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A TEORIA DOS REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA NO CONTEXTO DO ENSINO DE MATEMÁTICA PARA ALUNOS COM SURDEZ Flávia Roldan Viana Ma. Universidade Federal do Ceará Bárbara Pimenta de Oliveira Ma. Universidade Estadual do Ceará Mércia de Oliveira Pontes Dra. Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Esta pesquisa objetivou analisar a prática de uma professora do 5º ano do Ensino Fundamental no tocante à condução de atividades propostas de Matemática com uma turma de alunos surdos. A coleta de dados é um pequeno recorte de uma pesquisa de dissertação, aprovada pelo Conselho de Ética da Universidade Estadual do Ceará sob o parecer nº 58027. A análise baseou-se no diário de observação de uma aula e nas resoluções das questões feita pelos alunos. Como aporte teórico tivemos a Teoria dos Registros de Representação Semióticas, de Raymond Duval, que tem as representações como elemento central no desenvolvimento das atividades matemáticas. Interessou-nos observar quais os registros de representação semiótica utilizados pela professora e se sua prática propicia a coordenação entre eles. Constatou-se que a docente reconhece a especificidade de seus alunos, no sentido de que necessitam de representar as situações a partir de suas vivências visuais, permitindo que eles apoiem-se em representações intermediárias, como a língua materna (LIBRAS) e o registro desenho. Mas que ainda favorece o ensino atrelado ao registro aritmético, através da valorização do algoritmo. O aluno surdo é um sujeito que tem uma aprendizagem carregada por suas experiências visuais. Reconhecer essa peculiaridade no sujeito cognoscente surdo é reconhecê-lo como atuante na transformação do seu próprio conhecimento. Concluímos que o uso de diferentes registros de representação torna-se imprescindível para qualquer aluno surdo usuário da língua de sinais, pois suas representações mentais dependem exclusivamente de sua língua materna, para generalizar e abstrair as representações. Ao final desse estudo, destacamos a necessidade em formação docente em Matemática para o trabalho com alunos surdos. Palavras-chave: Ensino de Matemática. Formação docente. Registros de Representação Semiótica. Surdez. Introdução O ensino de Matemática ainda é marcado pela perspectiva tradicional e mecânica, com o uso de repetições e memorizações (NUNES, 2004; SFORNI, 2004; MAGINA et al, 2008). Isto leva os estudantes a interpretarem a Matemática, em grande parte, como um aglomerado de conceitos desconexos, pré-determinados e imutáveis. Esta realidade também está presente no contexto das escolas especiais para surdos. Para amenizar essa realidade, no ensino de Matemática para alunos surdos, há necessidade de correspondência entre o conhecimento escolar e as especificidades de aprendizagem dos alunos, daí a recomendação de harmonizar o material de estudo a Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores EdUECE- Livro 2 01470

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A TEORIA DOS REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA NO

CONTEXTO DO ENSINO DE MATEMÁTICA PARA ALUNOS COM SURDEZ

Flávia Roldan Viana – Ma. Universidade Federal do Ceará

Bárbara Pimenta de Oliveira – Ma. Universidade Estadual do Ceará Mércia de Oliveira Pontes – Dra. Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO Esta pesquisa objetivou analisar a prática de uma professora do 5º ano do Ensino

Fundamental no tocante à condução de atividades propostas de Matemática com uma

turma de alunos surdos. A coleta de dados é um pequeno recorte de uma pesquisa de

dissertação, aprovada pelo Conselho de Ética da Universidade Estadual do Ceará sob o

parecer nº 58027. A análise baseou-se no diário de observação de uma aula e nas

resoluções das questões feita pelos alunos. Como aporte teórico tivemos a Teoria dos

Registros de Representação Semióticas, de Raymond Duval, que tem as representações

como elemento central no desenvolvimento das atividades matemáticas. Interessou-nos

observar quais os registros de representação semiótica utilizados pela professora e se

sua prática propicia a coordenação entre eles. Constatou-se que a docente reconhece a

especificidade de seus alunos, no sentido de que necessitam de representar as situações

a partir de suas vivências visuais, permitindo que eles apoiem-se em representações

intermediárias, como a língua materna (LIBRAS) e o registro desenho. Mas que ainda

favorece o ensino atrelado ao registro aritmético, através da valorização do algoritmo. O

aluno surdo é um sujeito que tem uma aprendizagem carregada por suas experiências

visuais. Reconhecer essa peculiaridade no sujeito cognoscente surdo é reconhecê-lo

como atuante na transformação do seu próprio conhecimento. Concluímos que o uso de

diferentes registros de representação torna-se imprescindível para qualquer aluno surdo

usuário da língua de sinais, pois suas representações mentais dependem exclusivamente

de sua língua materna, para generalizar e abstrair as representações. Ao final desse

estudo, destacamos a necessidade em formação docente em Matemática para o trabalho

com alunos surdos.

Palavras-chave: Ensino de Matemática. Formação docente. Registros de Representação

Semiótica. Surdez.

Introdução

O ensino de Matemática ainda é marcado pela perspectiva tradicional e

mecânica, com o uso de repetições e memorizações (NUNES, 2004; SFORNI, 2004;

MAGINA et al, 2008). Isto leva os estudantes a interpretarem a Matemática, em grande

parte, como um aglomerado de conceitos desconexos, pré-determinados e imutáveis.

Esta realidade também está presente no contexto das escolas especiais para surdos.

Para amenizar essa realidade, no ensino de Matemática para alunos surdos, há

necessidade de correspondência entre o conhecimento escolar e as especificidades de

aprendizagem dos alunos, daí a recomendação de harmonizar o material de estudo a

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recursos visuais e mnemônicos1. Para tanto, devem ser levados em consideração a

língua materna desses indivíduos, que é a língua de sinais, e as peculiaridades na

construção do conhecimento.

Para Nunes (2004), grande parte dos alunos surdos, muitas vezes, não

demonstram perceber a utilidade e aplicação do que tentam aprender e somente alguns

desses alunos conseguem sentir-se motivados com a Matemática. Para Sales (2008), a

desmotivação para a aprendizagem matemática é proveniente das dificuldades que os

alunos surdos encontram para aprender os conceitos matemáticos. “Torna-se, assim,

necessário que o professor planeje experiências de aprendizagem que mobilizem no

aluno o motivo de aprender os conceitos matemáticos no sentido de raciocinar

logicamente, encadear ideias, pensar sobre o que se aprende” (VIANA; BARRETO,

2014, p. 10).

A Teoria dos Registros de Representação Semiótica (TRRS), preconizada por

Raymond Duval, vem complementar esse pensamento dando destaque a necessidade da

mobilização de diferentes registros de representação para compreensão de um mesmo

objeto de conhecimento matemático. Duval (2003, 2009) aborda aspectos cognitivos da

aprendizagem visando o entendimento de como o sujeito apreendente pode ter acesso ao

objeto matemático, que só é acessível através de representações. Dessa forma, os

registros de representação semiótica adquirem papel fundamental na aprendizagem da

Matemática.

A aquisição do conhecimento e os processos que estão envolvidos na

aprendizagem são grandes preocupações no âmbito da Educação Matemática. Nesse

sentido, a TRRS tem contribuído para o entendimento dos processos cognitivos em

atividades matemáticas, assim como auxiliado na organização de situações didáticas

pelo professor. Nesse processo de construção do conhecimento, o professor configura-se

como elemento fundamental. Assim, carece, de desenvolver competências que lhe

permita trabalhar os conteúdos disciplinares de uma forma mais significativa para os

alunos, elaborando e reelaborando continuamente o seu conhecimento, em função das

situações que vão surgindo em sala de aula e em todo o contexto social (VIANA;

BARRETO, 2014).

1 Recursos mnemônicos são relacionados ao processo de memorização. Consiste na elaboração de

suportes como os esquemas, gráficos, símbolos, palavras ou frases relacionadas com o assunto que se

pretende memorizar. Recorrer a esses suportes promove uma rápida associação e permite uma melhor

assimilação do conteúdo.

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No contexto dos alunos com surdez, acreditamos que esse aporte teórico

potencializa essas contribuições uma vez que os aproxima do desenvolvimento das

capacidades de raciocínio, de análise e de visualização, por meio do uso de diversas

representações, além de apresentar-se como um apoio didático/ metodológica para o

professor. Nesse sentido, teve-se como foco de análise a prática de uma professora do 5º

ano do Ensino Fundamental a partir de uma situação-problema de Matemática proposta

a uma turma de alunos com surdez. A análise levou em consideração as ações

pedagógicas docente na condução da atividade proposta, assim como as resoluções por

parte dos alunos.

Destacamos que esse estudo é nossa primeira tentativa de aproximação dos

elementos da TRRS com o ensino de Matemática para surdos, havendo necessidade de

continuação dessas investigações visto a complexidade que a compõe.

O Ensino de Matemática para alunos com surdez

No contexto do ensino de Matemática para alunos com surdez se faz necessário

uma ação pedagógica que atenda as suas especificidades se pretende um ensino de

qualidade e que possa favorecer o processo de aprendizagem.

A dificuldade em Matemática apresentada por alunos com surdez atende a dois

critérios quantitativos: o primeiro diz respeito ao fato de que crianças surdas podem

apresentar uma maior dificuldade nas tarefas matemáticas do que crianças ouvintes; e o

segundo, diz respeito ao fato de que fatores cognitivos ligados à tarefa poderão ser

relevantes para a aprendizagem Matemática (NUNES, 2004).

Porém, ainda de acordo com a autora, a “perda auditiva” pode explicar o

primeiro critério, mas não o segundo. A perda auditiva não justifica a dificuldade em

Matemática, tendo em vista que a correlação entre perda auditiva e competência

matemática é muito reduzida. A perda auditiva pode vir a ser um fator de risco, por

exemplo, quando o acesso à comunicação é mais difícil, e o ensino e a aprendizagem

ficam prejudicados (NUNES, 2004).

A falta da apropriação da língua proporciona menos oportunidades de

aprendizagem às crianças surdas, em relação às crianças ouvintes, tendo em vista que

muitas das experiências informais envolvem a língua falada. Segundo Zarfaty, Nunes e

Bryant (2004), uma das dificuldades encontradas em crianças com surdez é a habilidade

de coordenar raciocínios dentro e fora do contexto escolar, devido à limitação de

experiências em seu ambiente familiar, valiosas e imprescindíveis para formalização do

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

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conhecimento escolar, considerando-se as defasagens relacionadas entre faixa etária e

nível de escolaridade observada nestas crianças.

Bull, Marschark e Blatto-Vallee (2005) coadunam com essa ideia ao reforçarem

que o atraso de alunos com surdez em habilidades matemáticas está diretamente ligado

a fatores culturais e de aquisição do idioma, da língua materna.

Pesquisadores argumentam que embora as pessoas com surdez possam processar

informações de forma diferente de indivíduos ouvintes, eles não são deficientes no

processamento de informações (ZARFATY, NUNES E BRYANT, 2004; NUNES,

2004; BULL, MARSCHARK E BLATTO-VALLEE, 2005; BULL, BLATTO-

VALLEE e FABICH, 2006). Em alguns aspectos do processamento cognitivo, os

indivíduos surdos mostram vantagens distintas, por exemplo, na velocidade de mudança

de atenção visual e digitalização visual, na detecção de movimento periférico e na

geração e manipulação de imagens mentais (BULL, BLATTO-VALLEE e FABICH,

2006).

A necessidade de reconhecer e utilizar as relações em Matemática é fundamental

para que os alunos surdos alcancem a aprendizagem. Para ser capaz de reconhecer e

compreender as propriedades matemáticas, o aluno surdo precisa ser capaz de

identificar todos os componentes que compõem um problema matemático e relacioná-

los entre si (BLATTO-VALLEE et al, 2007).

A partir dessas considerações sobre o ensino e a aprendizagem matemática de

alunos surdos, escolhemos a TRRS como aporte teórico para discutir a prática docente.

Ensinar Matemática sob esse ponto de vista teórico que tem as representações como

ideia central apresenta-se como um caminho metodológico para que o professor

propicie o desenvolvimento das capacidades de raciocínio, de análise e de visualização

nos alunos surdos.

A Teoria dos Registros de Representação Semiótica: primeiras aproximações

Desenvolvida por Raymond Duval, a Teoria dos Registros de Representação

Semiótica (TRRS) apresenta-se como um estudo de abordagem cognitiva que busca

esclarecer como ocorre a apreensão dos conceitos matemáticos. A TRRS defende que a

aprendizagem dos conceitos matemáticos está relacionada ao uso e à coordenação de

diferentes registros de representações.

Duval (2003, 2009) parte do pressuposto de que o objeto de estudo da

Matemática não é perceptível se não por meio de representações, pois, diferentes das

outras ciências, os objetos matemáticos são ideias, conceitos, propriedades, estruturas e

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relações, ou seja, são abstrações. Tendo em vista sua natureza abstrata, tal objeto, para

ser percebido, necessita de representações, como: desenhos, gráficos, escrita numérica,

língua materna, tabelas, figuras geométricas, linguagem algébrica, entre outros.

Desse modo, as representações semióticas possuem um papel fundamental ao

desenvolvimento das atividades matemáticas. Estas são entendidas como produções

constituídas pelo emprego de signos, utilizadas para expressar, objetivar e tratar as

representações mentais, isto é, o conjunto de concepções de um indivíduo acerca de um

objeto ou situação (DUVAL, 2003).

Para que um conceito matemático seja realmente compreendido é necessário que

o sujeito desenvolva não somente na capacidade de representar ideias e conceitos em

linguagem simbólica, mas principalmente sua capacidade de mobilizar simultaneamente

ao menos dois registros de representação semiótica coordenando-os de forma natural.

(DUVAL, 2003).

Duval (2003, 2009) aponta três funções para os registros de representação

semiótica, sendo elas: a comunicação, a objetivação e o tratamento. A função de

objetivação consiste em o sujeito construir para si mesmo o conceito que deseja

aprender. Em outras palavras, “[...] o aluno se utiliza de esboços através dos quais

procura destacar os elementos e as relações ali presentes para somente assim partir

efetivamente para a sua solução” (SOUSA, 2009, p.7). Essa busca pela objetivação só

se dar com o auxílio de algum tipo de representação. Ao objetivar, o aluno toma

consciência e é capaz de explicar a ele mesmo. A função de comunicação permite que o

sujeito externe sua representação mental, deixando claro ao interlocutor a sua percepção

conceitual naquele momento. Ela pode ocorrer através de um desenho, expressão

numérica, gráfico ou qualquer outro registro de representação. Sobre isso, Damm (2008,

p.167) afirma que “[...] em matemática toda a comunicação se estabelece com base em

representações”. A função de tratamento consiste nas transformações que o sujeito é

capaz de fazer dentro de um mesmo registro de representação, como, por exemplo,

executar um cálculo numérico para se obter a resposta desejada. Esta última função

também caracteriza-se como uma atividade cognitiva da matemática.

Para além das funções, os registros de representação semiótica atendem a regras

de formação e expansão, e envolvem de três atividades cognitivas: a formação (implica

sempre uma seleção no conjunto de caracteres e determina ações que queremos

representar), o tratamento (transformação interna dentro de um mesmo registro) e a

conversão (transformação externa que produz uma representação em outro registro

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diferente do inicial). Para Sousa (2009, p.11), essas três atividades cognitivas “[...]

intervêm diretamente nas tarefas de produção e compreensão matemática”.

As dificuldades no aprendizado dos conceitos matemáticos estão em se

confundir a representação do objeto com o próprio objeto matemático. A atividade

cognitiva requerida pela Matemática difere da requerida pelos demais domínios do

conhecimento não nos conteúdos, e sim na importância primordial das representações

semióticas e na grande variedade de representações semióticas que são utilizadas. É

nesse sentido que Duval (2003, p. 21) afirma que a compreensão em Matemática

[...] implica a capacidade de mudar de registro. Isso porque não se

deve jamais confundir um objeto com sua representação. Ora, na

matemática, diferentemente dos outros domínios de conhecimento

científico, os objetos matemáticos não são jamais acessíveis

perceptivelmente ou instrumentalmente [...] O acesso aos objetos

matemáticos passa necessariamente por representações semióticas.

Nessa perspectiva, torna-se fundamental proporcionar aos estudantes situações

em que transitem sem dificuldades entre os diferentes registros combatendo o que

Duval chama de “enclausuramento” em um único registro. Isso promoverá a condição

de os estudantes coordenarem e efetivarem a apreensão dos conhecimentos

matemáticos. Ensinar Matemática, portanto, impõe a criação, por parte do professor, de

atividades que possibilitem a coordenação entre os registros, pois a diversidade de

registros por si só não leva efetivamente à aprendizagem matemática. Para que esta

ocorra, é preciso que o sujeito saiba articular diferentes registros de representação de um

mesmo objeto. Sobre isso, Damm (2008, p. 176) afirma que “[...] poderemos falar em

conceitualização, aquisição de conhecimentos somente a partir do momento em que o

aluno transitar naturalmente por diferentes registros”.

Aspectos metodológicos e contexto da pesquisa

Decidiu-se utilizar o diário de observação de uma aula de Matemática. Analisou-

se a prática docente em paralelo a resolução de problemas pelos alunos. Escolheu-se

uma das atividades proposta à turma de alunos surdos. A coleta de dados é um pequeno

recorte de uma pesquisa de dissertação, aprovada pelo Conselho de Ética da

Universidade Estadual do Ceará sob o parecer nº 58027. Para este trabalho, a análise

da atividade se fez dialogada com a prática docente sob a perspectiva das discussões da

TRRS, preconizada por Duval (2003, 2009). A opção se deu pelo fato de compreender

que a referida teoria pode vir a abrir novos caminhos para visualizar os alunos surdos

como capazes de construir seu próprio conhecimento sobre o processo de ensino e

aprendizagem.

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O episódio de aprendizagem, selecionado, permite apreender a dinâmica do

processo de ensino, no intuito de desvelar a prática docente e refletir sobre ela, uma vez

que se mostram reveladores de situações desencadeadoras de mudanças qualitativas nas

manifestações docentes. Haja vista que, “a cada troca de significados nas ações

educativas o sujeito muda de qualidade” (MOURA, 2001, p. 50). Isso porque, como

enfatiza o autor, são as ações do professor que o qualificam em relação a sua atividade

docente, o de organizar o ensino, e que se revelam na realização de seu trabalho,

visando a aprendizagem do aluno.

A aula observada contemplava o bloco de conteúdos Números e Operações,

envolvendo as operações matemáticas de adição e subtração. A professora propôs a

resolução de quatro situações-problemas. Porém, só foi possível a realização de duas

delas. Considerou-se, para a presente análise, a situação-problema abaixo, distribuída

por P1 aos alunos, pois foi destinado um maior tempo da aula à sua resolução.

FIGURA 1 - Situação-problema proposta.

Fonte: Atividade elaborada por P1

A resolução do problema iniciou-se com a leitura individual da questão

proposta. Em seguida, a professora solicitou que um dos alunos explicasse aos demais o

que estava sendo solicitado na situação-problema. A1 (Aluno 1) foi a frente da sala e

sinalizou a questão:

“Carro dirigir estrada. Viajar. Ver Buraco. Muitos. Cair buraco… Sempre

chover. TV ver. Carro buraco. Perigoso”.

A ação da professora em pedir que algum aluno interprete a questão, sinalizando

em língua de sinais, é importante para o desenvolvimento da atividade matemática.

Percebemos na explicação de A1 que ele busca as relações com o que já conhece e faz a

conversão do enunciado (em língua portuguesa) para a sua língua materna (LIBRAS2).

As representações mentais dos surdos dependem exclusivamente da língua de

sinais, para generalizar e abstrair as representações diversas (FRIZZARINI, 2014).

2 Língua Brasileira de Sinais.

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Posteriormente, a professora solicitou que algum aluno fosse ao quadro e

representasse no registro desenho a explicação do colega. A2 (aluno 2) representou a

situação, desenhando uma estrada cheia de buracos, mas sem representar as informações

necessárias para a resolução da questão, isto é, os números dos buracos existentes. A

professora, então, completou o desenho do aluno no quadro, lançando perguntas a

todos: “Aqui começo 241. Aqui final já 654. Certo? Quantos buracos aumentou?”. A1

vai ao quadro novamente e estrutura o algoritmo da adição. A professora, não espera

que ele resolva e intervem, dizendo que “Não. Quantos buracos aumentar?” (fala da

professora). P1, então, pensa mais um pouco e sinaliza “Já ter começo 241. Agora 654.

Certo. 241 + 654 = 895”. A professora explica mais uma vez, apontando para a

resolução de A1 e pergunta à turma se ela está correta. Os alunos esboçam dúvida, mas

A2 vai ao quadro e sinaliza para a turma:

“Já 241. Começo já 241. Tirar porque já ter. Aqui mais no fim 654.

Exemplo: 654 - 241 = 413. 654 todo. Fim tudo contar 654. Muito. Contar

muito. Mas começo já começar 241. Dirigir ver buracos mais. Muito ver.

Perigoso. Ver mais. Ver mais. Agora já 654. Ufa! Chegar”.

A professora concorda com a explicação de A2 e escreve no quadro um esquema

de transformações de quantidade onde já se tem um dos valores conhecidos e o valor

total. Após a escrita do esquema, os alunos são convidados a resolver individualmente

em suas folhas.

Constatamos que a professora desenvolveu a atividade matemática de forma a

reconhecer a necessidade do aluno surdo em objetivar o conceito matemático envolvido

na situação. Ela permitiu que eles representassem no registro em língua materna

(LIBRAS), assim como em registro desenho, propiciando a utilização de pelo menos

dois registros e a coordenação entre eles.

Destacamos, no entanto, que a professora sente a necessidade de representar essa

objetivação de forma clara e concisa, com a presença dos esquemas feitos por ela. E seu

objetivo é chegar à estruturação do algoritmo, como a única maneira de chegar a

solução correta do problema. Percebemos isso na resolução das questões dos alunos,

pois o esquema proposta pela professora e os algoritmos da subtração aparecem

enfaticamente.

O aluno surdo é um sujeito que tem uma aprendizagem carregada por suas

experiências visuais. Reconhecer essa peculiaridade no sujeito cognoscente surdo é

reconhecê-lo como atuante na transformação do seu próprio conhecimento. Nesse

sentido, a aprendizagem tem lugar no contexto de condições visuais. A ação docente,

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então, deve evidenciar o aluno surdo como construtor do seu próprio conhecimento

(VIANA e BARRETO, 2014).

Na figura abaixo, observa-se uma resolução onde o aluno utilizou o registro

desenho como o registro de apoio para interpretar os dados da questão. Contudo,

quando ele parte para a resolução, na tentativa de encontrar a solução, ele utilizou o

registro aritmético, através da estruturação do algoritmo da subtração. O esquema

proposto pela professora aparece em seus registros.

FIGURA 2 - Resolução de aluno.

Fonte: Caderno do aluno

Na figura 3, percebe-se a resolução de outro aluno que utiliza como registro de

apoio a língua materna. Ele escreveu as palavras “já”, “agora”, “andar muito” e “muitos

buracos” como uma forma de aproximação com a ideia envolvida no problema. Para

chegar ao resultado final, no entanto, ele utilizou, assim como o outro aluno, o

algoritmo da subtração. O mesmo esquema também aparece em sua resolução.

FIGURA 3 - Resolução de aluno.

Fonte: Caderno do aluno

Na resolução da figura 4, observa-se que o aluno destacou as unidades

significativas do enunciado, circulando-as. Assim como nas resoluções anteriores, o

aluno montou o mesmo esquema apontado pela professora quando eles discutiam a

questão. Ele também encontrou o resultado esperado através do algoritmo da subtração.

FIGURA 4 - Resolução de aluno.

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Fonte: Caderno do aluno

A partir das análises das resoluções dos alunos, constatou-se uma predominância

da utilização do registro aritmético, através da estruturação do algoritmo, uma vez que

todos os alunos encontraram o resultado após a utilização dessa estratégia. A

observação da aula nos permite inferir que a ação da professora, no momento de

discussão da situação-problema, induz os alunos a manter o algoritmo como a única

maneira de resolver a questão. Além disso, ela também cria um esquema como maneira

de resumir e garantir que eles utilizem o algoritmo da subtração. Constatamos que o

registro aritmético é o mais valorizado pela professora uma vez que todos os alunos

utilizaram a mesma estratégia de resolução, o algoritmo da subtração.

Percebemos também que os alunos esforçam-se para compreender o enunciado

da questão, buscando o apoio em outros registros de representação, como a língua

materna e o desenho. A professora parece perceber essa necessidade dos alunos surdos e

propicia o primeiro momento da resolução para que eles o façam através da

coordenação de registros. Pode-se destacar ainda que os alunos parecem conhecer as

regras de conformidade e de expansão, quanto à resolução do algoritmo da subtração,

pois todos os alunos obtiveram êxito ao estruturar e tratar o algoritmo envolvido.

Considerações finais

A aprendizagem do aluno surdo é carregada pelas suas experiências

visuais (VIANA, BARRETO, 2014). A ação da professora parece considerar essa

especificidade de seus alunos. Ela conduziu a resolução da atividade proposta a partir

das interpretações dos alunos e permitindo-os que eles utilizassem outras representações

da situação em questão. Percebemos a presença dos registros língua materna (Português

e LIBRAS), desenho e aritmético. Assim como o uso dos esquemas, importante

elemento na objetivação de uma ideia a partir de uma representação. Ressalta-se, no

entanto, que a prática da professora encontra-se atrelada á uma resolução por meio dos

algoritmos. E que o esquema utilizado por todos os alunos é o mesmo proposto pela

professora.

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Concluímos que o uso de diferentes registros de representação se torna

imprescindível para qualquer aluno surdo usuário da língua de sinais, pois suas

representações mentais dependem exclusivamente de sua língua materna, para

generalizar e abstrair as representações.

Cabe ressaltar que a professora em questão passou por um processo

formativo, anterior a essa observação de aula, no qual ela teve a oportunidade de refletir

sobre alguns aspectos de sua prática docente em Matemática com alunos surdos e

perceber elementos que se apresentavam como lacunas em sua formação docente

(dificuldades de comunicação com seus alunos através da língua de sinais e dificuldades

metodológicas com conteúdos matemáticos). Acreditamos que esses momentos

formativos foram de extrema importância para que ela avançasse em alguns aspectos,

mas que estes ainda são necessários no sentido de favorecer sua formação continuada.

Nesse sentido, ressaltamos a importância de investigar as práticas docentes em

Matemática assim como utilizar essas discussões para desenvolver formações docentes

dos professores que ensinam Matemática no contexto da surdez.

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