testaent,30), veja em especial p. 126 da I'parte e pp. 76-77 da 2ªparte. Veja também SCHMlDT,Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches - Zu dentheologischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort und seinem Sammler.Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin, Walter de Gruyter,1965, pp. 168-193. Outra é a posição de PFEIFER, Gerhard, Amos und Deuterojesajadenkformenanalytisch verglichen. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft,v. 93, Berlin, Walter de Gruyter, 1981, pp. 439-443. Confira item Exército, cidade etemplo, p. 62.

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ção de 3,3-8, em cujo auge está nosso v. 8. Ele faz as vezesde assinatura teológica para o atestado de morte passado àSamaria nesse nosso panfleto.

Amós 3,3-6.8 14 é uma obra de arte da sabedoria popu­lar. No estilo da pergunta e resposta, correlacionando causae efeito, Amós leva seu ouvinte a ter de admitir que suasameaças proféticas à cidade (v. 6), isto é, no panfleto Samaria,tem sua origem em Javé. Partindo das coisas cotidianas­quase banais e infantis" -, esses versículos chegam ao pro­blema elementar da profecia: os profetas têm de falar. Amósprofetiza por obrigação, não por deleite. Está sob coaçãodivina:

Rugiu o leão!

Quem não temerá?

Falou o Senhor Javé!

Quem não profetizará? (Am 3,8).

Profecia por coação - esta experiência contundenteautentica a assombrosa ameaça que segue nos quatro ditos:Samaria, a capital do bem-sucedido Jeroboão 11, será destro­çada. A função da profecia é proclamá-lo.

Não parece que 3,8 queira referir-se a um aconteci­mento vocacional único. Seu propósito é antes apresentar asrazões teológicas para o conjunto da atuação profética, emparticular para os diversos ditos contra Samaria. Nesse pontoreside uma diferença em comparação com o ciclo das visões.

14 V. 7 deve ser um adendo deuteronomístico, como foi demonstrado por SCHMIDT, Diedeuteronomistische Redaktion des Amosbuches, cit., pp. 183-188.

15 RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971. p. 156(Kommentar zum Alten Testament, 13/2).

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Lá conhecíamos Amós no começo e quiçá no gradual desen­volvimento de sua profecia. Aqui vemo-lo explicitar o mo­tivo de sua ação e palavra proféticas.

Em Am 7,14-15, o profeta se refere a suas experiên­cias vocacionais e pessoais à semelhança de 3,8. Atenhamo­nos, por instantes, a esses dois versículos.

Com eles retomamos ao contexto literário do ciclo dasvisões. Em 7,10-17,16 os discípulos relatam uma das cenasmarcantes da vida do mestre. É marcante porque confronta,sem meios-termos, duas propostas: a do vidente e a do sa­cerdote, a de Amós e a de Amasias, a da crítica ao Estado ea do serviço a ele, a do campo e a da cidade. Esse cenário deantagonismos interrompe o ciclo das visões e, simultanea­mente, explica-o, num paradigma concreto. Novamente, aquestão tematizada não é Amós, é sua palavra profética. Estaestá no centro. A importância de Amós deriva da relevânciada palavra, do dabar!

E é por causa dessa palavra que Amós recorre a seupassado, nos versículos que estão em jogo. Amasias pro­punha acomodar a palavra profética às condições de umsantuário do rei e aos interesses do Estado. Tratava de nego­ciar (cf. vv. 12-13), naturalmente cheio de boas intenções.Amós refuta tais tratativas. É intransigente. Não por umaqualidade sua, mas devido à qualidade da palavra. Esta nãose ajusta e nem se acomoda ao Estado jeroboânico, idólatra(cf. 7,9) e opressor (cf. 8,3.4-6). Para confirmar a intransi­gência da palavra de Javé, Amós recorre a sua experiênciavocacional e a seu modo de vida.

16 Cf. VIRGULIN, Stefano. Os doze profetas e Daniel. Petrópolis, Vozes, 1978. pp. 39-44(Introdução à Bíblia, 2/4).

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A experiência vocacional confere com a de 3,8, em­bora os termos sejam outros. Javé tomou, agarrou, constran­geu (cf. v. 15). Amós foi feito vidente, um tanto na marra.Nem mesmo o conteúdo de sua fala corresponde a uma op­ção sua. Também este lhe foi dado. Há que se direcionar aIsrael (cf. v. 15), ameaçá-lo na pessoa de seus reis (cf. vv.9.10-11), sacerdotes (cf. vv. 16-17) e similares. Na raiz detamanha radicalidade está a vocação: "Javé me agarrou!"Nisso 7,14-15 está próximo de 3,8, como víamos. Mas tam­bém vai além.

Em 7,14-15 transparece um interesse especial emelucidar as conseqüências concretas e atuais da vocação paraa profecia radical, para "o não'"? derradeiro. Por um lado, édestacado que Amós não é "profeta" e nem mesmo "filho/discípulo de profeta".18 Portanto, não deve ser confundido comos profetas vinculados a santuários oficiais e deles dependen­tes (cf. 2Sm 7 ou Mq 3,5-8), se bem que em dado momentochega a desempenhar funções proféticas (por exemplo, ao in­terceder em 7,2.5).19 A rigor, Amós não é profeta, é "pro­fetizador" (cf. 3,8; 7,15.16). Por outro lado, seu modo de vidae de subsistência passa a desempenhar papel de realce. Seupão não lhe vem de sua função de profeta (o que nega ser).

17 Esse é o título de um belo ensaio de SMEND, Rudolf. Das Nein des Amos. EvangelischeTheologie, v. 23, München, Christian Kaiser, 1963, pp. 404-423.

rs Sobre a correta tradução de 7,14, há longa discussão. Há quem queira traduzir: "Eunão era (!) profeta e nem era (!) filho de profeta" (confira, por exemplo, KIRST, Amós;textos selecionados, pp. 95 e 113-116 ou PAUL, Amos; A Commentary on the Book ofAmos, cit., pp. 238-252). A meu ver, Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joelund Amos, pp. 359-361) reuniu os argumentos decisivos para que se traduza: "Eu nãosou (!) profeta e nem sou (!) filho de profeta".

19 Quanto aos profetas como intercessores, veja RAD, Gerhard von. Los falsos profetas,em Estudios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca, Sígueme, 1976. pp. 445-459(Biblioteca de Estudios Bíblicos, 3).

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Ganha-o como trabalhador. Vv. 14-15 ressaltam-no (veja tam­bémAm 1,1). Havemos de retomar ao assunto (confira itemAmós - Um trabalhador, p. 49). Desde já posso constatar quepara os narradores do episódio de 7,10-17, o ganha-pão deAmós não é indiferente ao conteúdo de sua profecia. Afinal,seu trabalho dá autenticidade a suas palavras. Entre o Amóstrabalhador e sua profecia radical contra os totalitários devehaver uma relação. O trabalhador e o "profetizador" secorrelacionam, embora este não dependa daquele.

Em 3,8 e 7,14-15, conhecemos, pois, um Amós voca­cionado como profetizador. Foi feito agente da palavra (dodabar).Isso já era relevante para o próprio Amós. Sua tarefaera profetizar (cf. 3,8; 7,12.15-16) e proclamar (cf. 3,8; 7,16).Os compiladores lhe deram destaque ainda maior, ao se va­lerem do conceito da palavra (do dabar) para intitular o li­vro (cf. 1,1) ou partes dele (cf. 3,1; 4,1; 5,1, confira 7,16).Amós atua, pois, por meio da fala, da palavra. Pode-se cons­tatar isso em mais outra característica dos textos. Refiro-meàs fórmulas que se encontram no começo, no meio e no fimdos ditos. Atentemos para elas.

"Assim disse Javé"

O início de muitos ditos é marcado pela expressão "as­sim disse Javé" (1,3.6.9.11.13; 2,1.4.6; 3,11.12; 5,3.4.16;7,17). Seu equivalente no final das unidades é "disse Javé"(1,5.8.15; 2,3; 5,17.27; 7,3.6; 9,15).

Outra expressão muito freqüente e via de regra usadapara concluir é "dito de Javé" (Almeida costuma traduzirpor "disse Javé"). Encontramo-la em: 2,11.16; 3,6.10.15;4,3.5.6.8.9.10.11; 6,8.14; 8,3.9.11; 9,7.8.12.13.

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Nesse contexto também caberia mencionar a formula­ção "jurou Javé". É bem menos usual (cf. 4,2; 6,8; 8,7). Suafunção assemelha-se a "assim disse Javé".

Essas expressões nem em todas as passagens remon­tam ao próprio Amós. Mas, no geral, este é o caso." Porisso, pode-se afirmar que desempenham um papel de desta­que, em relação à nossa temática. Hão de ter um sentidoespecial para nosso "profetizador". Para perceber isso, te­mos de meditar sobre essas expressões, particularmente so­bre as mais freqüentes: "assim disse Javé" e "dito de Javé".

Ambas têm origens distintas. "Assim disse Javé" pro­vém do envio de mensagens. Com essa fórmula o mensagei­ro introduzia seu recado. Existem muitos textos para com­prová-lo. No próprio livro de Amós temos um. Quando osacerdote Amasias denuncia Amós diante da corte, faz in­troduzir sua mensagem por: "assim disse Amós". Veja tam­bém Gn 32,4-6 e Jz 11,14-15. Portanto, a expressão "assimdisse Javé" é uma fórmula oriunda da troca de mensagens."De outro âmbito provém o "dito de Javé". Tem seu lugarvivencial entre visionários (Nm 24,3-4.15-16; 2Sm 23,1). Aexpressão é usada quando o visionário transmite a visão aoutros. Trata-se, pois, de uma fórmula originária da experiên­cia visionária.

De acordo com essas duas fórmulas, podemos dizer queAmós se entendecomo portador e transmissorde visões e, prin­cipalmente, de mensagens. É um emissário, um mensageiro.

20 A respeito, confira WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 109-110,165-166 e 174.

21 Veja WESTERMANN, Claus. Grundformen prophetischerRede. 4. ed., München, ChristianKaiser, 4. ed., 1971 (Beitrãge zur evangelischen Theologie, 31).

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o que diz não tem origem nele. Tem origem em quem o fez ver,em quem o enviou ou, nos termos de 7,15, em quem o faz an­dar. Aquele que o pôs a caminho definiu sua mensagem.

Em vistas a essas definições de Amós como visioná­rio, "profetizador" e mensageiro, alguém poderia concluirque nosso profeta é homem não de ação, mas só de palavra.E nisso não deixaria de haver algo de correto. Nosso livro,de fato, apresenta-nos Amós como agente de palavras (cf.Am 1,1!). Sua tarefa precípua é a fala, a percepção, a análi­se. Estaríamos equivocados, porém, se dicotomizássemos apalavra profética da realidade popular, se restringíssemosAmós a um verbalista, a um falador. Aí convém recordar,uma vez mais, que o dabar/palavra não pode ser restrito àesfera das manifestações verbais ou - como noutros tem­pos se gostava de fazer - à esfera das idéias e conceitua­lizações. O dabar/palavra envolve e inclui a realidade. Vemcarregado de vigor histórico. Acontece em meio ao real.Portanto, como agente da palavra, Amós é agente da histó­ria." Como mensageiro, é transformador de realidade. Oconflito com Amasias (cf. 7,10-17) comprova-o.

Poderíamos, pois, dar-nos por satisfeitos ao distinguirnosso Amós com o atributo de mensageiro. Poderíamos con­tentar-nos com a solução. E assim também procedemos.Apesar disso, porém, não podemos deixar de assinalar o pro­blema que estamos trazendo à tona, justamente ao caracteri­zar nosso profeta de mensageiro. Acontece que a funçãoprecípua do mensageiro é transmitir literalmente aquilo quelhe foi dito. Nisso reside sua tarefa. Isso perfaz sua dignida-

22 Veja RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1974. v. 2,pp. 80-96; SCOTT, R. B. Y. Os profetas de Israel; nossos contemporâneos. São Paulo,Aste, 1968. pp. 89-107.

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de (veja 2Sm 18,19-33; Pr 10,26). Em sentido teológico, é oque também vale para o profeta. É um transmissor. Todavia,na realidade, a questão se apresenta de modo bem mais com­plexo. Aí o profeta-mensageiro difere do mensageiro do dia­a-dia. Enquanto a dignidade deste reside na fidelidade deportador e na exatidão da transmissão, a daquele consiste naatualidade e pertinência da mensagem que transmite. O pro­feta-mensageiro fala também em responsabilidade própria.É evidente que esta questão há tempo foi observada. Umadas soluções encontradas postula o seguinte: a ameaça é oconteúdo primário da mensagem profética; é o que foi reve­lado aos profetas em sua vocação." Essa proposta tem seusargumentos. Ela, porém, por certo dicotomiza indevidamenteentre ameaça e denúncia, entre prognose e diagnose. Para osprofetas, denúncia e ameaça estão intimamente relaciona­das. Sua ameaça já está contida em sua denúncia. Suadiagnose já é prognose e vice-versa. Comprovam-no, porexemplo, seus ditos introduzidos por "ai" (Am 5,18; 6,1; Is5,8-23 etc.). Não só é viável desconectar a ameaça da de­núncia, mas também não é aconselhável querer fazer con­vergir para a ameaça o conteúdo concedido por Deus navocação. Uma comparação mais intensiva entre os profetaspoderia elucidar isso. Entre Amós e Oséias já existem signi-

23 "Não se poderá dizer que, na profecia, o prognóstico é o resultado do diagnóstico. Osrelatos das mensagens que eram recebidas de Deus e a sua própria estrutura indicamexatamente o oposto: era a certeza do profeta sobre uma iminente punição que o leva­va a reconhecer, no ambiente social, a razão para a referida punição. Em geral, aseqüência de estágios, por meio dos quais os profetas adquiriram seu conhecimento,vinha do prognóstico ao diagnóstico" (WOLFF, Hans Walter. Bíblia Antigo Testamen­to; introdução aos escritos e aos métodos de estudo. 2. ed., São Paulo, Paulus, 1982.p.77 [Biblioteca de Estudos Biblicos, 3]. Confira também WOLFF, Dodekapropheton2; Joel und Amos, cit., p. 108. Essa posição é detalhada por SCHMIDT, Werner Hans.Zukunflsgewíssheít und Gegenwartskrítík; Grundzüge prophetischer Verkündigung.Neukirchen, Neukirchener, 1973 (Biblische Studien, 64).

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ficativas diferenças. Se vejo bem, a ameaça oseânica ao es­tado é bem mais radical do que a que encontramos emAmós.Mas, efetivamente, flagrantes são as incompatibilidades en­tre Miquéias e Isaías quanto ao futuro de Sião. Para Isaías, otemplo permanecerá (cf. Is 8,14-15.18); para Miquéias, nãoficará pedra sobre pedra (cf. Mq 3,12). Essa breve argumen­tação já é capaz de assinalar que não convém fazer das amea­ças o núcleo do conteúdo revelado aos profetas. Conclui-se,pois, que tanto as denúncias ou a diagnose quanto as amea­ças ou a prognose foram formuladas por cada profeta. Nelaso profeta fala em responsabilidade própria. Embora ele teo­logicamente se entenda tão-somente como transmissor, efe­tivamente e em realidade também é emissor. Não basta, pois,que se queira ver no profeta uma espécie de alto-falante quefaz seu serviço sem participação própria e pessoal. Um profe­ta como Amós não só traz uma mensagem, pronta e concluí­da. Ele é, na verdade, intérprete de mensagem, evidencia-a,explicita-a, aplica-a, atualiza-a. Um tal intérprete chamaría­mos de hermeneuta, alguém que explica a Palavra de Deusnuma atualidade específica e num contexto determinado.Amós é um hermeneuta, fala a "palavra de Javé" (7,15) nas"palavras de Amós" (1,1). Não só traz mensagem, também adesvenda em seu contexto. Profecia nesses termos é questãonão só de vocação, mas também de análise. Pergunto, pois:é possível entender o profeta-mensageiro Amós, teologica­mente, como hermeneuta contextual, como um intérpretecom liberdade?" Em todo caso, uma tal proposta evitariatransformar um profeta em alto-falante ou em querer redu­zi-lo a portador de catástrofe.

24Nesse contexto, merece ser considerado: WESTERMANN, C1aus. Golfes Engel brauchenkeine Flügel. München, Siebenstem Taschenbuch, 1965 (Siebenstem-Taschenbuch, 52).

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Quem é, no concreto, este vocacionado, este visioná­rio, "profetizador" e mensageiro, este hermeneuta da pala­vra da liberdade, chamado Amós? Passaremos a esta tarefa.

Amós - Um trabalhador

Para aqueles que nos legaram o livro, apessoa de Amóssempre permaneceu em segundo plano. Em primeiro estavaa mensagem. O que sabemos de Amós está na dependênciade sua atuação. Fomos informados a respeito do profeta àmedida que seus discípulos consideraram isso relevante paraentender os conteúdos proféticos. Cientes dessa perspectivaadotada pelos compiladores (certamente em consonância coma ótica do próprio profeta), não havemos de estranhar quesabemos muito pouco sobre Amós. E, além disso, boa partedo que poderíamos saber ainda por cima é arduamente de­batido e controverso."

Seu nome deve ser a forma abreviada de 'amos-yah,isto é, "Javé carrega/sustenta"." No Primeiro Testamento,este nome não se repete, mas tem seu similar em 2Cr 17,16.Nosso Amós é originário de Técua, um povoado ao sul deJerusalém, situado, portanto, em Judá." Não se trata de umalocalidade muito conhecida no Primeiro Testamento. Faziaparte das fortificações no Sul (cf. 2Cr 11,6; 20,20; Jr 6,1,

25 Boa parte da literatura e dos detalhes em debate pode ser encontrada em SCHWANTES,Milton. Profecia e Estado - Uma proposta para a hermenêutica profética. Estudosteológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982, pp. 125-144.

26 Confira STAMM, Johann Jakob. Der Name des Propheten Amos und sein sprachlicherHintergrund. Beiheft zur Zeitschrifi fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 150,Berlin, Walter de Gruyter, 1980, pp. 137-142.

27 Quanto à localização, veja WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit.,pp. 153-154.

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veja também 2Sm 23,26; 1Cr 11,28). Afora isso, um dos epi­sódios na vida de Davi tem uma mulher sábia de Técua comopersonagem central (cf. 2Sm 14). É possível que Tecua te­nha sido uma das aldeias em que a sabedoria popular eraespecialmente cultivada. Em todo caso, a sabedoria c1ânicaé a matriz intelectual da profecia de Amós. Tradições cúlticasou inteligência cortesã não são o lar espiritual de nosso pro­feta. Seu ninho efetivamente é a cultura sapiencial populardo jeito como era cultivada em aldeias interioranas." Amósé voz do campo.

Nosso profeta aparentemente não chegou a atuar emJudá (veja porém Am 1,2; 5.5; 6,1.5). Foi a Israel (7,15). Aomeu ver, restringiu-se ao Norte, a Israel." Profetizou, comcerteza, em Samaria (cf. 3,3-4,3; 6,1) e em Betel (cf. 4,4; 5,4;7,10-17), possivelmente também em Guilgal (cf. 4,4; 5,4).Fez-se, pois, presente nos dois centros de poder do reino deIsrael, na capital, Samaria, e no principal centro cultual, Betel,de onde foi expulso (cf. 7,10-17). Teria retomado ao Sul?Nessa ocasião teria cessado de profetizar? Não o sabemos.

28 os argumentos decisivos em prol dessa tese estão em WOLFF, Hans Walter. Amosgeistige Heimat, Neukirchen, Neukirchener, 1964 (Wissenschaftliche Monographienzum Alten und Neuen Testament, 18). A discussão que se seguiu à publicação de H.W. Wolff (veja, por exemplo, RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 98-99), aomeu ver, evidencia quão necessário se toma distinguir, na literatura sapiencial colecio­nada no livro de Provérbios, entre o que nela é sabedoria ciânica, oriunda da aldeia, eo que é sabedoria sentencial, oriunda da cidade e representada pelos editores (cf. Pr25, I). Essa tarefa ainda está por ser feita. Veja a respeito meu ensaio "A glória dosgovernantes consiste em investigar a corrupção" - Um estudo de Provérbios 25. Estu­dos teológicos, v. 24, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, pp. 39-82.

29 Uma interpretação peculiar sobre a presença de urnjudeu de Técua no reino do Norteé apresentada por POLLEY, Max E. Amos and the Davidic Empire; A Socio-HistoricalApproach. New York, Oxford University Press, 1989.243 p. Sua tese é que Amós éa prophet ofthe southern kingdom ofJudah, went north to condemn Israel sdivisionofthe Davidic /dngdom [um profeta do reino do sul, de Judá, que foi ao norte paracondenar a separação de Israel do reino davidico, p. 3].

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Em todo caso, sua atuação em tomo de 760 a.C. (veja capí­tulo 1) deve ter sido breve. Não foi muito além de um ano(cf. Am 1,1; 7,1-9; 8,1-3; 9,1-4). Quem fez o registro deseus primeiros ditos mencionava queAmós fora profeta "doisanos antes do terremoto". Isso indica que sua atuação foibreve. O Estado de Israel não pôde suportá-lo por mais tem­po (cf. 7,10).

Intenso é o debate em tomo da "profissão'?" ou me­lhor da origem social. As opiniões são desencontradas. Parauns, Amós viria dos setores abastados. Para outros, seria ori­ginário dos setores empobrecidos. Ambos se apóiam nosmesmos textos, em especial 1,1 e 7,14-15. Aqui, não possoesmiuçar os argumentos em debate. Devo restringir-me aoresultado. 31 Constato que Amós sobrevive à base de trêsocupações: pastor de ovelhas (cf. 7,15), pastor de gado/va­queiro (cf. 7,14, veja também 1,1) e talhador de sicômoros"(cf. 7,14). Por ocasião de sua atuação profética em Bete1,sobrevivia como vaqueiro e, simultaneamente, como traba­lhador sazonal, tarefa para pobres." Pelo visto, temos delocalizar Amós entre a gente empobrecida do campo" quetratava de ganhar a vida à base de diversas ocupações e de

30 Veja STROEBE, Hans Joachim. Der Prophet Amos und sein bürgerlicher Beruf Wortund Dienst, v. 5, Bethel, Kirchliche Hochschule Bethel, 1957, pp. 160-181.

31 Confira meu ensaio publicado em Estudos Teológicos, mencionado anteriormente nanota 25, em especial as pp. 138-144.

32 WRIGHT, T. J. Amos and the "Sycomore Fig". Vetus Testamentum, v. 26, Leiden, E.Brill, 1976, pp. 362-368.

33 Veja a literatura mencionada em RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 257-258.

34 Curiosa é a posição de GÓMEZ, Humberto Jiménez & CARDONA, Lucia VictoriaHernández. Profetas. Medellín, Universidad de Antioquia, 1992. Dizem que Amósnão era ni inculto, ni pobre (p. 88). No período anterior, porém, haviam dito que oprofeta era pastor, boyero, agricultor, cultivador de sicómoros, era rude.

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trabalhos sazonais. Amós é parte do campesinato pauperi­zado" pela economia expansionista de Jeroboão 11, no Nor­te (e de Ozias, no Sul). Hoje seria uma espécie de bóia-fria.

Pode um pobre como Amós ser fonte de literatura?Pode! A literatura reunida em nosso livro tem até uma dasprincipais marcas da literatura popular: agrupa pequenostextos, breves ditos, perícopes, que evidentemente nasceramcomo fala. A situação do campesinato sob o tributarismo épropícia até mesmo para a criação de literatura."

Enfim, ao enfocarmos a pessoa de Amós, não devería­mos isolá-la em demasia. Não se pode individualizá-la. Porum lado, o aparecimento do livro de Amós só se toma viávelquando se percebe o quanto nosso profeta estava rodeado deamigos e discípulos. O relato de 7,10-17 é um exemplo des­se carinho que outros tiveram por Amós. Contudo, tambémos panfletos proféticos, hoje integrados ao livro (pensemosem 1,3-2,16, em 3,3--4,3, em 7,1-9; 8,1-3; 9,1-4), tiveramsua origem na roda dos adeptos do nosso visionário. E opróprio surgimento do livro dá provas dessa comunhão pro­fética, da qual Amós era parte. Por outro lado, o próprio con­teúdo da fala pública de nosso mensageiro/hermeneuta nãoparece ser uma criação individual, fruto de uma só cabeçapensante e crente. Pensemos nas denúncias formuladas nosditos. Elas não só refletem as experiências pessoais de umindivíduo, mas também são as experiências de dor de todo

35 Outra é a opinião de R. Martin-Achard: "a sua [=Amós] atitude não era, portanto,determinada por reivindicações sociais que o tocassem diretamente" (Os profetas e oslivros proféticos. São Paulo, Paulus, 1992. p. 42 [Biblioteca de Ciências Bíblicas]).

36 Veja BAND, Ion. La formación social "asiática" en la perspectiva de la filosofia orien­tal antigua. In: BARTRA, Roger. El modo de producción asiático. 3. ed., México, Era,1975. pp. 297-316.

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um conjunto social camponês extorquido. Amós é porta-vozde suas dores. É um de seus companheiros.

Em resumo, Amós é gente do campo. Parece ser umtrabalhador migrante. Sua origem em Técua propiciou-lhe oacesso à cultura popular e à inteligência clânico-sapiencial,bem como às tradições pastoris e a algum conhecimento daatividade comercial, já que sua terra natal fazia limite com odeserto e, simultaneamente, estava próxima à rota comer­cial pelas montanhas (Bersabéia-Hebron-Jerusalém).

Retrospectiva

Tematizamos a pessoa de Amós. Em retrospectiva pre­tendo sintetizar os principais acentos dessa nossa segundareflexão. Destaco o seguinte:

Amós, por certo, não constitui o tema do livro quecontém suas palavras. A memória delas prevalece sobre apessoa dele.

A vocação desempenha papel decisivo em sua argu­mentação teológica. Poder-se-ia falar de um processo voca­cional, com início (cf. 7,15), maturação (cf. 7,1-9; 8,1-3;9,1-4), atualidade (cf. 3,8).

Em Amós, como em outros profetas, vocação se apro­xima de coação. Testemunha a necessidade de proclamar apalavra de Javé (cf. 3.8). Essa "necessidade" de viver noscaminhos do dabar realiza, como que contraditoriamente,vida em liberdade capaz de enfrentar as autoridades do Es­tado e da própria religião templar.

Amós é vidente, é "profetizador", é mensageiro. Nega­se a assumir o título de profeta, certamente porque este esta-

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va vinculado aos santuários. Em sua atuação, a palavra écentral.

Não deveríamos querer aproximar Amós de um alto­falante, mero transmissor. Atua em liberdade e em respon­sabilidade própria. É um hermeneuta que relê as tradições etoma a realidade transparente.

Amós é a voz do campo. É parte do campesinato em­pobrecido pelo projeto expansionista, implantado porJeroboão II, no Norte, e por azias, no Sul.

Se neste estudo insisti em enfocar a pessoa de Amós,então nisso também me orienta um interesse atual. Ao con­cluir, gostaria de explicitá-lo.

A -ênfase na pessoa é parte das tradições dos últimosséculos. As sociedades se imbuíram de uma nova concep­ção da pessoa e de sua liberdade. Essa nova visão da digni­dade do sujeito e da pessoa teve a parceria das Igrejas. Elafaz parte, hoje, de nossa cultura e autocompreensão. Nin­guém de nós quererá dispensar, nem na fé e nem na política,a categoria dos direitos humanos. A gente é sujeito!

Os movimentos populares de nossos dias fazem, a seumodo, experiência similar. A experiência pessoal é um doscomponentes vitais das organizações populares. Trata-se deexercitar em grupos de ação nosso caráter de sujeitos dascoisas. Trata-se de uma reapropriação da história, nas pe­quenas tarefas e nas lutas mais elementares. Os grupos po­pulares de Igreja representam um espaço dentro da grandegama de manifestações em busca de espaço pessoal, cultu­ral e social. Esses grupos eclesiais às vezes são algo como

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laboratórios, em que pessoas redescobrem sua dignidade,exercitam caminhar de rosto erguido, com destemor diantedos senhores e opressores.

Há relatos incríveis sobre a descoberta da dignidadepessoal. A sistemática exploração dos pobres arrasa-os fisi­camente pela fome e desnutrição e aniquila-os psiquicamentepor lhes imputar a culpa por sua situação. Desintegra as pes­soas por fora e por dentro. Quando essa gente empobrecidapassa a entender sua própria vida, quando começa a inter­pretar sua histórica opressão, passa a adquirir sua dignida­de. Exercita-se no enfrentamento de seus verdugos em casa,no trabalho, na sociedade. Experimenta pequenos ensaiosde partilha e cooperação. Há testemunhos comoventes so­bre estas redescobertas da dignidade pessoal.

O Amós de hoje são esses pobres, mulheres e homensque descobrem sua dignidade de gente e assumem seus pas­sos. Por isso não poderíamos deixar de acentuar que Amósera gente. Ele é gente.

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3. "Eliminarei o reino de sobre a faceda terra"

Estou aqui no Lago da Pedra. A situação é muito difícil:

No dia 2 de outubro (de 1985) foi invadido pelos policiaiso povoado de Serra Bonita. Foram presos 15 homens e le­vados justamente à capela católica do lugar. Lá ficarampresos e foram maltratados por dois dias. Da casa de Deusos policiais fizeram uma cadeia, botando a placa "delega­cia" na porta da igreja. O líder do sindicato dos trabalhado­res rurais de Serra Bonita foi forçado a cavar um túmulo edepois foi enterrado até o pescoço. Outros foram queima­dos com cigarros.

No dia 23 de novembro foi invadido o povoado de Pau Santopor 115 soldados, a maioria com farda. Bagunçaram e da­nificaram todas as casas. Botaram mulheres e crianças afugir pelo mato. Os policiais rodearam a casa do dirigenteda comunidade. Mas ele estava trabalhando na roça longeda casa. Em casa só ficara o pai dele. Este velho de 76 anosquis esconder uma espingarda que se encontrava na casa.Mas, enquanto fugia pelos fundos com a espingarda, foimorto com cinco tiros. Os jornais e a rádio mentem quandodizem: "Os policiais tiveram que enfrentar os homens atiros. O mais furioso era um velho. Não havia outro jeito,exceto matá-lo".

No dia seguinte, 24 de novembro, foi invadido o povoadoda Serraria por cerca de 100 soldados. Todos fugiram. Che-

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gou um caminhão da prefeitura para tirar os restos de ar­roz e feijão das casas. Porcos e galinhas foram levadospelos próprios policiais. O pretexto desta barbárie foi amorte de um jagunço que fora mandado pelo grileiro paraofender os lavradores. Os poderosos fazem de tudo paraexpulsar o povo da terra. Até o governador do Maranhãocolabora dizendo: "De segunda a sexta-feira sou gover­nador, mas de sexta a segunda sou fazendeiro" (carta deum seminarista).

Verificamos o contexto. Atentamos para o mensageiro.Porém, nem a reflexão sobre o contexto e nem o estudo sobreo mensageiro chegam ao âmago da questão. Na atuação deAmós e em seu livro, a mensagem é o decisivo. O sentidode Amós coincide com o sentido de suas palavras. São estassuas palavras que, agora, passam a requerer nossa atenção.

A ameaça caracteriza a mensagem de nosso profeta.Podemos verificá-lo, por exemplo, na cena de confrontaçãocom Amasias (cf. Am 7,10-17). Ao denunciar seu oponentejunto à corte em Samaria, o sacerdote Amasias constata que"a terra não pode suportar suas palavras" (7,10). Seus ditosinsuportáveis justamente consistem na ameaça de morte dosoberano Jeroboão II e da deportação de Israel. A relevânciada ameaça também salta aos olhos no próprio cabeçalho dolivro. Lá é dito que o texto a seguir contém o que Amós "viucontra Israel" (1,1). Esses dois exemplos mostram quão cen­tral é a previsão de desgraça.

Por certo, não podemos isolar esse conteúdo do res­tante do livro. Não é a única faceta. A ameaça precisa sercorrelacionada aos demais aspectos, tais como a denúncia ea utopia. A ameaça é central, mas a profecia de Amós não seresume nela.

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Se a previsão de infortúnios é tão relevante, a definiçãomais exata de seu conteúdo passa a ser uma tarefa decisiva.Qual é o conteúdo da ameaça? Quem é ameaçado? Essasinquietações nortearão os próximos passos desta reflexão.

Os ameaçados - Uma listagem

Sobre a mesa temos, pois, uma questão simultanea­mente central e complexa. Sua definição refletir-se-á decisi­vamente sobre o todo da interpretação de Amós. Parece-meaté que nos dias atuais a compreensão da ameaça é o calca­nhar-de-aquiles da avaliação das "palavras de Amós". Porisso, convém progredir a passo lento na sondagem da pro­blemática. Proponho iniciar mediante um levantamento dedados. Inicialmente apresento uma listagem dos ameaçados.

A tarefa é espinhosa. Via de regra, nosso profeta nãose atém a detalhes ao ameaçar. Para seus ouvintes, tudo eraclaro, pois Amós agregava um gesto ou aludia a um episó­dio conhecido de todos. Para nós, leitores atuais, as coisas jáficam mais complicadas. E cada passagem acaba tendo di­versas possibilidades de interpretação. Nesse emaranhado,tomo a liberdade de me servir de atalhos e simplificações.

Começo pelo mais evidente. Um dos ameaçados atéconhecemos nominalmente. Refiro-me a Amasias e à suafamília, intimidados com extermínio e desonra (cf. 7,16-17).Amasias era o sacerdote do santuário estatal de Betel (cf.7,10.13). O prenúncio de desgraça igualmente diz respeito asacerdotes em 9,1-4. Estes também são apresentados comoculpados em 2,8. O aniquilamento de sacerdotes, dos luga­res sagrados e de sua clientela é previsto em diversos ditos(cf. 3,14; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 6,5[?]; 8,9-10.14; 9,1-4). Pelo

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que se observa, Amós dá realce ao fim do templo, do sacer­dócio, dos ritos festivos, da freguesia do sagrado.

Parece que Am 8,4-8 visa a comerciantes. A eles tam­bém se dirige o ataque em algumas outras passagens (cf.1,9; 2,6). O comércio também estaria na mira em 5,7.12;6,12; 7,7-8[?]. Indiretamente, é aludido nas passagens quefocalizam o luxo promovido com mercadorias importadas(cf. 3,12.15; 6,4). Amós sentencia, pois, concomitantementeo comércio externo e o interno. Em suas predições, não háespaço para comerciantes.

Juízes são penalizados em algumas passagens. Refe­rem-se a eles 2,6 e 5,12. Possivelmente 5,10 visa a juízes,mas também inclui testemunhas. De maneira mais genéricadiversos versículos realçam a precariedade da jurisprudên­cia; a justiça está deitada por terra (cf. 2,7; 5,7.15.24; 6,12).Sabemos que, nos tempos de então, os processos eram feitosnas próprias vilas e cidades, sem ingerência direta do Esta­do. O júri era composto pelos "homens livres" da localida­de, constituindo-se de caso para caso. Não parece que tenhahavido juízes profissionais.' Quando Amós sentencia, pois,juízes, testemunhas e tribunais corruptos, certamente temem vista o controle do judiciário exercido pelos mais abas­tados dentre os "homens livres".

Sob juízo são colocados os senhores de escravas e deescravos. Escravos são mencionados em 1,6; 2,6; 8,6 e, tal­vez, em 5,16. Escravas em 2,7 e 8,3.

I Veja KOEHLER, Ludwig. Die hebrãische Rechtsgemeinde. In: Der hebrãische Mensch;eine Skizze, Tübingen, Mohr 1953. pp. 143-171; MACHOLZ, Georg Christian. DieStellung des Kõnigs in der israelitischen Gerichtsverfassung; Zur Geschichte derJustizorganization in Juda. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 84,Berlin, Walter de Gruyter, 1972, pp. 157ss e 314ss.

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Chocante é o sarcasmo de Amós contra a elite da capi­tal Samaria (cf. 4,1-3). Essa ameaça às "vacas de Basã" estásituada no contexto de outras dirigidas às pessoas que vi­vem em meio ao luxo, às festanças e às mordomias. A profe­cia recai preferencialmente sobre o centro do poder, Samaria,e entre os governantes. Refiro-me, além de 4,1-3, a passa­gens como 3,12.13-15; 5,11; 6,1-7.8.11.

Latifundiários aparentemente não são mencionados.Talvez pudéssemos querer encontrá-los em 5,11 e 5,16. To­davia, em 5,11 o "fraco"/magro, em todo caso, não é umsem terra. É antes um agricultor dependente. Em 5,12 o "la­vrador" provavelmente é uma espécie de diarista, possivel­mente um sem terra. Essa ausência de uma menção maiscontinuada de latifundiários só surpreende se a gente enten­de a sociedade israelita de então nos moldes do feudalis­mo.? Como se trata, porém, de tributarismo,' é normal essesilêncio de Amós a respeito de latifundiários.

Destaque todo especial Amós dá ao exército. Privile­gia-o em suas ameaças. Do primeiro ao último capítulo há um

2 Compare ALT, Albrecht. Der Anteil des Kõnigtuns an der sozialen Entwicklung in denReichen Israel und Juda; Micha 2,1-5 - Gés Anadasmós in Juda. In: Kleine Schriften

zur Geschichte des Volkes Israel. 2. ed., München, C. H. Beck'sche Veriagsbu­chhandlung, 1968. v. 3, pp. 348-372, 373-381. Veja também DiAZ, José Luis Sicre.Diversas reacciones ante el latifundismo en el Antiguo Israel em Simposio BíblicoEspaiiol. Madrid, Universidad Complutense 1984. pp. 393ss. Veja agora também HAHN,Noli Bernardo. Miquéias 2,1-5; profecia e luta pela terra - Uma leitura da influênciada situação histórico-social nas últimas décadas do século VIII a.C., em Judá na vidada antiga ordem tribal. São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assun­ção, 1992, 156 p. (dissertação de mestrado), e do mesmo autor, A profecia de Miquéiase meu povo; memórias, vozes e experiências. São Bernardo do Campo, UniversidadeMetodista de São Paulo, 2002. 283 p. (dissertação de doutorado).

J HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo, Paulus,1982. pp. 18-20 e 54-64 (Pesquisa & Projeto, I); BARTRA, Roger. Tributarismo e pos­se da terra na sociedade asteca. In: GEBRAN, Ph., org. Conceito de modo de produção.Rio de Janeiro, Paz e terra, 1978. pp. 157-180 (Coleção Pensamento Critico, 24).

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tom antimilitar: 1,3.6.13; 2,7.14-16; 3,9-11; 5,1-3; 6,1-3.8­10.13-14; 9,10. Podemos dizer, sem sombra de dúvida, queem Arnós o exército é um dos principais alvos da ameaça.

Urna constatação corno a anterior requer explicação.Por que o exército recebe tamanha atenção? Para alcançarurna resposta consistente, ter-se-á de colocar o problema noquadro geral das previsões do profeta. Aí não basta que sim­plesmente se faça urna listagem dos círculos ameaçados pornosso profeta. Antes, porém, de encaminhar essa nova tare­fa, proponho urna retrospectiva sobre o que já alcançamos.

Vimos que diversos grupos sociais são atingidos pelasprofecias de destruição de Amós: sacerdotes, comerciantes,juízes, donos de escravos, elite da capital e, em especial,militares. São afrontadas as pessoas que vivem em ouro, luxoe suntuosidade. Todavia, esses ameaçados encontram-se nãosó na cúpula do poder (elite da capital Samaria, sacerdotescorno Amasias, comandantes militares), mas também nospovoados e vilarejos camponeses (juízes, comerciantes, do­nos de escravos)."

Exército, cidade e templo

Mediante a listagem anterior, verificamos haver urnavariedade de ameaçados. Perguntemo-nos, agora, se é pos­sível estabelecer urna seqüência, se há prioridades. Há o quecatalise os diversos grupos postos sob ameaça? Há um tetocomum para a diversidade observada?

4 Ressaltou-o, ao meu ver, corretamente o ensaio de FENDLER, Marlene. Zur Sozialkritikdes Amos - Versuch einer wirtschafts- und sozialgeschichtlichen Interpretationalttestamentlicher Texte. Evangelische Theologie, v. 33, München, Christian Kaiser,1973, pp. 32-53.

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Acabamos de constatar que deve haver esse teto co­mum. Pois, nos ditos, o exército é especialmente visado. É ogrupo mais malhado pelos prenúncios, No livro, existe atéuma composição dedicada a perscrutar caminhos e desca­minhos do exército. Trata-se de Am 1,3-2,16, o chamadociclo dos povos. Essa composição em muito se assemelhaao ciclo das visões (confira item As visões, p. 33). Tambémé uma conjugação de cinco ditos,' dispostos em pares (1,3-5+ 1,6-8 e 1,13-15 + 2,1-3), tendo seu auge no quinto (2,6­9.13-16). A seqüência dos povos, ao meu ver, obedece aotrajeto das rotas comerciais. O primeiro par (1,3-5 + 1,6-8)agrupa Damasco e Gaza (e as demais cidades filistéias). Essaseqüência deve-se à rota comercial que, a partir da Mesopo­tâmia, segue por Damasco, pela Planície de Jezrael e pelaterra dos filisteus, até o Egito. O segundo par (1,13-15 +2,1-3) reúne Amon e Moab, por onde transita, vindo de Da­masco, a rota transjordaniana que se dirige ao Golfo deÁcaba. No centro, rodeado por essas duas rotas (Damasco­Filistéia e Damasco-Amon-Moab), encontra-se Israel, parao qual converge a principal atenção do ciclo. Nesse Israel, oprofeta denuncia esmagamento e opressão social, em grandequantidade (2,6-9). Israel tritura seus pobres, seus própriosirmãos. Nos povos vizinhos, o profeta denuncia crimes deguerra (cf. 1,3.6.13; 2,1). As nações trituram a populaçãocivil de seus inimigos derrotados. Pelo que já se pode ver,ao menos entre os povos o exército é o principal culpado.

5 Apesar da contestação de RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh,Gütersloher Verlag, 1971. pp. 118ss (Kommentar zum Aiten Testament, 13/2), a ar­gumentação apresentada por SCHMIDT, Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktiondes Amosbuches - Zu den theologischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwortund seinem Sammler. ZeitschriftjUr die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin,Walter de Gruyter, 1965, pp. 174-183, ao meu ver, continua evidenciando que 1,9­10.11-12; 2,4-5.10-12 são adendos deuteronomísticos.

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Passemos, agora, a observar com maior atenção o papel dosmilitares no todo do ciclo. No primeiro par (1,3-5 + 1,6-8)só o exército é acusado. Seus crimes são de guerra, como jámencionei: massacre da população civil de Galaad (cf. 1,3)e deportação de populações derrotadas (cf. 1,6). A ameaçatalvez ainda nem mencione esses culpados. Menciona: a di­nastia, os castelos, as cidades, os muros e os soberanos (cf.1,4-5.7-8). Não há, pois, referência explícita ao exército. Éevidente, porém, que ele está incluído. Afinal, a destruiçãode soberanos e cidades implica anterior ou simultâneo esfa­celamento das forças armadas. Com base nisso poder-se-iaaté supor que a ameaça ao "povo de Aram" (1,5) e ao "restodos filisteus" (1,8) diz respeito ao exército, pois o PrimeiroTestamento seguidamente usa o termo "povo" como equi­valente de "grupo armado"? e pensa num resto do exércitoderrotado ao se valer do conceito do "resto" (cf. Am 5,3;6,8-10).7 À luz do conjunto do ciclo, essas suposições atin­gem o grau do provável. Progridamos, pois, em direção aesse todo. No próximo, segundo par (1,13-15 + 2,1-3), no­vamente só o exército é denunciado. Seus crimes são deguerra: chacina de mulheres grávidas (cf. 1,13) e sacrilégiode cadáver (cf. 2,1). E dessa vez a ameaça já se refere aofuturo dos militares. Como no par anterior, novamente sãoelencados como passíveis de destroçamento: cidades, mu­ros, soberanos e "príncipes" (Almeida). Esses "príncipes"podem ser tanto altos funcionários (ministros) quanto coman­dantes militares. Estes últimos, em todo caso, estão incluí­dos em 2,3, pois aí são mencionados "todos (!) príncipes".

6 Veja HULST, A. R. Pueblo. In: JENNI, E. & WESTERMANN, C., orgs. Diccionario teoló­gico manual dei Antiguo Testamento. Madrid, Cristiandad, 1985. v. 2, pp. 387-388.

7 Compare MUELLER, Werner E. & PREUSS, Horst Dietrich. Die Vorstellung vom Restim Alten Testament. Neukirchen, Neukirchener, 1973.

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A referência ao exército, porém, já está em 1,14. Nessa pas­sagem, a demolição de muros de Rabá e de seus castelosocorre em meio à guerra: "Com alarido de dia de batalha ecom turbilhão de dia de tempestade". Conquista de muros ecastelos evidentemente só se toma possível após a derrotado exército defensor. O mesmo encontramos em 2,2, ondese repete, à semelhança de 1,14, a alusão ao cenário da guer­ra: "Em estrondo, alarido e som de trombeta". A diferençareside em que, agora, é expressamente mencionado quemsucumbirá: "Morrerá Moab". Estranha que não seja citado oexército ou um de seus setores, como ocorre em 2,14-16,mas que "Moab", isto é, o conjunto social seja ameaçado. Aessa questão teremos de retomar no decorrer da avaliaçãodo quinto e mais importante dito: 2,6-9.13-16, que forma oápice do ciclo. Até aí Amós certamente terá contado com asimpatia de seus ouvintes e leitores; afinal, é bom que al­guém fale mal dos estrangeiros. A partir deste último dito,no mínimo terá perdido a complacência do poder das armas,mas não só deles, como veremos. A denúncia (cf. 2,6-8) res­tringe-se a questões internas. Apresenta sete cenas da opres­são dos pobres. Essa esmagação dos fracos é especialmenteescandalosa porque nega, na prática, a história salvífica, naqual Javé justamente se evidenciara como intransigente de­fensor dos frágeis contra "cedros" e "carvalhos" (2,9). Aameaça (cf. 2,13-16) começa com uma figura de dificil com­preensão (cf. 2,13), mas é bem explícita em sua parte princi­pal (cf. 2,14-16). Nela somente é atingido o exército: sua"infantaria" ("o ágil", "o forte", "o valente", "o ligeiro depés"), que era o setor mais numeroso, sua "artilharia" ("oarqueiro"), sua "cavalaria" ("o que vai montado a cavalo"),ou melhor: "o que conduz o cavalo" (isto é, o carro de com­bate) e, por fim, sua "oficialidade" ("o valente") e seu

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"generalato" ("o mais corajoso entre os valentes"). Todosserão assolados pelo medo e devorados pela morte, com ex­ceção de "o mais corajoso entre os valentes" (o "general"ou/e "rei"?), que em desonra total "fugirá nu". Os militaressão o único alvo da ameaça nessa culminância do ciclo dospovos. Observávamos o quanto o todo dessa composição decinco ditos encaminha-se para o auge. Nos dois primeirospares, a denúncia é qual um refrão antimilitar. E concomi­tantemente, de par em par, a ameaça vai explicitando, cadavez melhor, o aniquilamento dos senhores das armas, atéque esse crescendo alcança em seu apogeu seu som maislímpido: "O mais corajoso entre os valentes fugirá nu"! Umavez que se percebe que o exército está no núcleo de interes­ses do ciclo e, em particular, do dito sobre Israel, passa-se aestranhar ainda mais o conteúdo de 2,6-8. Afinal, nenhumasó dessas sete denúncias diz expressamente respeito a mili­tares. Culpados pela opressão dos pobres são: juízes, comer­ciantes, senhores de escravas, sacerdotes. O início do v. 7("pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos") talvezpudesse aludir à violência policial-militar, mas isso não pas­sa de uma possibilidade. Como explicar o descompasso en­tre os culpados pelos casos denunciados (que não são mili­tares) e os ameaçados (que somente são gente do exército)?Por que os militares são castigados por crimes que pessoal­mente nem cometeram? Respondo: o exército viabiliza e dácobertura aos que espoliam e arrasam os pobres. Os milita­res garantem juízes, comerciantes, senhores e sacerdotes emsuas investidas contra escravas e camponeses espoliados.Estruturalmente participam, pois, da pilhagem dos fracosdenunciada em 2,6-8. Aliás, isso que acabamos de afirmar opróprio dito de 2,6-16 chega a formular. Nele são denuncia­dos e ameaçados "os crimes de Israel". Nesse dito, "Israel"

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evidentemente não são os pobres, mas sim os militares eseus aliados. Que aqui "Israel" seja, no concreto, o exército,fica confirmado também em 2,2, onde semelhantementeMoab é a força militar. Portanto, para Amós o exército é nãosimplesmente um setor da sociedade, mas também um deseus núcleos responsável pela manutenção do todo da estru­tura de dominação. Conforme esse caráter constitutivo atri­buído ao exército no ciclo dos povos, também as demaispassagens, em que Amós ameaça os senhores das armas,crescem em significado. Nelas, nosso profeta ataca não umsegmento social qualquer, mas sim o âmago. Aniquila o abri­go dos espoliadores.

Pelo visto, nossa intuição de ir à cata do teto comumdos ameaçados é promissora. Já alcançamos um resultadoefetivo. Prossigamos nesse trilho.

Constatação similar à que fazíamos a respeito do exér­cito pode ser feita em relação a mais outro objeto de amea­ças. Refiro-me à cidade. Amós sempre a vê negativamente(9,14 é adendo). Seu destroçamento é iminente. Os ditosasseveram-no repetidas vezes: 1,4-5.7.14; 2,2; 3,9-11.12; 4,1­3.4; 5,3.5.6.16; 6,1.8; 7,7-8. É, pois, flagrante que a profeciade Amós representa uma contestação à cidade. Esse dadocresce em significado quando se observa que a cidade reúnee aglutina, em seus muros, os setores fustigados por Amós.Lá estão: governantes (cf. 1,4-5.8.14-15; 2,3; 6,1-7; 7,10­17), os castelos dos abastados (cf. 1,5[?].8[?].14-15; 2,2-3;3,11; 5,3; 6,8-10), os ricos e abastados (cf. 3,9-11.12.13-15;4,1-3[.6]; 5,11-16.17; 6,4-6.11), os templos e sacerdotes (cf.3,13-15; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 7,10-17; 8,1-3; 9,1-4), os do­nos de escravas (cf. 8,3), o palácio real (cf. 8,3), ajurispru­dência injusta (cf. 5,12.15), os exploradores (cf 3,9-10; 4,1;

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5,11; 6,3). Enfim, a cidade é o abrigo para quem a profeciaprevê a desgraça. É como se fosse o catalisador de todos osameaçados. A gente começa a entender mal nosso profetaquando passa de largo por esta evidência: em Amós, a cida­de é a sede dos ameaçados, ninho do mal. Existe até umacomposição literária que agrupa vários ditos referentes àprincipal das cidades de Israel. Refiro-me ao ciclo anti­Samaria de Am 3,3-4,3 (confira item "Rugiu o leão - Javéme agarrou, p. 40). Nele, a capital é apresentada como fontedo terror social contra os fracos e como alvo de todos mauspresságios. Cinco é novamente o número dos ditos reunidospela coletânea. Sua disposição, porém, é outra da que tínha­mos no ciclo das visões (cf. Am 7-9) e no dos povos (cf. Am1-2). Lá a composição convergia para o final. Aqui, em 3,3­4,3, o peso está no começo. A porta de entrada já causa im­pacto: 3,3-6.8 legitima o que se segue. Avaliza-o. A profeciaé qual coação; é reação à fala de Javé (cf. 3,8). Um de seusconteúdos principais é anunciar a desgraça que, da parte deJavé, sobrevirá à cidade (cf. 3,6). O primeiro dito (cf. 3,9­11)explicita essa "desgraça na cidade" e, simultaneamente,faz as vezes de uma condensação dos ditos subseqüentes.Esses acrescentam detalhes ao que aquele já dissera em sín­tese. A denúncia (cf. 3,9-10) é bastante abrangente: os "opri­midos" são alvos de "enorme terror" (v. 9), de "violência" e"rapina" (v. 10). Esse contundente diagnóstico é válido tam­bém com vistas a 3,12 e 3,13-15, em que o acento recai so­bre a desgraça vindoura, sem que haja nova denúncia. Estareaparece no último dito (cf. 4,1-3), em que os "oprimidos"(3,9) são definidos como os "magros" e "pobres" (4,1) e o"enorme terror" (3,9), como "oprimir" e "dobrar" (cf. 4,1).A última denúncia (4,1) apresenta, pois, novos detalhes, masnão traz uma nova diagnose em relação a 3,9-10. Ainda as-

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sim, seu papel é relevante: realça no final da composiçãoque a desgraça que sobrevirá à cidade tem sua causa na ex­torsão dos pobres. Por ofender os fracos, a capital não temfuturo. A falta de perspectiva para a cidade é enfocada pelasameaças. Novamente 3,9-11 contém o prenúncio de maiorabrangência, em seu v. 11.A "desgraça" (3,6) destroçará: "aterra", "tua força" e "teus castelos". Os dois primeiros re­ferem-se, respectivamente, ao território do Estado de Israel(= "a terra") e ao exército (= "tua força"); o terceiro ("teuscastelos") é evidente por si. Embora as denúncias digam res­peito só à própria capital (cf. 3,9-10; 4,1), as ameaças de3,11 vão muito além dessa cidade específica. Por conseguinte,os três ditos subseqüentes adicionam não novidades, masdetalhes e aspectos. O primeiro (cf. 3,12) focaliza os quevivem no luxo. O versículo talvez pense especificamentenos que governam, deleitando-se no melhor dos confortos("os que se assentam" = governantes"). O segundo (cf. 3,13­159

) prioriza, no v. 15, tamanho, luxo e sofisticação das ca­sas, que devem ser aqueles castelos, mencionados em 3,9-11.Além disso, também são demolidos os altares (a menção deBetel poderia ser posterior10). O último dito (cf. 4,1-3) atém­se à elite de Samaria, pois as "vacas de Basã" não são só umfeminino, são também, e em especial, um masculino, pois

8 Quanto a essa interpretação de "os sentados", confira GOITWALD, Norman K. As tri­bos de Iahweh; uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. São Paulo,Paulus, 1986. pp. 517ss (Bíblia e Sociologia, 2).

9 A delímitação e o sentido exato tanto de 3,12 quanto de 3,13-15 estão em debate. Arespeito, confira RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 164-165; MITTMANN,Siegfried. Amos 3,12-15 und das Bett der Samarier. Zeitschrift des DeutschenPoldsüna-Vereins, v. 92, Wiesbaden, Komissionsverlag Otto Harrassowitz, 1976,pp. 149ss.

10 WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton; 2 Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener,1969. pp. 237ss (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2).

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os sufixos que se referem às "vacas" estão no masculino."Dela nada restará. Vê-se, pois, que os três ditos finais (3,12+ 3,13-15 + 4,1-3) esmiúçam a ameaça, formulada de ma­neira ampla em 3,9-11. Portanto, Amós e os redatores desseciclo não vêem a cidade de modo isolado. Vêem-na em suasrelações, em seu significado social. Analisam-na como es­trutura de dominação. Por isso, falam dela como lugar quetem castelos com muitas riquezas (cf. 3,10), que mantémexército (cf. 3,11), que propicia vida doce a senhores ele­gantes (cf. 3,12.15; 4,1), que tem seus templos (cf. 3,14),que garante seu território (cf. 3,11), que funciona como an­tro que extorque camponeses e os empobrece. Essa cidade­capital curiosamente não é só designada de Samaria. Outrostítulos bem mais amplos podem ser-lhe atribuídos: "filhosde Israel" (que em 3,12 não são todos, mas apenas os quevivem em regalias), "casa de Jacó" (3,13) e, até mesmo, "Is­rael" (3,14). Isso lembra o ciclo dos povos em que uma en­tidade específica (no caso de 2,6-16 o exército) era qualifi­cada com um conceito amplo (no caso igualmente "Israel").A esse fenômeno teremos de retomar mais adiante (confiraitem Os governantes e o Estado monárquico, p. 73). Porora, basta que se repita o seguinte: em Amós, a cidade não éuma grandeza fortuita, mas organizada e estruturada.

Nela, o altar (cf. 3,14) e o templo desempenham pa­péis muito relevantes. O santuário citadino - e só este, por­que Amós não se refere a lugares sagrados menores do cam­po (cf. 2,8a[?]; 7,9[?]) - recebe destaque (confira item Osameaçados - Uma listagem, p. 59). Existe até uma compo­sição que culmina na demolição do templo. Refiro-me ao

'I I'FX)(J, José Luiz Gonzaga do. () clamor do pobre pelajustiça: tradução popular doprofeta Amós. São Paulo, 1978. p. 17.

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ciclo das visões: Am 7,1-3+ 7,4-6+ 7,7-9+ 8,1-3+ 9,1-4,em cujo auge fala-se do templo (confira item As visões,p. 33). Nesse ciclo e nas demais menções a lugares sagrados,Amós é antagônico aos templos. No ciclo das visões, esseantagonismo chega a ser expresso de modo chocante porfalar da figura quase grotesca de que Javé/profeta está para­do sobre o altar (localizado na frente da construção templar)para demolir o santuário a pancadas. Haveria maneira maiscontundente para falar da oposição da profecia ao templo?O mesmo fervor perpassa as demais passagens e reflete-se,em especial, na confrontação com Amasias (cf. 7,10-17). Oconflito entre Amós e Amasias não está no âmbito pessoal,mas é uma particularização da oposição profética ao tem­plo. No texto de 7,16-17, isso fica muito claro, por exemploquando o final do v. 17 constata que a sorte de Amasias serácompartilhada por Israel (cf. v. 11). Sim, justamente esseepisódio revela por que a profecia de Amós é irreconciliávelcom o santuário. Este representa os interesses da cidade. Naprópria terceira visão (cf. 7,7-9), pode-se observá-lo quandoa demolição do muro (?) da cidade (cf. 7,7-8) implica a ruínade "altos" e "santuários". E o próprio Amasias acaba formu­lando a questão crucial ao impedir a profecia de Amós emBetel com a justificativa: "Este é santuário do rei, esta é acasa do reino"! O simples fato de nosso profeta centrar fogocontra Betel (cf. 3,14[?]; 4,4-5; 5,4-5; 7,9.10-17) mostra quesua questão era não o templo em si e em geral, mas sim oque está amarrado aos interesses da cidade e do reino. Ora,no reino do Norte, em Israel, historicamente o principal cen­tro cúltico não estava na capital (como ocorria no Sul, emJudá, com Jerusalém). Estava em Betel (e em Dã), comopode-se verificar em 1Rs 12,26-33. Essa estreita relação entrereino e templo não se deve só à necessidade de encontrar

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razões religiosas e divinas para a existência do Estado e oscaprichos dos soberanos. (Este certamente também era ocaso, como pode-se deduzir das palavras de Amós [cf. 8,14]e de salmos como o Sl2 ou 45.) Deve-se principalmente aopapel do templo como lugar de arrecadação dos produtos daroça (cf. 8,1-3; 2,13[?]), por meio de festas de peregrinaçãoe de sacrificios (cf. 4,4-5; 5,4-5.21-27). No tributarismo, ostemplos veiculam a espoliação dos camponeses." Os cen­tros religiosos aos quais Amós se opõe radicalmente são osque agilizam a exploração dos pobres e a sustentação religiosados soberanos. Esses templos não estão à parte, são partedestacada de todo um sistema de opressão que, agora, deve­mos passar a entender em seu conjunto. Antes, porém, denos encaminharmos para essa tarefa decisiva, cabe-nos olharpara trás, para o caminho que acabamos de percorrer.

Iniciáramos alistando os grupos ameaçados (confiraitem Os ameaçcados - Uma listagem, p. 59). Coube-nosconstatar, agora, que há evidente inter-relação entre essesgrupos. Ativemo-nos a três setores: militares, cidadãos e sa­cerdotes; exército, cidade e templo. Verificamos que entreessas três instituições há correlação; apóiam-se mutuamentee são opostas aos pobres, à gente do campo. Igualmente,verificamos que esses grupos e instituições são agrupados,seguidamente, sob um mesmo conceito. "Israel" era um de­les. Nessa direção proponho perguntar adiante: em Amós,os ameaçados chegam a constituir um só conjunto? Qualseria essa grandeza aglutinadora?

12Veja HOUTART, Religião e modos de produção pré-capitalistas, cit., em especial pp.18-20 e 54-64.

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Os governantes e o Estado monárquico

Acabamos de anotar que o templo está integrado numsistema maior. Algo semelhante verificávamos em relaçãoao exército e à cidade. Essas instituições assemelham-se aengrenagens de um conjunto. Contudo, sua integração não éautomática. Um santuário, a rigor, nada tem que ver com oexército. Há um grupo social específico, cuja tarefa resideem inter-relacionar diferentes segmentos sociais; sua fim­ção é dar coesão a cidade, exército, templo, comércio. Estoupensando nos governantes. E é deles que, agora, devemospassar a falar.

Até aqui não dei destaque a essa dimensão. Ela, po­rém, é central. É o que leio no próprio livro de Amós. Aúnica cena que tematiza o profeta (cf. 7,10-17) põe-no emconflito com o governante. Amós se tomou insuportável para"a terra", como diz Amasias (cf. 7,10). Ao agredir o rei, oprofeta passou dos limites. Com base nessa constatação,convém auscultar, antes de mais nada, o todo da profecia deAmós a respeito de sua palavra aos governantes.

Verifico que são três os principais contextos literáriosnos quais Amós tematiza as autoridades governamentais:

Cito, primeiro, o ciclo dos povos, anteriormente deta­lhado (confira item Exército, cidade e templo, p. 62). Nosquatro ditos contra os povos vizinhos, há constantes amea­ças contra os soberanos: 1,4.5.8.15; 2,3. Tamanha insistênciano aniquilamento de reis permite-me perguntar se aquele"mais corajoso entre os valentes" de 2,16, que antes definía­mos como "general", não poderia ser identificado tambémcom o rei israelita que, afinal, também era comandante doexército.

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Passo, depois, para 6,1-7. Considero provável que essaunidade seja urna pequena composição de breves ditos pro­féticos." Em todo caso, esse hino fúnebre ("ai") denuncia(vv. 1-6) e ameaça (v. 7) os governantes de Samaria, "a casade Israel" (v. 1b). Em sua soberba, adoram a doce vida (vv. 4­6a, cf. 3,12), mostram-se incapazes de avaliar a situação in­ternacional (v. 2) e nacional (vv. 3a.6b) e só servem parapromover violência (vv. 3b, cf. 3,9-10). Essas cabeças dogoverno serão as cabeças da deportação (v. 7).

E chego, por fim, ao complexo que mais malha as au­toridades. Em seu centro está a narração de 7,10-17: Amós éenxotado do santuário estatal de Betel porque ameaçou avida do rei, isto é, nas palavras de Amasias, o profeta cons­pirou contra o governante (v. 10). Essa narrativa é circunda­da por duas visões (7,7-9 e 8,1-3) que reforçam e radicalizamos prenúncios de desgraça contra o soberano: 7,9 agoura amorte da "casa/dinastia de Jeroboão", e 8,3, o extermínio detodo palácio.

Os governantes são os articuladores de cidade, tem­plo, exército. Transformam-nos numa engrenagem. E Amósnão os poupa. Em especial, profetiza morte ao rei. E comisso escandalizou.

Todavia, não se faz jus a Amós e nem mesmo se con­segue perceber a radicalidade última de sua profecia se agente entende sua ameaça corno restrita à pessoa de go­vernantes ou a algumas instituições. Essa questão nevrálgica

i3 Há muitos indícios que apontam para o caráter de composição dessa unidade. Algunsdeles estão mencionados em WOLFF, Dodekapropheton: 2 Jocl und Amos, cit., pp.314ss e, em especial, em WEISER, Artur. Das Buch der zwolfKleinen Propheten. 5.ed., Góttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, pp. 175s5 (Das Alte TestamentDeutsch, 24).

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precisa ser discernida com especial carinho. Certas pessoassão ameaçadas de morte, como é o caso do rei, de Amasias,das "vacas de Basã", isto é, das autoridades de Samaria.Determinadas instituições são eliminadas e varridas do mapa,como as cidades, a capital, o exército, os templos, o palácioreal, a dinastia, os governantes. Sim, a rigor, todas as insti­tuições citadinas e dominantes são arrasadas. Entretanto, nemas pessoas e nem as instituições são liquidadas como fenô­menos isolados. São destruídas como um só conjunto, comoestando vinculadas umas às outras. E a esse todo Amós cha­ma de "Israel" ou de "a terra". Tratamos de verificá-lo emalgumas passagens.

Já constatei que, em 2,6-16, "Israel" engloba o exérci­to e os grupos sociais por ele protegidos (juízes, senhores deescravos, sacerdotes etc.). É aqui sinônimo de reino.

O mesmo sentido "Israel" assume no ciclo anti-Samaria(3,3---4,3). Nele, aparecem, além da capital: o exército (cf. 3,11),os castelos (cf. 3,9-11.15), o altar (de Betel? 3,14), governantesde vida fácil (cf. 4,1), designados de "filhos de Israel" em3,12. O conceito de "Israel" (3,14) refere-se a todos eles. Equi­vale novamente à monarquia, ao Estado. (A expressão "casade Jacó" tem quase o mesmo sentido em 3,13.) "A terra",mencionada em 3,11, é o território desse Estado.

O mesmo significado de "a terra" encontro em 7,10(cf. v. 12). Na disputa com Amasias (cf. 7,10-17), "Israel"novamente é o reino (vv. 11.16-17), em especial a elite diri­gente, já que via de regra só esta era afetada por deportações(cf. 6,7; 7,11.17). Nesse caso, "Israel" é sinônimo de "casade Israel" (v. 10) e de "casa de 1sac" (v. 16).

Restrinjo-me a essas passagens. Estão no lugar de ou­tras tantas, nas quais em especial o conceito de "Israel" é

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interpretável como reino, Estado. 14 Por isso, o dito de 9,8 ­seja ele uma formulação deAmós" ou de seus discípulos16 ­

pode ser considerado representativo:

Atenção!

Os olhos do Senhor Javé são contra o reino pecador.

Eliminá-lo-ei de sobre a face da terra!

Contudo, não destruirei de todo a casa de Javé.

Dito de Javé .

Nessa passagem (diferente que em 3,13), "casa deJacó" justamente é o não-reino. É o povo. Para ele há futuro.Para o reino, só resta a destruição e, na linguagem de 3,6, a"desgraça". 17

Enfim, Amós não só se opõe à pessoa dos governantes.Não só propõe extirpar os abusos das instituições dos domi­nantes. Não prevê substituições de reis ou melhoramentosde estruturas citadinas. Ele, efetivamente, prenuncia a eli­minação do reino, isto é, da monarquia, do Estado e de tudoque este representa. "EI tema decisivo de Amós era el anun­cio del derrumbamiento del Estado de Israel.'?"

14 Cf. SCHWANTES, Milton. Profecia e Estado - Uma proposta para a hermenêuticaprofética. Estudos teológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982,pp. 131-134.

15 RUDOLPH, Joel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 171ss.

16 WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 395ss.

17 Veja sobre a temática CRUESEMANN, Frank. Der Widerstand gegen das Kõnigtum; Dieantikõniglichen Texte des Alten Testamentes und der Kampf um den frühenisraelitischen Staat. Neukirchen, Neukirchener, 1978 (Wissenschaftliche Mono­graphien zumAlten und Neuen Testament, 49).

18 WOLFF, Hans Walter.La hora de Amós. Salamanca, Sígueme, 1984. v. 92, p. 27 (NuevaAlianza). H. W. Wolfffaz essa afirmação em relação ao redator de Am 7,10-17.

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Esperança para os ameaçados?

Há alguma esperança para os atingidos pelas ameaçasde Amós? Há alguma sobrevida para os objetos da desgraçaanunciada pelo profeta? Essas perguntas requerem um nãoestridente e um sim consolador como respostas.

Não há dúvida nenhuma de que não resta esperançaalguma para as instituições ameaçadas, por exemplo para oexército (cf. 2,14-16; 6,8-10) ou para o templo (cf. 9,1-4).Anteriormente já o evidenciei. Não vejo necessidade de re­peti-lo. Concluo, pois, constatando que para "Israel" (reino,monarquia/Estado) não resta esperança de acordo com a pro­fecia do mensageiro de Técua."

Ainda assim resta um futuro. Há esperança para pes­soas. Até acho que Amós é bastante explícito quanto a esseresto de esperança possível até para quem está vinculado àsinstituições opressoras e radicalmente ameaçadas. Veri­fiquemo-lo passo a passo.

De início aponto para algumas passagens que usualmen­te não seriam mencionadas no contexto dessa nossa perguntasobre a esperança para os ameaçados. Chama-me a atençãoque Amós se preocupe com o enterro de opressores, com osdonos da cidade e das terras (cf. 5,16-17) e com os senhoresdo palácio real (cf. 8,3). Poder-se-ia dizer que tais cenáriosfúnebres querem realçar o prenúncio da desgraça. E isso porcerto confere (cf. 5,18-20). Ainda assim permanece a pergun­ta sobre se por meio dessas cenas não fica também garantidacerta dignidade ao defunto. Afmal, ele é condignamente se­pultado. E isso já é alguma coisa. Basta conferir Jr 22,18-19.

19 "A morte está presente em toda essa mensagem" (MARTIN-ACHARD, R. Os profetas eos livros proféticos. São Paulo, Paulus, 1992. p. 50 [Biblioteca de Ciências Biblicas D.

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Poder-se-ia, pois, dizer que, em Amós, o opressor defunto nãoé "desumanizado". Nesse contexto, convém apontarparaAm2,1, em que nosso profeta denuncia Moab por haver transfor­mado em calos ossos de um rei. O morto, também o rei, me­rece respeito. Lógico, isso não vem a ser grande expectativa.Todavia, no contexto do que a seguir esboçarei não deixa deter seu significado.

Em vários textos, verifico que dentre os opressoresameaçados há os que sobrevivem. Observo-o até mesmo em2,14-16: de alguns do exército não é dito, expressamente,que morrerão e do "general" ("rei"?) até se constata a fuga.No entanto, as principais passagens que contam com sobre­viventes são as que anunciam deportação: 1,5.15; 4,3[?];5,5.27; 6,7; 7,11.17; 9,9. Nisso não há grande vantagem.Enfim, os deportados de 587 a.C. comprovam que tambémexilados podem ser portadores de grandes esperanças. Ora,foram tais exilados e deportados que, relendo o livro deAmós, agregaram-lhe esperanças para a "tenda de Davi" epara a terra das promessas (cf. 9,11-12.13-15)

A partir daí, 5,3 alcança um significado bem especial.Nele é profetizado que do exército das cidades só restará adécima parte. Para um exército isso significa derrota arrasa­dora. Para os soldados que conseguirem retomar do campode batalha, porém, isso significa nova chance de vida. Para umEstado, a décima parte do exército equivale a nada; para aspessoas envolvidas significa tudo.

E, afinal, Amós ou ao menos seus discípulos, falavamda eventualidade e possibilidade, do "talvez" da compaixãodivina (cf. 5,14-15). Apelam para que se busque Javé, a fimde evitar o pior (cf. 5,6). Os padrões éticos e teológicos des­ta busca são reafirmados ou tidos por conhecidos. É o que se

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lê em: 2,9; 3,10; 5,4-5.6.14-15. Em 5,24 encontra-se a frasecentral que condensa a exigência de vida:

Corra como água o direito!

A justiça como ribeiro perene!

Amós contrapõe essa reivindicação às festas e aos ri­tos sacerdotais. Segui-la significaria vida, certamente tam­bém para a gente do templo.

Portanto, há esperança, não para o reino e suas mani­festações, mas para pessoas, também para as que vivem a ilu­são da soberba do Estado (cf. 6,8 !). Para os ameaçados, essasexpectativas não são nada alvissareiras e, por Amós, nemmesmo chegaram a ser formuladas com destaque. Era-lheexigido profetizar preferencialmente desgraça para a cidade(cf. 3,6.8) e ruína para o reino de "Israel" (cf. 7,9.10-17).

Retrospectiva

Neste estudo tematizei a mensagem de Amós. Bus­quei detalhar o sentido da ameaça, o conteúdo central de suamensagem. Em retrospectiva sintetizo as descobertas feitas.

O eixo central da ameaça é a eliminação do reino, damonarquia, do Estado. Esse é, de fato, o teto que organiza eabriga os diversos segmentos, estamentos ou setores amea­çados. Amós o designa de "Israel". Prenuncia, pois, a des­truição desse "Israel".

Dentre as organizações ou instituições integradas a"Israel" e visadas pelos maus agouros proféticos, merecemdestaque especial: a capital, o exército e o templo. As trêscomposições ou também chamados ciclos são dedicados a

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estas três instituições. O ciclo dos povos (1,3-2,16) alcançaseu auge no destroçamento do exército. O ciclo anti-Samaria(3,3--4,3) detalha a ruína da capital Samaria. E o ciclo dasvisões (Am 7-9) tem seu ápice na demolição do templo.

A ênfase principal recai sobre o fim de "Israel" e dasinstituições citadinas de dominação. Amós, porém, não dei­xa de realçar também as instâncias da vida campesina e al­deã que reproduzem no âmbito local os interesses do Esta­do. O ataque ao comércio e à jurisprudência merece ser es­pecialmente mencionado nesse contexto.

Na interpretação, parece ser decisivo não isolar asdiversas ameaças, mas abrigá-las sob o teto comum da eli­minação do reino. Caso contrário, pode ocorrer que os pre­núncios de desgraça ou não são generalizados como se vi­sassem a toda a população de Israel ou são segmentadosem uma grande quantidade de ameaças sem interligação. Asuspeita hermenêutica de que se faz necessário avaliar amensagem de desgraça numa perspectiva política eviden­cia-se, pois, como muito decisiva para a compreensão damensagem do visionário de Técua.

Não há futuro para os ameaçados como tutelados peloreino. Há esperança, porém, para pessoas dentre os ameaça­dos. No entanto, Amós não se esmerou em pormenorizaresse aspecto de sua mensagem. Suas palavras estavam prin­cipalmente dirigidas "contra Israel" (Am 1,I).

Não se pode querer transpor essa visão de Amós demaneira direta para nossa situação. Vivemos em outro mo­mento histórico. O Estado dos dias de Amós não é idêntico

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ao de nossos dias. As perspectivas políticas de então não sãoiguais às nossas.

Amós fala no mundo tributário. O tributarismo conhe­ce uma visão de contestação e crítica radicais ao Estado."Essa era uma experiência histórica possível dentro do modode produção tributário. O próprio Israel dos séculos XIII-XIsurgiu de uma tal experiência. Reuniu os mais diferentes gru­pos palestinenses e extrapalestinenses para a formação de umsistema tribal. Os que vieram do Egito e os que se agregaramoriundos daprópria Palestina provinham do tributarismo. Nasmontanhas, esses grupos conscientemente não reproduziramo sistema tributário, isto é, não constituíram rei e Estado (Jz8,22-23), mas optaram pelo sistema tribal. Formaram, pois,um sistema social antiestatal." Nessa tradição estão as pala­vras de Amós. É água do poço do tribalismo.

Certamente não estamos em condições de repetir essaexperiência. Ainda assim, as palavras de nosso visionário co­locam sobre a mesa a questão do poder e do Estado. E o fa­zem numa perspectiva bem mais crítica do que habitualmen­te a situamos à luz de Rm 13 ou de lPd 2. Não seria hora denos colocarmos mais decididamente na tradição de Amós?Nossa situação latino-americana, marcada pela opressão or­ganizada de nossos povos, não está a requerer uma re-criaçãodo Estado, à luz da crítica do trabalhador sazonal de Técua?

20 CLASTERS, Pierre. A sociedade contra o Estado. In: PINSKY, Jaime, org. Modos de pro­dução na Antigüidade; textos. São Paulo, Global, 1982. v. 2, pp. 61-79; CRUESEMANN,Der Wzderstand gegen das Kõnigtum, Die antikdniglichen Texte des Alten Testamentesund der Kampfum den frühen israelitischen Staat, cit.

21 GOTTWALD, Norrnan K. As tribos de Iahweh; uma sociologia da religião de Israel li­berto 1250-1050 a.C, São Paulo, Paulus, 1986 (Bíblia e Sociologia, 2); BOFF, Clodovis.Como Israel se tomou povo? Evolução de Israel do estado de clã até a monarquia.Estudos Bíblicos, v. 7, Petrópolis, Vozes/Sinodal, 1985, pp. 7-41.

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4. "Vede quão grande terror"

Aqui, neste barco, ninguém quer a sua orientação.Não temos perspectiva, mas o vento nos dá direção.

A vida que vai à deriva é nossa condução,

Mas não seguimos à toa, não seguimos à toa.'

Nos perseguieron en la noche

Nos perseguieron en la noche,

nos acorralaronsin dejamos más defensa que nuestras manos

unidas a millones de manos unidas.

Nos hicieron escupir sangre,nos azotaron;

llenaron nuestros cuerpos con descargas eléctricas,

y nuestras bocas las llenaron de cal;nos dejaron noches enteras junto a las fieras,

nos arrojaron en sótanos sin tiempo,

nos arrancaron las unas;

con nuestra sangre cubrieron hasta sus tejados,hasta sus propios rostros,

pero nuestras manos

siguen unidas a millones de manos unidas.'

1 ANTUNES, Arnaldo. Voltepara o seu lar, 1997~

2 NAJLIS, Michele. Nos perseguieron en la noche, Nuevo Amanecer Cultural, Managua,ano 6, n. 263 (sábado 29 de junho de 1985), p. 4.

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o livro de Amós coleciona palavras. Estas são o quehá de mais decisivo nesse profeta. A mensagem de Amóstem a primazia por sobre sua pessoa e seu contexto.

Ao ser enxotado de Betel pelo sacerdote Amasias (cf.7, I0-17), o motivo era sua mensagem. Suas palavras toma­ram-se insuportáveis para "a terra", o território do Estadomonárquico de Israel (v. 10). Era, pois, a mensagem de des­graça a que maior impacto causou. Pôs de sobressalto osinteresses de elites. Na reflexão anterior, estudávamos esseaspecto central do que Amós "viu contra Israel" (Am 1,1).Viu a eliminação do reino. Tamanha radicalidade não eraconhecida na profecia anterior a Amós. Não a encontramosnem mesmo em Elias ou Eliseu (cf. 1Rs 17-2Rs 10)3 e mui­to menos em personagens como Natã (2Sm 7; 12; lRs 1).4Com a ameaça ao próprio Estado, começa algo até entãodesconhecido na trajetória do ministério profético.

Contudo, esse prenúncio da eliminação do reino nãoacontece isolado. Não aparece desvinculado da crítica a essemesmo reino. A radicalização da ameaça e o aprofundamentoda crítica parecem-se muito com dois lados de uma mesmamoeda. Andam juntos. Complementam-se.

Nesta nossa quarta reflexão, deteremo-nos na denún­cia de Amós. Qual é o conteúdo de sua crítica? Que pessoassão defendidas por suas acusações?

J Quanto à diferença entre a profecia "literária" e a "pré-literária", compare a pesquisade JEREMIAS, Jõrg. Kultprophetie und Gerichtsverkündigung in der spiiten KõnigszeitIsraels. Neukirchen, Neukirchener, 1970 (Wissenschaftliche Monographien zum Altenund Neuen Testament, 35).

4 Veja SCHWANTES, Milton. Natã precisa de Davi - Na esperança da Igreja profética.Estudos teológicos, v. 18, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1978, pp. 99-118.

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"Total terror!"

Além de delinear a ameaça, praticamente cada dito denosso profeta contém a denúncia. Esta seguidamente é bemmais extensa que a ameaça. É o que, por exemplo, constatoem 3,9-11 e 6,1-7. Onde as acusações não chegam a ser for­muladas explicitamente, como, por exemplo, em 3,12 ou5,18-20, ao menos estão implícitas. Portanto, a temática dadenúncia perpassa a profecia de Amós.

Inicialmente nos dediquemo a refletir sobre seu con­teúdo. Que questões são enfocadas? Qual é o conteúdo res­saltado?

Junta-se a isso a pergunta a respeito das pessoas atin­gidas pelos desmandos denunciados. Em defesa de quemvai o visionário?

Tratemos, pois, de obter, antes de mais nada, um qua­dro geral da denúncia de Amós. E, depois, de acordo com avisão geral, haveremos de definir melhor as vítimas dos cri­mes denunciados.

Primeiro: ao ler o texto, percebe-se que diversas ques­tões são denunciadas. Observo as seguintes:

A exploração econômica, em geral, ocupa lugar dedestaque: 3,10.12.13-15; 4,1; 5,11; 6,4-5.11. Há "opressão"(3,10) generalizada. Essa exploração é expressa em verbos,tais como: "entesourar"/"amontoar" (3,10), "oprimir" (3,9;4,1), "extorquir tributo" (5,11).

Grande é a agressão contra pessoas: 2,7; 3,10; 4,1; 5,12;6,3; 8,4. "Violência" (3,10; 6,3) está na ordem do dia. Apa­recem verbos como "pisar" (2,7; 8,4), "esmagar" (4,1), "afli­gir" (5,12). Pessoas chegam a ser enxotadas (cf. 7,12-13) eeliminadas (cf. 8,4). A brutalidade controla os espaços.

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Populações civis indefesas são massacradas: 1,3.6.13;2,1. Os exércitos andam altivos e aterrorizam (cf. 6,2.13-14).A arrogância militar espraia-se pelas ruas.

Gente livre é feita gente escrava, quer pela guerra (cf.1,6), quer pela subjugação social (2,6; 8,6). Vende-se e com­pra-se gente. Escravas são usadas (cf. 2,7; 8,3).

E a corrupção da justiça grita aos seus céus: 2,6.7a;5,7.10.12.15; 6,12. Processos são cancelados por ordens su­periores (cf. 2,7a; 5,7; 6,12). Testemunhas são molestadas(cf. 5,10), juízes têm preço (cf. 2,6; 5,12).

Todas essas denúncias são de caráter social. E até mes­mo ao se opor ao culto, Amós o faz movido pela injustiçasocial, promovida pelo templo. Já o verificávamos na inter­pretação do ciclo das visões em Am 7-9 (veja item As vi­sões, p. 33). Isso também é evidente em outras passagens:2,8; 4,4-5; 5,4-5.21-27; 7,9.10-17; 8,14. AcrÍlica social estátão no âmago das denúncias de nosso profeta que é até dis­cutível que nas versões mais antigas das memórias de Amóshaja referência a uma crítica à idolatria, como em Oséias(cf. 8,5-6). Em Amós, há referências à idolatria em 2,7b.8;5,26; 7,9; 8,14. É possível, porém, que aí se trate de acrésci­mos e releituras posteriores.'

Portanto, nas denúncias de Amós, o social é central eprioritário. Praticamente é sua única acusação "contra Israel"

5 Quanto aos detalhes, confira as respectivas páginas em WOLFF, Hans Walter.Dodekapropheton; 2 Joel und Amos. Neukirchen, Neukirchener, 1969 (BiblischerKommentarAltes Testament, 14/2). Vejatambém WOLFF, Hans Walter. La hora de Amós.Salamanca, Sigueme, 1984. 1'1'. 185-200 (Nueva Alianza, 92). Veja também BARSTAD,

Hans M. "Thc Religious Polemics of Amos - Studies in the Preaching ofAm 2,7b-8;4,1-13; 5,1-27; 6,4-7; 8,14. Supplements to Vetus Testamentum, v. 34, Leiden, E. J. Bril1,1984. Quanto aAm 5,21-27, confira KrLPp, Nelson. Meditação sobreAm 5,21-24. Pro­clamar libertação, v. 7, São Leopoldo, Sinodal, 1981,1'1" 76-81.

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(Am 1,1). Em 3,9, encontro uma expressão que, nas pala­vras do próprio profeta, poderia sintetizar sua denúncia: "totalterror"." Quem são os "objetos" desse inusitado terror?

Segundo: "Israel" ou - como, por exemplo, em Mq3,1-4 - "o povo" não é mencionado como "objeto" do ter­ror. As vítimas são outras. Diversos termos as designam.Alguns deles repetem-se várias vezes. Proponho tomá-loscomo pontos de partida em nossas observações.

Em 2,6-7; 4,1; 5,11.12; 8,4.6, são usados diversos ver­betes para identificar as pessoas que sofrem o terror. Trata­se de sinônimos. São paralelos entre si, como, por exemplo,vê-se comparando 2,7 com 4,1. São permutáveis, como com­prova a comparação de 2,6 com 8,6. Afirmações similares- no caso a respeito da corrupção da justiça -- podem serfeitas usando ora um (cf. 2,7) ora o outro (cf. 5,12) verbete.Portanto, os termos aplicados aos aterrorizados, nos textosde antes, não se referem a diferentes pessoas ou grupos, masdesignam as mesmas pessoas ou grupos segundo diferentesângulos. Realçam aspectos.

Para perceber essas nuanças, temos de atentar tambémpara a terminologia. Comecemos, pois, por definir o sentidodos termos usados por Amós ao se referir às vítimas.

Três ou até quatro palavras entram em questão. Cadauma ressalta uma faceta específica, diferenciadora.

Com a maior freqüência é usado o termo'ebyon. Nosingular, encontramo-lo em 2,6; 8,4.6. No plural, em 4,1 e5,12. A etimologia é discutível. O mais provável é que se

6 Quanto ao sentido exato dos termos confira, WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel undAmos, cit., p. 231.

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deva traduzir 'ebyon por "pobre", "aquele que tem necessi­dade".' Nesse caso, o termo mais freqüente em Amós si­multaneamente seria o mais abrangente.

Quase tão freqüente como o "pobre" é o daI. No sin­gular, só aparece em 5,11. No plural, seu uso se repete portrês vezes: 2,7; 4,1; 8,6. Este daI, sem dúvida, é o "fraco", o"magro". Sua aparência fisicajá denota sua condição social(cf. Gn 41,19; 2Sm 13,4; Is 11,4).

Só duas vezes Amós se refere ao 'ani, sempre no plu­ral, em 2,7 e em 8,4. Este 'ani é o "oprimido" (cf. Is 11,4).

Esses três termos são, em Amós, os mais importantespara designar as pessoas e os grupos, em defesa dos quaisvai sua profecia. "Pobres", "fracos"/"magros" e "oprimidos"também se encontram agrupados como sinônimos em ou­tras passagens veterotestamentárias, como em SI 72,2-4.12­13; Is 10,2; 14,30.32. Esses, porém, não são os únicos ver­betes relevantes em nosso contexto.

Antes de mais nada, cabe citar o sadiq, mencionadoparalelo ao "pobre" em 2,6 e 5,12. O vocábulo sadiq enfocanão só a situação socioeconômica, mas, em especial, a soli­dariedade social. É sadiq quem contribui e constrói comuni­dade (Gn 38,26), quem não tem o que temer em tribunais. Éo "justo", o solidário, o que vive pelo "direito" e a "justiça"(5,7.15.24; 6,12). Para Amós, o "pobre" é o "justo".

Mencione-se que há duas referências a escravas. Amenina moça de 2,7b certamente é uma escrava, da qual seaproveitam o patrão e seu filho. As "cantoras do palácio" de

7 Confira detalhes em SCHWANTES, Milton. Das Recht der Armen. Frankfurt, Peter Land,1977. pp. 29-34 (Beitrãge zur biblischen Exegese und Theologie, 4).

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8,38 também são escravas, desta vez do âmbito da corte.Quiçá também o 'ikar de 5,16 esteja nesse nível. Esse 'ikaré um lavrador sem terra." Enfim, convém não deixar demencionar 3,9, em que a capital Samaria é denunciada, emâmbito internacional, devido a seu "terror total" e aos"oprimidos" em seu interior. Aí o conceito de "oprimidos"assemelha-se ao de "pobres". Ambos são abrangentes e in­clusivos. É possível que isso valha em especial para o de"oprimidos", em 3,9. Mais adiante retomaremos à questão.

Por ora podemos dar por concluída nossa tarefa inicial.Perguntávamos pelo conteúdo da denúncia. Consta-nos serde ordem social. Inquiríamos sobre as vítimas. Pudemos defi­ni-las como "pobres" e "oprimidos", "magros" e "justos".'?É evidente, porém, que não basta diferenciar o vocabulário.Aí recém começa a tarefa mais relevante, qual seja a de loca­lizar socialmente os "oprimidos". Quem são, em Amós, asvítimas em termos sociais? Esta é nossa próxima tarefa.

8 Veja KIRST, Nelson. Amós; textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teolo­gia, 1981. pp. 65-71 (Exegese 1/1).

9 GESE, Hartmut. Kleine Beitrâge zum Verstãndnis des Amosbuches. Vetus Testamentum,v. 12, Leiden, E. J. Brill, 1962, pp. 432-436. Veja também RUDOLPH, Wilhelm. Joel­Amos-Obadja-Jona, Gütersloh, Gütersloher, 1971. pp. 196 (Kommentar zum AltenTestament, 13/2).

lO TAMEz, Eisa. A Bíblia dos oprimidos; a opressão na teologia bíblica. São Paulo, Paulus,1980 (Libertação e Teologia, 5); GERSTENBERGER, Erhard. Querer. In: JENNI, E. &WESTERMANN, C., orgs. Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento. Madrid,Cristiandad, 1978. v. I, co!. 61-68; MARTIN-AcHARD, R. Ser mísero. In: JENNI &WESTERMANN, orgs., Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, cit., v. 2,co!. 435-447; BOTTERWECK, Johannes G. Pobre. In: JENNI & WESTERMANN, orgs.,Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, cit., v. I, co!. 28-43; FABRY,H. J. Dal, em Theologisches Wôrterbuch zum Alten Testament. Stuttgart, Kohlhammer1977. v. 2, co!. 221-244; MAAG, Victor. Text, Wortschatz und BegrifJswelt des BuchesAmos. Leiden, Brill 1951. pp. 228-235; KOCH, Klaus. Die Propheten I; AssyrischeZeit. Stuttgart, Kohlhammer, 1978. pp. 55-62 (Urban-Taschenbücher, 280). Veja tam­bémnota 7.

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Quem são os pobres?

Os textos permitem estabelecer, com certa facilidade,os contornos negativos de quem sejam os pobres. Não sãomendigos, porque, se fossem, não poderiam ser fonte de abas­tança, como se vê por exemplo em 3,9-10 e 4,1. Não sãopropriamente escravos, porque 2,6 e 8,6 apresentam-noscomo pessoas que estão sendo transformadas em escravos.Por certo, também não são gente da cidade, porque, se assimfossem, a ameaça à cidade não deveria ser tão genérica, comoa que lemos em 3,3-4,3 ou em 6,8-10, e nem faltaria umamenção a órfãos e viúvas, que aparecem em textos oriundosda cidade, como comprova a profecia de Isaías (Is 1,23; 10,2).Essas delimitações já estão indicando a direção na qual de­vemos buscar os "pobres", "magros" e "oprimidos" dos quaisfala Amós.

Eloqüentes são as passagens que mencionam os po­bres no contexto da jurisprudência. Refiro-me às seguintes:

Compram por prata o justo,

o pobre por um par de sandálias (2,6).

Entortam o caminho dos oprimidos (2,7).

Hostilizam o justo,

tomam suborno,

rejeitam os pobres no portão (5,12).

Emjogo está a jurisprudência no portão (cf. 5,12.15),a que tinha lugar em cada vila e cidade, decidindo autono­mamente sobre as questões jurídicas que surgissem. A elatinham direito todos os "homens livres" da localidade. "Ho­mens livres" eram, basicamente, os que tinham acesso à terra,

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à herança. 11 Os "pobres" de certo modo ainda pertencem aesses "homens livres" e por isso suas causas jurídicas sãodecididas no portão e não na casa, onde eram definidos, pelaautoridade patriarcal, os processos de mulheres, escravos eoutros dependentes (cf. por exemplo, Gn 16 e a carta a Filê­mon). Embora os pobres ainda tenham direito ao portão, suasituação social e econômica é tão precária e a dos donos deprata e subornos tão avantajada que os primeiros são facil­mente sobrepujados e marginalizados pelos últimos.

Esses pobres são a fonte das riquezas citadinas. São,na verdade, gente empobrecida. São carentes, porque foramespoliados e explorados, porque alguém lhes está tirando ocouro (cf. Mq 3,1-4). Verifico que três passagens se detêmem nos dar um quadro dessa pauperização: 3,9-10; 4,1; 5,11.Em 3,10, o senhorio de Samaria é denunciado, pois

amontoam/entesouram violência e opressão em seus castelos.

Nesse versículo, "violência" e "opressão" são os meiospelos quais os "oprimidos" (v. 9) são espoliados. E essa ex­torsão visivelmente é rentável: resulta em montes e tesourosnos castelos senhoriais. Quadro semelhante apresenta-nos afamosa denúncia de 4,1 às elites da capital, pois

oprimem os fracos/magros,

esmagam os pobres e dizem aos donos deles:

"Trazei para que bebamos!".

II Veja KClEIlLER, Ludwig. Dic hebrãische Rechtsgemeinde, em Der hebrãischeMensch;eine Skizze. Tübingen, Mohr, 1953. pp. 143-171. Confira também nota 1 do capítulo 3.

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A abastança da gente fina vem do esmagamento dos"fracos" e desdentados, dos "pobres" e doentes. Há quempense que esses "fracos" e "pobres" seriam vinhateiros," sebem que seja mais provável que a menção ao beber sejaparadigmática para a gula das elites. Essa gula usufrui osfrutos do trabalho dos "oprimidos". Com base em 5,11, che­ga-se a entender um pouco o funcionamento desta extorsão.Aí é posta à luz do dia a origem da suntuosidade de quemvive em "casas de cantaria":

Extorquis renda do fraco,

dele exigis tributo de trigo.

Os termos hebraicos usados nesse versículo infeliz­mente são de dificil compreensão, como se verifica na com­paração de traduções. Ainda assim, não resta dúvida de que,aqui, o "fraco"l"magro" é um lavrador que não produz ape­nas para outrem, como sucede com o escravo ou o assala­riado. O "fraco" ainda detém parcela de sua produção e, emespecial, a produz livremente. A espoliação acontece em re­lação não ao ato de produzir, mas sim ao produto acabado.(A palavra usada para "trigo" refere-se, especificamente, aoproduto acabado.) Ao lavrador também se referem 5,16 e ­outra passagem de dificil interpretação - 2,8. Portanto, asvítimas, em cuja defesa vai Amós, são pobres por trabalha­rem. São justos.

A situação desses lavradores empobrecidos é grave. Em8,4-6, obtemos um quadro de sua fome. Denunciam-se aí oscomerciantes, em particular talvez os pequenos mercadores.

12 KOCIl, Klaus. Die Entstehung der sozialen Kritik bei den Profethen. In: Wolff, HansWalter, org. Probleme biblischer Theologie. München, Christian Kaiser, 1971. p. 243.

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Os "pobres" aparecem como fregueses principais dessesvendedores afoitos e gananciosos. Espoliados e empobreci­dos tomam-se presa fácil, quando necessitam adquirir deterceiros sua comida de cada dia. São aniquilados (v. 4), trans­formados em mercadoria (v. 6), em escravos. A escravidãodos lavradores deve ter abalado nosso profeta de maneiramuito intensa. Afinal, menciona-a diversas vezes. Denunciaa transformação de pobres em escravos por causa de suasdívidas e por causa de crimes de guerra:

Vendem... o pobre por um par de sandálias (2,6).

Levaramcativotodopovoadoparao entregara Edom(l,6).

Poder-se-ia discutir se, na época, um par de sandáliasrepresentava uma bagatela, uma dívida de alguma monta ouaté uma dívida proveniente da aquisição da indumentáriaexigida de um jovem ao alistar-se no exército. Importa que,em 2,6, uma dívida é a causa da escravização (cf. 8,6; com­pare Ex 21,2-11). Em 1,6, o saque de guerra dá origem àescravatura. Amós contesta ambas as maneiras de subjuga­ção de "pobres" lavradores e de "povoados" campesinos. Jáem 8,6, a questão não é a transformação de lavradores emescravos, mas sim a comercialização destes últimos:

Para comprarfracos por prata

e pobres por um par de sandálias.

"Prata" e "par de sandálias" são o preço da mercado­ria chamada lavrador escravizado. A vida de tais pessoas eradegradante. Em 2,7 obtemos, num breve relance, um dosdestinos de uma menina moça escravizada:

Um homem e seu pai coabitamcom a mesmajovem.

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Essa "jovem" certamente era uma escrava, usada comoobjeto sexual pela família de seu proprietário. Cena seme­lhante visualiza-se em 8,3: as escravas cantoras animavamas festanças no palácio. Essas moças eram as filhas dos po­bres, dos lavradores empobrecidos.

Por fim, em sua fraqueza, os roceiros empobrecidosficavam à mercê da própria violência fisica dos mais abasta­dos. Sobreviviam em condições deprimentes:

Pisam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos (2,7).

Pisam o pobre (8,4).

Hostilizam o justo (5,12).

Esmagam os pobres (4,1).

Essa vida dos pobres é não-vida. É uma trajetória dedores e ofensas, em cujo topo está a própria eliminação docamponês massacrado pela extorsão de seus produtos, pelaescravidão de sua família e dele mesmo, por sua expropria­ção, por sua mercantilização. E, de fato, no fim do túnel daopressão, Amós denuncia o próprio genocídio:

Eliminam os oprimidos da terra (8,4).

o martírio de camponeses é, pois, a última etapa naescalada do ajuntamento de tesouros nos castelos (cf. 3,10).

Permanecem perguntas em relação a pormenores das di­versas passagens aludidas. Em traços gerais, porém, consegui­mos definirquem sejamas e os sofredoresemAmós. Sãoagentelavradora empobrecida! São os "oprimidosno campo" (8,4b).13

Quanto a essa interpretação de Am 8,4b, veja SCHWANTES, Das Recht .derArmen, cit.,pp.97-98.

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Em boa medida ainda são "homens livres" com acesso àterra/herança, à jurisprudência local e com algum controlesobre sua própria produção. Todavia, já estão tão empobre­cidos e endividados que são alijados do portão, feitos presasfáceis dos vendedores, transformados em escravos e escra­vas, e sujeitos a toda sorte de violência e massacre. Essescamponeses pauperizados e humilhados foram uma partesignificativa dentre a gente do campo nas terras de Israel,em especial nas Montanhas de Efraim. Sobre eles recaíamas despesas produzidas pelo expansionismo de Jeroboão 11.Pagam com sua vida pela grandeza do Estado. 14

À medida que definirmos a gente empobrecida, pelaqual bate o coração do profeta, como sendo o campesinatoisraelita e efraimita em fase de pauperização aguda, em con­seqüência das despesas causadas pelo longo regime jero­boânico, ganha em importância a pergunta por algum con­ceito abrangente que conjugue sob um mesmo teto: "pobres","fracos"I"magros", "oprimidos", "justos", "escravas", "la­vradores". Ao dar primazia ao termo "pobre" ('ebyon) , opróprio visionário opta pelo conceito que também abarca osdemais. Também constatamos que, em 3,9, Amós está a ca­minho de um designativo mais genérico, quando se refere,em geral, aos "oprimidos"." Algo semelhante valeria para

14 Compare ainda quanto à questão social em Amós: SCHOTTROFF, Willy. Der ProphetAmos - Versuch der Würdigung seines Auftretens unter sozialgeschichtlichem Aspekt,em Der Gott der kleinen Leute. 2. ed., München, Christian Kaiser, 1979. v. I, pp. 39­59 (em especial pp. 49-59); CRUESEMANN, Frank. Bewahrung der Freiheit; das Themades Dekalogs in sozialgeschichtlicher Perspektive, München, Christian Kaiser, 1978.pp. 28-35 (Kaiser Traktate, 78) [Ed. bras.: Preservação da liberdade; o decálogo numaperspectiva histórico-social. São Leopoldo, Sinodal, 1995.88 p.]

15 O termo hebraico em questão também poderia ser traduzido por "opressão" ou "ex­torsão". Cf. GESENIUS, Wilhelm. Hebrãisches und aramàisches Handwôrterbuch. 17.ed., Berlin, Springer, 1962. p. 625.

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8,4, em que a expressão "oprimidos no campo" alcança onível da generalidade. Essas observações já mostram queAmós soube aglutinar, sob uma conceituação mais ampla,os diferentes tipos de pessoas e os variados setores que de­fendia. E é no ciclo das visões que essa sua tendência en­contra a melhor expressão (confira item As visões, p. 33).Ao interceder pela plantação e pela herança camponesa, jus­tifica seu apelo com a pergunta: "Como subsistirá Jacó, poisé pequeno?" (7,2.5). Aqui, "Jacó" é a gente espoliada pela"ceifa do rei", ameaçada em sua sobrevivência pelos gafa­nhotos (v. 1) e pela seca que liquidaria a roça (v. 4). São,pois, o campesinato, os "pobres" e, na linguagem de 7,2.5,os "pequenos". Em 9,8, fala-se de modo similar da "casa deJacó". Próximo também está o "meu povo Israel" de 7,15(cf. 9,14). (De modo distinto, o profeta refere-se a "Jacó" e a"meu povo Israel" em outras passagens, como 3,13; 6,8; 7,8;8,3.7.) Intitulando o campesinato de "pequeno" "Jacó", nossomensageiro de Técua recorre à história do povo (Gn 26-36).Para Amós, Jacó, o "pequeno", era o verdadeiro Israel, oumelhor, na linguagem de 5,15, o "resto de José" (cf. 5,6).

As pessoas sofredoras não são, pois, uma grandezafortuita e amorfa. Não parecem ter sido citadas ao acaso.Pelo contrário. Chega até a haver uma conceituação abran­gente e ancorada nas raízes históricas do povo para caracte­rizar essas vítimas. Cabe, pois, a pergunta: Esse "Jacó", es­ses "pequenos" e "pobres" estavam organizados?

Lavradores organizados

A pergunta pela organização das pessoas defendidaspela profecia em geral e, em nosso caso, por Amós em espe­cial raramente tem sido feita. Aliás, até mesmo é irrelevante,

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urna vez que se vê nos profetas personalidades únicas e in­dividualidades incomparáveis. A questão, porém, está sen­do levantada." Impõe-se. Ao percebermos haver afinidadeentre o trabalhador sazonal Amós de Técua e os lavradoresempobrecidos, por ele defendidos, ternos de passar a per­guntar pelo nível de organização desse campesinato. A sus­peita é a seguinte: as denúncias têm sua origem tão-somentenas observações pessoais de nosso visionário, ou tambémestão enraizadas em organizações e movimentos sociais comos quais um profeta corno Amós tinha algum vinculo?" Háuma práxis social na base da crítica social?

O século VIII de modo algum foi um período de absolutasubjugação da gente do campo. Pelo que sabemos, aparente­mente não houve contestação ao longo reinado de Jeroboão II(787-746), naturalmente afora as profecias deArnós (760) e deOséias (755-721). Contudo, o sucessor de Jeroboão, seu filhoZacarias, já não pôde manter-se no poder além de seis meses(cf.2Rs 15,8). Seu sucessor, Selum, que só reinou um mês (cf.2Rs 15,13), visivelmente tinha suas bases políticas entre as pes­soas do campo. Podemos deduzi-lo tanto de sua provável ori­gem transjordaniana quanto da resistência que o povoado cam­ponês de Tersa opôs a Manaém (746-736), que depusera Selum.A desinstabilização da dinastia de Jeú - da qual Jeroboão II eZacarias foram os últimos representantes - foi, pois, uma con­quista dos lavradores. E esse era um dos conteúdos das amea-

16 Veja,por exemplo, BERGER, Peter. Carisma e inovação religiosa - A localização socialda profecia israelita. In: IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL, org.Profetismo; coletânea de estudos. São Leopoldo, Sinodal, 1985. pp. 86-106; WILSON,Robert R. Prophecy and Society in Ancient Israel. New York, Fortress Press, 1983.pp. 201-234 (The Bible and Liberation - Political and Social Hermeneutics).

17 Exercitei essa questão em SCHWANTES, Milton. Profeciae organização- Anotações à luzde um texto (Amós 2,6-16). Estudos Biblicos, v. 5, Petrópolis, Vozes, 1985,pp. 26-39.

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ças de Amós e Oséias. Entre esses profetas e os camponesesque em 747 desmontam a dinastia há, pois, flagrante sintonia.Há evidente convergência. No século VIII, porém, o ascensodo campesinato ec1ode, em 747, não só por ocasião da derroca­da do regime jeroboânico. Sua presença volta a fazer-se sentirna derrubada de Facéias, filho de Manaém, que, após dois anosde governo (735-734),é destituídopor galaaditas(cf.2Rs 15,25).E também a política instável do último soberano de Israel(= Norte), Oséias (732-722), em parte, devemos atribuir à in­fluência dos camponeses junto à corte.

Todavia, nesse período os agricultores aparecem comoforça política não só em Israel. O mesmo se dá em Judá. É o"povo de Judá", isto é, o campesinato judeu,18 que entronizaOzias/Asarias (773-735), em 773, quebrando assim a hege­monia de Jerusalém na definição dos sucessores (cf. 2Rs14,17-22). E esses eventos tiveram lugar, mais ou menos,treze anos antes da atuação profética de Amós.

Podemos, pois, dizer que, no século VIII, em Judá e emIsrael o campesinato é um fator político, capaz de articularsua insatisfação diante de regimes opressivos, como o deJeroboão Il, e de decidir sucessões." A profecia do século

18 Sobre o assunto, destaco duas publicações mais recentes: Estudos Bíblicos, v. 44,Petrópolis, Vozes, 1994, 86 p., e também a tese doutoral de SIQUEIRA, Tércio Macha­do. O povo da terra no período monárquico. São Bernardo do Campo, UniversidadeMetodista de São Paulo, 1997. 195 p. Em ambas o conceito de "povo da terra"l'amha- 'arez é relacionado aos camponeses livres e bem situados de Judá, capazes departicipar das decisões políticas em seu Estado, em Judá.

19 Sobre os movimentos sociais dos séculos XI e VIII, veja FERNÁNDEZ, Pedro JulioTriana. Profecia, resistência e sobrevivência; um estudo sobre a vida do povo deIsrael durante a dinastia de Jeú, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista deSão Paulo, 1998. 334 p. (dissertação de doutorado), e DREHER, Carlos A. Os exércitosdo reino do Norte; sua constituição, sua função e seus papéis políticos no conflitosocial no sistema tributário, segundo distintas avaliações. São Leopoldo, Escola Su­perior de Teologia, 1999.410 p. (dissertação de doutorado).

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VIII, e a de Amós em especial, não só tem esse contexto comopano de fundo, ela mesma é uma das vozes da gente do cam­po.Abase social e organizativadessa profecia é o campesinato.

Existem diversos intentos de relacionar a literaturaprofética do século VIII com determinadas organizações,embora raras vezes se tenha insistido em sua localizaçãosocial. Antes de nos concentrarmos em Amós, convém abriruma janela para essas pesquisas já empreendidas. Referi­me, antes, à proposta de localizar Amós na sabedoria dosclãs." Miquéias foi definido como "ancião de Moresete eintegrante do colégio dos anciãos de Judá"." Oséias provi­ria de um grupo levítico de oposição." Em círculos seme­lhantes ter-se-á originado o Deuteronômio original (Dt 12­26),23 a partir do final do século VIII. Já existem, pois, di-

20 WOLFF, Hans Walter. Amos' geistige Heimat. Neukirchen, Neukirchener, 1964(Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 18). Veja itemAmós - Um trabalhador, p. 49.

21 Idem. Mit Micha reden; einst und heute. München, Christian Kaiser, 1978. p. 16. Vejatambém WOLFF, Hans Walter. Wie verstand Micha von Moreschet sein prophetischesAmt? Supplements to Vetus Testamentum, v. 19, Leiden, E. 1. Bri11, 1978, pp. 403-417.

22 Idem. Hoseas geitige Heimat. Theologische Bücherei, v. 22, München, Christian Kaiser,1964, pp. 232-250.

23 Sobre a origem do Deuteronômio existe toda uma gama de valiosos ensaios. Mencionoalguns: RAD, Gerhard von. EIpueblo de Dios en el Deuteronomio. Biblioteca de EstudiosBiblicos, v. 3, Salamanca, Sígueme, 1976, pp. 283-376; ALT, Albrecht. Die Heimat desDeuteronomiums, em Kleine Schrifien zur Geschichte des VolkesIsrael. 3. ed., München,C. H. Beck, 1964. v. 2, pp. 250-272; RAD, Gerhard von. Deuteronomium-Studien.Theologische Bücherei, v. 48, München, Christían Kaiser, 1973, pp. 109-153; KOCH,Klaus. Propheten lI; babylonisch-persische Zeit. Stuttgart, 1980, pp. 9-20 (Urban­Taschenbücherei, 281); CRUESEMANN, Frank. "... damit er dich segue in aliem Tun deinerHand..." (Deuteronomium 14,29) - Die Produktionsverhâltnissc der spãten Kõnigszeit,dargete11t am Ostrakon von Mesad Hashavjahu, und die Sozialgesetzgebung desDeuteronomiums, In: SCHOTTROFF, Luise & Wi11y, orgs. Mitarbeiter der Schõpfung; Bibelund Arbeitswelt. München, Kaiser, 1983. pp. 72-103; NAKA,'10SE, Shigeyuki. Para en­tender o livro do Deuteronômio - Uma lei a favor da vida? Revista de InterpretaçãoBlblica Latino-Americana, v. 23, Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 176-193.

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versas tentativas para localizar parcelas significativas da li­teratura do século em questão entre as camadas populares,embora estas não primem por uma identificação social maispormenorizada do Sitz im Leben. Prossigamos, pois, tentan­do realizar essa tarefa em relação a nosso visionário de Técua.

A própria existência do livro de Amós é inconcebívelsem pressupor grupos organizados de pessoas que o consi­deraram valioso. Deram-lhe sua forma atual provavelmentena época pós-exílica, quando lhe adicionaram os versículosfinais (cf. 9,11-15) e talvez incluíram os refrões litúrgicosde 4,13; 5,8-9; 9,5-6 com vistas à leitura no culto comunitá­rio. Nos decênios do exílio e antes dele, outros grupos dedi­caram-se aos textos do profeta, estudando-os e aplicando-osà sua situação específica, como se vê, por exemplo, em 1,2;2,4-5; 4,6-12 etc. Portanto, o livro de Amós chega a nossasmãos graças a grupos organizados - certamente nem delonge majoritários em suas sociedades - que por séculosreviviam a memória do mensageiro de Técua.

Também a primeira composição do livreto aflora emmeio a um extraordinário esforço organizativo. Afinal, Amósfoi enxotado de Bete! (cf. 7,10-17) e havemos de pressuporque com isso encerrou sua atuação profética em Israel. Saiuderrotado. Amasias e Jeroboão 11 deram-se por vitoriosos.Ao menos num primeiro momento, pouca coisa falava a fa­vor da profecia de Amós. Os fatos eram-lhe contrários ehostis. Contudo, exatamente nessa situação de aparente der­rota há algumas pessoas que se agrupam em tomo de Amóse seus discípulos. Testemunham a validade e veracidade doque o profeta dissera. Organizam um livreto, que deve ter

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ficado pronto antes mesmo da conquista de Samaria, em722.24 As palavras de Amós continuavam ecoando. Encon­travam ouvidos. Agrupavam pessoas, em Judá e Israel, par­ticularmente dentre a gente do campo. Nesse ninho foigestado o esboço do livreto de Amós, em sua extensão me­nor do que nossa versão atual, contendo, porém, umaamostragem do que de mais decisivo fora pronunciado peloprofetizador.

Esse livreto que foi sendo organizado nos decêniosapós a expulsão de Betel não parece ter sido a primeira com­pilação de palavras de Amós. Os primeiros agrupamentosde ditos são bem anteriores a esse livreto. Remontam à épo­ca da atuação. São simultâneos a suas profecias. No decor­rer dos capítulos anteriores falávamos dessas coletâneas. Aías designávamos de ciclos. Em Am 1-2, deparamos com ociclo dos povos (veja item Exército, cidade e templo, p. 62).Em Am 7-9, com o ciclo das visões (veja item As visões,p. 33). Um ciclo anti-Samaria pensamos haver encontradoem Am 3,3--4,3 (veja item Exército, cidade e templo, p. 62).Coletâneas parecidas, talvez não tão bem estruturadas, pos­sivelmente poderiam ser encontradas em 5,1-17; 6,1-7; 8,4­14. Esse tipo de agrupamento de ditos, designado de ciclo,em parte ainda espelha a própria atuação do profeta e emparte já vai forjando e consolidando suas palavras. Da falapública é feita memória. Ela é "gravada" na lembrança sejado próprio profeta, seja do círculo de seus amigos. Por isso,essas coletâneas apresentam muitos fenômenos mnemo­técnicos, a começar pela quantia de ditos (três, cinco, sete),passando por repetições intencionais de vocábulos ou ex-

24 Veja os argumentos em WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cít., pp. 131-135.

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pressões inteiras e chegando à própria disposição dos diver­sos ditos. Contudo, tais agrupamentos de ditos não são sómemoriais. Não correspondem apenas à transmissão oral.Já se encontram na passagem para a escrita. A memória oralpassa à categoria do "rascunho de urna atuação pública",corno dizia alguém." Vira panfleto, corno eu preferiria di­zer. Tanto o processo de sedimentação da fala profética emmemoriais ou ciclos quanto sua fixação literária em "rascu­nhos" ou panfletos representam fenômenos organizacionaisde primeira ordem. Representam um considerável grau deaceitação popular da profecia e de organização do grupo emtomo do profeta. Afinal, panfletos serviam para a difusãodas propostas proferidas por determinado visionário, emnosso caso Amós. Sua função primária não era interna. Vi­sava-se a leitores fora do círculo profético camponeses emIsrael e Judá. Os panfletos mostram, pois, que a profecia ésustentada por gente organizada, concretamente, pelas pes­soas do campo.

A esta altura de nossa reflexão cabe anotar o que seentende, em nosso contexto, por lavradores organizados,evidentemente sem delongas. O clã ou a grande família é onúcleo elementar do povo camponês no contexto do tribu­tarismo. Por meio dele as pessoas estão organizadas. Delebrota a resistência contra a espoliação citadina e estatal. Seusrepresentantes tradicionais são os anciãos. No geral, estesúltimos estavam comprometidos com os anseios de sua gen­te (cf. Jr 26,17-19). Por vezes, porém, também se aliavamaos interesses da corte (cf. 1Rs 21), dando espaço a que ou­tros viessem a representar e articular a gente do campo, tais

25 WOUF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 238 e 275-295.

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como levitas e curandeiros populares, sábios e profetas.Contudo, o papel decisivo na organização do povo da roçanão é desempenhado pelos anciãos, mas sim pelos própriosclãs. Estes são a espinha dorsal da articulação e da forçacampesinas.

Especificando o que, neste contexto, entende-se porpovo camponês organizado, retomamos à nossa questão. E,de imediato, passamos ao ponto nevrálgico. Trata-se de ex­plicar o próprio dito profético conforme à práxis organizativa.Afinal, Amós não só expressa o que pessoalmente experi­mentou. Ele é pastor de origem, vaqueiro e talhador de sicô­moros por circunstâncias da vida. No centro de suas denún­cias está não essa sua experiência, mas sim a de lavradoras elavradores. Há semelhanças entre uma e outra. Ambas sãofeitas sob a opressão citadina e monárquica. Isso as tomaidentificáveis. Aproxima-as, embora, no âmbito pessoal, avida de Amós não seja coincidente com a dos pobres com osquais se solidariza. Sim, a profecia não é do tamanho daexperiência pessoal. É do tamanho da experiência coletivados empobrecidos.

É fácil perceber que a denúncia não visa a um casoisolado. Quando isso acontece, o caso é paradigmático (cf.lRs 21; Am 4,1). Via de regra, a denúncia junta diversoscasos de injustiça. Soma experiências de opressão. Agrupadores. Organiza os clamores da gente da roça. Até mesmopodemos observá-la em acusações que, à primeira vista, pa­recem referir-se a uma só situação. Penso, por exemplo, em4,1 e 5,11. Contudo, até aí são criticados, em cada versículo,dois conteúdos diferentes. Nas outras acusações, isso é ain­da mais patente. Pensemos na diversidade de crimes mencio­nados no ciclo dos povos (cf. Am 1,3-2,16). Observemos o

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verdadeiro catálogo de atrocidades sociais elencado na de­núncia a Israel, em 2,6-8 (cf. nota 17). A denúncia contraSamaria em 3,9-10 é composta de duas formulações distintas:v. 9 e v. 10. Em 5,1-17, estão reunidas diagnoses das maisdiversas, de ordem econômica (v. 7) e jurídica (vv. 7.10.12),a respeito de testemunhas (v. 10) e juízes (v. 12). Em 6,1-6temos outra listagem, em que o v. 2 não se ajusta ao v. 3 eeste difere dos subseqüentes. Também 8,4-6 não chega a sercoeso, como fica patente no v. 6b. Portanto, nas denúnciasestão reunidas as dores de muita gente. E isso se deve à reu­nião dessas pessoas. O somatório de casos pressupõe seuanterior intercâmbio. Em sua base está a organização. Aodenunciar, o profeta mencionava não só o que seus olhosviam, mas principalmente o que seus ouvidos escutavam.Tomava-se porta-voz das opressões sofridas pelos clãs e poreles contestadas. Por meio da denúncia profética, dá voz aopovo do campo organizado. Neste o profeta está enraizado.

Passemos a uma síntese. Quis saber se os "pobres",defendidos por Amós, estavam organizados. Para essa per­gunta parti do pressuposto de que esses "pobres" são as pes­soas do campo. Pude constatar que o campo, particularmen­te pauperizado por Jeroboão, conseguiu articular-se a pontode interferir no ápice do poder, ao liquidar, na pessoa dosucessor de Jeroboão 11, a própria dinastia. Daí deduzi queuma profecia como a de Amós deve ter tido vínculos comum tal campesinato organizado. Com base nessa suspeita,passei a inquirir o próprio texto de Amós a fim de saber senão poderia ser expressão de organização camponesa. Cons­tatei que o texto de Amós, em geral, é um acontecimentoorganizacional. E as críticas são, de modo bem especial,desaguadouros do protesto social. Na base das denúncias de

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Amós encontra-se, pois, o povo organizado do campo. Práxissocial camponesa é a base social da crítica de Amós.

Esperança para os empobrecidos?

Há esperançapara aspessoas espoliadas, para as pes­soas empobrecidas no campo, mas organizadas?

O livro de Amós culmina num belíssimo cântico utó­pico (cf. 9,11-15). Nele, é descrita a vida do camponês liber­to da opressão (vv. 13.15). Contudo, essa canção utópica éposterior a Amós. Quem a acrescentou a nosso livro talveztenha tido a impressão de que nele falava-se muito pouco depromessa.

E, de fato, a ameaça a rei e reino e a defesa dos "po­bres" e do "pequeno" "Jacó" perfazem os conteúdos princi­pais das "palavras de Amós". Amós não chegou a tematizar apromessa. Isso talvez também se deva à brevidade de sua atua­ção. Portanto, quando se inquire as "palavras de Amós" quan­to a suas promessas, coloca-se a elas uma questão que nãochegou a ser elaborada. Isso não significa que a pergunta peloteor da esperança não fosse válida. Significa que há proble­mas especiais a enfrentar na obtenção de uma resposta.

Embora a utopia não seja tema precípuo das "palavrasde Amós", encontra-se nas entrelinhas. Atentemos para elas.

Em Amós os empobrecidos são apresentados, ao mes­mo tempo, como vitimados e como justos, portanto comoatuantes em justiça comunitária. São gente destruída, massão também gente que constrói. Pois são "justos" (2,6 e 5,12).Nunca são culpados. E jamais são ameaçados. Ainda que oprofeta não dissesse expressamente que os pobres não serão

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aniquilados, como acontecerá com os exércitos, os sacerdo­tes, as elites, enfim o Estado, seria de supor que sobrevive­rão à catástrofe." Pressupor a destruição da gente pobre, do"pequeno", do "Jacó", seria um contra-senso. Faria sentidoameaçar a uns (exército, elite de Samaria etc.) e defender aoutros ("pobres", "escravas" etc.) se na hora do juízo des­truidor ambos tivessem o mesmo destino?

E, efetivamente, em diversas passagens estão pressu­postas a sobrevivência dos fracos e a mudança de suas con­dições de vida. Observemo-lo em alguns textos:

Ao ameaçar Amasias (cf. 7,16-17), o profeta afirma,entre outras:

Tua terra será repartida a cordel (7,17).

Tal ameaça de expropriação do sacerdote Amasias sófaz sentido se houver quem receba a terra repartida. Amóscontinuamente fala deles: são os "pobres" feitos escravos,os lavradores (cf5,16). Podemos, pois, pressupor que a terrade Amasias será distribuída entre os camponeses oprimidos

26 A semelhante resultado também chega POLLEY, Max E. Amos and lhe Davidic Empire;A Socio-HistoricaIApproach. New York, Oxford University Press, 1989.243 p. Seusencaminhamentos, porém, são outros. Pressupõe que Amós teria atuado no Nortejustamente para reintegrar Israel a Judá, ao reino davídico (veja sua tese nas pp. 3-4).Por esse caminho chega ao resultado de que em Israel, isto é no reino do Norte, aselites serão destruídas, mas os pobres sobreviverão, justamente para poderem reinte­grar-se a Judá, ao reino davídico: Given Amos 'message o/socialjustice, lhe poor andlhe needy wouldprobably escape destruction and inherit lhe land [Dada a mensagemde justiça social de Amós, o pobre e o necessitado provavelmente poderiam escapar àdestruição e herdar a terra, (p. 172)]. O problema dessa tese de Max E. Polley resideem que é muíto improvável que se consiga provar que Amós é representante dodavidismo (considerando que Am 9,11-12 há de ser adendo judeu). Contudo, esseautor percebeu adequadamente que nosso profeta somente ameaça a Israel/elite, nãoa gente empobrecida.

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(cf. Mq 2,1_527) . Na ameaça contra o sacerdote está, pois,

implícita a esperança camponesa por terra.

Para o "lavrador" há futuro: é o que 5,16 confirmaindiretamente, ao prenunciar:

Em todas as ruelas dirão: Ai! Ai!

Chamarão o lavrador para o pranto.

o "lavrador" é, pois, solicitado a participar dos ritosfúnebres em prol dos cadáveres espalhados pela cidade. Pres­tará as últimas honrarias àqueles que foram seus verdugos.Jã víamos em 2,1 (confira item Esperança para os ameaça­dos? p. 77) quão respeitoso Amós sabe ser em relação a ex­ploradores quando defuntos. É o que também sucede em 8,3,um texto difícil:

Gemerão as cantoras do palácio.

Naquele dia, dito do Senhor Javé, muito cadáver!

Estão jogados em todos os lugares.

Silêncio!.

Em Amós, o extermínio do explorador não é motivode festa ou júbilo, nem mesmo quando se trata dos opresso­res do palácio. É motivo de reflexão sobre o ocorrido, decontrição, de ritos fúnebres. Essa atitude de respeito e la-

27 E considere principalmente o ensaio de ALT, Albrecht. Micha 2,1-5 - Gês Anadasmósin Juda, em Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel. 2. ed., München, C. H.Beck'sche Verlagsbuchhandlung, 1968, v. 3, pp. 373-381, e liAHN, Noli Bernardo.Miquéias 2,1-5; profecia e luta pela terra-uma leitura da influência da situação histó­rico-social nas últimas décadas do século VIII a.C., em Judá na vida da antiga ordemtribal. São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 1992. 156 p.(dissertação de mestrado).

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mento toma consciência do que foi, libertando para o novoque vem. Amós não chega a descrever esse novo, mas chegaao limiar do recomeço. Alcança o Monte Nebo, sem, contu­do, ingressar na terra.

Conhece, porém, os conteúdos da utopia. Sabe dos crité­rios para a nova vida de "lavradores", "cantoras do palácio","pobres". Formula-os por diversas vezes: 3,lOa; 5,4.14-15.24.Poderíamos condensá-los nos dois postulados seguintes:

Buscai-me e vivei! (5,4).

Corra como água o direito!

A justiça como ribeiro perene! (5,24).

Um novo culto sob a orientação da palavra profética euma nova sociedade sob os parâmetros de "direito" e "justi­ça" são o núcleo da utopia de nosso visionário.

Por certo, Amós não chegou a elaborar essa sua uto­pia. A ela só aludiu. Evocou-a em pinceladas. Tomou-a pre­sente como um lampejo. Em todo caso, a esperança não fi­cou de lado. Há futuro para o pequeno "Jacó" (7,2.5), para o"resto de José" (5,15), para uma parte da "casa de Jacó"(9,8). Portanto, em Amós a utopia dos pobres marca presen­ça, embora o faça qual repente.

Retrospectiva

Neste quarto estudo, novamente nos concentramos nas"palavras de Amós". Voltamos a enfocar sua mensagem. Aameaça fora o tema da terceira reflexão. Agora, quisemosidentificar o sentido da denúncia, que vem a ser o reverso daameaça. Ambas - denúncia e ameaça - estão intimamen-

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te conectadas. E, agora, na retrospectiva trato de identificaros traços principais desta reflexão sobre a crítica profética.

As questões denunciadas são de ordem social. A opres­são social é o "terror total". Em Amós a crítica religiosa éparte dessa sua crítica social. Nesse ponto, Amós se diferen­cia de Oséias.

As pessoas, defendidas por Amós mediante sua críticasocial, são os "pobres", "magros"/"fracos" e "oprimidos".Esses e termos similares designam camponeses empobreci­dos, prestes a serem transformados em escravas e escravosou recentemente escravizados. O profeta sai em defesa dagente do campo.

Essa gente do campo, pela qual bate o coração profé­tico, não são meramente indivíduos isolados. São gruposorganizados segundo seus clãs em razão de sua pauperização.O profeta é um broto desse tronco.

Como trabalhador sazonal, Amós é irmão de sina dos"pobres", "magros" e "oprimidos".

Nesse profeta, a esperança não chega a ser um temaespecial, mas está implícita. Amós conhece a utopia dospobres. As palavras dos que acrescentaram 9,11-15 pode­riam ser também as suas:

Plantá-1os-ei na sua roça.

Dessa roça que lhes dei

já não serão arrancados.

Disse Javé, teu Deus (9,15).

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A denúncia de Amós fala a nós. Interpela nossa situa­ção. É como se as críticas estivessem referindo-se à atualrealidade de opressão e exclusão dos pobres, de mulheres ehomens, crianças miserabilizados.

Há poucos anos acontecia o seguinte. Num desses pro­gramas que as Igrejas mantêm em rádios foi lido um textode Amós. A simples leitura do texto provocou a ira da re­pressão policial. O locutor teve de explicar-se junto aos ór­gãos policiais. Sim, a crítica social de Amós é de palpitanteatualidade. Poder-se-ia até dizer: basta lê-la!

Não só suas palavras são atuais. Seu método também,pois ele não se esgota numa denúncia genérica do pecado so­cial. Vai ao concreto, aos detalhes, à vida cotidiana. Recorreàs mediações. E chama as coisas pelo seu nome concreto.

Isso não faz com que os pobres estejam excluídos dopecado. Não os transforma em "santos". Nem opta por elespor causa de sua isenção de pecado ou por causa de sua su­posta perfeição. O "terror total", no qual vivem os pobres, éo que motiva sua defesa. Em Amós, essa defesa dá-se deuma forma tão intensa e radical que se pode afirmar que aí,nesse grito pelo pobre, tudo se decide. A veracidade da fé éafunilada em direção da defesa dos empobrecidos. Nessaquestão concretíssima decide-se a teologia. "Aquele que nãoama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (lJo 4,8).

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Canto de esperanza

Algún dia los campos estarán siempre verdes

y la tierra será negra, dulce y húmeda.

En ella crecerán altos nuestros hijos

y los hijos de nuestros hijos ...

Y serán libres como las árboles del monte

y las aves.

Cada mafiana se despertarán felices de poseer la vida

y sabrán que la tierra fue reconquistada para ellos.

Algún dia...

Hoy aramos los campos resecos

Pero cada surco se moja con sangre."

28 ZAMORA, Daisy. Canto de esperanza. Nuevo Amanecer Cultural, Managua, ano 6,n. 263 (sábado 29 de junho de 1985), p. 6.

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5. "Não fIZ subir os fílísteus de Cáftor?"

Para el cristiano del Tercer Mundo no hay encuentro con elMisterio del Dios liberador, dador de vida, sin la decisión yacción de caminar con Dios hacia las metas liberadoras enla historia. Dios está atento y escucha los clamores deIpueblo latinoamericano que vive un verdadero cautiveriodentro de su propia tierra.'

Reflitamos sobre a teologia de Amós. Estamos fazen­do isso desde o início de nossos estudos. Quando descrevía­mos o contexto e a pessoa, a ameaça e a denúncia, fazíamosteologia. Nas "palavras de Amós", Deus não é um item. Quiçásubstituível. Deus antecede às palavras do profeta, cria-as,transcende-as. Em toda sua profecia transpira teologia.

Se, pois, agora tematizo a experiência teológica dovisionário de Técua, é porque os itens anteriores eram ne­cessários para o que gostaria de enfocar nesta quinta refle­xão. Facilitam nossa nova tarefa.

Qual é, pois, o testemunho de Amós sobre Javé?"

1 ARAvA, Victorio. ElDios de lospobres;el misterio de Dios e la teologia de la liberación.San José/Costa Rica, DEI, 1983. p. 223.

2 Sobre a teologia de Amós, confira RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento.São Paulo, Aste, 1974. v. 2, pp. 124-132; FUEGLlSTER, Nother. Arrebatados por Iahweh- Anunciadores da palavra- História e estrutura do profetismo em Israel. In: 8cHREINER, J.,org. Palavra e mensagem. São Paulo, Paulus, 1978. pp. 179-209; ZABATlERO, Júlio

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Não se trata de querer descrever todas as particulari­dades teológicas transparentes no texto. Afinal, Amós é fi­lho de seu povo. Partilha com sua gente o que lhe foi trans­mitido por mãe e pai, pela tradição de sua aldeia e dos luga­res cúlticos. Certamente conhecia as histórias contadas a res­peito de Isaque (cf. 7,16) e de Jacó (cf. 7,2.5). Sabia dastradições cúlticas de Bersabéia (cf. 5,5) e de Betel (3,14;4,4) etc. Se quiséssemos ser exaustivos, teríamos de levarem conta essas e outras referências. Isso poderia ser interes­sante, mas correríamos o risco de não chegar ao núcleo daquestão teológica apresentada por Amós. Proponho, pois,que perguntemos pelo que há de específico e característicoem Amós. Onde estão os eixos de seu testemunho de Javé?Perguntemos por suas encruzilhadas teológicas.

Nessa tentativa de concentrar o enfoque teológico deAmós, ao meu ver não restam dúvidas quanto ao que se devaressaltar em primeiríssimo lugar.Afinal, o primeiro versículode Amós é sintomático.

Profecia - Ponte entre Javé e seu povo

EmAm 1,1, Javé não é mencionado. Isso talvez fossemero acidente, acaso. Essa suposição, porém, passa a umsegundo plano quando se constata que - intérpretes poste-

Paulo Tavares. Amós e a missão da Igreja brasileira na atualidade. Boletim teológico,v. 5, São Leopoldo, Fraternidade Teológica, 1985, pp. 47-108; WOLFF, Hans Walter.Dodekapropheton 2; Joel undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 121-129(Biblischer KommentarAltes Testament, 14/2); RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja­Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971. pp. 287-292 (Kommentar zum Alten Testament,13/2); KOCH, Klaus. Die Propheten I;Assyrische Zeit. Stuttgart, 1978. pp. 8-88 (Urban­Taschenbücher, 280).

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riores - se viram animados a acrescentar o v. 2.3 Esseversículo é eminentemente teológico: celebra Javé. Seu as­sunto é, pois, justamente aquele que estivera ausente no v. 1.Sutilmente corrige a porta de entrada proposta no cabeça­lho. Além do mais, o v. 1 confere com o restante do livro.Nele, é afirmado, nas mais diferentes variações, que paraentender a "palavra de Javé" (7,16) importa captar as "pala­vras de Amós", os ditos proféticos. Em Amós, o mediadorde Javé é o profeta ou, se quisermos fazer jus a 7,14 ("eunão sou profeta"!), o visionário, o profetizador, o mensagei­ro, o vaqueiro, o pastor e trabalhador sazonal.

Para bem aquilatar essa posição, convém que se lhecontraponham outras possibilidades. Afinal, o postulado deque a profecia é a ponte entre Javé e seu povo não deixa deser uma antítese. Contrapõe-se evidentemente ao sacerdó­cio como intérprete privilegiado da história de Javé conosco.Já fazia séculos que o sacerdócio assumira as rédeas da teo­logia formulada nos santuários. Os reinados trataram de cons­truir templos. No Sul, Salomão executara a obra (cf. 1Rs 6-8);no Norte, tarefa similar coube a Jeroboão I (cf. 1Rs 12,26­33). Nesses templos, celebravam-se ritos sagrados, em diassagrados, por pessoas sagradas. O sacerdócio era central nateologia desenvolvida nesses santuários, mas não se restrin­gia a eles. É anterior à edificação de casas para Javé (cf. Jz17-21; lSm 1-3). Continuou a existir paralelo aos grandessantuários, no mínimo até Josias (cf. 2Rs 22-23). Para Amós,nem o sacerdote e nem os rituais celebrados junto aos tem-

3 Discute-se a autoria do v. 2. Para Wilhelm Rudolph (Joel-Amos-Obadja-Jona, cit.,pp. 109-118), trata-se de um texto de Amós. Muitos consideram-no um acréscimoposterior (confira por exemplo: HORST, Friedrich. Die Zwôlf Kleinen Propheten.Tübingen, J. C. B. Mohr, 1964. p. 75 [Handbuch zum Alten Testament, 14]).

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plos têm significado teológico especial. Amasias refuta aprofecia (cf. 7,10-17). Em Bete! e Guilgal multiplicam-setransgressões (cf. 4,4). Os intérpretes judeus que agregaram1,2 estavam, pois, percebendo quão radicalmente antitemploera o talhador de sicômoros de Técua.

À semelhança do sacerdócio, também ao reinado nãoé reservado nenhum papel teológico. O rei não é parte dasordens salvíficas. Dele só é falado no âmbito da morte. Mor­rerá à espada (cf. 7,11), com sua dinastia (cf. 7,9), abraçadoa seu reino (cf. 9,8). Também essa é uma antítese, pois cer­tamente também os reis do Norte postulavam para si papéisteológicos de certa relevância. Conhecemo-lo do Sul, dosdaviditas de Judá (cf. 2Sm 7; SI 20-21; 45; 72; 110; 132etc.). Entendiam-se como dom salvífico." No Norte, a ideo­logia real parece não haver chegado a tanto (cf. Dt 17,14­20). Em todo caso, paraAmós rei e reinado não servem comomediadores ou intérpretes qualificados de Javé. Pelo contrá­rio. Sua qualidade teológica é nula. Parece-me que os intér­pretes judeus, novamente, foram bons ouvintes de Amós aoadicionarem a seu livro uma promessa davídica (cf. 9,11­12) que tratasse de corrigir o antimonarquismo e antidavi­dismo do profetizador.

Pelo que se vê, a afirmação de que Javé atua em Israele entre os povos mediante a profecia é, simultaneamente,uma contestação ao sacerdócio e ao reinado como eventuaismediadores de propósitos divinos. Rito sacerdotal e podermonárquico estão, pois, descartados.

Feita essa delimitação da profecia em relação ao sa­cerdócio e à realeza, passemos a perguntar: como se mani-

4 Veja RAD, Teologia do Antigo Testamento, cit., v. 1, pp. 299-309.

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festa essa profecia que não é nem rito e nem poder? De quese vale?

É visão, conforme afirma o cabeçalho do livro (cf. 1,1).Todo um ciclo o pormenoriza (cf. Am 7-9, confira item Asvisões, p. 33). Embora já se conhecesse a visão muito antesde Amós (Nm 22-24; 2Sm 23; lRs 22) - possivelmenterepresenta uma tradição de seminômades' -, ela não obe­dece a um padrão litúrgico-cultual,6 Não é uma espécie deritual agendário-litúrgico. É justamente o contrário. Não hácomo controlá-la (cf. Nm 22-24) nem como padronizá-la.(Basta comparar Is 6; Jr 1; Ez 1-3.) É antes um fenômenoprofundamente carismático, não apropriável institucional ouagendariamente.

É audição; tanto em Am 1,1 quanto nas visões de Am7-9 a experiência visionária está conectada à audição. Amósfala com Javé (cf. 7,2.5) e ouve a voz divina (cf. 7,8; 8,2)dentro de sua visão. Em 3,8, deparamos com a condensaçãodessa experiência de audição:

o Senhor Javé falou!

Quem não profetizará?

Amós ouviu Javé. E isso visivelmente lhe é mais rele­vante do que sua visão. Pois em seguida a audição o fezentender o conteúdo de suas visões. Amós é um proclamadornão de suas visões, mas sim do conteúdo de suas audições.

5 Compare WESTERMANN, Claus. Propheten. In: REICKE, Bo & ROST, Leonhard, orgs.Biblisch-Historisches Handwõrterbuch, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.v. 3, co\. 1499.

6 Como liturgia, as visões tendem a ser entendidas por REVENTLOW, Hennig Graf. DasAmt des Propheten bei Amos. Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962 (Forschungzur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testarnents, 80).

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Nele, a audição toma-se critério da visão. Justamente porisso faz-se necessário afirmar, agora, ainda o seguinte a res­peito de sua profecia:

É recado. Amós foi feito portador de um recado, deuma mensagem. O conteúdo desse recado é o que, de fato,valida suas visões e audições. Ao desincumbir-se de seusrecados, constantemente remete à origem do que tem a dizer:"Assim disse Javé" (veja item "Assim disse Javé ", p. 44).Ao memorizar sua vocação, por ocasião do conflito comAmasias, Amós toma muito patente o quanto ele se entendecomo transmissor de um recado:

Javé me tomou detrás das ovelhas;

e Javé me disse:

Anda!

Profetiza a meu povo Israel! (7,15).

É convocado a "andar" em meio à sua gente e a "pro­fetizar". Veio do Sul, de Técua, e falou no Norte, em Israel.Foi a Betel, a Samaria, a Guilgal e, certamente, a outros luga­res. Foi aos destinatários de seus recados. Não os fez chegar aele. O rito sagrado e o rei exigem peregrinações dos ouvintes;a profecia exige a peregrinação, o "andar" do emissário. Ateologia profética é uma teologia do "ir", não do "vir". O pro­feta assemelha-se a um carteiro, não a um banqueiro.

Em Amós, a profecia serve-se, pois, da visão, da audi­ção e do recado. (Em outros profetas, acrescentar-se-iamainda as ações simbólicas, como em Os 1-3 eIs 20.)A visãoestá conectada à audição, como vimos em Am 7-9. Visão/au­dição e recado encontram-se no âmbito da palavra. E a pala­vra - ou, em hebraico, o dabar - é o veículo predileto da

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profecia (Jr 18,18). É a especialidade dos videntes eprofetizadores.? Neles e, em Amós em especial, a "palavrade Javé" (7,16) está dita na "palavra" do profeta (cf. 1,1). Ateologia do talhador de sicômoros de Técua é uma teologiada palavra. Tratemos de detalhá-la um pouco.

Também sacerdotes agiam no espaço da palavra, em­bora o rito lhes fosse mais importante, uma vez que estavamvinculados aos templos. Em todo caso, não se restringiamao dabar, como era o caso dos profetas. Nesse sentido, ossábios são os que mais se aproximam de nossos profetiza­dores. A fala é o que os caracteriza. Formulação de senten­ças e elaboração de conselhos fazem parte de suas tarefas.Amós aparentemente vem dessa experiência. Sua teologiada palavra está, pois, enraizada na sabedoria popular das al­deias campesinas. Vem da experiência do vigor da fala e damemória em tradições populares.

Rito e realeza tendem à auto-suficiência. Não preci­sam necessariamente de ouvintes ou expectadores. São ca­pazes de excluí-los, de prescindir-lhes. Não é o que ocorrecom palavra e sabedoria. Observam, analisam. Necessitamde eco. O eco à palavra é parte da própria palavra. Sem re­tomo é vazia. Tem vida curta. Nasce morta (cf. Is 55,10-11).Palavra não se restringe, pois, a seu evento acústico. Incor­pora a realidade, da qual vem e para a qual se dirige. É falae coisa. Nesse sentido, a teologia profética é teologiasegun­do o dia-a-dia. É um diálogo da fé com a experiência.

Uma tal teologia é dificil de pôr sob domínio. Foge acurrais. Não se poderia dizer o mesmo do sacerdócio. Ele

7 Observe RAD, Teologia do Antigo Testamento, cit., v. 2, pp. 80-96.

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está vinculado ao altar. À medida que se encurrala o altar,passa-se a ter domínio sobre os agentes do sagrado. Ao in­terpretar o sentido de Deus conforme o altar, os sacrifícios ea realeza, o sacerdócio toma-se deveras vulnerável. Com aprofecia não sucede o mesmo. Ela lê o sentido de Deus noseventos da vida de cada dia e da história.

É difícil domesticar a teologia profética. Nisso resideseu vigor carismático. Contudo, nisso também reside suaaparente fragilidade. Continuamente está exposta à contes­tação. Todos podem contestá-la: sacerdotes (cf. 7,10-17),profetas cortesãos (cf. lRs 22), o rei (cf. Is 6-9), o povo (cf.Jr 26). Não é por acaso que a Bíblia fala de poucos conflitosentre sacerdotes, mas de muitos atritos entre profetas (Jr 27­29). Acontece que o profeta não tem outro escudo e poderque os de sua fala (cf. Jr 23-29). E esses são frágeis. Qual­quer Amasias da vida pode aplicar a censura. Teologia dapalavra é teologia segundo a experiência da fragilidade.

Os próprios profetas vivenciaram isso repetidas vezesem sua história. Jeremias legou-nos os cânticos de sua dor(cf. Jr 20). Sua vida foi qual paixão (cf. Jr 37-45). O Dêutero­Isaías nos conta a dor e o sofrimento do "servo de Javé" (cf.Is 52/53). A fragilidade da palavra profética retroagiu sobreos próprios portadores. Foram feitos servos sofredores. Nessasua fragilidade reside o segredo de sua força, de sua inque­brantabilidade.

Nesse ponto de nossa meditação sobre a teologia pro­fética de Amós, convém ampliar a perspectiva e agregar al­gumas considerações de ordem mais geral. Afinal, a teolo­gia da palavra é decisiva na Escritura e não se restringe àprofecia. É anterior aos profetas. Já marca presença nas nar­rativas, por exemplo, do pentateuco. Nelas, a memória teo-

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lógica do povo não tem outro instrumento que a transmissãooral das cenas de seu passado. A novidade dos profetas consis­te não em se referir ao passado, em articular teologia com oauxílio da memória, mas sim em fazê-la com base na reali­dade presente. Isso toma-a especialmente vulnerável e con­testável. Um dos pontos altos da teologia da palavra é o ca­tiveiro babilônico do século VI, quando sacerdócio, templo,realeza e terra estavam demolidos e perdidos. Nesse contex­to do exílio, só restava a palavra - de memória e de espe­rança. Também o Novo Testamento cabe nesse contexto.Afinal, seu berço não são ritos, mas palavras e ações de Je­sus. Essas breves notas já nos auxiliam a perceber o quanto- em Amós e na Escritura em geral- a teologia da palavraé um testemunho com base na fraqueza, em quem não de­tém o poder. Teologia da palavra é teologia de resistência,em Amós de resistência contra sacerdócio e realeza, contraa opressão e o "total terror" contra os empobrecidos. Teolo­gia da palavra é teologia de gente empobrecida, enfraquecida,crucificada.

Observamos, portanto, que para nosso visionário deTécua o profeta é mediador de Javé. Para a vida, é decisivobuscar a palavra profética. "Buscai-me e vivei" (5,4) signi­fica: segui a palavra do profeta." O único poder do profeta éo de sua palavra frágil, isto é, ao ser enxotado de Betel, Amósrealmente teve de sair de cena, porque Amasias era maispoderoso. A palavra profética sofre, assim, o destino dospobres que defende.

8 Sigo, aqui, a interpretação dada ao versiculo por WOLFF, Dodekapropheton 2; Joelund Amos, pp. 278-280.

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Sentido teológico de ameaça e denúncia

A palavra profética, em relação à qual se decide vidaou morte, assume em Amós duas perspectivas específicasprincipais. Estas são: ameaça e denúncia, como víamos emmeditações anteriores (veja capítulos 3 e 4). Para compreen­der a teologia da palavra deste nosso profeta, será, pois, im­prescindível atentar para estas duas dimensões que sua falaassume. Entender a teologia de Amós equivale a aperceber­se primordialmente do sentido teológico da crítica ou de­núncia e da ameaça ao Estado.

Quando temos ameaça, lê-se por exemplo o seguinte:"não sustarei o castigo" (1,3.6.13 etc.), "meterei fogo" (1,4.7;2,2), "quebrarei" (1,5), "abrirei uma fenda" (2,13), "derru­barei" (3,15), "jamais passarei" (7,8; 8,2), "não esquecerei"(8,7), "destruirei" (9,8). Outras expressões mais poderiamser adicionadas. Delas se deduzem duas coisas: Primeiro­Javé é o sujeito das ações aniquiladoras. Ele é o executordas ameaças. Via de regra, isso está explicitamente dito, comovimos nos exemplos anteriores. Outras vezes está implícito(cf. 2,14-16 e 5,1-3). Contudo, é sempre Javé quem decideas ações, até mesmo numa passagem como 6,13-14, na qualaparece uma reflexão sobre as mediações desse agir exclu­sivo de Deus. Segundo - a destruição recai somente sobreos opressores, suas instituições (exército, templo, cidade) eseus representantes maiores (rei e Estado). O juízo divino é,em Amós, juízo de opressores. Nele, não está em discussão ojuízo contra todo o povo. Ao meu ver, cria-se confusão teoló­gica na interpretação de Amós se não se observa o seguintedado elementar: seu juízo total é contra os totalitários.

Essa ameaça irredutível contra os dominantes é a pa­lavra de Javé, agora, válida. Esse também é o ponto nevrál-

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gico da teologia. Em Amós, fala-se de Deus segundo a sen­tença contra os opressores. Esse é o novo de sua teologia."Seu modo de fazer teologia toma como ponto de partida nãoum conceito genérico e amplo de Deus - este certamentelhe era conhecido e pressuposto -, mas sim a intervençãohistórica concreta de Javé. Parte de um dado histórico, visí­vel e palpável: a opressão e a ameaça da gente opressora.Seu falar sobre Deus vem, pois, do chão da história, não deabstrações genéricas.

Amós parte do presente para testemunhar seu Deus.Isso, porém, não implica que reduza Javé ao presente. Afi­nal, a decisão teológica antiopressão não foi tomada pelaprimeira vez por Amós. A história teológica do povo de Deusconfessa-a continuamente. Encontramo-la nas histórias deSara e Abraão, nas quais o Deus dos antepassados fala suapalavra por meio de pastores seminômades, espoliados econtinuamente ameaçados por reis cananeus (cf. Gn 19; 26).Verificamo-la no que ocorreu com os hebreus escravizadosno Egito pelo poder faraônico, contra o qual Javé animouseu povo. Conhecemo-la dos libertadores do livro de Juízes,vocacionados por Javé para livrar as tribos de invasões de­vastadoras. Portanto, o Deus que intervém, por meio do pro­feta, contra dinastia e Estado é o mesmo que interviera, nodecorrer da história, contra faraós, reis e invasores.

Nosso profeta quase não alude a esse passado. Seuinteresse é o presente. Por ele é absorvido em seu teologizar.Ainda assim, ao menos uma vez, recorreu ao passado paraafiançar que Javé atua contra os poderosos, contra os "ce-

9 Quanto à questão da especificidade da teologia profética, veja também RAD, Teologiado Antigo Testamento, cit., v. 2, pp. 167-178.

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dros" e "carvalhos". É o que está em 2,9, embora a passa­gem não vise justificar nem a destruição dos fortes nem adefesa dos fracos. No mais, Amós não chega a recorrer àhistória salvífica para embasar sua ameaça profética contrao Estado. (Quanto à temática do êxodo, veja item O êxodo,p. 127) A teologia profética efetivamente se decide no hoje,não no ontem. Faz-se com base na atualidade da fala e naatuação profética.

Essa atenção primordial para uma teologia que façajus às exigências contextuais permite que recebam poucaatenção ou até sejam negadas tradições teológicas caras dopassado. Esperar-se-ia que houvesse alguma referência aosmandamentos. Afinal, as denúncias feitas cabem dentro dosconteúdos, por exemplo, da coletânea de proibições deEx 20. Não há, porém, nenhuma alusão. 10 Igualmente seriade esperar que Javé fosse citado como o Deus de Israel, masisso não sucede. Pior. A relação pactual entre Javé e Israel écomo que negada. Ao menos é assim que entendo 7,8 e 8,2(cf. também 7,15; 9,10). Aí a expressão "meu povo Israel"pressupõe uma teologia que afirma a íntima correlação en­tre Javé e Israel (cf. 3,1-2, embora ao menos parte do textoseja um adendo); pressupõe o que se costuma chamar, comcerteza inadequadamente, de "teologia da aliança"!' (vejaOs 1,9). Contudo, em 7,8 e 8,2 essa teologia é expressamente

10 Compare BACH, Robert. Gottesrecht und weltliches Recht in der Verkündigung desPropheten Amos. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm, org. Festschrift fur Günther Dehn.Neukirchen, Neukirchener, 1969; KRAMER, Pedro. Teologia da berit na exegese dosúltimos cinqüenta anos. Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica, 1978 (dis­sertação de mestrado).

11 Veja PERLITT, Lothar. Bundestheologie im Alten Testament. Neukirchen, Neukirchener,1969 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 36); KRAMER,Teologia da berit na exegese dos últimos cinqüenta anos, cit.

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negada. O motivo é bastante evidente: com ela os soberanose palácios (cf. 7,9 e 8,3) podiam justificar e estabilizar suadominação. Ao negar o Estado, Amós também se distanciada teologia usada para manter a dominação.

Por conseguinte, diante do novo e atual testemunho pro­fético sobre Javé como destruidor do Estado, a memória teo­lógica torna-se insuficiente. Vê-lo-emos com densidade ain­da maior quando nos referirmos à teologia do êxodo em Amós.

Em relação à denúncia sucede algo similar ao que for­mulávamos a respeito da ameaça. Também a denúncia estáprimordialmente voltada à atualidade, ao que os olhos deAmós viam e ao que ele experimentava na solidariedade comos empobrecidos. A dor dos pobres já é, em si, um dadoteológico. O gemido dos oprimidos é foco teológico. Seugrito basta para que Amós, em nome de Javé, vá em suadefesa." Habituamo-nos a ter de justificar a defesa dos fra­cos. Marginalização e pauperização tornaram-se tão "nor­mais" e tão necessárias no sistema capitalista que vivemostendo de justificar com muitos argumentos humanitários teo­lógicos por que praticamos a defesa dos pobres. Amós nãose dá a esse trabalho. Para ele, a violação da escrava ou aespoliação do camponês são dados suficientes para ir emdefesa desses "justos".

Opressão dos pobres é "crime". Essa afirmação per­passa o ciclo dos povos qual refrão (cf. 1,3.6.13 etc.). É oprincipal conceito teológico, no qual nosso profeta resume asituação reinante." "Crime" e pecado condensam-se para

12 Cf. COMBLIN, José. o clamor dos oprimidos; o clamor de Jesus. Petrópolis, Vozes, 1984.

13 Veja WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, pp. 185-186.

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ele na espoliação dos pobres. Isso não significa que o peca­do não tenha também outras dimensões ou concretizações.Significa que, em Amós, o conceito de pecado afunila-senessa denúncia da opressão social. Sua teologia do pecado éconcretíssima; verifica-se nos detalhes da vida, em horrorespraticados, dia a dia, contra gente enfraquecida.

Neste afã de ter a opressão dos pobres e sua defesacomo ponto de partida, Amós novamente não se preocupaem ancorar sua opção teológica na história passada. Não re­corre aos mandamentos que proíbem a exploração dos fra­cos. Não menciona os hebreus oprimidos no Egito. E, naúnica vez que nesse contexto aponta para o passado, em 2,9,fá-lo para dar vazão à sua perplexidade. É-lhe espantoso queo Israel, que fora defendido por Javé diante dos amorreusgigantescos e poderosos, passe a oprimir por sua vez osempobrecidos:

E eu destruí diante deles os amorreus,

cuja altura era como a dos cedros,

que eram fortes como os carvalhos.

Destruí seu fruto por cima

e suas raízes por baixo.

Como esse Israel pôde arrogar-se oprimir seus pobres?É um escândalo! Portanto, ao atentarmos para a ameaça e acrítica proféticas, constatamos que, nos conteúdos centraisde sua palavra, a teologia de Amós é vivenciada em relaçãoao presente. Testemunha do Javé que atua na história queestá aí. Age repudiando a uns e libertando a outros. EmAmóstemos, pois, uma teologia que lê a história. Lê o hoje. Essahistória é marcada pelo grito do pobre.

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Teologia que não seja pertinente à dor do povo nãomerece ser chamada de teologia javista, de teologia do Deusda vida. Eis um dos legados teológicos primordiais do tra­balhador sazonal de Técua.

o êxodo

Vimos que Amós não atenta muito ao passado. Sendoassim, inevitavelmente surge a pergunta pelo êxodo. Afinal,a ameaça aos poderosos e a defesa dos pobres é, justamente,também o que ternos na tradição do êxodo (cf. Ex 1-15; Dt26,1-11 etc.). Amós deveria recorrer muitas vezes à luta en­tre hebreus e faraó, a figuras corno as parteiras e corno Moiséspara embasar sua proclamação. Em nossa sofrida AméricaLatina, até esperaríamos que Amós procedesse assim. Emnossa hermenêutica, o êxodo ocupa lugar central. 14

Portanto, a teologia de Amós é urna teologia do êxodo?Qual é a importância da tradição do êxodo no profeta? Des­sas duas perguntas ocupar-nos-emos no que segue.

Trata-se efetivamente de duas questões. Urna é a per­gunta pelo jeito de Amós lidar com a tradição. Outra é apergunta se a teologia de nosso visionário segue os parâ­metros da teologia do êxodo. A teologia de Amós estrutural­mente é equiparável ao testemunho teológico encontrado namemória do êxodo? Ocupemo-nos primeiramente dessaquestão.

E, de fato, não me parece haver dúvida de que o jeitoteológico de Amós é, exatamente, o jeito teológico da me-

14 CRüATTü, José Severino. Êxodo;uma hermenêutica da liberdade. São Paulo, Paulus,1981 (Libertação e Teologia, 12).

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mória libertadora. Amós e a memória do êxodo defendemos fracos, os hebreus escravizados e os camponeses paupe­rizados. Ambos contestam os opressores. Julgam, respecti­vamente, faraó e as elites de Samaria. Em ambos os casos, ateologia javista formula seu testemunho segundo a gente fracae oprimida, em meio ao conflito. Assim sendo, estrutural­mente a teologia de nosso profeta converge e coincide coma teologia do êxodo. Amós é teólogo do êxodo libertador.

Portanto, a pergunta pela presença da teologia do êxodoem Amós não é idêntica à pela menção expressa de elemen­tos da tradição do êxodo. Contudo, no livro de Amós tam­bém existe muita referência ao cenário do Egito. Podemosobservá-lo em: 2,10-12; 3,1-2; 4,10; 9,7 (cf. ainda 2,9; 5,25­26). Exceto 9,7, essas alusões ao êxodo são positivas. Em2,10, a menção ao êxodo reforça a defesa profética dos po­bres. Em 3,1, a libertação do Egito é entendida como elei­ção. Em 4,10, são recordadas as pragas e maravilhas queatemorizaram o Egito. Essas referências ao cenário do êxodomostram a profundidade histórica e teológica da profecia.Outros elementos da história salvífica desempenham fun­ções semelhantes (cf. 1,9; 2,4; 2,11-12; 5,25-26). Contudo,há bons indícios de que todas essas alusões sejam acrésci­mos posteriores, em especial da escola deuteronomística, dostempos exílicos do século VI. 1

5 O deuteronomismo privile­giou o êxodo (cf. Dt 5,6.14-15; 6,20-23; 26,1-11). Em suareleitura de Amós, percebeu a falta desse elemento da tradi­ção, vindo a adicioná-lo. Com isso, não desvirtuou nosso

"Veja SCHMIDT, Werner Hans. Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches ­Zu den theo1ogischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort und seinemSamm1er. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin, Walter deGruyter, 1965, pp. 168ss.

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profeta. Releu-o adequadamente, embora o próprio Amósnão tenha tido uma visão tão positiva da tradição do êxodo,como passaremos a ver.

Pelo que nos parece, o próprio Amós só se refere umaúnica vez ao êxodo. Essa passagem encontramos em 9,7b:

Não fiz subir Israel

os filisteus

os arameus

da terra do Egito,

de Cáftor,

de Quir?"

Amós conhecia a tradição do êxodo. Ela até lhe erarelevante. Contudo, ela não passava de uma tradição nacio­nal israelita equiparável a tradições fundantes similares deoutros povos, no caso de filisteus e arameus (= sírios), osinimigos ao Sul e ao Norte (cf. 1,3-5.6-8). O evento do êxodocontinua tendo sua importância, embora não se restrinja aIsrael.

Poder-se-ia tentar encontrar o motivo para essa reti­cência de nosso profetizador em relação ao cenário do êxodo.Por que não o inclui mais decididamente em seu projeto teo­lógico? Um dos motivos poderia estar na própria origem doprofeta. Vindo do Sul, de Técua, talvez não tenha tido muitocontato com os elementos e o sentido da tradição do êxodo,que, pelo nosso saber (cf. Os 11,1; 13,4), é efraimita, isto é,do Norte. Acrescente-se a isso o que fora feito com a tradi­ção do êxodo por Jeroboão I: vinculara a memória da liber­tação ao culto idólatra dos bezerros de ouro (cf. 1Rs 12,28).

16 Veja KLIEWER, Gerd Uwe. Meditação sobre Amós 9,7-10. Proclamar libertação,v. IO, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, pp. 128-135; GESE, Hartmut. DasProblem von Amos 9,7. In: GUNNEWEG, Antonius H. J., org. Textgemãss. Gõttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. pp. 33-38.

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Por vias tortas, a libertação fora tomada religião de Estado.A tradição do êxodo estava sendo manipulada. Recorrer aela, no Norte, não era algo tão unívoco. Afora os dois moti­vos mencionados para o relativo silêncio de Amós a respeitoda tradição do êxodo, há que ter em mente também o hori­zonte teológico amplo de nosso profeta, ao que nos dedica­remos no próximo item.

Em relação ao êxodo, pude constatar que nosso profe­ta, por um lado, não insiste na citação da tradição do êxodo,mas, por outro, pratica uma teologia que é coincidente comas opções básicas e as estruturas elementares da espiri­tualidade do êxodo. Em suma: Amós não é recitador, masteólogo do êxodo. Relê, não repete.

Javé, Deus dos povos

Já dissemos que, para bem avaliar o uso da tradiçãodo êxodo, faz-se necessário atentar para mais uma dimen­são da teologia de Amós. Refiro-me a seu modo de corre­lacionar Israel e os povos. Nesse particular, Amós novamenteé muito surpreendente. 17

Afinal, habituamo-nos a ver que o Antigo Testamentoprivilegia Israel, que seria particularista. E, de fato, podería­mos mencionar muitos textos que o confirmam. Em Amóse, sabidamente, não só nele (veja, por exemplo, Jonas), nãoé assim.

17 Observe igualmente SIVATTI, Rafael de. Critica profética a los imperialismos y a lareligión nacionalista de Israel". Revista Latinoamericana de Teologia, ano 2, SanSalvador/EI Salvador, 1985, pp. 95-111.

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Atentemos inicialmente para o ciclo dos povos (cf. 1,3­2,16), no qual a relação entre povos circunvizinhos e Israelé particularmente tematizada (confira item Exército, cidadee templo, p. 62). Nesse ciclo, nosso profeta inicialmente pa­rece agir como qualquer profeta cúltico: arrasa os povos vi­zinhos, a começar pelos tradicionais adversários, os arameuse filisteus, concluindo com os povos transjordanianos. Po­deria parecer que, após a demolição dos inimigos da nação,passaria ao elogio e à glorificação de Israel. Não é, porém, oque acontece. Sucede o contrário. Ao enfocar Israel (cf. 2,6­16), Amós continua a anunciar ameaça, exemplificando-ano exército. Israel é, pois, equiparado aos povos vizinhos.Do mesmo modo como são destroçados o Exército e o esta­do de Israel,são quebrados os soberanos e as elites dos po­vos vizinhos. Opressor nenhum sobrará nem cá, nem lá; nemem Israel, nem nos povos. Entre Israel e os povos não hádiferença. Em relação a ambos, a teologia javista é teologiacontra a opressão.

A rigor, também para ambos o motivo para a destrui­ção é o mesmo. A ameaça contra os poderosos está embasadana opressão dos fracos. O Estado de Israel e os Estados vizi­nhos têm os mesmos "crimes": massacram a vida de genteindefesa e fraca: mulheres grávidas, povoados indefesos,pobres. Portanto, os povos não são piores que Israel.

Contudo, Israel é pior que os povos. O Estado de Is­rael é mais repressor que seus adversários. Em 2,6-8.9, pode­se verificá-lo com toda a nitidez. Dos povos vizinhos só semenciona um "crime"; de Israel apresentam-se sete! Os vi­zinhos oprimem seus adversários; Israel oprime sua própriagente, seus próprios pobres. Israel não tem nenhum privilé­gio. Pelo contrário: é o pior exemplo dentre os povos.

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Portanto, emAmós não só constatamos uma "equipara­ção entre povos e Israel, mas também entre Israel e povos". 18

O povo de Deus é, até, o pior exemplar dentre os povos.

As demais passagens de Amós nem sempre formulamnossa questão teológica com a mesma radicalidade. Contu­do, confirmam-na indubitavelmente.

Em 6,1-2, o assunto volta à tona. A despreocupada eli­te de Samaria - a referência a Sião talvez seja um adendo- autocompreende-se como elite dos povos, como cabeçado mundo. São

os notáveis da elite dos povos (Am 6,1).

Amós confirma-os em sua pretensão, ao vê-los enca­beçar o comboio de deportados (v. 7). A elite de Samariaserá a primeira a ser castigada. Esse é o único privilégio dosenhorio da capital. Pois ela não é melhor que seus vizinhos.Esse é o assunto de 6,2:

Passai a Calane e vede.

Dali ide à Grande Emat.

Descei à Gat dos filisteus.

Sois melhores que estes reinos?

Ou seria o seu território maior que o vosso?

A resposta é evidente. "Vós", elite de Samaria e Esta­do de Israel, não sois nem melhores e nem mais poderososdo que vossos vizinhos ao Norte (Calane e Emat) e ao Sul

18 WOLFF, Dodekapropheton; 2 Joel und Amos, cit., pp. 128.

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(Gat). Aqui sim há uma "equiparação", um nivelamento en­tre Israel e Estados vizinhos.

Em 9,7, isso volta a ser afirmado, com toda ênfase. Aotratar do êxodo (confira item O êxodo, p. 127), eu mencionaraa segunda parte do versículo. Retomemo-lo, agora, em seu todo:

Não sois vós, filhos de Israel, para mim como os filhos dosetíopes? Dito de Javé.

Não fiz subir Israel da terra do Egito,

os filisteus de Cáftor,

os arameus de Quir?

Uma vez mais Israel é assemelhado a outros povos, aosvizinhos ao Sul (fIlisteus) e ao Norte (arameus) quanto à his­tória, aos distantes etíopes quanto à criação. Devido a ambos,e não só devido à criação, o Israel que explora não passa deum grupo dominante a mais que não titubeia em recorrer abelas tradições religiosas para garantir-se no poder.

Contudo, esse Israel do poder é pior. Essa dimensão,que verificávamos no ciclo dos povos, voltamos a perceberno dito que resume o que Amós tem a dizer contra Samaria,no ciclo 3,3-4,3:

Fazei ouvir nos castelos de Asdode

e nos castelos da terra do Egito

e dizei:

"Reuni-os sobre os montes de Samaria

e vede:

Quão grande terror há nela.

Oprimidos em seu interior!" (Am 3,9).

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Os povos circunvizinhos são chamados a enviar umacomissão internacional de alto nível para constatar o terrorsocial reinante em Samaria. Filisteus e egípcios são con­clamados para essa tarefa. Israel deixou de ter condições deverificar sua situação. É pior que os piores, pior que o faraóegípcio.

Poder-se-ia perguntar por que Amós é tão severo comIsrael. Na base da severidade,há, ao meu ver, uma razão teoló­gica. Israel deveria saber que não se pode oprimir os pobres.Experimentou-o em sua história (cf. 2,9).A eleição de Israel é abase teológica dessa avaliação radical. É o que se lê em 3,2:

Somente a vós escolhi

dentre todas as famílias da terra,

por isso vos punirei

por causa de vossos pecados.

É bem possível que esse versículo seja posterior aAmós, mas parece corresponder à teologia do profeta.

Na denúncia e na ameaça "contra Israel" (Am 1,1),Amós não reserva lugar especial para Israel. Em sua teolo­gia, Israel - devorado pelo poder da opressão - não só éequiparável aos povos, é até pior que eles. A práxis desseIsrael não é melhor; sua história não é única. Esse Estadode Israel, destituído de privilégios, será deportado para ou­tros Estados, "em direção ao Hermon" (4,3), "para além deDamasco" (5,27); será espalhado entre as nações (cf. 9,9). OEstado de Israel afogará em meio a outros Estados!

A profecia de Amós, um talhador de sicômoros, é sur­preendentemente internacionalista. Testemunha uma teologiaque vê nas dores dos pobres de Israel as dores dos pobres do

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mundo, que percebe na ameaça dos opressores do próprio povoa ameaça a toda opressão, que sonha o novo corno utopia uni­versal do Deus que "edifica as suas câmaras no céu" (9,6).

Retrospectiva

Concluo com urna retrospectiva sobre a teologia deArnós. Corno principais aspectos destaquei os seguintes dessenosso profeta do século VIII, o primeiro dentre os chama­dos "literários":

Metodologicamente importaperceber a contribuiçãoteo­lógica específica de Arnós. Não quis delinear o todo de seupensar teológico. Pretendi identificar aspectos de sua teologia.

Javé atua em seu povo e entre os povos por meio doprofeta. Este é o mediador qualificado de Deus.

Profecia é palavra. O veículo da teologia profética é,pois, frágil. O insucesso marca-a mais que o sucesso, cornose pode constatar na confrontação com Amasias.

Ameaça e denúncia são palavra atual. A teologia deAmós é urna leitura do que está aí, da história presente. Suateologia está em sua proclamação.

A história salvífica passada não define a nova palavraprofética. Amós não dá muita atenção aos eventos salvíficosjá ocorridos. Seu terna é o novo evento salvífico trazido parao presente pela palavra profética.

Amós é um teólogo do êxodo. Articula sua teologianas coordenadas da teologia formulada de modo paradig­mático para todo o Antigo Testamento no evento libertador:ação exclusiva de Javé, crítica aos opressores, utopia paraos fracos e, a partir deles, para todos. Contudo, Amós não

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insiste no cenário ou na tradição do êxodo. Teologia do êxodonão é concomitante à menção do êxodo.

Israel na forma de poder opressor não detém privilé­gio na história de Deus. Assemelha-se aos povos. Equipara­se e é até pior. A teologia de Amós olha para o mundo, nãocom os olhos de Israel, mas com os dos oprimidos, das es­cravas e camponesas de Israel:

o Deus contemplado e experimentado pelos profetas é oDeus da história. Não apenas no sentido de que preside so­beranamente aos acontecimentos e tem a respeito deles umdesígnio. Trata-se de muito mais. É o Deus que se manifes­ta mediante os acontecimentos como a inapagável e inven­cível labareda alimentadora da liberdade e a luta por suaconquista ou por sua preservação. Pelos fatos, revela-seRedentor, quer dizer, libertador, justiceiro e vingador dosoprimidos e necessitados. 19

Universalidade interessante brota de Amós. Sião 1,2.Nova tenda de Davi - dessa forma chega a nós. Sem negar,porém, a insistência em olhar em favor dos povos.

Diálogo interno entre o Primeiro e o Segundo Testa­mento. Deveríamos aproveitar isso.

Javismo militante, não na unicidade abstrata, mas porum caminho de solidariedade.

19 SOARES, Sebastião Armando Gameleira. Reler os profetas - Notas sobre a releitura daprofecia bíblica, Estudos Bíblicos, v. 4, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 27.

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6. "Palavras de Amós"

E todo o mundo que não conhece a sua maneira de se ex­pressar pensa que eles (= profetas) têm um jeito estranho defalar, pois não observam seqüências, mas saltam de um as­sunto ao outro, de sorte que a gente não pode compreendê­los e nem se orientar. Ora, não é nada agradável ler um livroque não mantém ordem, pois não se consegue agregar e nememendar uma coisa à outra, para que tenha boa seqüência,como aliás convém quando se quer falar bem e corretamente.'

Comecei a escrever este livro com meus pés, puxando du­rante onze meses carros de barro na construção do açudeda Santa Fé. Andando no sol, na poeira, às vezes cansado,outras vezes eu também com fome. Pensei durante horas,semanas, cada um destes capítulos. O original deste livro- Sangradouro - foi escrito no chão. Cada capítulo re­presenta cem quilômetros de trilhas cheias de altos e bai­xos percorridos pensando, rezando, sofrendo de ver meusirmãos trabalhadores nesta situação.'

Nos estudos anteriores, dedicamo-nos ao contexto, à pes­

soa, aos conteúdos da profecia e à teologia de Amós. Fizemo-lo

sempre à base do texto do profeta de Técua. Afinal, as únicas

I LUTHER, Martin. Der Prophet Habakuk ausgelegt. Weimar, 1987. p. 350 (D. MartinLuthers Werke, 19).

2 KUNZ, Fredy et alii. Sangradouro nascido da seca nordestina 1979-1984. São Paulo,1985. p. 69 (Experiências Pastorais, 2).

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informações que temos de Amós encontram-se em seu livro.Nenhum outro profeta menciona-o expressamente' e nem mes­mo a Obra Historiográfica Deuteronomista o cita.'

Por conseguinte, o livro profético desempenha papeldecisivo na interpretação. Toda compreensão de Amós é ne­cessariamente mediada por um texto. O presente item querenfocar as "palavras de Amós" como literatura.

Já o fazíamos desde o início. Em cada um dos ensaiosanteriores, está implícita uma visão de Amós como fenômenoliterário. Trata-se, pois, não de introduzir um novo enfoque,mas de lançar sobre ele luz e de nele deter nossa atenção.

Contudo, agora não pretendo fornecer as justificativasdetalhadas para as decisões que, em âmbito literário, fui enca­minhando nas reflexões anteriores. Penso que essa tarefa foisendo realizada à medida das exigências por meio da argumen­tação e, não por último, com ajuda de referências bibliográficasnas notas de rodapé. Por certo, permanecem lacunas, mas seupreenchimento talvez não seja o que mais se faça necessário.

E a que importa dar ênfase ao estudo da formação literá­ria de Amós? Qual o nó que precisa ser aberto e desvendado?

No decorrer da reflexão, tratarei de identificar esseponto nevrálgico, essa encruzilhada. Contudo, já de saídagostaria de confessar que, aqui, não irei muito além do deli-

] A relação entre Amós e Isaías foi estudada, por exemplo, por FEY, Reinhard. Amosund Jesaja; Abhãngigkeit und Eigenstãndigkeit des Jesaja. Neukirchen, Neukirchener,1963 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 12). Quan­to à relação entre Amós e Ezequiel, cf. ZIMMERLI, Walther. Ezechiel. Neukirchen,Neukircher, 1969. pp. 66-67 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 13/1).

4 Compare, contudo, CRUESEMANN, Frank. Kritik an Amos im deuteronomistischenGeschichtswerk - Erwãgungen zu 2.Kõnige 14-27, em Probleme biblischer Theologie.München, Christian Kaiser, 1971. pp. 57ss.

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neamento de um esboço, da formulação de uma hipótese detrabalho. Nas meditações anteriores, em ensaios preceden­tes' e em sintonia com outros pesquisadores, penso haverencontrado certas pistas e elaborado determinados indíciosque, no âmbito de suspeita e de hipótese, permitem formularextrapolações e projetar deduções. A descrição de uma pro­posta é o alvo precípuo do presente item. Com ele, encon­tro-me, por assim dizer, a meio caminho. Com base na jun­ção de dados já colhidos, seja pela pesquisa em geral sejapelas meditações precedentes, olho para a frente, ansiandovislumbrar o trajeto que está por fazer. Estaremos por assimdizer medindo caminho. Em conseqüência, convido a leito­ra e o leitor não tanto a verificar provas, mas muito mais aaquilatar e quiçá aventurar projetos.

o livro

o livro de Amós é um todo. Diferencia-se do livro deJoel, que lhe antecede, e do de Abdias, que lhe sucede. E dáum sentido em si. Tanto o uso eclesiástico costumeiro quan­to a pesquisa exegética usual tendem a perder de vista que olivro de Amós forma uma unidade. A tendência tem sidoseccioná-lo e selecionar parcelas de seu conteúdo. Por isso,convém que se volte a percebê-lo como conjunto.

Além do conteúdo peculiar que dá coesão a seus novecapítulos, podem ser arrolados alguns pormenores que con­firmam o livro como um todo.

5 Refiro-me, em especial, a meus dois ensaios: Profecia e organização. Estudos Bíbli­cos, v. 5, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 26ss (veja item Profecia e organização -Ano­tações à luz de um texto - Amós 2,6-16, p. 161) e Interpretação de Gênesis 12-25 nocontexto da elaboração de uma hermenêutica do Pentateuco, em A família de Sara eAbraão. Petrópolis, Vozes, 1986. pp. II ss.

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Tanto o título (cf. 1,1) quanto a epígrafe ou o moto (cf.1,2) referem-se a tudo o que segue. À luz de 1,1 e de 1,2, osnove capítulos de Amós são urna só grandeza.

As promessas colocadas no final, em 9,11-12.13-15,querem concluir o todo. Por conseguinte, para quem dispôs9,11-15 na saída de nosso livro, os capítulos que lhe antece­dem constituem um só conjunto.

Entre os capítulos que iniciam e os que concluem, exis­tem diversas semelhanças. Refiro-me a Am 1-2 e Am 7-9.Ambos constituem coletâneas. Em Am 1-2 deparamos como ciclo dos povos; em Am 7-9, com o ciclo das visões. Emambos, a futura catástrofe será encaminhada por meio defenômenos da natureza (compare 2,13 com 8,8-9). Além dis­so, a linguagem de 2,6-8 reaparece em 8,4-6.

O livro está perpassado por urna linguagem hínica, aqual reaparece de quando em quando. A ela em todo casopertencem: 4,13; 5,8-9; 9,5-6. Em sua proximidade tambémestão: 1,2 e 8,8. Para esses hinos, o livro de Amós evidente­mente formava um conjunto. E há quem, com boas razões,entenda a composição de nosso livro de acordo com essasparcelas hínicas distribuídas ao longo dos capítulos."

Poder-se-iam adicionar outros pormenores para con­ferir em que medida o texto com o qual estamos lidando éurna só grandeza. Todavia, os que foram anotados certamentejá são suficientes. Alguns pesquisadores mais recentes atése esmeram em ajudar-nos a perceber a inter-relação do todo.'

6 KOCH, Klaus. Die RoJle der hymnischen Abschnitte in der Komposition des Amos­Buches. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 86, Berlin Walter deGruyter, 1974, p. 504-537.

7 Veja a nota anterior e confira também RENDTORFF, Rolf. Das Alte Testament; eineEinführung. Neukirchen, Neukirchener, 1983. pp. 232-235.

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Por isso, penso que podemos dar-nos por satisfeitos, apóshavermos constatado que o livro de Amós, de fato, é umtodo e que este faz sentido como tal.

Camadas literárias

Acabamos de constatar que nosso livro é permeadopor uma linguagem hínica. À parte de desempenhar umafunção no todo dos nove capítulos, como assinalamos, asparcelas doxológicas (cf. 4,13; 5,8-9; 9,5-6, bem como 1,2;8,8) parecem representar uma releitura posterior. Foram in­cluídas quando nosso livro já estava em avançado processode formação. Representam a reação da comunidade à leiturado livro. Havemos de localizá-las em tempos pós-exílicos.As doxologias representam, pois, um adendo posterior, umacamada literária, uma releitura.

A pesquisa histórica tem detectado diversas camadasliterárias no livro de Amós. Além das doxologias, poder-se-iamencionar:

A conclusão escatologizante (cf. 9,11-15) foi agrega­da em Judá, após a destruição de Jerusalém e do reinadojudeu em 587 a.C. Conteúdo e linguajar dos últimos ver­sículos não se coadunam com as ameaças proferidas porAmós no século VIII. Seriam deuteronomísticos?'

Igualmente se pode verificar a existência de uma lin­guagem deuteronomística em diversas partes do livro. Emtempos exílico/pós-exílicos, a escola deuteronomística re-

8 Compare KELLERMANN, Ulrich. Der Amosschluss ais Stimme deuteronomistischerHeilshoffung. Evangelische Theologie. v. 29, München, Christian Kaiser, 1969, pp.169-183.

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leu o material já existente, com base na experiência e nacatástrofe de 587 a.C.9 A essa camada deuteronomística hãode pertencer: 1,9-10.11-12; 2,4-5.10-12; 3,lb.7; 5,25-26.

Afora as três releituras- deuteronomística, escatológica,doxólogica - mais aceitas no âmbito dapesquisa, encontram­se em debate algumas outras propostas. Quem ao meu ver me­lhor soube sintetizar o esforço de verificação de camadas literá­rias foi Hans WalterWolff." Convém relatar sua proposta, embrevidade. Para ele, o livro contém quatro camadas literáriasposteriores, além dos textos autênticos do profeta.

A primeira é "a antiga escola de Amós". A ela são atri­buídos: 5,13.14-15; 6,2.6b; 7,9.10-17; 8,3.4-7.8.9-10.13-14;9,7-8.9-10, partes de 1,1; 5,5 e eventualmente de 2,10-12;5,25-26. Essa escola teria atuado em tomo de 735, em Judá.

A segunda é "a interpretação de Betel", que abarcaria:1,2; 4,6-12.13; 5,6.8-9; 9,5-6 e parte de 3,14. Essa releiturateria ocorrido na área do santuário de Betel, na época deJosias (no terceiro quartel do século VII).

A terceira é "a redação deuteronomística", à qual per­tenceriam: 1,9-10.11-12; 2,4-5.10-12; 3,7; 5,25-26, em par­te 1,1; 3,1 e eventualmente 8,11-12. Esses redatores teriamatuado, na Palestina, na época do exílio.

A quarta é "a escatologia de salvação" dos tempos pós­exílicos, verificável em 9,11-15 e em partes de 5,22 e 6,5.

9 Esta tese foi particularmente defendida por SCHMIDT, Werner H. Die deuteronomistischeRedaktion des Amosbuches - Zu den theologischen Unterschieden zwischen demPropheten und seinem Sammler. Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft,v. 77, Berlin, Walter de Gruyter, 1965, pp. 168ss.

10 WOLFF, Hans Walter.Dodekapropheton2; Joe1undAmos. Neukirchen, Neukirchener, 1969.Em especial pp. 129-138 (Biblischer KommentarAltes Testament, 14/2). Compare, do mes­mo autor: La hora deAmós. Salamanca, Sígueme, 1984. pp. 186-200 (NuevaAlianza, 92).

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Há pontos em comum entre as três releituras literá­rias, das quais inicialmente falávamos, e os resultados alcan­çados por H. W. Wolff. Também há diferenças. Estas aumen­tariam se recorrêssemos a outros pesquisadores." Agora nãovem ao caso fazê-lo, para discutir e dirimir divergências.Importa constatar, à luz do exposto, que a pesquisa, de modogeral, soube avançar na pergunta por camadas literárias emAmós, alcançando propostas apreciáveis. Servem de base.Pode-se partir delas e avançar em direção ao estudo dosurgimento dos textos autênticos de Amós.

Antes de assim procedermos, porém, convém incluiraqui uma breve reflexão intermediária. A pesquisa tem al­cançado seus resultados mais expressivos na análise do tododo livro e de suas camadas literárias. Parece-me que a essesníveis também tem sido aplicada a metodologia mais adequa­da. Afinal, tanto o conjunto do livro quanto as sucessivascamadas redacionais são atribuídos a redatores (plural), es­colas, comunidades, enfim a coletivos. Vem-se percebendogrupos sociais na origem de textos e de conjuntos literários,agregados ao profeta. O coletivo como berço de literaturaparece ser uma premissa aceitável, quase normal, quando seestudam composições e redações.

O mesmo poderia valer para a análise dos textos consi­derados "palavras de Amós"? A pergunta parece ter de rece­ber uma resposta negativa. Afinal, habituamo-nos a analisara fala profética como fala de uma pessoa, de um indivíduo.

11Aponto, por exemplo, para RUDOLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja-Jona. Gütersloh,Gütersloher, 1971. pp. 100-103 (Kommentar zum Alten Testament, 13/2). W.Rudolphdiverge de H. W. Wolff. Compare ainda: MARKERT, Ludwig. Amos/Amosbuch. In:MÜLLER, Gerhard, org. Theologische Realenzyklopãdie. Berlin, Gruyter, 1978. v. 2,pp.471-487.

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E, nesse particular, a pesquisa tem avançado pOUCO. 12 Quan­do agora passo a enveredar por esse caminho, não podereirecorrer a muitos companheiros de caminhada. Cabe, pois, aoleitor e à leitora um papel de redobrada vigilância crítica.

Coleções de ditos

No livro de Amós, podem ser detectados, com certafacilidade, agrupamentos de ditos proféticos. Já o assinala­mos em estudos anteriores (confira itens As visões, p. 33;Rugiu o leão - Javé me agarrou ", p. 40; Exército, cidade etemplo, p. 62). Até mesmo uma primeira leitura é capaz deverificar tais agrupamentos.

Antes de mais nada, trato de localizar as coletâneas.Depois, proponho-me a avaliar o fenômeno.

Os dois primeiros capítulos evidentemente são consti­tuídos por uma coleção, o chamado ciclo dos povos (confiraitem Exército, cidade e templo, p. 62). Estão reunidos cincoditos, dispostos em pares (cf. 1,3-5 + 1,6-8 e 1,13-15 + 2,1-3),com o auge no final (cf. 2,6-9.13-16).

Uma coletânea também se encontra em 3,3-4,3.Designá-la-ei de ciclo anti-Samaria (confira item Exército,cidade e templo, p. 62). Novamente estão agrupados cincoditos, todos polemizando contra a capital de Israel. O pri­meiro fornece a fundamentação teológica (cf. 3,3-6.8), osegundo sintetiza a acusação e a sentença contra Samaria

12 Para perceber as dificuldades do caminho a trilhar, basta ler e comparar: BENTZEN,

Aage. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1968. pp. 272ss; EISSFELDT,

Oito. Einleitung in das Alte Testament. 3. ed., Tübingen, Mohr 1964, pp. 533ss; RAD,

Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Aste, 1974. v. 2, pp. 36-50;BALLARINI, Teodorico. Profetismo e profetas, em Introdução à Biblia. Petrópolis, Vo­zes, 1977. v. 2/3, pp. 56ss.

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(cf. 3,9-11), os três restantes fornecem detalhes (cf. 3,12;3,13-15; 4,1-3) com certo realce para o último (cf. 4,1-3).

Igualmente reconhecida é a composição que marca ostrês últimos capítulos. O chamado cicio das visões (confiraitem As visões, p. 33). Nele estão agrupadas cinco pequenasunidades também dispostas em pares (7,1-3 + 7,4-6 e 7,7-9+ 8,1-3), culminando na última (cf. 9,1-4).

Essas são as três coletâneas de maior porte até agoralocalizadas pela pesquisa histórica dentro do livro de Amós.Considero possível que estudos acurados venham a poderidentificar outro(s) conjunto(s) emAm 5-6. Afinal, chama aatenção que 5,1-2 é retomado em 5,16-17, que 5,4-6 estápróximo a 5,14-15 (cf. também 4,4-5), que em 5,18, em 6,1e, eventualmente, em 5,7 temos palavras que iniciam com"ais". Não há certo paralelismo entre 5,18-20 + 5,21-27 e6,1-7 + 6,8-14? Pelo jeito, ainda não foi dita a "última" pa­lavra sobre o surgimento de Am (4)5-6. 13

Contudo, não me parece que, em nosso livro, só pos­samos encontrar coletâneas de certa extensão, como as trêsmencionadas. Penso que também existem agrupamentosmenores do que, por exemplo, o cicio dos povos. Aqui, nãohá espaço para evidenciá-lo em pormenores. Restrinjo-me aenunciar as possíveis pequenas coleções.

EmAm 6, ocorre um fenômeno interessante. Nos vv.1-7 predomina a denúncia; nos vv. 8-14, a ameaça. Tanto osprimeiros sete versículos, em especial os vv. 1-6 (confira item

13 Nisso a gente se vê reforçado na leitura comparativa dos comentários de WilhelmRudolph iJoel-Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 267ss) e de Hans Waiter Wolff(Dodekapropheton 2; Joel undAmos, cit., pp. 267-297). Compare, por exemplo, tam­bém NEUEBAuER, Karl Wilhelm. Erwãgungen zu Amos 5,4-15. Zeitschrift fiir diealttestamentliche Wissenschaft, v. 78, Berlin, Walter de Gruyther, 1966, pp. 292-316.

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Ditos proféticos, p. 151), quanto os últimos têm caráter decomposição.

É possível que 8,4-14 seja uma pequena coletânea deditos: vv. 4-7 + v. 8, vv. 9-10, vv. 13-14 (vv. 11-12 seriamadendos?). Essa coleção foi enxertada entre a quarta e a quintavisão.

Uma pequena coletânea também é 4,6-11.12, emboraaparentemente oriunda de tempos posteriores a Amós.

Portanto, além de constatarmos a existência de verda­deiros ciclos (cf. Am 1-2; 3--4 e 7-9), penso podermos tra­balhar com a hipótese de pequenas coleções (cf. 8,4-14) nolivro de Amós.

Que significam essas observações? Avaliemo-las.

No atual livro de Amós, os agrupamentos de ditos ain­da aparecem com maior (cf. 1,3-2,16) ou menor (cf. 7,1-9 +8,1-3 + 9,1-4) nitidez. Outras coleções só aparecem comotais por meio de um estudo detalhado do texto (cf. 3,3--4,3;5,18-6,14), não passando de teses, mais ou menos prová­veis. Daí se pode deduzir que aqueles que compuseram nos­so livro não se restringiram a adicionar e emendar coleçõesjá existentes. Delas se valeram para criar um novo texto, oque se pode observar tanto em 1,3-2,16 quanto em 7-9. Oscompiladores fizeram valer seus próprios critérios e interes­ses na elaboração e conjugação dos textos. Tanto em Am1-2 quanto emAm 7-9 os ciclos dos povos e das visões servi­ram de matriz ou de lastro para a confecção dos textos fi­nais. O mesmo não parece ter ocorrido emAm 3-6. (Por queseus compiladores seriam outros que os de Am 1-2 e 7-9?)Neles, repetem-se três vezes a expressão "ouvi esta pala­vra!" (3,1; 4,1; 5,1). É possível que a interjeição "ai" (5,8 e

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6,1) tenha sido entendida como substituta de "ouvi esta pa­lavra!" E essa expressão certamente remonta aos compila­dores, não sendo, pois, como víamos em relação a 3,3~,3,

início de um antigo agrupamento de ditos. Em suma, os agru­pamentos ou coletâneas, em parte, estão a meio caminhoentre a fala de Amós e o atual livro, isto é, são uma espéciede "pré-moldados" ou pedras de alicerce usadas pelos "cons­trutores"/compiladores do livro. Em parte, passam por pro­fundas e significativas reformulações ao ser incorporadosno texto atual. Esse duplo fenômeno toma-se mais compre­ensível se, agora, passarmos a perguntar em que medida nos­sas coletâneas são textos e em que medida são memória.

Por um lado, as coleções já são literatura. Provavel­mente, foram a primeira formulação literária dos ditos deAmós. "O primeiro estágio para o surgimento de um livrofoi a formação de uma pequena coleção de ditos isolados.'?"É difícil comprová-lo, no caso de nosso profeta. Talvez sepudesse apontar para os adendos posteriores em Am 1-2 e7-9. Ora, tais acréscimos tomam-se mais explicáveis se ima­ginarmos que os textos-base, aos quais foram agregados, jáexistiam em forma literária. Em todo caso, em outros profe­tas pode-se verificar, com maior facilidade, que certas cole­ções de seus ditos existiam literariamente. É o caso de Is6,1-9,6 (o memorial da guerra siro-efraimita), como o com­prova 8,16 (cf. 30,8-17). Tomo a liberdade de designar essaformulação literária de agrupamentos ou coletâneas de ditosproféticos de panfleto. 15 Os primeiros textos de Amós de­vem ter surgido como tais panfletos.

14 HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, 1975.p. 144, Confira também EISSFELDT, Einleitung in das Alte Testament, cit., pp. 194ss,

15 Veja WEBER, Max. Das antikeJudentum, 3. ed., Tübingen. J, C. Mohr, 1963. pp. 281­282 (Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie, 3).

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Por outro lado, as coleções ainda são fala. Podem ter sidocriadas pelo próprio Amós para poder apresentá-las no grupode seus discípulos ou em público. O ciclo dos povos e o dasvisões devem ter surgido desse modo. As coletâneas tambémpodem ter surgido após a fala pública. Ditos semelhantes sãoagrupados tematicamente. Essa deve ser a origem de 3,3--4,3, ociclo anti-Samaria, Em todo caso, nessas coleções ainda nãoliterárias, a memória desempenha papel primordial. Têm o ta­manho e o jeito da memória, ou seja, são temáticas e, via deregra, juntadas de acordo com certos critérios e condiciona­mentos mnemotécnicos. Números, seqüência, paronomásia,leitmotiv etc. passam a assumir papéis destacados, justamente,em coletâneas pré-literárias. Tais coleções "inscritas" na me­mória podem ser chamadas de "poemas?" e memoriais.

Portanto, agrupamentos/coletâneas/coleções são fenô­meno de transição. Marcam a passagem da fala profética (queocorre em forma de dito, como logo veremos), pelo memorial(ainda oral), para o panfleto (já escrito). Antes de ser escrita, aprofecia de Amós foi memória. Antes de ser memória, foi fala.

Na transformação da fala em memória ou panfleto, suce­de algo de grande relevância. À fala são adicionadas novas di­mensões. Ocorrem mutações. Visualizemos duas. Primeira:muito mais gente vem a ter acesso à fala, já que ela passa a serreproduzida e reduplicada pela memória ou pela letra. Por con­seguinte, ao ser coletada, a fala passa por um processo de am­plificação. Memória e letra são os "amplificadores" da fala pro­fética, no caso de Amós. Segunda: a fala cresce em conteúdo.Um dito isolado de Amós contra o exército ou a capital Samariaera bem menos incisivo, eficaz e contundente do que uma cole-

16 ErSSFELDT, Einleitung in das Alte Testament, cit., pp. 106-107.

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tânea, cujo ápice é a ameaça ao exército (cf. 1,3-2,16) ou aosantuário (cf. 7,1-9 + 8,1-3 + 9,1-4) ou cujo tema único, repeti­do qual refrão, é o aniquilamento da central de poder (cf. 3,3­4,3). Há, pois, uma radicalização do conteúdo mediante ajusta­posição de ditos. Portanto, por meio da coletânea, a profecia,também a de Amós, "cresce" por se alastrar e se tomar maisradical. Cresce em irradiação e em profundidade.

Além das anteriores, é acrescentada ao dito proféticooriginal outra dimensão. O dito colecionado, em especial opreservado por discípulos, é o que foi comprovado, confirma­do pelo ouvinte. Os ouvintes reencontraram-se no dito profé­tico. Sintonizaram com seu conteúdo. Nas coleções - sejamelas memoriais ou panfletos - temos o dito do profeta e aopinião de ouvintes sobre o dito. Pode-se dizer, ao meu ver,que o ouvinte ratifica a profecia de dois modos. Por um lado,compara o conteúdo proclamado pelo visionário com seu co­nhecimento das tradições teológicas herdadas: o testemunhoprofético sobre Javé coincide com o promulgado pelos ante­passados? Por outro, compara-o com a situação em que vive:a profecia faz jus ao momento e ao contexto? Em outros ter­mos, pode-se, pois, dizer que o ouvinte atesta veracidade aodito mediante seu ouvir e conhecer e, simultaneamente, me­diante sua vida. A verdade profética é conferida por ouvidos epor pés. Gnose e prática dos ouvidos estão presentes nosurgimento do memorial ou panfleto profético. É evidente que,no caso de Amós e dos demais profetas, a prática e o saber dagente simples, dos camponeses empobrecidos e dos que comeles se reconhecem solidários são decisivos no surgimento daliteratura profética. Palácios ou burocratas não terão tido inte­resse em preservar ditos proféticos. Os ouvintes que trataramde coletar e sedimentar a fala dos visionários eram campone-

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ses e pobres. A literatura profética nasce como memória dospobres, em especial da gente do campo. Isso não significa quea gente palaciana e os burocratas da religião não pudessemigualmente se ter preocupado pelo que dizia o profeta. Atéconhecemos de nome um dos oponentes que memorizou oque Amós dissera. Chama-se Amasias (cf. 7,10-17). Esse sa­cerdote de Betel soube sintetizar a mensagem do pastor deTécua. Memorizou-a, até. Contudo, este ouvinte sacerdotalapreendeu a mensagem profética não para preservá-la, e simpara extingui-la. Com a expulsão de Amós (cf. 7,12-13),Amasias esperava poder dar um fim à profecia. Sua conta nãofechou. Portanto, as coletâneas de ditos proféticos não só re­presentam a fala profética. Incorporam o testemunho dos ou­vintes, que atesta a veracidade das "palavras de Amós".Memoriais e panfletos são a fala profética e seu eco.

Pudemos, pois, observar que, primeiro, no livro deAmós existem diversos agrupamentos de ditos proféticos;segundo, esses memoriais ou panfletos representam um fe­nômeno de significado específico. Temos acesso à fala deAmós por meio das coleções. Isso implica, entre outros, quesó conhecemos Amós na mediação de seu eco.'?

Ditos proféticos

Mencionei,por diversasvezes, os ditosproféticos. De fato,eles representamo principal fenômeno de nosso livro.Nele estão

17 Observações semelhantes foram feitas a respeito da transmissão dos evangelhos: Noes posible separar a Jesús de determinados grupos dentro dei pueblo judio y, sobretodo, de sus primeros seguidores ... Cuando se trata de estudiar hechos históricos espreferible hablar; más que dei Jesús histórico, dei movimiento primitivo en torno aJesús (SCHüTTRüFF, Luise & STEGEMANN, Wolfgang. Jesús de Nazaret; esperanza delos pobres. Salamanca, Sígueme, 1981. p. 13).

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reunidosditos.Essaspequenasunidadesde sentidosãoconstituí­das de um ou de alguns poucos versículos. Designamo-las deperícopes. O livrodeAmós é uma compilaçãode taispericopes,de pequenasunidades de sentido. São a fala do profeta.

Por isso, numa primeira leitura, o livro de Amós pare­ce ser "estranho". "Salta de um assunto ao outro" (Lutero).Ao menos, é a sensação que se tem à medida que se lê olivro esperando uma literatura contínua, um texto coerente ecom seqüência transparente. Os assuntos carecem de umaconcatenação rigorosa.

Ao ler o livro de Amós, faz-se necessário consideraras descontinuidades de assuntos. Cada uma das pequenasunidades tem seu jeito especial. Tem forma, estilo, gênero,contexto, endereço, conteúdo específicos e diferenciadores.Os limites entre uma e outra perícope, via de regra, são fá­ceis de reconhecer. Para escavar o sentido do livro, não sepode passar de largo pelas perícopes.

Não só o sentido do livro está estreitamente vinculadoao sentido das unidades menores. Também, e em especial, aorigem do próprio livro precisa ser explicada segundo asperícopes. A essa tarefa será dedicado o que segue.

Inicio por um exemplo. Para compreender sentido eorigem de Am 3, evidentemente será imprescindível consta­tar que é parte do contexto literário de Am 3-6. Evidencia-oa introdução (cf. 3,1_2).18 Além disso, ter-se-á de levar emconta que 3,3--4,3 poderia representar um antigo panfleto(confira itens Exército, cidade e templo, p. 62; Coleções de

18 Cf. ANDTNACH, Pablo Ruben. "Amós - Memória y profecia - Análisis estructural yherrnenéutica". Revista Bíblica, v. 13, Buenos Aires, Sociedad Argentina de Profesoresde Sagrada Escritura, 1983, p. 227ss.

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ditos, p. 144). Contudo, não é suficiente estar atento para ocontexto literário redacional (isto é, para Am 3-6) e nembasta ter em mente que na base de Am 3 está um panfleto. Eisso se deve ao próprio jeito de ser do capítulo. Se fossesuficiente lê-lo como obra de redatores ou de panfletistas,então se esperaria que fosse um discurso profético coeso,lógico, conseqüente, unitário. Não é, porém, o caso. Am 3 nãoé um texto contínuo; não é um discurso coeso. Por isso,não basta que nos restrinjamos a seu nível redacional oupanfletário. Teremos de respeitá-lo em sua peculiaridade, qualseja a de ser uma coletânea, uma junção de pericopes: vv. 1-2,vv. 3-8, vv. 9-11, vv. 12, vv. 13-15. Pelo visto, as perícopestiveram tamanho vigor e persistência a ponto de se imporpor ocasião do surgimento do memorial ou panfleto e porocasião da elaboração redacional. Por conseguinte, para com­preender sentido e origem de Am 3, impõe-se entender porque a perícope é seu elemento constitutivo. Donde provêmconstância e perseverança da perícope? Tento esboçar umaresposta histórica à pergunta.

A rigor, existem dois tipos de pericopes. Algumas sãomuito breves. Outras já são um pouco mais extensas.

Entre essas pequenas perícopes, estão as seguintes:3,12; 5,7.10.11.12; 6,8.11.12; 9,7.8 (cf. também 1,2). Essaspequenas unidades podem ser isoladas, com relativa facili­dade, de seu contexto literário imediato. Cada uma é com­pleta em si; faz sentido. E, além disso, é coesa.

Também entre as pericopes que são um pouco maisextensas existem diversas que, aparentemente, são coesas.Cito as seguintes: 1,3-5.6-8.13-15; 2,1-3; 4,4-5; 5,4-5.14­15.16-17; 6,9-10.13-14; 7,1-3.4-6; 8,9-10.13-14; 9,9-10.Entre elas também caberia 4,1-3, cujo texto original está um

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tanto corrupto, e 5,18-20, que, porém, já apresenta algumasfissuras.

As pericopes até aqui enfocadas - sejam elas peque­nas ou um pouco mais extensas - caracterizam-se por suacoesão. Seu conteúdo tem seqüência lógica. Não acontecemsaltos. Via de regra, também não se observam desacertos

igramaticais. Daí por que é possível dizer que tais perícopes,'aparentemente obtiveram uma redação uniforme. Poderiam,remontar a um autor específico individual. É evidente queuma formulação coesa não permite necessariamente inferirum autor individual. Também um grupo é capaz de criar umtexto sem saltos e fissuras. Em princípio, porém, não deixade ter sua justeza suspeitar um único autor por detrás detextos coesos. Nesse sentido, tem agido corretamente quemfez remontar as perícopes citadas à autoria do profeta Amós.

Acontece, porém, que existem diversas pericopes maisextensas que não são nada coesas. Mencionemo-las: 2,6-16;3,3-8.9-11.13-15; 5,21-27; 6,1-7; 7,7-9; 8,1-3.4-8; 9,1-4. Omesmo que eu afirmei a respeito das perícopes coesas pode­ria dizer também a respeito das que agora enfocamos queremontam a Amós, tendo sido, contudo, posteriormenteacrescentadas (por exemplo: 2,6-16 teria recebido o acrésci­mo dos vv. 10-12) ou tendo sido colecionadas por amigos(por exemplo: 8,4-8 seria obra dos discípulos que reuniramdiversos pronunciamentos proféticos). Penso que essa ex­plicação não deixa de ter seu sentido. É viável. Seu defeitoreside, ao meu ver, no fato de creditar a origem do dito e,conseqüentemente, da literatura profética, em demasia equase exclusivamente, a um só autor, no caso, Amós. Aotender a reduzir a autoria a uma pessoa, simultaneamentetende a ter de explicar rupturas e ausências de uma coesão

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rígida com base em outros autores e interpoladores. Por isso,proponho que se estude a viabilidade de ver na origem dodito profético, das "palavras de Amós", uma autoria grupale coletiva. Os textos viabilizam essa suspeita?

No entanto, antes de prosseguirmos nessa trilha, é opor-tuno enriquecer nossa reflexão com um dado a respeito da

\linguagem~'()s~eostumam diagnosticar cIi.prpgnosticar. Numrnoíllebto,!~noutro, anunciam:.~ especial ameaçaml9 Para Amós, a duplicidade de de­núncia e ameaça é característica. Na pergunta pela origemda fala e dos textos, é preciso tê-la em mente. As denúnciase as ameaças proféticas de Amós podem ter origem grupal?

Para alcançar avanços na questão, impõe-se o estudodos textos. A rigor, só uma observação atenta das perícopesem questão poderá confirmar ou falsificar nossa suspeita.

A respeito de alguns textos de Amós, fiz anotações emoutros ensaios. Pressuponho-as aqui. E resumo-as brevemente.

As frases programáticas de 5,4b.6a.14a.15a.24 (cf.3,10a) não parecem ser formulações do momento, mas con­densações de todo um conjunto de reivindicações, tendo, pois,sua origem na luta da gente do campo, na disputa política eteológica, em manifestações sociais. São as formulaçõesgeneralizantes e axiomáticas das propostas para uma novasociedade. São uma espécie de teoria que brota da prática.

Em 2,6-16, a denúncia agrupa diferentes casos deopressão. Provém de experiências específicas de diferentespessoas ou grupos; brota do chão do movimento social.

19 WESTERMANN, Claus. Grundformen prophetischer Rede. 4. ed., München, ChristianKaiser, 1971 (Beitrâge zur evangelischen Theologie, 31), confira item "Assim disseJavé ", p. 44.

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Sua origem é, pois, grupal e coletiva. Na base do dito profé­tico, está não só a pessoa do profeta, mas também o grupoprofético."

Gostaria de ater-me a mais duas perícopes. Opto por3,9-11 e 8,4-8, contudo sem pretender ir ao detalhe. Trata-sede duas unidades bastante diferentes. Uma tem sido atribuí­da a Amós; a outra, a seus discípulos."

Vimos que 3,9-11 ocupa papel de destaque no ciclo anti­Samaria (cf. 3,3--4,3). Sintetiza-o. Duas são suas partes: a pri­meira denuncia (vv. 9-10), a segunda ameaça (v. 11).A amea­ça constitui uma linguagem homogênea. Compreende-se comodedução das denúncias anteriores ("por isso"). É introduzidapela fórmula do dito de mensageiro ("assim disse o SenhorJavé"). Três afirmações compõem seu conteúdo. A primeirarefere-se a um cerco (o texto original é um tanto incerto), asegunda a uma derrota e a terceira ao saque. A terra é cercada;a força (isto é, o exército) é derrotada; os palácios são saquea­dos. A lógica é evidente: a progressão vai do maior (terra!território) ao menor (palácio), do cerco ao saque. Sem som­bra de dúvida pode-se afirmar que o v. 11 é coeso. O mesmo,porém, não se pode afirmar da denúncia (vv. 9-10). O v. 9 éem si completo. Não carece de continuação. E o v. 10, por suavez, também é completo. Adicione-se que o v. 9 refere-se auma 3ª pessoa singular, o v. 10a a uma 3ª pessoa plural. Aforaisso, a fórmula do dito divino ("dito de Javé"), em meio aov. 10, realça a autonomia do versículo. Há, pois, bons motivospara que se afirme que o v. 9 e o v. 10 são duas denúncias

20 Cf. item Profecia e organização - Anotações à luz de um texto - Am 2,6-16, p. 161.

21 Veja comentário de WOLFF, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 228-233 e370-384. Wilhelm Rudolph admite que 8,8 poderia ser do círculo de discípulos (Joel­Amos-Obadja-Jona, cit., pp. 264-265).

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distintas, com peculiaridades específicas de forma e de con­teúdo. Aliás, se com base nessa percepção passa-se a inquirirsobre a conexão entre denúncia (v. 9 +v. 10) e ameaça (v. 11),percebe-se que a segunda não coaduna exatamente com a pri­meira." A fórmula do dito do mensageiro ("assim disse o Se­nhor Javé") do v. 11colide com a fórmula do dito divino ("ditode Javé") do v. 10, além do que o v. 11 refere-se a uma2ª pessoa singular, distinguindo-se, pois, tanto do v. 9 (3ª pes­soa singular) quanto do v. 10 (3ª pessoa plural). Pelo visto, apericope 3,9-11 é uma composição de três unidades menores,sendo o termo "palácio" (presente nos três versículos) e a con­junção "por isso" (no início da ameaça) elementos de inter­ligação. Como explicar o fenômeno? Os vv. 9-11 poderiamter sido compostos por ocasião da formulação do memorialou panfleto (cf. 3,3-4,3), para servir de denúncia e ameaçabásica à capital. É possível que assim tenha sido. Todavia, acomposição também pode ter surgido por ocasião do pronun­ciamento profético de Amós. No caso, seria uma condensaçãode duas denúncias sob inclusão implícita de uma reivindica­ção (v. lOa). Tratar-se-ia, então, de um texto, no qual Amósassume e compartilha formulações daqueles com os quaisconvive. Uma possibilidade não exclui a outra. Em ambas, apericope aparece como fenômeno coletivo.

À semelhança de 3,9-11, também 8,4-8 é formado dedenúncia (vv. 4-6) e ameaça (vv. 7-8). Como em 3,9-11, adiagnose ocupa maior espaço. Contudo, dessa vez falta umaligação mais evidente entre denúncia e ameaça. O v. 7 reme­te só genericamente para o que antecede. Ao se referir a "to­das as suas obras", é pouco concreto. Acrescente-se ainda

22 Compare ROBINSON, Theodore H. Die Zwolf Kleinen Propheten; Hosea bis Micha.Tübingen, J. C. B. Mohr, 1964. pp. 82-83 (Handbuch zum Alten Testament, 14).

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funós seja a confluência de uma linguagem grupal, eviden-rtemente teríamos de apropriar-nos, oom vigilante cautela"fe resultados crítico-literários, alcançados por meio do~ pres­,supostos de uma autoria individual. Contudo, ant~de avan- J

rarmos para tais tarefas, por certo devemos ampliar e,aprofundar o estudo e o conhecimento de panfletos e de pe­rícopes proféticas, dos ditos e das "palavras de Amós".

Retrospectiva

No presente estudo, quis enfocar as "palavras deAmós"como literatura. Tentei esboçar o surgimento do livro, combase no dito profético, compreendido como criação coleti­va, na qual o profeta Amós desempenhou papel decisivo,mas não exclusivo. Em retrospectiva posso ressaltar o se­guinte:

Destaquei que nosso livro de Amós é um todo. Há in­dícios evidentes para sustentar a afirmação: o início (cf. 1,1+ 1,2) e o final (cf. 9,11-15), por exemplo, exigem que seleiam os nove capítulos em questão como um só texto.

A composição literária de nove capítulos não parece tersurgido de uma só vez. A pesquisa crítico-literária conseguiumostrar a existência de camadas redacionais: uma acentua adoxologia, outra a escatologia e a terceira provém do deu­teronomismo. É possível que existam outras camadas. Taisacréscimos ajudam a compreender a história do texto deAmós.

.....m:-seno livro, no lJiiJin1o,'"..'...,I'PtIIIPs, êiêtóI (Am 1-2; 7-9; em 3,3-4,3).tDitâii••'1_.~(ainda_imosao~.·.~ ••"fIlavras~)ecle~-<tIfíIlii.'''I•.-escritas dos.ditos). Os memoriaise.8i••tf'.

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t~ o testemunho dos"ouVinteS5SI&IÍIosó fala prof~ImastaJIlbém seu ectl

\OS ditos proféticos sio u~ básicas da tà1t~féti~o-laS de ··~·origem da litel'atUt~ profética e-osentido de _~·necessitam ser*• dessas pequenasuni~ Tentei mostrar que tais ditose pericopes são não só intuições da personalidade de Amós,mas também desaguadouros de experiências coletivas. O dito;

.é ttambém um produtogmpai. r~b$ver elucidado, coDlbasenaspróprias pericopes, ÚktidBque,permitam trabaBíal''c)m essa hipô~~ ~vrai'de'Amôi" estão embebidas~ seu contexto e do clam6tdóI'~kkJs.

Essas hipóteses têm a ver com a cultura oral e a buscade ir às culturas em seu cotidiano. Parte-se de um texto, umtexto que não se pode questionar no real, com entrevistas.

O texto sozinho, porém, não basta, porque se faz ne­cessário situar as palavras.

Palavras completas, ditos, pequenas narrativas. Elasconstituem o texto. Não é um texto contínuo.

Os signos postos para unir o todo sempre estão liga­dos aos fragmentos.

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7. Acréscimos

Os seis itens anteriores constituem uma unidade. Emsua base estão seis conferências temáticas sobre Amós, pro­feridas em Caracas, Venezuela. Nesses seis estudos, parti docontexto histórico do profeta e concluí com observaçõessobre o surgimento do livro de Amós.

Neste sétimo item, acrescento mais dois ensaios que sur­giram em contextos diferentes aos dos primeiros seis capítulosdo presente livro. Em ambos os ensaios, a metodologia vai porcaminhos similares. Tento mostrar que uma leitura, que consi­dere perguntas sobre o contexto e enfoques sociais dos textos edos temas proféticos, é muito necessária para a compreensão.

Considerando esses enfoques, os dois próximos en­saios explicitam e detalham os métodos de leitura que foramusados também nos seis capítulos anteriores.

Profecia e organização -Anotações à luz de um texto -Am 2,6-161

I

Os profetas do Primeiro Testamento estavam vincula­dos aos movimentos sociais de seu tempo? Caso estiverem,pode-se percebê-lo nos textos proféticos?

1 Este ensaio foi inicialmente publicado em Estudos Bíblicos, v. 5, Petrópolis, Vozes,1985, pp. 26-39. A temática do referido número de Estudos Bíblicos foi "Bíblia eorganização popular".

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Para os profetas, o futuro é obra de Javé. Tanto a amea­ça quanto a promessa serão concretizadas por Deus. Sãomuitos os textos que o comprovam. Menciono tão-somentealguns poucos: a realização da ameaça profética é obra divi­na, por exemplo, emAm 7,1-9 + 8,1-3; Os 1,2-9; Is 1,24-27;Jr 7,1-8,3. Igualmente a implantação da promessa é feitoexclusivo de Javé, por exemplo, em Os 14,2-9; Sf3,12; Ez37; Is 43,1-13. Portanto, o discurso profético é eminente­mente teológico.

Contudo, poder-se-ia deduzir daí que os profetas tão­somente seriam grandes indivíduos ou personalidades teo­lógicas? Isolá-los de tudo e de todos seria a melhor maneirade compreendê-los? Desenraizá-los do social seria a herme­nêutica adequada? Não me parece que a resposta afirmativaa tais insinuações seja a conseqüência suficiente à primaziada ação divina na fala profética.

Ora, os próprios textos bíblicos barram uma explica­ção demasiadamente personalista da teologia profética.Memorizemos algumas cenas e dados: Natã sabidamenteviveu e atuou nas imediações da corte real de Davi. Seusfilhos chegaram a ser funcionários de Salomão que, em boamedida, deveu seu trono à astúcia de Natã (cf. 1Rs 1,11-31;4,5). Sabendo de tal localização social deste profeta, toma­se mais transparente o conteúdo de sua fala, em 2Sm 7 e12.2 Há uma vinculação entre o contexto de Natã e os textosque dele nos falam. Jeú foi ungido rei por um dos discípulosde Eliseu (cf. 2Rs 9). Na cena, a profecia aparece em cone­xão estreita com um golpe de Estado. A oposição que Elias,

2 Veja a respeito meu ensaio Natã precisa de Davi - Na esperança da Igreja profética.Estudos Teológicos, v. 28, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1978. pp. 99-118.

162

Eliseu e seus discípulos esboçavam à casa de Acab (cf. 1Rs17-2Rs 9) não era, pois, somente um enfrentamento pes­soal. Na atuação destes profetas vinha à tona um desconten­tamento social mais generalizado contra os onridas.' Mi­quéias, defensor inconteste do "meu povo", isto é, dos cam­poneses empobrecidos de Judá, tem suas raízes no interior,no vilarejo de Moresete-Gate. É provinciano." Isaías, seucontemporâneo, é oriundo de Jerusalém. Seu quadro de re­ferências provém da capital. O enraizamento social tão dife­rente de ambos contribui grandemente para a avaliação desuas palavras. A origem distinta ajuda a compreender porque Isaías vê em Sião uma grandeza tão positiva e por queMiquéias rejeita o mesmo Sião tão radicalmente (cf. Is 8,18;Mq 3,12; Jr 26,16-18). A profecia de Sofonias, na segundametade do século VII, transpira, com nitidez, o ambiente darevolução camponesa que conduziu ao trono um menino deoito anos, Josias (cf. 2Rs 21,19-26). Em Sofonias 2,3 e 3,12emergem propostas do movimento camponês vitorioso. Aspropostas de Ageu quase que se tomam chocantes quando

J os estudos de Nancy Cardoso Pereira nos mostraram que a imagem de Eliseu queobtemos segundo 2Rs - marcada pelo deuteronomismo - não é propriamente a queos textos antigos sobre Eliseu nos oferecem: Profecia e cotidiano, São Bernardo doCampo, Universidade Metodista de São Paulo, 1992, 167 p. (dissertação de mestrado),e Cotidiano sagrado e a religião sem nome; religiosidade popular e resistência cultu­ral no ciclo de milagres de Eliseu. São Bernardo do Campo, Universidade Metodistade São Paulo, 1998. 259 p. (dissertação de doutorado). A pesquisa de Pedro JulioTriana Fernández indicou que os grupos proféticos em tomo de Elias e Eliseu fazemparte de um movimento social contestatário à monarquia israelita do Norte. Profecia;resistência e sobrevivência - Um estudo sobre a vida do povo de Israel durante adinastia de Jeú. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1998.334 p.).

4 A respeito, veja meu ensaio Igreja como povo - "Meu povo" em Miquéias. A Palavrana Vida, n.15, Belo Horizonte, Centro de Estudos Bíblicos, 1989,24 p. Os estudossobre o contexto de Miquéias estão sendo aprofundados por Noli Bernardo Hahn, emsua tese doutoral (A profecia de Miquéias e meu povo; memórias, vozes e experiên­cias. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2002, 283 p.).

163

lidas em comparação com as dos profetas pré-exílicos. Elepropõe reconstruir o templo (cf. Ag 1,8), estes anunciavamsua demolição (cf. Am 9,1-4; Jr 7,1-8,3). A diferença difi­cilmente é entendida sem que seja vinculada à política dospersas, senhores do mundo nos dias de Ageu. A teologia deAgeu é contextua1. Esses dados e cenas de maneira nenhu­ma pretendem explicar a profecia meramente no âmbito his­tórico. Já inicialmente insisti que a profecia requer meto­dologia teológica; a vocação profética não é reduzível aocontexto. No entanto, igualmente não se pode reduzir o con­texto a mero ornamento circunstancial ou quadro externo daprofecia. Pois, de fato, o próprio conteúdo da profecia trazencravado o contexto. E é esta a questão que pretendotematizar no presente ensaio. Quer dizer, ater-me-ei não tantoa descrever e avaliar o conteúdo teológico, mas mais a per­ceber a gênese histórica ou a emergência social de palavrasproféticas.

Esse enfoque tem sido pouco trabalhado, justamentepor isso convém que nos restrinjamos a um só texto. Opteipor um do início da "profecia clássica": Am 2,6-16.

6Assim disse Javé:

Por causa de três delitos de Israel

e por causa de quatro, não o (=castigo) retirarei.

Eis que vendem por prata o justo,

o pobre por um par de sandálias.

"Pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos.

O caminho dos oprimidos desviam.

Um homem e seu pai dormem com a (mesma) jovem

a fim de profanar meu santo nome.

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8Sobre roupas empenhadas deitam ao pé de cada altar.

Vinho de multados bebem na casa de seu deus.

9Eu,porém, havia destruído os amorreus diante deles,

cuja altura era como a dos cedros

e que eram fortes como os carvalhos.

Destruí seu fruto por cima

e suas raízes por baixo.

IOEu vos tirei da terra do Egito,

conduzi-vos no deserto durante quarenta anos

a fim de tomar posse da terra dos amorreus.

"Suscitei profetas dentre vossos filhos

e nazireus dentre vossos jovens.

Não foi isto que efetivamente aconteceu, filhos de Israel?

Dito de Javé.

12Porém, fizestes beber vinho aos nazireus

e aos profetas ordenastes: Não profetizeis!

l3Eis, eu abrirei sulcos debaixo de vós,

como abre sulcos a carroça carregada de espigas.

14Não haverá refúgio para o ágil,

o forte não encontrará sua força,

o valente não salvará sua vida.150 arqueiro não resistirá,

o ligeiro de pés não se livrará,

o condutor do cavalo não salvará sua vida.160 mais corajoso entre os valentes fugirá nu naquele dia.

Dito de Javé.

165

II

Há muito se percebeu que uma das característicasmarcantes da fala profética é ser constituída de duas partes.Na primeira temos análise da situação, descrição das injus­tiças e da idolatria reinantes. Na segunda parte temos o prog­nóstico, a ameaça divina contra os causadores da injustiça eda descrença. Quando tal prognóstico evoca esperança, istoé, quando se apresenta como promessa, via de regra falta odiagnóstico social. Costumamos designar a primeira partede denúncia e a segunda de ameaça (ou, dependendo do caso,de promessa).

Em Am 2,6-16 encontramos um típico dito profético,introduzido como fala de mensageiro ("assim disse Javé"v. 6) e concluído como fala divina ("dito de Javé" v. 16). Notexto, Amós até faz duas vezes a trajetória da denúncia àameaça (à semelhança do contexto anterior: 1,3-2,5). Nov. 6a, diagnose ("transgressões de Israel") e prognose ("nãoo [isto é, o intuito de destruição] mudarei") são bastante ge­néricas. Os vv. 6b-12 dão os detalhes da diagnose; os vv. 13­16, os da prognose. Portanto, nosso texto é semelhante atantos outros dentre a profecia: inicia com a denúncia (vv.6b,7-12) e conclui com a ameaça (vv. 6a.13-16).

Detenhamo-nos a observar a coesão de linguagem decada uma das partes. Na ameaça, o fluxo lógico é contínuo enada complicado.

No v. 13, a prognose é apresentada em figura, nadafácil de interpretar. Provavelmente alude a uma carroça,sobrecarregada da colheita. Nesse caso, o "abrir o chão"(Bíblia de Jerusalém), "sulcar" ("oscilar"? Almeida), causa­do por Javé (v. 13a), deve estar referindo-se ao terremoto(cf. Am 1,1; 9,1-4).

166

Nos vv. 14-16, é descrita a conseqüência de tal terre­moto entre o exército. Portanto, a disposição lógica dos vv.13-16 nada deixa a desejar: começa por linguagem figuradae delonga-se em sua concretização. O mesmo não se dá nadenúncia. Demoremo-nos em observá-la:

Ela, a rigor, consiste em duas partes. A primeira elencauma série de delitos (vv. 6b-S). A segunda rememoriza epi­sódios da história (vv. 9-11 [12?]). Estes servem de contras­te para aqueles. Os episódios da história evidenciam a bon­dade de Javé, o que torna ainda mais chocantes e inex­plicáveis as atrocidades cometidas. Na verdade, porém, ov. 12 rompe a seqüência lógica que justapõe os vv. 6b-S aosvv. 9-11. Pois, o v. 12 não recorda a bondade divina (obser­ve também a fórmula do dito divino no final do v. 11). Re­lembra, isso sim, a maldade de israelitas, sendo semelhanteaos vv. 6b-S. No entanto, o v. 12 também não deixa de seruma nítida continuação do v. 11 (ambos tratam de profetas enazireus), sendo até distinto dos vv. 6b-S. Aqueles enume­ram transgressões atuais; o v. 12 está voltado a delitos pas­sados. Nessa peculiaridade do v. 12, já se pode notar que nadenúncia a coesão é bem menos consistente. Isso se tornaainda mais patente ao destacar outros desacertos na diagnose.Vejamo-los.

Nos vv. 6b-9 é denunciada a 3ª pessoa plural ("eles"),nos vv. 10-12, a 2ª pessoal plural ("vós"). Nos vv. 9-10 hámais outra incongruência: a referência à saída do Egito(v. 1Oa) e à peregrinação pelo deserto (v. 1Ob), a rigor, deve­riam anteceder o v. 9, a referência à libertação da terra. Es­sas duas observações (os vv. 10-12 se referem a uma 2ª pes­soa plural; o v. 10 caberia melhor antes do v. 9) podem atésuscitar a pergunta sobre se os vv. 10-12 não são acréscimos

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posteriores. Contudo, a suspeita fica um tanto relativizadaquando se detecta, no mínimo, outra ruptura.

Penso na passagem do v. 6b para o v. 7. O v. 6b asseme­lha-se a seus correspondentes em 1,3-2,5; sua tradução literalseria a seguinte: "Por causa do seu vender...". O estilo do v. 7é outro; sua tradução literal seria: "Os que pisam ...". Aliás, apartir da segunda frase deste v. 7, há nova alteração: "Des­viam...". Junta-se a esses dados todos o fato de que os vv. 6b-Ssão um tipo de listagem de cenas muito diferentes entre si(confira a seguir) e, então, não restará dúvida de que a denún­cia/diagnose de modo algum tem uma linguagem unitária ecoesa como a que verificávamos na ameaça/prognose. Por quê?

ttt

Atenhamo-nos às disformidades vistas na denúncia;demo-nos conta da diversidade das cenas enumeradas. Antesde cumprir esta tarefa, porém, é preciso ter claro que na inter­pretação das diversas cenas permanecem muitas dúvidas.Quase só deparamos com breves alusões, compreensíveis paraos ouvintes de então e para os primeiros leitores, mas compli­cadas para nós. Aqui não é o local de esmiuçar os problemas.Por conseguinte, preferi ater-me, na avaliação de cada denún­cia, ao que é mais ou menos consensual entre exegetas.

Num primeiro momento, enfoco as diversas parcelasda denúncia. Depois avalio o todo. Nas traduções do textobusco ser literal.

O v. 6b aparentemente consiste numa mesma denún­cia. Afinal, há um só verbo:

6bEis que vendem por prata o justo,

o pobre por um par de sandálias.

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A segunda parte deste belo paralelismo quiástico (istoé, a segunda frase inverte a ordem de palavras da primeira)parece aludir claramente à escravidão da pessoa empo­brecida. O "pobre" toma-se escravo em razão da dívida de"um par de sandálias". Tratar-se-ia de uma bagatela? Deindumentária necessária para serviço militar? Permanecem,pois, dúvidas, mas, ainda assim, a frase "vender... o pobrepor um par de sandálias" certamente denuncia a escravidãodo empobrecido.

Outro parece ser o sentido da primeira parte do para­lelismo. Dificilmente diz respeito à escravização. Que sen­tido faria a referência ao "justo"? (Seria mero sinônimo de"pobre"? Cf. Am 8,6). A menção do "justo" faz sentido se aentendermos no contexto da jurisprudência (cf. Am 5,12). Apessoa, cuja justiça seria confirmada por um processo dig­no, é injustiçada por suborno do júri. Os prejuízos que taisprocessos injustos causaram à gente empobrecida talvez fos­sem de tal ordem que redundassem em escravidão. Esse po­deria ser o motivo que agrupa as duas cenas do v. 6b.

No v. 7 temos três casos claramente distintos. Não vejorelação explícita entre eles:

"Pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos.

E o caminho dos oprimidos desviam.

Um homem e seu pai dormem com a (mesma) jovem

a fim de profanar meu santo nome.

Para a compreensão do segundo e terceiro casos, nãovejo problemas maiores. O segundo diz respeito à prática pro­cessual. O "caminho" é o andamento do processo (veja Am5,12). Este é desviado e desvirtuado, provavelmente por su-

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borno. Desse modo, a frase "desviam o caminho/processo dosoprimidos" denuncia situações semelhantes às que são abar­cadas pela primeira frase do v. 6b: "Vendem o justo por pra­ta". Ambas dizem respeito à jurisprudência local, no portão(cf. Am 5,10.12). A diferença está em que no v. 7 há referên­cia ao encaminhamento do processo, no v. 6 à sentença.

O segundo caso pressupõe a escravidão. Os senhores(pai e filho) valem-se da mesma menina escravizada parasua satisfação sexual. Fica o problema da intenção da atitu­de ("para profanar o meu santo nome"). Se a justificativanão for um acréscimo posterior, então estaríamos diante deum caso de prostituição sagrada (tão enfaticamente denun­ciada por Oséias). Contudo, já que Amós não costuma te­matizar a idolatria, parece ser mais provável que o final dov. 7 seja uma interpretação posterior e, conseqüentemente, oterceiro caso denunciado no versículo originalmente, de fato,diria respeito ao abuso sexual da moça escrava. Encontramo­nos, pois, nas proximidades do que é tematizado no v. 6b("vendem... o pobre por um par de sandálias"). A diferençaestá em que o v. 6b enfoca o processo de escravização dohomem, o v. 7 o destino da escrava.

Para o entendimento do primeiro caso do v. 7, o verbopoderia oferecer empecilho. Entrementes, sabemos que seusentido exato é "pisar", "esmagar", "triturar". Dessa manei­ra, a frase "os que pisam sobre o pó da terra na cabeça dosfracos" provavelmente indica violência pessoal e fisica con­tra os fracos, em especial contra seu rosto. O profeta talvezesteja querendo chamar a atenção para o rosto sofrido e de­formado dos emagrecidos por fome e trabalho pesado; tal­vez faça referência aos castigos impostos pelos senhores aseus escravos e assalariados, talvez pense no terror policial.

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Provavelmente se refere a tudo isso e muito mais. Lembremo­nos de que vários outros textos dão conta de cenas da bruta­lidade contra os pobres: Arn 1,3.13; 3,9-10; 8,4; 1s 3,14-15;Mq 3,1-3 etc.

As diversas cenas do v. 7 não deixam de formar umúnico quadro. Afinal, cada urna delas conta do sofrimentoimposto aos fracos. Contudo, simultaneamente cada urna temseu enfoque peculiar.

À semelhança do v. 6b, o v. 8 novamente apresentadois casos muito parecidos.

8Sobre roupas empenhadas deitam ao pé de cada altar.

Vinho de multados bebem na casa de seu deus.

A proximidade dos casos reside em dois fatores. Porum lado, ambos mencionam delitos praticados no âmbitocultual, embora não sejam propriamente desvios cultuais.Na verdade, são práticas sociais indevidas na área do sagra­do. Justamente por isso não se deve imputar às duas expres­sões que localizam os delitos no sagrado ("ao pé de cadaaltar" e "na casa de seu deus") a suspeita que fazíamos valerpara urna expressão similar no final do v. 7 ("para profanar omeu santo nome"). No v. 8, a referência ao religioso é dematiz diferente à do v. 7 (cf. Am 5,21-27). Por outro lado, osdois casos do v. 8 tratam de pessoas endividadas. Nisso es­tão próximos do v. 6b, em especial de sua segunda parte:"Vendem... o pobre por um par de sandálias". No mais, tam­bém no v. 8 cada caso é autônomo.

O primeiro caso traz a queixa do uso de roupas (emespecial de capas) empenhoradas por pessoas pobres a fimde obterem pão, saúde, semente. A retenção de tais objetos

171

penhorados expunha ao frio as pessoas pobres (cf. Ex 22,25­26) e desgastava seus últimos haveres.

O segundo caso toma-se mais difícil de localizar. Pro­vavelmente se refere a multas impostas a pessoas culpadas.Ao menos, é nesse contexto que costumeiramente se usa aterminologia do v. 8b (cf. Ex 21,22; Dt 22,19; 2Rs 23,33; Pr17,26). Talvez também se tratasse de multas exigidas emrazão do atraso na entrega de tributo ou renda (cf. Am 4,1;5,11). Em todo caso, os que usufruem das multas são os fun­cionários do sagrado, que com mais arrecadações fazem suasfestas. Com essa maneira de localizar o segundo caso, jáestou a determinar os acusados no v. 8: os sacerdotes queatuam junto aos altares e templos. Espoliam os fracos tantopor meio dos ritos (v. 8b) quanto de sua condição de pessoasmais bem situadas, capazes de conceder empréstimo em trocade penhora (v. 8a).

Que conclusões permite essa avaliação dos casos de­nunciados nos vv. 6b-8?

Pudemos verificar sintomas de alguma sistematizaçãorudimentar das diferentes cenas. Certamente não é acaso quesão veiculados sete casos. Igualmente não é mero acidenteque os dois primeiros (v. 6b) estão vinculados, sucedendo omesmo com os dois últimos (v. 8), isto é, os dois primeiros eos dois últimos formam pares e servem de um tipo de mol­dura em tomo das três cenas do v. 7. Esses dados literáriosmostram que nossos vv. 6b-8 foram trabalhados e organiza­dos. Existe até um conceito que abrange o conjunto dos ca­sos. A expressão "transgressões"/"delitos" do v. 6a agrupasob um mesmo conceito os versículos subseqüentes. Contu­do, a sistematização não vai além do rudimentar. De modoalgum determina o todo; não lhe dá coesão conseqüente. Em

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geral, nem mesmo são agrupados assuntos semelhantes.Efetivamente cada caso é um caso. Cada cena, mesmo bre­ve, está completa em si e difere da anterior e/ou posterior.Os vv. 6b-S, de fato, são uma listagem.

Por que os "delitos" são alistados desse modo? Ora,eles constatam o existente. Correspondem a experiênciasconcretas. Ao mesmo tempo, porém, nem todas são experiên­cias pessoais de Amós. Sucederam com diferentes pessoas,em circunstâncias específicas. Emergem para dentro de nossotexto na qualidade de experiências de pessoas distintas.Portanto, os casos denunciados são tão diferentes e entre siautônomos porque provêm de experiências específicas dediversas pessoas. Nos vv. 6b-S, varia o estilo, porque se al­ternam as vozes. Não me parece, porém, suficiente verificarque os "delitos" apresentam-se em forma de lista, pois re­presentam diferentes vozes. Far-se-á necessário percebero significado organizativo inerente à listagem. Afinal, elapressupõe que a experiência sofrida de uns foi comunicadaa outros. A dor partilhada agrupa. A junção das diferentesinjustiças sofridas por diferentes pessoas cria conexão, or­ganização entre os implicados. Nesse sentido, podemos di­zer que a denúncia dos vv. 6b-S reflete uma experiência co­letiva de opressão. Portanto, a existência de uma listagemde sofrimentos pressupõe a existência de um intercâmbioentre os sofredores e uma organização dos injustiçados.

Para detectarmos de maneira mais eficiente o nívelorganizativo indispensável como lastro social da listagemdos "delitos", devemos identificar quem são os que sofrem.Não é dificil defini-los, já que nesse particular nossos ver­sículos e, em geral, o livro de Amós são explícitos. Possoser breve e dispensar uma argumentação detalhada. Os "po-

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bres", "fracos"l"magros" e "oprimidos" dos vv. 6b-S e deAm 3,9; 4,1; 5,11.12.16; S,4.6 são camponeses espoliados,empobrecidos, emagrecidos. Ainda têm alguns direitos e al­gumas posses. Têm acesso àjurisprudência no portão, sabida­mente restrita aos que tinham terra (cf. 2,6b; 5,12); delespode-se extorquir riqueza (cf. 2,S; 4,1; 5,11). Contudo, já seencontram em tamanha debilidade e dependência, que noportão sua justiça sucumbe ao suborno (cf. 2,6b,7; 5,7.10.12),que são feitos escravos (cf. 2,6b.7; 8,6), que estão expostosa todo tipo de violência (cf. 2,7; 3,9-10; 4, I; S,4). Na denún­cia aflora a dor dessa gente. Aflora de maneira coletiva eorganizada. Portanto, a organização camponesa é o substratosocial da denúncia registrada nos vv. 6b-8. Dito de outromodo: para entender a forma de listagem, sob a qual a de­núncia apresenta-se, é necessário pressupor uma forma deorganização. A organização da gente do campo - um certomovimento camponês - é uma mediação hermenêutica paraa diagnose, em Am 2,6b-S.

Pode-se, pois, postular que a denúncia profética estávinculada ao movimento organizado do campo.

IV

Exercitamos anteriormente a possibilidade de que adenúncia dos vv. 6b-S seja um protesto social emergido davida organizada do campo. A proposta de vincular a diagnoseprofética à determinada organização social ganha em proba­bilidade à luz de outra particularidade de nossa unidade. Pas­semos a elaborá-Ia.

Quem é denunciado e quem é ameaçado em Am 2,6-16?

Iniciemos definindo os denunciados. Valho-me aí dasreflexões do item anterior. Ao buscarmos identificar as di-

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versas cenas, implicitamente também determinamos os cul­pados. Agora, trata-se somente de circunscrevê-los, semvoltar aos argumentos já expostos, naturalmente sempre cien­tes dos intricados problemas exegéticos em jogo.

Denunciados são juízes e outros que atuam nos pro­cessos junto ao portão (v. 6b e v. 7). As práticas de "compra­dores" de escravos (v. 6) e de senhores de escravas (v. 7) sãopichadas. Sacerdotes são acusados (v. 8). Pessoas capazesde ceder empréstimos, comprar escravos, subornar tribunaissão postas no banco dos réus. Gente violenta (talvez do exér­cito) é incriminada. Gente como o sacerdote Amasias, capazde fazer calar profetas (v. 12, cf. Aro 7,10-17; Mq 2,6; lRs22,8.27) é contestada. Pelo que se vê, os denunciados, basi­camente, são camponeses muito bem situados e sacerdotes,talvez comerciantes devido à referência à prata, ao comprare emprestar, eventualmente graduados das armas, em razãoda referência à violência. Não parece que estejamos diantede funcionários públicos, contra o que falariam, no mínimo,v. 6b e v. 7b.

Os ameaçados estão claramente identificados, nos vv.14-16. Sucumbirá o que luta a pé (o "ágil", o "forte", o "va­lente", vv. 14-15), o arqueiro (v. 15), o "cavaleiro" (melhorseria dizer: o condutor do carro de combate, v. 15) e o co­mandante (v. 16). Todos eles pertencem ao exército. Portan­to, a ameaça atinge somente as forças militares. Nesse exér­cito, dois setores recebem destaque especiaL Por um lado,os que lutam a pé (por assim dizer a "infantaria") são mencio­nados quatro vezes. Recebem, pois, maior destaque. Isso seexplica pelo fato de que o agrupamento era a parte mais nu­merosa e importante do exército. Nesse caso, a maior ên­fase dada, na ameaça, à "infantaria" corresponde à sua maior

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importância militar. Por outro lado, ao comandante geral (porassim dizer o "general") é reservada uma ameaça especial(v. 16). Enquanto seus comandados perdem a vida (vv. 14­15), ele perde a honra. Em resumo: além da ameaça restrin­gir-se ao exército, privilegia o setor mais numeroso e vital, ocomando geral.

Comparando, agora, denunciados e ameaçados, cons­tata-se que não são os mesmos. A rigor, a ameaça não recaiexatamente sobre os culpados. Como explicar o flagrantedescompasso entre denunciados e ameaçados?

Aqui a dimensão da organização volta a desempenharpapel relevante. Para avaliar a disparidade entre os causado­res dos delitos e os atingidos pela ameaça, faz-se necessárioperceber que Amós tem em vista não só pessoas . No caso denossa unidade, preponderantemente trabalha com categoriasestruturais. Isso já se percebe no fato de que tanto na diagnosequanto na prognose são alistadas não pessoas ou indivíduos,mas delitos e cargos. A dimensão estrutural da profecia deAmós toma-se ainda mais nítida quando a gente se dá contade que o exército ameaçado é a instância coercitiva que pos­sibilita os delitos dos camponeses ricos, dos sacerdotes e deseus similares. Embora o exército não realize os delitos ecrimes alistados, viabiliza-os. Sem sua coerção, os campo­neses empobrecidos reagiriam. Contudo, não se faz jus àunidade - em especial se ela também passar a incluir ocontexto de 1,3-2,5 - se atribuímos ao exército a misériados fracos. Pois, a instituição que, de fato, viabiliza e ace­lera o empobrecimento dos camponeses é o Estado, na for­ma do estado tributário. Amós designa essa grandeza de"Israel" (v. 6). Que no v. 6 "Israel" é a organização do Es­tado, é evidente não só com base nos versículos precedentes

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(1,3-2,5), mas igualmente em uma série de outros textos dolivro (cf. 3,14; 5,1; 7,9; 7,10-11). Assim sendo, é o Estadoisraelita que está emjogo em nossa unidade. É ele a media­ção que possibilita explicar o descompasso entre denuncia­dos e ameaçados.

vTentei evidenciar na leitura de alguns versículos que a

categoria da organização é valiosa como perspectiva tantohermenêutica, para avaliar uma unidade (o Estado tributárioé uma mediação imprescindível para abarcar o sentido denossos versículos), como histórica, para entender a origemda denúncia (alistar delitos contra os lavradores é uma dasformas de organização destes). É hora de adicionar algunstextos a mais a nossos vv. 6-16.

Antes de mais nada, devemos incluir a unidade Am1,3-2,5, da qual nossos versículos inegavelmente são parte.Também nessa unidade ampliada há grande interesse emestruturas sociais. Basta ler 1,3-5 para confirmá-lo. Contu­do, não é propriamente para esse aspecto que, agora, preten­do voltar a atenção, pois já o ressaltei. A constatação de que1,3-2,16 forma uma grande unidade conduz-nos a um novopasso. Acontece que a unidade maior tem a peculiaridade deser uma composição de diversas unidades menores. É umacoleção de ditos proféticos. Originalmente devem ter sidocinco (cf. 1,3-5; 1,6-8; 1,13-15; 2,1-3; 2,6-16 [os demais ditosparecem ser adendosD. Seu ápice é justamente a unidadeem estudo: 2,6-16.

Coleções semelhantes encontram-se em outras partesdo livro de Amós. Em Am 7-9, a gente depara com umasérie de cinco visões que, originalmente, devem ter formado

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um só conjunto: 7,1-3; 7,4-6; 7,7-9; 8,1-3; 9,1-4. Seu auge é aúltima visão. Igualmente deparo com uma coleção em 3,3-4,3(cf. 3,3-8; 3,9-11; 3,12; 3,13-15; 4,1-3). Nela predomina apolêmica contra a capital Samaria. Seu auge é o segundodito (cf. 3,9-11).

Coleções desse tipo podem ser encontradas em muitoslivros proféticos. Aponto para algumas. Em Isaías podem sercitados: 1,2-26; 5,8-24 + 10,1-3; 6,1-9,6. Em Jeremias temos,por exemplo: 21,11-23,8; 23,9-40; 30-31. Em Sofoniashá uma coleção em 1,7-2,3. Em Miquéias o capítulo 3 formauma unidade muito interessante. E, além dessas, existem mui­tas outras coleções dentro dos livros proféticos.

Esse tipo de coleção, via de regra, não é muito exten­so. Reúne três, cinco, sete, por vezes mais ditos proféticos,em torno de um mesmo assunto. No tamanho, chegam a ser,mais ou menos, iguais. Designo essas coleções de panfletos.Neles está o embrião da profecia como literatura. O estudoda literatura profética, ao meu ver, poderia dar especial des­taque aos panfletos. Pelo que me consta, o fenômeno do pan­fleto profético, até hoje, não chegou a ser estudado. Por con­seguinte, neste contexto, não vou além da indicação de al­gumas pistas que assinalam o fenômeno e atribuem-lhe umaprimeira interpretação.

O que se lê nos panfletos são palavras proferidas pordeterminado profeta. Ao ser reunidas, elas não deixam de serpalavras do respectivo visionário, mas sua dimensão cresce.São reunidas porque foram confirmadas por outros, pelosouvintes. A coleção contém, pois, a fala profética mediadade modo marcante pelo ouvinte. Os ditos foram ouvidos,tidos como valiosos, recontados, programados, enfim me­morizados. Nesse sentido, o panfleto pressupõe não só a fala

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profética e a adesão do ouvinte, mas igualmente a memória.À medida que a memória vai compondo ditos, aumenta seuimpacto. Ora, um dito de Amós contra Samaria causa umimpacto bem menor do que toda uma coleção, como a deAm 3,3-4,3. A memória profética toma mais densa e con­centrada a fala do profeta. Quando a memória também pas­sa a se servir da escrita, pode ampliar o raio de ação da falaprofética. Pode querer preservar (cf. Is 8,16), difundir (cf. Jr36), distribuir.

Tal processo de surgimento de um panfleto profético éum evento coletivo. Provém de articulações. Propicia a for­mação de círculos proféticos. Um panfleto não surge semorganização.

Portanto, na base da memória que sedimenta e da es­crita que fixa os panfletos proféticos, existe o fenômeno daorganização.

VI

Ao encaminhar urna conclusão, devo ressaltar, inicial­mente, que neste meu estudo busquei ensaiar possibilidades eperspectivas que, ultimamente, foram pouco exercitadas nainterpretação dos profetas. Conseqüentemente, na conclusãonão só são de importância os resultados "positivos" que, aseguir, verifico haver alcançado, mas, simultaneamente, aperspectiva metodológica ensaiada. Nas atuais circunstânciasda pesquisa, esta é mais relevante que aqueles.

Dito de modo mais genérico, o resultado básico consis­te no seguinte: na leitura dos profetas é preciso ter olhos parao nível da organização. A pergunta pela dinâmica das relaçõessociais é incorporada à interpretação. As relações sociais daépoca dos profetas são marcadas pelo tributarismo. Por isso,

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no concreto, as relações sociais marcadas pelo tributarismosão mediações hermenêuticas em textos proféticos.

O resultado específico de nosso estudo consiste naconstatação de que os profetas mantiveram vínculos comorganizações concretas, em especial do campo. Muitas nar­rativas sobre episódios na vida de profetas já o evidenciam.Ao testarmos a pergunta pela correlação entre profecia emovimento social num texto profético, em Am 2,6-16, obti­vemos as seguintes informações e detalhes:

A origem da denúncia (vv. 6-12) está no movimentosocial. Há muito se percebeu que, na profecia, é preciso di­ferenciar entre denúncia e ameaça, sendo a primeira menoscoesa em sua linguagem e terminantemente histórica e con­textual. Não se viu o suficiente, porém, que a denúncia bro­tou do chão do movimento social. Nele surge e a ele reforça.Dores denunciadas propiciam solidariedade e protesto orga­nizado. Penso que o estudo de outros textos proféticos podeaprofundar e diferenciar a proposta de conectar as denún­cias a organizações sociais.

A ameaça (vv. 13-16) atinge não só pessoas, mas prin­cipalmente instituições. A grandeza social ameaçada é o exér­cito como "Israel" (v. 6), isto é, como mantenedora do Esta­do tributário. Os argumentos que sugerem compreender "Is­rael" como Estado estão no contexto anterior (cf. 1,3-2,5) eno fato de que os denunciados não são idênticos aos amea­çados. O descompasso é explicável quando se admite a gran­deza do Estado tributário como elo que vincula os gruposimplicitamente acusados (vv. 6-12) ao grupo explicitamenteameaçado.

As primeiras anotações escritas dos ditos proféticossão coleções de alguns poucos ditos, como a que encontra-

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mos em Am 1,3-2,16. Designo essas manifestações literá­rias da profecia de panfletos. Eles pressupõem a existênciade círculos profético-camponeses. Portanto, o movimentosocial é a própria matriz da literatura profética. A pesquisabíblica ainda carece de estudos que verifiquem e pormeno­rizem a importância do panfleto profético.

Por fim, volto a destacar: o discurso profético é teoló­gico. Sem o devido respeito a essa dimensão, não o havemosde entender. Contudo, na profecia necessitamos aperceber­nos também de sua dimensão histórica. Privilegiamo-la nes­te estudo. De modo algum pretendíamos absolutizá-la. Porisso o presente ensaio carece de complementação.

VII

No decorrer da reflexão, evitei notas bibliográficas.Recorri a diversos autores e, mesmo sem apontá-los em no­tas de rodapé, estou em diálogo com eles. Na avaliação dosdetalhes exegéticos, permanece precioso o comentário demeu professor WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joelund Amos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 158-211(Biblischer Kornrnentar Altes Testament, 14/2). Um resumodesse comentário foi publicado em espanhol: La hora deAmós. Salamanca, Sígueme, 1984. 200 p. (Nueva Alianza,92). De grande valor é a interpretação de Arnós apresentadapor REIMER, Haroldo. Richtet auf das Recht; Studien zurBotschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk,1992, 256 p. (Stuttgarter Bibelstudien, 149), a respeito de2,6-16 veja principalmente as pp. 28-58. Na verificação dogênero profético, vali-me de WESTERMANN, Claus. Die Grund­formen prophotischer Rede. 4. ed., München, ChristianKaiser, 1971 (Beitrãge zur evangelischen Theologie, 31).

181

Importante para nosso contexto é o estudo de ANDINACH,Pablo Ruben. Amós - Memoria y profecía - Análisisestructural y hermenéutica. Revista Bíblica, ano 45, BuenosAires, Sociedad Argentina de Profesores de Sagrada Escri­tura, 1983, pp. 209-304. Chamo a atenção para a tese douto­ral defendida por GUTlÉRREZ, Carlos Mario Vásquez. Dito,panfleto e memória; uma abordagem a partir de Amós 3-6.São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de SãoPaulo, 2002. 231 p. Nossa situação latino-americana tam­bém marca os ensaios publicados no 4º número dos EstudosBíblicos, Petrópolis, Vozes. Por fim, ainda anoto que exerciteia metodologia exegética anteriormente esboçada em dois ou­tros ensaios: A cidade da justiça, estudo exegético de Isaías1,21-28. Estudos Teológicos, v. 22, São Leopoldo, Faculdadede Teologia, 1982, pp. 5-48; Profecia e Estado - Uma propos­ta para a hermenêutica profética. Estudos Teológicos, v. 22São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1982, pp. 105-145.

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Jacó é pequeno - visões em Amós 7-91

A Escritura - Memória dos pobres

Na América Latina, a Bíblia está sendo descoberta. Élida com fervor. Fez-se símbolo e alimento do novo jeito deser de toda a Igreja. As comunidades cristãs nutrem-se eanimam-se, lendo e celebrando a história bíblica.

Essa redescoberta traz à tona um novo jeito de com­preender a Escritura. Experimenta-se uma nova aproximaçãoaos textos. Abrem-se novas portas. Passo a caracterizá-las,ainda que de maneira bastante breve.

A nova leitura é, antes de mais nada, profundamentelitúrgica. Está enraizada no convívio da comunidade, em seucanto, em sua oração, em sua eucaristia. Não foi concebidano academicismo ou no mundo racional. Seu berço é a liturgiacomunitária e a luta contra as dores da vida. Provém da prá­tica da comunidade e a ela direciona-se. São, por exemplo,as lutas pela terra e pelo teto as que, entre nós, puxam eanimam a redescobrir a história bíblica. É a opressão da

1 o presente artigo foi inicialmente publicado na Revista de Interpretação Bíblica La­tino-Americana, v. I, Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 81-92. Esse volume foi reeditadoem 1990. O ensaio também foi publicado em espanhol: Jacob el pequeno - Visiones enAmós 7-9. Revista de Interpretación Bíblica Latinoamericana, v. 1, San José/CostaRica, Editorial DEI, 1988, pp. 87-99. Em homenagem ao pastor Werner Fuchs.

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mulher pobre e a espoliação da gente trabalhadora quedirecionam a ótica de leitura. Reivindicam uma interpreta­ção que parta do concreto e do social, das dores e utopias dagente latino-americana. As lutas de nossos povos fermen­tam e maduram o novo jeito de ler.

E, enfim, emerge um novo portador de interpretação.Mulheres e homens empobrecidos tomam-se sujeitos de lei­tura. Os empobrecidos são novos agentes, novos herme­neutas. A Escritura é memória dos pobres.

Essas são algumas das novas portas que as comunida­des estão abrindo. Há outras mais. Aqui só quis aludir a essanova experiência que nos marca na América Latina.

A leitura litúrgica, prática e popular retroage sobre oestudo da Escritura. Sucita novas questões aos assessores.Traz novas exigências ao estudo. À medida que estudo eassessoria quiserem ser solidários e eficazes em meio à Igrejados pobres, passarão a recriar o saber bíblico em meio à prá­tica das comunidades. Essa é uma nova exigência. Só passoa passo poderemos corresponder-lhe. Trata-se de um cami­nho a trilhar. A cada nova curva da estrada abrir-se-ão novoshorizontes.

A seguir, colocar-nos-emos a caminho na companhiade Am 7-9. Nesses capítulos, atentarei para as visões. Oacesso a elas está marcado por duplo enfoque. Tanto levareiem conta a redescoberta bíblica que toma corpo em nossaAmérica Latina, quanto considerarei a práxis histórica, naqual os textos em questão foram formulados. Entendo que ojeito de abordar o texto de acordo com o concreto promovea solidariedade com os oprimidos, mulheres e homens. So­letra sua dor. Sensibiliza com sua esperança.

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o contexto literário das visões

Propus privilegiar um enfoque. Pretendo concentrar aatenção em alguns versículos. Trata-se aí de um afunilamentometodológico. Não quis excluir outras abordagens nem des­considerar o contexto literário dessas visões em Am 7-9.Tão-somente estou circunscrevendo a peculiaridade de meuensaio.

A colocação das visões dentro do livro, sem dúvida, édeveras significativa.

Afinal, em Am 7-9 deparamos com cinco visões (cf.7,1-3; 7,4-6; 7,7-9; 8,1-3 e 9,1-4) e diversas complemen­tações. Após a terceira visão (cf. 7,7-9), ocorre uma inter­rupção. Está intercalada uma narração sobre o conflito entreAmós e Amasias, em Betel (cf. 7,10-17). Também após aquarta visão (cf. 8,1-3), há uma interrupção. É interpostauma coletânea de ditos que apresentam cenas da opressãocontra os pobres e da destruição dos opressores (cf. 8,4-14).E nem mesmo após a quinta e última visão (cf. 9,1-4) faltamemendas. Seguem-lhe expressões hínicas (cf. 9,5-6), que,por certo, têm a função de concluir o conjunto. Papel similardesempenham os dois ditos proféticos de 9,7-8.9-10. Am­bos são deveras radicais contra o "reino pecador" e a "casade Israel". Reafirmam e sintetizam o que é pormenorizadono restante de Am 7-9.

No todo de Am 7-9, as visões funcionam como colu­na dorsal. Representam seu lastro. É o que se pode ver aoesquematizar o conjunto:

7,1-3 primeira visão

7,4-6 segunda visão

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7,7-9 terceira visão

7, IO-I7 narração

8,1-3 quarta visão

8,4-14 coletânea de ditos

9,1-4 quinta visão

9,5-6 hino

9,7-10 ditos

Aí se vê que as visões fazem as vezes de fio condutor.Narração, hino e ditos são agregados. Contudo, não são inter­calações casuais. Afinal, somente as três últimas visões rece­beram adendos. Diria que se trata de uma espécie de comen­tários explicativos. A narração do conflito entre Amós eAmasias (cf. 7, IO-I7) exemplifica o sentido da terceira visão(cf. 7,7-9). A coletânea de ditos (cf. 8,4-14) que acompanha aquarta visão (cf. 8,1-3) explica a razão da destruição anuncia­da: os palácios serão destruídos (8,1-3), porque promovem aopressão dos pobres (8,4-6). Além disso, 8,4-14 também pre­para a quinta visão, ao prenunciar o fim do culto. E a quinta eúltima visão (cf. 9,1-4) é completada pelo hino que enalteceJavé (cf. 9,5-6). Penso que os dois ditos em 9,7-8 e 9,9-10 têmem mente não só a última visão, mas o todo de Am 7-9.

Portanto, a disposição literária dos três capítulos não énada acidental. Tem suas intenções. Persegue propósitos pe­culiares. Se, agora, não as tematizo, não é porque eu neguesua relevância. Se as deixo fora do enfoque principal, é parapoder dar mais atenção às visões, que, afinal, perfazem olastramento dos capítulos. Merecem, pois, atenção especial.De sua compreensão, em boa medida, depende o entendimentodo conjunto.

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Além do contexto literáriomais imediato, também o tododo livro tem sua relevância para as visões. Afinal, a primeirafrase do livro a elas se refere. O título anuncia: "Palavras queAmós viu" (1,1). EmAm 7-9, aparecem as "palavras vistas"porAmós. Aí o profetizador é até chamado de "vidente" (7,12).Portanto, o título do livro já remete para as visões!

Afqra esse detalhe, há outro fator que evidencia a im­portância das visões para o todo do livro. Nos textos queprecedemAm 7-9, Amós se autodefine como "mensagei­ro". É o que se deduz da fórmula introdutória "assim disseJavé" (1,3.6; 3,12; 5,16 etc.). Mensageiros costumam apre­sentar-se dessa maneira (cf. Gn 32,3-6). Amós é mensageiroque fala em nome de outrem. Em 3,8, somos informados deque ele o faz sob coação: "Rugiu o leão, quem não temerá?Falou Javé Deus, quem não profetizará?" Ora, as visões deAm 7-9 evidenciam por que Amós tem que falar. Elucidampor que é mensageiro. Fala porque viu! É mensageiro por­que é visionário! Portanto, Aml-2 e 3-6 são iluminados pe­las visões de Am 7-9.

Por fim, não se pode deixar de anotar que Am 7-9assemelha-se a uma certa súmula do precedente. O profetaé-nos mais bem apresentado, seja em suas experiências visio­nárias, seja em sua confrontação com Amasias. Sua criticasocial é reforçada, mediante uma parcial repetição de suadefesa dos pobres (cf. 8,4-6, semelhante a 2,6-8). E, em es­pecial, a mensagem profética é comprimida em tomo de duasquestões centrais: contestação do templo e do reinado. Am7-9, de fato, condensa o livro. Em conseqüência, as visõesrequerem ser lidas em seu contexto mais amplo.

É evidente que as vinculações contextuais das visõesnem de longe estão esgotadas com as anotações anteriores.

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Todavia, como não se trata de nosso enfoque precípuo, pos­so dar-me por satisfeito. Em todo caso, certificamo-nos deque é muito válido observar as conexões das visões com seucontexto literário menor (7-9) e maior (todo o livro). E, nãopor último, foi-nos possível constatar que as cinco visões,que pretendo focalizar com mais vagar, desempenham umpapel todo especial em Amós.

Passemos, pois, às visões em Am 7-9. As duas pri­meiras são semelhantes. Podem ser agrupadas.

"Javé se arrependeu!"

As duas primeiras visões (cf. 7,1-3 e 7,4-6) estão inter­relacionadas. Forma e conteúdo o evidenciam. Até mesmouma primeira leitura dos versículos permite observá-lo. Pas­semos, pois, sem demora à tradução. (Lembro que tanto nes­ses versículos quanto nas demais visões há problemas decrítica textual. Pormenores podem ser verificados junto àbibliografia mencionada no final do capítulo.)

'Assim me fez ver meu Senhor Javé:

E eis que alguém formava um bando de gafanhotos,

quando começava a crescer o cereal serôdio.

Eis que era o cereal serôdio depois da ceifa do rei.

2Quando eles pretendiam terminar de consumir aplanta da terra,

eu disse: "Meu Senhor Javé, perdoa, por favor!

Quem sustentará Jacó? Pois ele é pequeno!"

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3Javé se arrependeu disso.

"Não acontecerá", disse Javé.

"Assim me fez ver meu Senhor Javé:

E eis que alguém (meu Senhor Javé) chamava para casti­gar com fogo.

Quando tinha devorado o grande abismo e con­sumira a herança,

seu disse: "Meu Senhor Javé, pára, por favor!

Quem sustentará Jacó? Pois ele é pequeno!"

6Javé se arrependeu disso.

"Também isso não acontecerá", disse meu Senhor Javé.

Em ambas as visões, as ameaças são suspensas. "Nãoacontecerá!" É o veredicto final sobre gafanhotos e fogoavassaladores. Acontece, pois, perdão. As intercessões do pro­feta são atendidas. Na primeira visão, a intercessão está ex­pressamente formulada corno pedido de perdão. Já na se­gunda, assume contornos mais incisivos. Não é pedido. Éapelo. "Pára, por favor!"

Nas duas vezes, o argumento é o mesmo: "Corno sub­sistirá Jacó? Ele é pequeno!". A pequenez de Jacó motiva aintercessão profética. É ela também que ativa o arrependi­mento e a compaixão divinos. A profecia evoca a pequenez.O perdão traz-na à memória do próprio Javé. Em todo caso,a referência à pequenez de Jacó é decisiva para que cesse apraga de gafanhotos e o fogo devastador. E quem é o peque­no Jacó?

A resposta, antes de mais nada, terá de ser buscada naspróprias visões. Isso poderia não ser tão fácil. Visões jogamcom figuras. Sua linguagem não deixa de ter ares enigmáticos.

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Não é, porém, o que sucede com as duas que estão diante denós. Nelas predomina o concreto. Permitem que se identifi­que quem está sendo ameaçado e, em virtude da intercessãoprofética, perdoado.

A primeira conduz-nos indubitavelmente ao mundo docamponês. Situa-nos no âmbito de sua produção. O rei já"ceifara" o primeiro plantio. A "ceifa do rei" é o pretensodireito da realeza em confiscar a produção camponesa, emsituações de crise (cf. lRs 18,5), ou em tributá-la regularmen­te (cf. lSm 8,10-17). A "ceifa do rei" absorvera a primeiraplanta, a mais rentável. Resta a "Jacó", isto é, aos lavrado­res, o "cereal serôdio", a planta do tarde, menos rentávelque a primeira. E ela passa a sofrer a ameaça de gafanhotos.Estes põem em perigo a "planta da terra". No caso, "planta"é o cereal e as demais vegetações do campo. E a "terra" aquié sinônimo de roça. Em suma, a primeira visão tem comotema a ameaça aos resultados do trabalho dos camponeses.Em jogo está a produção.

A praga de gafanhotos é suspensa. "Não acontecerá!".O mesmo não sucede com a "praga" da "ceifa do rei". Issosurpreende. Só, porém, num primeiro momento. Pois, a par­tir da terceira visão, estará em debate a "praga do rei".

A segunda visão igualmente nos transporta ao contextoda roça. Refere-se, porém, a uma ameaça ainda mais radical àsobrevivência do pequeno Jacó, isto é, do campesinato. AAmós é dado ver uma seca colossal. Secam-se as águas do"grande abismo". Este é, na cosmovisão da época, o imensooceano abaixo da terra. São as águas do subsolo, na Palestinatão decisivas para a sobrevivência no verão, nos meses deseca. Uma vez "devorado o grande abismo", as próprias con­dições de trabalhar e produzir estão afetadas.A "herança" passa

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a estar em perigo. Aqui, a "herança" é a parcela de terra àdisposição de um clã agrícola (cf. Rs 21,3). Éo que a primeiravisão designara de "a terra" (v. 2). É o meio de produção.

Portanto, as duas primeiras visões situam-se no am­biente da roça. Na primeira, está em jogo a produção da gentedo campo, seu "cereal serôdio". Na segunda, seu própriomeio de produção, sua "herança", está a perigo. As amea­ças, advindas de um "bando de gafanhotos" e do fogo a con­sumir o "grande abismo", são suspensas por Javé, sensívelaos apelos de seu profeta. Javé e Amós são, pois, defensoresdo pequeno Jacó, que é o campesinato ameaçado pelas adver­sidades da natureza e por "ceifas do rei". É o que também selê no restante da profecia de Amós. Ele é defensor de lavrado­res e camponeses pauperizados e espoliados. A profecia deAmós é a voz dos empobrecidos, como se vê também noâmbito de Am 7-9, em 8,4-6 (cf. ainda 2,6-9 e 5,11-12).

Gafanhotos e secas monumentais estão aplacados. A"ceifa do rei" continua intacta. Dela se encarregam as próxi­mas visões.

"Jamais passarei!"

A terceira e quarta visão (7,7-9 e 8,1-3) formam outropar, diferente em forma e conteúdo das duas primeiras. (No­vamente há que assinalar que o texto hebraico não foi muitobem transmitido. Ficam incógnitas. Encontram-se discutidasna bibliografia especializada? Veja no final deste capítulo.)

2 Veja interpretações mais recentes principalmente em REIMER, Haroldo. Richtet aufdas Recht!; Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 1992.256 p. (Stuttgarter Bibelstudien, 149). Veja em especial pp. 160-225.

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7Assim me fez ver:

E eis que meu Senhor estava parado sobre um muro.

Tinha em sua mão um prumo.

SE Javé me disse: "O que tu vês, Amós?"

Eu disse: "Um prumo".

Meu Senhor disse: "Eis que eu coloquei um prumo emmeio a meu povo Israel.

Jamais passarei por ele.

"Serão destruídos os altos de Isac.

Os santuários de Israel serão devastados.

Levantar-me-ei com a espada contra a casa deJeroboão".

'Assim me fez ver meu Senhor Javé:

E eis um cesto de frutas de verão.

2Eele disse: "O que tu vês, Amós?"

Eu disse: "Um cesto de frutas de verão".

Disse-me Javé: "Chegou o fim para meu povoIsrael.

Jamais passarei por ele.

3Naquele dia, gemerão as cantoras do pa­lácio, dito do Senhor Javé.

Muitos cadáveres, em toda parte, estão jo­gados. Silêncio!".

"Prumo" e "cesto de frutas" a rigor não representamameaças. Aquilo que o profeta vê não tem um sentido fixo.Poderia assumir múltiplos significados. É a fala de Javé queatribui ao "prumo" e ao "cesto de frutas" uma interpretaçãodeterminada. Explicita-os como ameaças. Não ocorre inter­cessão nem possibilidade de suspensão do aniquilamentoanunciado. "Jamais passarei", isto é, jamais transigirei. Asameaças são irrevogáveis.

Essas duas visões são, pois, bem diferentes das pri­meiras. Sua intencionalidade é outra. E também se referema grandezas distintas. As duas primeiras diziam respeito aopequeno Jacó, os lavradores "ceifados" pelo rei e "devora­dos" por pragas e secas. As duas agora em estudo ameaçam"meu povo Israel". E quem é ele? A resposta há que ser bus­cada, na medida do possível, nas próprias visões.

Acabamos de observar que a fala divina fixa o sentidodo "prumo" e do "cesto de frutas". Essa constatação sobre osignificado daquilo que o profeta vê não exclui que se bus­que por sua localização social. A que contexto social perten­cem "prumo" e "cesto de frutas"? No caso do "prumo", aprópria visão esclarece estarmos "sobre um muro". Pensarianum "muro" de cidade. Seria o mais óbvio. Também o "ces­to de frutas" permite alguma dedução. Poder-se-ia pensar nafesta da colheita das frutas. Nesse caso, estaríamos no âmbi­to do sagrado, possivelmente outra vez no ambiente citadi­no. Portanto, "prumo" e "cesto de frutas" poderiam apontarpara o mundo citadino. Isso, porém, não passa de uma possibi­lidade, uma vez que, também no que conceme à sua identidadesocial, as "coisas" vistas permanecem vagas e pouco definíveis.Em todo caso, fica a suspeita: as visões do "prumo" e do "cestode frutas" teriam em mente o mundo citadino?

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É o que se confirma com base em 7,9 e 8,3. Os doisversículos são decisivos para a identificação do contextosocial da terceira e quarta visões.

O cenário, aludido em 8,3, é cortesão: no palácio abun­dam os cadáveres. Prevalece o silêncio fúnebre. As "canto­ras do palácio", que eram escravas e em tempos de "paz"animavam as festas palacianas, agora acompanham os ri­tuais fúnebres de seus senhores. À corte, sim a ela expressa­mente, também se refere 7,9, ao prever a morte para a "casade Jeroboão", isto é, para a dinastia ora no poder. Pode-sedizer que 8,3 (o enterro dos da corte) é a efetivação do pre­núncio de 7,9 ("levantar-me-ei com a espada contra a casade Jeroboão"). Ora, o mundo palaciano é, no concreto, "meupovo Israel". Enquanto isso as "cantoras do palácio" - quenão sucumbirão - fazem parte do pequeno Jacó. Afinal, ocampo era a origem das "cantoras"/escravas.

Em 7,9, obtemos confirmação do resultado conformeoutro ângulo. Além de ameaçar a "casa"/dinastia real, oversículo põe em xeque os "altos de Isac" e os "santuáriosde Israel". Serão destruídos e devastados. Os "santuários deIsrael" deviam ser os centros cúlticos de maior projeção noEstado de Israel, em especial o de Betel (cf. 7,13), más tam­bém os de Samaria (cf. Os 8,4-6) e Dã (cf. 1Rs 12,29-30).Os "altos de Isac" são os locais de relevância menor, comoos de Guilgal e Bersabéia (cf. Am 5,4-5). Uns como os ou­tros estavam profundamente atrelados aos interesses pala­cianos e citadinos. "Meu povo Israel" é, pois, este conjuntoconstituído por cidade, palácio e templo. Nesse caso, "povo"é o "grupo", a "família" que se reúne em tomo do senhoriode Israel. Nesse sentido, também temos o conceito de "povo"em Is 7,17.

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É o que também confirma o contexto literário. A narra­ção de 7,10-17 é um comentário à terceira visão. De acordocom ele, Javé 'jamais passará" por dinastia, templo, sacerdó­cio. E a coletânea de ditos de 8,4-14 explicita o sentido daquarta visão. De acordo com ela, a morte no palácio arrastaconsigo comerciantes (cf. 8,4-8),·ritos e lugares sagrados (cf.8,9-14). Eles, que estão sob a mira da ameaça profética, são"meu povo Israel". Este "meu povo Israel", do qual Javé prog­nostica: "jamais passarei", é o "reinado pecador" (9,8). É todoo contrário do pequeno Jacó, isto é, o campesinato "ceifado"pela realeza e amedrontado por pragas e pelo "fogo" da seca,e as "cantoras", camponesas escravizadas no palácio, e, en­fim, os "pobres", tão defendidos por Amós.

Podemos encaminhar-nos para a quinta e última vi­são. Seu assunto já aparece na terceira, quando os "altos deIsac" e os "santuários de Israel" são mencionados.

"Batia no capitel"

A quinta visão (cf. 9,1-4) está só. Todavia, sua proxi­midade às duas precedentes é flagrante. Encontra-se em suacontinuidade. Leva-as a seu auge. (Infelizmente o texto ori­ginal de novo contém muitas incertezas. Delas nos fala abibliografia especializada, com maiores detalhes.)

'Vi meu Senhor parado sobre o altar.

Batia no capitel de sorte que estremecessem os umbrais.

E disse:

"Destroço a cabeça de todos eles,

seu resto mato à espada.

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Não escapará deles um fugitivo sequer,

não se salvará nenhum refugiado.

2Ainda que penetrem no mundo dos mortos,

de lá os farei descer.

3Ainda que se escondam no cume do Carmelo,

lá os buscarei e agarrarei.

Ainda que se escondam no fundo do mar longedos meus olhos,

lá ordenarei à serpente para que os morda.

"Ainda que vão ao cativeirodiante de seus inimigos,

lá ordenarei à espada para que os mate.

Porei meus olhos sobre eles

para o mal, não para o bem!"

É evidente que a visão difere das anteriores. Realço duasdiferenças. Por um lado, a maior parte dos quatro versículosinsiste em afirmar a ruína total. Não há sombra de resto. Nãoescapa fugitivo, nem desertor. Nem mesmo os melhores es­conderijos dão abrigo. Tamanha obstinação em "destroçar acabeça de todos eles" não conhecíamos nas duas visões pre­cedentes. Por outro lado, o profeta vê o próprio Javé: "Vi meuSenhor". A esse ponto as visões anteriores não haviam chega­do. Mantinham respeitosa distância. Portanto, a quinta visãonão só está um tanto à parte das outras. É também seu ápice.Afinal, o próprio Javé é visto. E dos ameaçados nada resta.Quem são eles? Para a compreensão dessa quinta visão e, emconseqüência, das demais, é decisivo identificar quem e o queestá sendo "batido" e "destroçado".

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É o templo o objeto do destroço completo. É a dedu­ção que se impõe segundo o texto.

Javé está "parado sobre o altar". Aí certamente não setrata do pequeno altar que, para a queima do incenso, existiadentro da sala maior do templo (cf Is 6,6-7). Temos de pensarantes no altar de sacrificios, construído ao ar livre em frente aosantuário. "Sobre" esse altar encontra-se o Senhor. Aliás, nãodeixa de ser um tanto estranho que Javé esteja "parado sobre"lugar tão sagrado. Esperar-se-ia vê-lo 'junto" ao altar, ocupan­do o lugar do sacerdote. O gesto de parar "sobre o altar" fere asensibilidade. É deselegante. Acontece que o altar não agrada aJavé, "lhe aborrece" (Am 5,21-23). Portanto, não é por acasoque o Senhor esteja parado justamente "sobre o altar".

De cima do altar Javé "batia no capitel". Aos golpesdo próprio Deus, não há construção que resista. Estreme­cem os umbrais, como em dia de terremoto. O edificio ruisobre "a cabeça de todos eles". E a construção é o templo.Dele e, em especial, de seus adeptos mais achegados, da­queles que tinham acesso ao interior do sagrado nada resta­rá. Os que não conseguirão fugir nem se abrigar são primor­dialmente os sacerdotes.

A radical ameaça ao templo, seus ritos e sacerdotes, arigor, já marca presença desde a terceira visão. Profetizava adestruição dos "altos de Isac" e dos "santuários de Israel"(7,9). Amesma questão está dedicada a história do conflitoentre Amós e o sacerdote Amasias (cf. 7,10-17). E na coletâ­nea de ditos que precede à última visão, a contestação desantuários e ritos marca presença (cf. 8,10.13-14). Em ou­tras partes do livro, lê-se o mesmo (cf. 2,8; 4,4-5; 5,4-5.21­27). Sim, o repúdio ao templo é um dos refrões de Amós.Não estranha, pois, que constitua o auge do cicio das visões.

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À nossa quinta visão segue um hino (cf. 9,5-6). É, porassim dizer, a última estrofe de um cântico de louvor, doqual também são parte 4,13 e 5,8-9 e que está próximo aopróprio cabeçalho do livro: 1,2. É muito provável que essalinguagem hínica tenha sido incluída por compiladores. Por­tanto, até para gerações posteriores a Amós, o louvor a Javéalcança seu sentido mais pleno logo após a ruína total e com­pleta do templo.

Por que é dada tamanha relevância ao templo?

As visões no conflito campo versus cidade

O templo é parte de um todo maior. A ele está integra­do. Nele cumpre seu papel. Por conseguinte, faz-se necessá­rio identificar melhor o todo social. Faço-o na brevidadedevida, tomando nosso conjunto das cinco visões como re­ferencial.

A visão sobre o templo encerra uma série de cinco vi­sões. Elas subdividem-se claramente em dois tipos. Numasas ameaças são seguidas de perdão. Noutras efetiva-se a des­graça. Suspensão acontece nas duas primeiras. Nas três res­tantes, prevalece destruição.

As primeiras dizem respeito ao campo. Em questãoestá tanto o resultado do trabalho dos agricultores quanto aprópria condição de produzir. Emjogo está a terra (ameaçadapor seca) e a produção (ameaçada por reis e gafanhotos). Omundo do campo é o pequeno Jacó. São as mulheres, oshomens e as crianças, organizados de maneira clânica e tribal,nas aldeias e nos lugarejos. A esse ambiente, porque oriun­das da roça, também pertencem as "cantoras"/escravas, ci­tadas em 8,3.

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As três últimas visões dizem respeito à cidade. Referem­se a seus muros e a suas festas, a seus lugares sagradosnos altose a seus santuários, a suas dinastias e seus palácios, a seus tem- .plos e sacerdotes.Tematizarna cidade e suas instituições.Den­tre elas cabe papel preponderante ao Estado monárquico. É eleo coordenador dos interesses citadinos. O mundo citadino é"meu povo Israel" ou simplesmente "Israel".

A base real das cinco visões constitui, pois, o conflitoentre campo e cidade. Essa é a contradição elementar notributarismo, o modo de produção do mundo bíblico em ge­ral e dos tempos de Amós (século VIII a.C.) em especial. Ocampo é o local da produção. Gerador de riqueza social é oclã agrícola. A cidade sobrevive à base e à custa do campo.Arrecada parcelas de seus produtos e convoca sua popula­ção para o trabalho forçado junto às construções públicas.Para efetivar seus interesses, a cidade organiza-se na formade cidade-Estado ou, em conjugação com outras cidades,arregimenta-se em um Estado territorial. Exército, templo eburocracia são os esteios de tais cidades-Estados. Diantedestas instâncias citadino-estatais, o campesinato luta pordiminuição e extinção do tributo e pela abolição do trabalhoforçado. Tanto o êxodo (Ex 1-15) quanto a divisão reinodavídico-salomônico (cf. 1Rs 11-12) situam-se no ambien­te da oposição frontal ao trabalho forçado.

Esse é o contexto das cinco visões. Nelas, Amós é avoz do campo. É a utopia de quem trabalha e produz. É adefesa de quem enfrenta gafanhotos e secas para depois ser"ceifado" pelo rei, pelo sacerdote, pelo Estado e pelo tem­plo. Portanto, uma leitura sociológica das visões fomece­nos o sentido do texto em conexão com as lutas reais, trava­das numa sociedade tributarista.

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Com isso também está encaminhada uma explicaçãopara a relevância do templo, colocado tão no auge das visões.

No tributarismo, o setor citadino-senhorial ainda nãoconsegue alterar as condições de vida e de produção na al­deia. Os clãs aldeãos mantêm significativa autonomia. Con­trolam o processo produtivo. Os camponeses não são nemservos feudais nem escravos. Não estão expropriados. Emconseqüência, cidade e Estado têm certa dificuldade em seapropriar dos produtos do campo ou em requisitar sua forçade trabalho. Não raro recorrem à repressão militar e à for­ça bruta para "convencer" lavradores ao pagamento dos tri­butos. É o que se pode ver em Am 2,7; Mq 3,1-4; Ex 1-2,por exemplo. Por mais eficiente que seja o uso do exércitona arrecadação do tributo, não é apropriado, a longo prazo.Há outro instrumento bem mais eficaz. Trata-se do templo,sua religiosidade e seus ritos. No tributarismo, o templo écentral de arrecadação de excedentes. Aí se junta, por oca­sião das grandes festas da colheita e mediante a multi­plicidade de ritos, a riqueza social camponesa. Justamentepor isso, há estreita vinculação entre o santuário e o Estado.Pode-se constatá-lo tanto no conflito entre Amós e Amasias(cf. Am 7,7-10) quanto na condenação de Jesus (cf. Mc 14-15).Por desempenhar um papel tão decisivo no tributarismo, ocampesinato continuamente contestou o templo. A defesado campo e oposição ao templo citadino são, na verdade, osdois lados da mesma moeda. E assim se explica por que asvisões de Amós - em defesa do pequeno Jacó e em contes­tação ao Estado de Israel - culminam na ruína do templo,destroçado pelo próprio Javé. Nosso visionário encontra-sesituado nas contingências históricas do tributarismo e anali­sa-as' em sua palavra profética, segundo a opressão e a utopiado campesinato tributado, "ceifado", escravizado, espoliado.

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As visões não o deslocam para fora de seu contexto social.Lançam-no para dentro do âmago do conflito. Desvendam acontradição. Desvelam a crise. Não é, pois, nenhum acasoque o texto do desacerto entre o profeta do pequeno Jacó e osacerdote do santuário do rei comente uma das visões. Nemhá que estranhar que outra seja explicitada por uma denún­cia como a seguinte: "Ouvi isto, vós que pisoteais o pobre eque eliminais os oprimidos do campo" (8,4).

A caminho da pastoral

Não estou dando por concluída a interpretação do ci­clo das visões em Amós 7-9. Muitos detalhes careceriam deatenção. Afora isso, permanece o problema da transmissãodo texto hebraico, com seus impasses e possíveis enganos.Igualmente a teologia desses capítulos mereceria ser avalia­da em detalhes. Por certo, permanecem tais tarefas. Aindaassim penso que esbocei uma resposta à tarefa a que mepropus: situar as visões em seu contexto social. Por isso,julgaria ser adequado que, por ora, nos encaminhássemospara uma conclusão.

Comecei com a pastoral. Foi meu referencial no de­correr da reflexão sobre Am 7-9. Retomo, pois, à pastoral.Que serviço prestaria este estudo às comunidades cristãs que,em meio aos pobres, dão novo rosto a todas as Igrejas?

Proponho iniciar pela constatação da distância. Esteensaio não é e nem quis ser um texto para ser lido no encon­tro do círculo bíblico, aí na periferia da cidade ou entre ossem-terra. Ele não se presta para tal aplicação imediata. Afi­nal, pressuponho que o leitor e a leitora tenham sensibilidadepara questões literárias. Provavelmente, só quem está habi-

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tuado à leitura alcançará avaliar a relação entre as três últi­mas visões e seus comentários anexos. Além disso, contocom leitores que estejam treinados na percepção da diferen­ça entre o tributarismo e o capitalismo. Estou insistindo emque não se apliquem, de maneira deveras direta, à nossa situa­ção textos formulados em ambiente histórico-social muitodiferente. Portanto, este ensaio não é uma reportagem da reu­nião comunitária. Nela, porém, brotou e para lá remete.

A solidariedade com os empobrecidos é, pois, a ma­triz dessa nossa releitura das visões. Não me parece ser ne­cessário explicitá-lo. Afinal, é o que transpira a cada passo.As "cantoras"/escravas, o pequeno Jacó, o profeta dos po­bres são, flagrantemente, a chave hermenêutica deste comen­tário a Am 7-9.

Contudo, não me parece que, na releitura bíblica, fos­se suficiente ser solidário com as mulheres e os homenspauperizados. Igualmente decisivo é o jeito de ler. Só a in­tenção e o propósito podem evidenciar-se como incomple­tos. O método de leitura da Bíblia necessita estar achegadoao método de leitura e de transformação das condições àsquais os pobres estão sendo sujeitados. Os pobres cada vezmais se entendem como empobrecidos e, em suas organiza­ções, mostram que somente a derrocada das causas de suapauperização diária será capaz de transformar sua situação.A leitura da Bíblia não poderá estar descolada da prática dosoprimidos. Precisa ser inserida no método dos pobres. Jus­tamente por isso insisti em situar as visões de Amós na prá­tica e na utopia do pequeno Jacó. Portanto, o jeito de ler arealidade e de transformá-la e o jeito de interpretar a Escri­tura Sagrada convergem. "A religião pura e sem mácula, paracom nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas

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nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminadodo mundo" (Tg l,27).

Nem a solidariedade mais bem-intencionada nem o mé­todo mais burilado bastam por si só. Afirmar sua suficiênciatangeria a arrogância. E, em última instância, solidariedade emétodo não são o que sustentam e nutrem as comunidadesdas mulheres e dos homens oprimidos. O que as impulsionaa resistir com tenacidade e a avançar com sabedoria é a ex­periência de Deus. Nessa mística reside o segredo da insub­missão e insubordinação dos fracos. É o que a olhos vistossucede em nossos dias. A tarefa primordial da releitura bí­blica está conectada a essa experiência com Deus. Textoscomo Am 7-9 ajudam a amadurecer o conhecimento do Javéque está com o pequeno Jacó, "ceifado" por reis e em difi­culdade com as adversidades da natureza. Javé, ele mesmocomo criador e libertador, é solidário com as "cantoras"/es­cravas, as viúvas, os órfãos, os pequenos. Não há nada maisdecisivo que esse testemunho a respeito do Deus que vê eouve o clamor do seu povo pisoteado.

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Indicações bibliográficas

Evitei notas bibliográficas. Julgo necessário indicar,ao final, algumas das obras que foram companheiras de jor­nada. Há valiosa bibliografia sobre Amós. Cito alguns dosestudos mais recentes. Neles está considerada e valorizada aliteratura mais antiga. Dentre os comentários exegéticos, omais exaustivo e valioso continua a ser o de WOLFF, HansWalter. Dodekapropheton 2; Joel und Amos. Neukirchen,Neukrichener, 1969 (Biblischer KommentarAltes Testament,14/2). Há tradução para o inglês: Joel andAmos. Hermeneia,Philade1phia, 1977. Em espanhol está acessível uma síntesedesse comentário sob o título: La hora deAmós. Salamanca,Sígueme, 1984 (Nueva Alianza, 92). Importante também éo comentário de RUDoLPH, Wilhelm. Joel-Amos-Obadja­Jona. Gütersloh, Gütersloher, 1971 (Kommentar zum AltenTestament, 13/2). Informações exegéticas e históricas po­dem ser obtidas junto a diversos outros estudos. Relacionoalguns: TOURN, Georgio. Amós; profeta de la justicia. BuenosAires, 1978; KIRST, Nelson. Amós; textos selecionados. SãoLeopoldo, Faculdade de Teologia, 1981 (Exegese, 1/1-2);MOTYER, 1. A. O dia do leão; a mensagem de Amós. SãoPaulo, 1984. Existem publicações especializadas nas visõesde Am 7-9: BARTCZEK, Günter, Prophetie und Vermittlung;Zur literarischen Analyse und theologischen Interpretationder Visionsberichte des Amos. Frankfurt, Peter Lang, 1980(Europâische Hochschulschriften, 23/120,). Para a análise

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literária recorri a ANDrNACH, Pablo Ruben.Amós - Memoriay hermenéutica, análisis estructural y hermenéutica. RevistaBíblica, ano 45, Buenos Aires, 1983, pp. 209-301. Introdu­çõesao tributarismo encontram-se, por exemplo,em:HOUTART,François. Religião e modos de produção pré-capitalistas.São Paulo, Paulus, 1982 (Pesquisa & Projeto, 1); GEBRAN,Philomena, org. Conceito de modo de produção. Rio de Ja­neiro, Paz e terra, 1978 (Pensamento Crítico, 24).

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Sumário

APRESENTAÇÃO 9

1. "Nos DIAS DE JEROBOÃO" 11

Por que começamos pelo contexto? 12Época de Jeroboão II 14As dores que vêm do senhorio 17A realidade do povo 22Retrospectiva 28

2. "O SENHOR JAVÉ ME FEZ VER" 31

As visões 33"Rugiu o leão - Javé me agarrou" 40"Assim disse Javé" 44Amós - Um trabalhador 49Retrospectiva 53

3. "ELIMINAREI O REINO DE SOBRE A FACE DA TERRA" 57

Os ameaçados - Uma listagem 59Exército, cidade e templo 62Os governantes e o Estado monárquico 73Esperança para os ameaçados? 77Retrospectiva 79

4. "VEDE QUÃO GRANDE TERROR" 83

"Total terror!" 85

Quem são os pobres? 90Lavradores organizados 96Esperança para os empobrecidos? 105Retrospectiva 108

5. "NÃo FIZ SUBIR os FILISTEUS DE CÁFTOR?" 113

Profecia - Ponte entre Javé e seu povo 114Sentido teológico de ameaça e denúncia 122O êxodo 127Javé, Deus dos povos 130Retrospectiva 135

6. "PALAVRAS DE AMÓS" 137

O livro 139Camadas literárias ; 141Coleções de ditos 144Ditos proféticos 150Retrospectiva 159

7. ACRÉSCIMOS 161

Profecia e organização - Anotações à luzde um texto -Am 2,6-16 161

JACÓ É PEQUENO - VISÕES EM AMÓS 7-9 183

A Escritura - Memória dos pobres 183O contexto literário das visões 185"Javé se arrependeu!" 188"Jamais passarei!" 191"B . . 1" 195atia no caprte .As visões no conflito campo versus cidade 198A caminho da pastoral 201

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 205