a teoria do habitus em pierre bourdieu

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  • Maria da Graa Jacintho Setton

    60 Maio/Jun/Jul/Ago 2002 N 20

    A teoria do habitus em Pierre Bourdieu:uma leitura contempornea

    Maria da Graa Jacintho SettonUniversidade de So Paulo, Faculdade de Educao

    Introduo

    Como apreender a especificidade do modelo desocializao na atualidade? Como compreender a par-ticularidade do processo de construo das identida-des a partir das mudanas estruturais e institucionaisdas agncias tradicionais da socializao? Proponhoresponder a essas questes pela anlise da emergn-cia de uma nova configurao cultural, em que o pro-cesso de construo dos habitus individuais passa aser mediado pela coexistncia de distintas instnciasprodutoras de valores culturais e referncias identit-rias. Proponho considerar a famlia, a escola e a mdiano mundo contemporneo como instncias socializa-doras que coexistem numa intensa relao de inter-dependncia. Ou seja, instncias que configuram hojeuma forma permanente e dinmica de relao (Elias,1970; Setton, 2002).

    Parto da hiptese de que o processo de socializa-o das formaes modernas pode ser considerado umespao plural de mltiplas relaes sociais. Pode serconsiderado um campo estruturado pelas relaes di-nmicas entre instituies e agentes sociais distinta-

    mente posicionados em funo de sua visibilidade erecursos disponveis. Salientar a relao de interdepen-dncia entre as instncias e agentes da socializao uma forma de afirmar que as relaes estabelecidasentre eles podem ser de aliados ou de adversrios. Po-dem ser relaes de continuidade ou de ruptura. Po-dem, pois, determinar uma gama variada e heterog-nea de experincias singulares de socializao.1

    Dessa forma, saliento que pensar as relaes en-tre a famlia, a escola e a mdia com base no conceito

    1 Estas reflexes foram desenvolvidas em minha pesquisa

    de ps-doutorado intitulada Trajetrias acadmicas: um estudo so-bre as estratgias de transformao da ordem, iniciada em 2000,na cole de Hautes tudes en Sciences Sociales, em Paris. Essapesquisa tem como objetivo investigar as estratgias sociais eacadmicas utilizadas pelos estudantes de origem social humil-de para ingressar nos cursos mais seletos e concorridos da Univer-sidade de So Paulo, na rea de Humanidades. Este artigo desen-volve o argumento terico da pesquisa e parte integrante do re-latrio entregue Fundao de Amparo Pesquisa do Estado deSo Paulo (FAPESP).

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    de configurao2 analisar essas instituies sociaissegundo uma relao dinmica criada pelo conjuntode seus integrantes, recursos e trajetrias particula-res. Neste sentido, caberia perguntar: como e por queessa nova configurao cultural entre as instncias desocializao do mundo contemporneo seria respon-svel pela construo de um novo agente social? Con-sidero que uma resposta possvel a essa questo podeser oferecida com base na interpretao da teoria dohabitus de Pierre Bourdieu luz da concepo insti-tucional de modernidade de Anthony Giddens.

    Concebo o conceito de habitus como um instru-mento conceptual que me auxilia pensar a relao, amediao entre os condicionamentos sociais exterio-res e a subjetividade dos sujeitos. Trata-se de um con-ceito que, embora seja visto como um sistema engen-drado no passado e orientando para uma ao nopresente, ainda um sistema em constante reformu-lao. Habitus no destino. Habitus uma nooque me auxilia a pensar as caractersticas de uma iden-tidade social, de uma experincia biogrfica, um sis-tema de orientao ora consciente ora inconsciente.Habitus como uma matriz cultural que predispe osindivduos a fazerem suas escolhas. Embora contro-vertida,3 creio que a teoria do habitus me habilita apensar o processo de constituio das identidades so-ciais no mundo contemporneo.

    Notas sobre a origem do conceito de habitus

    O conceito de habitus tem uma longa histria nascincias humanas (Hron, 1987). Palavra latina utili-zada pela tradio escolstica, traduz a noo gregahexis utilizada por Aristteles para designar ento ca-ractersticas do corpo e da alma adquiridas em umprocesso de aprendizagem. Bem mais tarde foi tam-bm utilizada por mile Durkheim, no livro A evolu-o pedaggica (1995), adquirindo sentido semelhan-te, mas bem mais explcito. Ou seja, Durkheim faz usodo conceito para designar um estado geral dos indiv-duos, estado interior e profundo, que orienta suas aesde forma durvel (Dubar, 2000; Bourdieu,1983a;Lahire,1999)4.

    Mais especificamente, Durkheim evocou esseconceito a propsito de duas situaes singulares, associedades tradicionais e os internatos. Na primeira,considera o grupo realizando de maneira regular umauniformidade intelectual e moral. Tudo seria comuma todos. No segundo caso, emprega o conceito a pro-psito da noo crist como uma forma de educaoque englobaria a criana integralmente como influn-cia nica e constante. O habitus, em Durkheim,corresponderia perfeitamente situao de internato,uma instituio social total no sentido de Goffman(Lahire, 1999). A educao estaria organizada de ma-neira que produzisse um efeito profundo e duradou-ro. Assim seria possvel afirmar que a coerncia dasdisposies sociais que cada ser social interioriza de-penderia da coerncia dos princpios de socializaoaos quais os indivduos esto submetidos (Lahire,1997, 1998 e 1999).

    Em Estrutura, habitus e prtica (Bourdieu, 1982),verso brasileira do posfcio do livro Architecturegothique et pense scolastique, de Erwin Panofsky,Bourdieu retoma o conceito de habitus segundo umatica original. Ou seja, aproveitando-se das reflexes

    2 Em recente artigo, fao uma exposio detalhada do uso

    do conceito de configurao de Norbert Elias (1970), consideran-do-o um instrumento conceptual capaz de analisar as novas rela-es entre as instncias socializadoras na atualidade. A esse res-peito, consultar Setton (2002).

    3 Bernard Lahire e Franois Dubet, cada um sua maneira,

    dialogam com a teoria do social de Bourdieu. Em Lhomme pluriel(1998), Lahire dedica-se a refletir sobre os limites do conceito dehabitus, relativizando sua capacidade de apreender a totalidadedas prticas sociais (p. 11). O segundo autor, no livro Sociologiada experincia (1996), cr que Bourdieu oscila entre um novoobjetivismo e o fim do indivduo, uma vez que as prticas supemuma amnsia, uma cegueira, uma iluso quanto s lgicas do sis-tema e da dominao que comandam a realizao das prticas (p.77).

    4 possvel encontrar este conceito em Marcel Mauss (1974),

    em especial no texto Tcnicas corporais, e em Max Weber, emseus escritos sobre religio.

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    de Panofsky sobre a relao de afinidade entre a artegtica e o pensamento escolstico, Bourdieu propeum problema sociolgico. No basta postular acomparabilidade das diferentes esferas do social. necessrio definir as condies, os princpios que tor-nam essa comparao possvel (p. 338). SegundoBourdieu, Panofsky no se limitou a observar a cor-respondncia entre imagem e idias de um perodo,mas afirmou que tal semelhana derivaria, teria seuprincpio, em uma educao (socializao) sistemti-ca apropriada de maneira inconsciente e difusa. Se-gundo as palavras do autor, as semelhanas tm seuprincpio na instituio escolar, investida da funode transmitir conscientemente e em certa medidainconscientemete ou, de modo mais preciso, de pro-duzir indivduos dotados do sistema de esquemas in-conscientes (ou profundamente internalizados), o qualconstitui sua cultura, ou melhor, seu habitus...(Bourdieu, 1974, p. 346, grifo meu).5

    Para Bourdieu, ao utilizar o conceito de habitus,Panofsky mostra que a cultura no s um cdigocomum, nem mesmo um repertrio comum de res-postas a problemas comuns ou um grupo de esque-mas de pensamento particulares e particularizados: ,sobretudo, um conjunto de esquemas fundamentais,precisamente assimilados, a partir dos quais se en-gendram, segundo uma arte da inveno semelhante da escrita musical, uma infinidade de esquemas par-ticulares, diretamente aplicados a situaes particu-lares (Bourdieu, 1982, p. 349, grifo meu).6

    Contudo, a teoria do habitus, logo depois siste-matizada por Bourdieu, atribui um sentido mais pre-

    ciso ao conceito. A partir de pesquisas realizadas naArglia e entre camponeses da regio francesa deBarn (Bourdieu, 1963, 1972), o conceito de habitussurge da necessidade emprica de apreender as rela-es de afinidade entre o comportamento dos agentese as estruturas e condicionamentos sociais.7 Habitus aqui compreendido como:

    [...] um sistema de disposies durveis e transponveisque, integrando todas as experincias passadas, funciona

    a cada momento como uma matriz de percepes, de apre-

    ciaes e de aes e torna possvel a realizao de tare-

    fas infinitamente diferenciadas, graas s transferncias

    analgicas de esquemas [...] (Bourdieu, 1983b, p. 65, gri-fo meu)8

    Paradoxalmente, se habitus foi concebido comoprincpio mediador, princpio de correspondncia en-tre as prticas individuais e as condies sociais deexistncia, foi no seu desajustamento que ele se tornouexplcito. Em pesquisas empreendidas na Arglia nosanos de 1950 e 1960, Bourdieu (1963) observou a si-tuao de desamparo de indivduos arrancados de umuniverso rural e submetidos a um ambiente urbano ecapitalista. Sem os instrumentos e/ou categorias depercepo que os ajudassem nesta situao de desam-paro, como compreender o comportamento e as prti-cas desses indivduos? Formulada em um contexto es-pecfico, a noo de habitus adquire um alcanceuniversal, tornando-se um instrumento conceptual, aopermitir examinar a coerncia das caractersticas mais

    5 interessante observar que o conceito de habitus aqui usa-

    do por Bourdieu corresponde noo de cultura.6 possvel inferir que nesta passagem Bourdieu entende

    por habitus uma gama muito variada de categorias do pensamen-to, fluida e imperceptvel, mas capaz de dar coerncia s aesdos indivduos, aplicada em situaes particulares com uma certadose de inveno e criatividade. A idia de inveno e criativida-de bastante interessante e serve de apoio para se pensar uma daspropriedades do conceito. Ou seja, sua plasticidade frente a novoscondicionamentos.

    7 Na citao que se segue, Bourdieu d nfase s experin-

    cias passadas dos indivduos funcionando como matriz de percep-es, produto de trajetrias anteriores. No entanto, em outro textoassinala: habitus tambm adaptao, ele realiza sem cessar umajustamento ao mundo que s excepcionalmente assume a formade uma converso radical (1983b, p. 106).

    8 Embora possamos localizar a presena do conceito de

    habitus em obras mais antigas do autor (1964a, 1964b, 1970, en-tre outras), o texto acima selecionado, escrito em 1972, refere-se aum dos primeiros momentos de sistematizao e formalizao doconceito. Seria interessante colocar que, desde sua formulao ini-cial, Bourdieu esforou-se em precisar o sentido desse conceito.

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    diversas de indivduos dispostos s mesmas condiesde existncia (Pinto, 2000).9

    Habitus: uma interpretao10

    Seria necessrio precisar, afinar e diversificar estaanlise, mas eu queria somente fazer entrever como ateoria da prtica condensada na teoria das noes decampo e habitus permite fugir da representaometafsica do tempo e da histria como realidadesnelas mesmas, exteriores e anteriores prtica...(Bourdieu, 1992, p. 113)

    Para melhor compreender o conceito de habitus,seria necessrio recuperar a problemtica terica, aspremissas epistemolgicas da obra de Pierre Bourdieu.Ou seja, o conceito de habitus prope identificar amediao entre indivduo e sociedade como uma dasquestes centrais da produo terica desse autor.Grosso modo, a construo da teoria do habitus obe-deceu a um amadurecimento terico que se expres-sou sobretudo na conciliao de duas leituras do so-cial at ento vistas como antagnicas e contraditrias(Ortiz, 1983).

    Segundo Bourdieu, o mundo social objeto detrs modos de conhecimento terico. O fenomenol-gico, que considera:

    [...] a verdade da experincia primeira do mundo social,isto , a relao de familiaridade com o meio familiar,

    apreenso do mundo social como mundo natural e eviden-

    te, sobre o qual, por definio, no se pensa, e que exclui a

    questo de suas prprias condies de possibilidade. O co-

    nhecimento que podemos chamar de objetivista (de que ahermenutica estruturalista um caso particular) (que) cons-tri relaes objetivas (isto , econmicas e lingsticas),que estruturam as prticas e as representaes prticas ao

    preo de uma ruptura com esse conhecimento primeiro e,

    portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que

    conferem ao mundo social seu carter de evidncia e natu-

    ral [...] Enfim, o conhecimento que podemos chamar depraxiolgico (que) tem como objeto no somente o sistemadas relaes objetivas que o modo de conhecimentoobjetivista constri, mas tambm as relaes dialticas en-tre essas estruturas e as disposies estruturadas nas quais

    elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto , o

    duplo processo de interiorizao da exterioridade e exte-

    riorizao da interioridade. (Bourdieu,1983b, p. 46-47)

    Habitus surge ento como um conceito capaz deconciliar a oposio aparente entre realidade exteriore as realidades individuais. Capaz de expressar o di-logo, a troca constante e recproca entre o mundo obje-tivo e o mundo subjetivo das individualidades.11 Habitus ento concebido como um sistema de esquemas in-dividuais, socialmente constitudo de disposiesestruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes),adquirido nas e pelas experincias prticas (em condi-es sociais especficas de existncia), constantemen-te orientado para funes e aes do agir cotidiano.

    Pensar a relao entre indivduo e sociedade combase na categoria habitus implica afirmar que o indi-vidual, o pessoal e o subjetivo so simultaneamentesociais e coletivamente orquestrados. O habitus umasubjetividade socializada (Bourdieu, 1992, p. 101).Dessa forma, deve ser visto como um conjunto deesquemas de percepo, apropriao e ao que ex-perimentado e posto em prtica, tendo em vista queas conjunturas de um campo o estimulam.

    9 possvel generalizar o alcance universal do conceito,

    uma vez que, durante as dcadas de 1960 e 1970, Bourdieu e suaequipe desenvolveram uma srie de pesquisas que vieram con-firmar a capacidade terica do conceito. Entre os trabalhos maisconhecidos, no perodo, podem-se citar LAmour de lart, lesmuses dart europens et leur public (1969), Les heritiers, lestudiants et la culture (1964a), Un art moyen, essai sur les usagessociaux de la photographie (1965), A reproduo; elementospara uma teoria do sistema de ensino (1970) e La distinction;critique social du jugement (1979).

    10 O nome deste item tem a inteno de salientar que o

    conceito de habitus objeto de interpretaes controversas. Aesse respeito, consultar Lahire (1997,1998, 1999); Dubar (2000);Dubet (1996); Pinto (2000).

    11 Esta forma de interpretar o conceito de habitus remete a

    uma anlise relacional que enfatiza o carter de interdependnciaentre indivduo e sociedade.

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    A relao de interdependncia entre o conceitode habitus e campo12 condio para seu pleno en-tendimento (Bourdieu, 1992, p. 102). Ou seja, a teo-ria praxiolgica, ao fugir dos determinismos das pr-ticas, pressupe uma relao dialtica entre sujeito esociedade, uma relao de mo dupla entre habitusindividual e a estrutura de um campo, socialmentedeterminado. Segundo esse ponto de vista, as aes,comportamentos, escolhas ou aspiraes individuaisno derivam de clculos ou planejamentos, so antesprodutos da relao entre um habitus e as presses eestmulos de uma conjuntura.13

    Nesse sentido, as noes de illusio e estratgiaso importantes. Illusio, tambm conhecida como in-teresse, aqui entendida como uma motivao ine-rente a todo indivduo dotado de um habitus e emdeterminado campo. Ou seja,

    [...] a existncia de um campo especializado e relativamen-te autnomo correlativa existncia de alvos que esto

    em jogo e de interesses especficos: atravs dos investi-mentos indissoluvelmente econmicos e psicolgicos que

    eles suscitam entre os agentes dotados de um determinado

    habitus, o campo e aquilo que est em jogo nele produzeminvestimentos de tempo, de dinheiro, de trabalho etc. [...]Todo campo, enquanto produto histrico, gera o interesse,

    que condio de seu funcionamento. (Bourdieu, 1990,p. 126-128)

    Entretanto, a noo de estratgia visa apreenderas prticas inconscientes (no sentido de naturais e evi-dentes) como produtos dos habitus ajustados a uma

    determinada demanda social.14 Para Bourdieu, a maiorparte das aes dos agentes sociais produto de umencontro entre um habitus e um campo (conjuntura).Assim, as estratgias surgem como aes prticas ins-piradas pelos estmulos de uma determinada situaohistrica. So inconscientes, pois tendem a se ajustarcomo um sentido prtico s necessidades impostaspor uma configurao social especfica.

    Habitus um instrumento conceptual que auxi-lia a apreender uma certa homogeneidade nas dispo-sies, nos gostos e preferncias de grupos e/ou indi-vduos produtos de uma mesma trajetria social.15Assim o conceito consegue apreender o princpio departe das disposies prticas normalmente vistas demaneira difusa. No obstante, Bourdieu faz a ressalvade que o ajustamento imediato entre habitus e campo apenas uma forma possvel de ajustamento, emboraseja a mais freqente. Podem-se vislumbrar formasde ajustamento ou desajustamento entre estruturas ob-jetivas e subjetivas.16 Habitus no pode ser interpre-

    12 O conceito de campo faz parte do corpo terico da obra de

    Bourdieu. Trata-se de uma noo que traduz a concepo socialdo autor. Campo seria um espao de relaes entre grupos comdistintos posicionamentos sociais, espao de disputa e jogo depoder. Segundo Bourdieu, a sociedade composta por vrios cam-pos, vrios espaos dotados de relativa autonomia, mas regidospor regras prprias.

    13 O habitus no destino, como se v s vezes. Sendo pro-

    duto da histria, um sistema de disposio aberto, que inces-santemente confrontado por experincias novas e, assim, inces-santemente afetado por elas (Bourdieu, 1992, p. 108).

    14 Isto no quer dizer que sejam totalmente inconscientes e,

    portanto, sem reflexo. So prticas caracterizadas como incons-cientes, uma vez que so vistas como evidentes e naturais pelosindivduos.

    15 Pelo fato de que a identidade das condies de existncia

    tende a produzir sistemas de disposies semelhantes (pelo menosparcialmente), a homogeneidade (relativa) dos habitus que delasresulta est no princpio de uma harmonizao objetiva das prti-cas e das obras, harmonizao esta prpria a lhes conferir a regu-laridade e a objetividade que definem sua racionalidade espec-fica e que as fazem ser vividas como evidentes e necessrias, isto, como imediatamente inteligveis e previsveis, por todos os agen-tes dotados do domnio prtico do sistema de esquemas de ao ede interpretao objetivamente implicados na sua efetivao, epor esses somente (Bourdieu, 1983b, p. 66, grifo meu). inte-ressante ressaltar que as palavras assinaladas no texto mostram ocuidado do autor em no generalizar as afirmaes.

    16 A no coerncia e/ou no ajustamento das prticas em

    uma configurao histrica especfica est presente desde os pri-meiros textos sobre a teoria do habitus. o que se pode observarentre os argelinos na dcada de 1960 (Bourdieu, 1963). No entan-to, em situaes em que as dimenses do nacionalismo, etnicidadee/ou gnero so estimuladas por conflitos diversos, possvel tam-

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    tado apenas como sinnimo de uma memriasedimentada e imutvel; tambm um sistema de dis-posio construdo continuamente, aberto e constan-temente sujeito a novas experincias. Pode ser vistocomo um estoque de disposies incorporadas, maspostas em prtica a partir de estmulos conjunturaisde um campo. possvel v-lo, pois, como um siste-ma de disposio que predispe reflexo e a umacerta conscincia das prticas, se e medida que umfeixe de condies histricas permitir.

    Princpio de uma autonomia real em relao s deter-

    minaes imediatas da situao, o habitus no por isto

    uma espcie de essncia a-histrica, cuja existncia seria oseu desenvolvimento, enfim destino definido uma vez por

    todas. Os ajustamentos que so incessantemente impostospelas necessidades de adaptao s situaes novas e im-

    previstas podem determinar transformaes durveis do

    habitus, mas dentro de certos limites: entre outras razes

    porque o habitus define a percepo da situao que o de-

    termina. (Bourdieu, 1983a, p. 106)17

    Em essncia, o conceito de habitus busca rom-per com as interpretaes deterministas e unidimen-sionais das prticas. Quer recuperar a noo ativados sujeitos como produtos da histria de todo cam-po social e de experincias acumuladas no curso deuma trajetria individual. Os habitus individuais,produtos da socializao, so constitudos em con-

    dies sociais especficas, por diferentes sistemasde disposies produzidos em condicionamentos etrajetrias diferentes, em espaos distintos como afamlia, a escola, o trabalho, os grupos de amigos e/ou a cultura de massa.

    As experincias se integram na unidade de uma bio-

    grafia sistemtica que se organiza a partir da situao ori-ginria de classe, experimentada num tipo determinado de

    estrutura familiar. Desde que a histria do indivduo nunca

    mais do que uma certa especificao da histria coletiva

    de seu grupo ou de sua classe, podemos ver nos sistemas de

    disposies individuais variantes estruturais do habitus de

    grupo ou de classe [...]. O estilo pessoal, isto , essa marcaparticular que carregam todos os produtos de um mesmo

    habitus, prticas ou obras, no seno um desvio, ele pr-

    prio regulado e s vezes mesmo codificado, em relao ao

    estilo prprio a uma poca ou a uma classe. (Bourdieu,1983b, p. 80-81)

    Tendo como base a definio de habitus como sis-tema de disposies ligado a uma trajetria social, ateoria praxiolgica pretende apreender a historicidadee a plasticidade das aes (Dubar, 2000). Ou seja, asaes prticas transcendem ao presente imediato, refe-rem-se a uma mobilizao prtica de um passado (tra-jetria) e de um futuro inscrito no presente como esta-do de potencialidade objetiva.18 Enfim, o conceito dehabitus no expressa uma ordem social funcionandopela lgica pura da reproduo e conservao; ao con-trrio, a ordem social constitui-se atravs de estrat-gias e de prticas nas quais e pelas quais os agentesreagem, adaptam-se e contribuem no fazer da histria.

    A total coerncia, ou melhor, a total reproduodas estruturas, no uma perspectiva contempladapelo habitus. O princpio que funda o conceito o darelao dialtica entre uma conjuntura e sistemas dedisposies individuais em processo de interao

    bm uma reorganizao das percepes e novas tomadas de posi-o pelos agentes.

    17 A situao , de certa maneira, a condio que permite

    a realizao do habitus. Quando as condies objetivas da reali-zao no so dadas, o habitus, contrariado, e de forma contnua,pela situao, pode ser o lugar de foras explosivas (ressentimen-to) que podem esperar (ou melhor, espreitar) a ocasio para seexercerem, e que se exprimem no momento em que as condiesobjetivas se apresentam. [...] Em suma, em reao ao mecanismoinstantanesta, somos levados a insistir sobre as capacidadesassimiladoras do habitus; mas o habitus tambm adaptao,ele realiza sem cessar um ajustamento ao mundo que s excepcio-nalmente assume a forma de uma converso radical (Bourdieu,1983a, p. 106).

    18 possvel compreender que o futuro inscrito no presente

    deriva de uma atitude reflexiva, de tomadas de posio e/ou esco-lhas mediadas por uma compreenso reflexiva, comum a todos ossujeitos, no processo de socializao.

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    constante com as estruturas. Assim, a perspectiva his-trica, a interpenetrao entre passado, presente (tra-jetria) e futuro (o devir) so dimenses constitutivasdos habitus individuais.19

    Entretanto, seria possvel pensar o conceito dehabitus como instrumento conceptual segundo a ti-ca da conservao, operando de forma automtica?Ou seja, o habitus tendendo a reproduzir as estrutu-ras das quais o produto, tal como descrito porDurkheim (1995)? Creio que no. Tendo como basea discusso anterior, estaria sugerindo uma realida-de utpica. No entanto, possvel pensar numa maiorcoerncia e homogeneidade medida que houvesseuma larga correspondncia entre ele e os princpiosde uma socializao. Realidade especfica de con-textos tradicionais, est longe de ser encontrada nomundo contemporneo.

    Assim, considero possvel pensar o habitus doindivduo da atualidade formulado e construdo a partirde referncias diferenciadas entre si. Isto , um habitusproduto de um processo simultneo e sucessivo deuma pluralidade de estmulos e referncias no ho-mogneas, no necessariamente coerentes. Uma ma-triz de esquemas hbridos que tenderia a ser acionadaconforme os contextos de produo e realizao.

    Considero ser esta a realidade do mundo con-temporneo. Creio poder pensar o habitus do indiv-duo moderno sendo forjado pela interao de distin-tos ambientes, em uma configurao longe de oferecerpadres de conduta fechados. Assim abre-se a possi-bilidade de pensar o surgimento de um outro sujeitosocial, abre-se espao para se pensar a constituio

    da identidade social do indivduo moderno a partir deum habitus hbrido, construdo no apenas como ex-presso de um sentido prtico incorporado e posto emprtica de maneira automtica, mas uma memriaem ao e construo.20

    Na diversidade de referncias, na falta de um sis-tema nico, integrado e permanente de valores queoriente a ao, o indivduo pode ver-se impelido atraar suas prprias diretrizes de maneira cada vezmais consciente e reflexiva, fazendo uso da razo, re-fletindo, no sentido dado por Giddens (1994) ao con-ceito de reflexividade. possvel considerar, pois, aconfigurao de um mundo objetivo pressionando paraque o indivduo assuma posies, faa suas escolhas.Em um mundo objetivo em que as instituies per-

    19 Em outras palavras, os agentes sociais determinam ati-

    vamente, por intermdio de categorias de percepo e de aprecia-o social e historicamente constitudas, a situao que os deter-mina. Podemos dizer at que os agentes sociais so determinadossomente e na medida em que eles se determinam; mas as categori-as de percepo e de apreciao, que so o princpio desta(auto)determinao, so elas mesmas, em grande parte, determi-nadas pelas condies econmicas e sociais de sua constituio(Bourdieu, 1992, p. 111).

    20 Creio poder neste ponto fazer uma aproximao entre esta

    interpretao de habitus e a elaborada por Elias, pois o autor con-sidera um sujeito composto por vrias camadas, produtos deexperincias vividas ao longo de uma trajetria de vida. Estehabitus, a composio social dos indivduos, como que constitui osolo de que brotam as caractersticas pessoais mediante as quaisum indivduo difere dos outros membros de sua sociedade. Dessamaneira, alguma coisa brota da linguagem comum que o indiv-duo compartilha com outros e que , certamente, um componentedo habitus social um estilo mais ou menos individual, algo quepoderia ser chamado de grafia individual inconfundvel que brotada escrita social [...]. A idia de que um indivduo porte em si ohabitus de um grupo e de que seja esse habitus o que ele indivi-dualiza em maior ou menor grau pode ser definida com um poucomais de preciso. Em sociedades menos diferenciadas, como osgrupos de caadores-coletores da Idade da Pedra, talvez o habitussocial tivesse uma camada nica. Nas sociedades mais comple-xas, tem muitas. Algumas podem, por exemplo, ter as peculiari-dades de um ingls de Liverpool ou de um europeu alemo daFloresta Negra. do nmero de planos interligados de sua socie-dade que depende o nmero de camadas entrelaadas no habitussocial de um pessoa. Entre elas, uma certa camada costuma terespecial proeminncia. Trata-se da camada caracterstica da filiaoa determinado grupo social de sobrevivncia, como por exemplouma tribo ou uma nao. Nos membros das sociedades no estgiodesenvolutivo dos Estados modernos, isto designado pela ex-presso caracter nacional (Elias, 1996, p. 150-151).

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    dem paulatinamente o poder de ditar normas e con-dutas, o indivduo pode viver a experincia de cons-truir reflexivamente parte de seu prprio destino.

    As transformaes institucionaisno mundo contemporneo e aconstruo de um novo habitus

    A coexistncia de distintas instncias de sociali-zao, com projetos mltiplos e uma maior circulari-dade de valores e referncias identitrias, configuraum campo da socializao hbrido e diversificado.Com base na discusso anterior, possvel ver essanova configurao contribuindo para a construo deum habitus, a construo de um novo sujeito social,agora no apenas influenciado e determinado pelasinstncias tradicionais da socializao a famlia e aescola. possvel identificar a ordem social contem-pornea, fazendo emergir novas formas de interaosocial, contribuindo para a produo de um habitusalinhado s presses modernas. Ou seja, vivendo arealidade da desinstitucionalizao das agncias so-cializadoras (Dubet, 1996), propenso a interagir comuma nova conjuntura social, o indivduo contempo-rneo expresso e produto de um novo habitus so-cial.

    Reitero a necessidade de considerar o habitus umsistema flexvel de disposio, no apenas resultadoda sedimentao de uma vivncia nas instituies so-ciais tradicionais, mas um sistema em construo, emconstante mutao e, portanto, adaptvel aos estmu-los do mundo moderno: um habitus como trajetria,mediao do passado e do presente; habitus como his-tria sendo feita; habitus como expresso de uma iden-tidade social em construo.

    Nessa perspectiva, possvel pensar tal interpre-tao da noo de habitus segundo o conceito dereflexividade de Anthony Giddens (1994). Especifi-camente, esse autor considera a realidade das trans-formaes da modernidade por trs critrios: as no-vas redefinies das noes de tempo e espao, osmecanismos de desencaixe e, por ltimo, o fenmenoda reflexividade.

    Segundo Giddens, vivemos em um mundo des-contextualizado cujos espaos de convivncias e in-tegrao, tanto materiais como simblicos, no sereduzem ao aqui e ao agora. Vrias instituies sociaisemergiram como que concomitantemente realiza-o deste novo modelo de interao. O avano tecno-lgico, os sistemas peritos, o rdio, a TV, os compu-tadores so novos mediadores dessa ordem social. Emuma situao de modernidade, uma quantidade cadavez maior de pessoas vive em circunstncias nas quaisinstituies desencaixadas, ligando prticas locais arelaes sociais globalizadas, organizam os aspectosprincipais da vida cotidiana.

    Nesse cenrio, a noo de confiana entoreformulada, passando a ter dois sentidos: aquele presoa uma rotinizao, aos aspectos familiares de ajuste,e aquele que remete aos sistemas peritos.21 Muitas dasdecises individuais pautam-se segundo critrios queforam decididos e organizados por crculos distantes.Conhecimentos tcnicos e especficos de vrias or-dens esto permeando as aes, opes e prticas. Aconduta passa a ser baseada em conhecimentos comorigem em discusses das quais os sujeitos no parti-cipam e nem teriam condies de participar. Estoem um nvel de elaborao em que, como leigos, nopoderiam contribuir. Apenas assumem e respeitam alegitimidade que esses sistemas adquirem na socie-dade.

    Nesse sentido, o carter transitrio dos conheci-mentos um elemento chave para a reflexo sobre oconceito de habitus, o processo de socializao e aconstruo das identidades individuais. Vive-se emum mundo com uma variedade crescente de institui-es produtoras e promotoras de saberes, valores ecomportamentos. Observa-se como fato o ritmo dasmudanas tecnolgicas, o questionamento das instn-cias de referncias e as transformaes na construodas experincias individuais. As influncias antiga-

    21 Para Giddens, sistema perito um conjunto de prticas e

    conhecimentos fundamentados em reas de especializao profis-sional tal como a medicina, a economia ou a pedagogia.

  • Maria da Graa Jacintho Setton

    68 Maio/Jun/Jul/Ago 2002 N 20

    mente generalizadas de agentes solidamente constitu-dos, como a tradio (nos papis da famlia e da esco-la), passam aos poucos a ser fragmentadas e dispersas.

    O carter transitrio das relaes, dos papis edas instituies sociais pode deixar espao para umaliberdade de ao dos indivduos. No entanto, ao mes-mo tempo que confere maior margem de escolhas,maior flexibilidade nas relaes, mais refernciasidentitrias, acrescenta, simultaneamente, mais inse-gurana, mais riscos e mais responsabilidade. Nessesentido, seria pertinente perguntar: em que medida osindivduos estariam sendo atingidos por esses novoscondicionamentos?

    Entra-se, aqui, na esfera do fenmeno dareflexividade como importante componente para sepensarem os destinos pessoais. A variedade de insti-tuies com competncia e autoridade distintas, a cir-culao de modelos de conduta, a redefinio das fun-es das instituies tradicionais caminham com amudana de sentido das aes e aspiraes individuais.A reflexividade moderna consiste no fato de que asprticas sociais so freqentemente examinadas luzde informaes renovadas sobre essas prticas, poden-do alterar sempre seu carter. O que caracterstico damodernidade no uma adoo do novo por si s, masa suposio da reflexividade no cotidiano. Ela introduzida na base da reproduo do sistema. No seaprova uma ao ou prtica, no se obedece a uma au-toridade porque elas so tradicionais, mas sim pelo co-nhecimento de suas razoabilidades.

    A diferena est em que, em numa situao demodernidade, a reflexividade faz parte intrnseca dasaes, prticas e conscincias. A reflexividade domoderno implica que as aes, escolhas e destinossejam constantemente minados e reformulados luzde novas informaes, alterando assim continuamen-te seu carter e sentido. Na modernidade, a revisodas convenes so radicalizadas em todas as esferase instncias da vida social.

    O conhecimento, a competncia, a autoridade dasreferncias familiares e escolares esto sempre sujei-tos a revises. Nesse sentido, a reestruturao institu-cional que os agentes socializadores tradicionais es-

    to sofrendo impe uma instabilidade e inseguranaem relao s condutas, respostas e representaesem relao queles conceitos. Poderamos afirmar queos jovens estariam igualmente sujeitos s experin-cias de uma socializao tradicional e formal? Ou es-tariam aos poucos realizando uma experincia mo-derna de socializao?

    possvel pensar o indivduo portador de umaexperincia que o predispe a construir sua prpriaidentidade, a fazer suas prprias escolhas sem obe-decer cega e unicamente a uma memria incorpora-da e inconsciente. Ou seja, trata-se de uma expe-rincia incorporada, mas tambm em construocontnua na forma de um habitus que habilita o indi-vduo a construir-se processual e relacionalmentecom base em lgicas prticas de ao ora conscien-tes, ora inconscientes. Na falta de um eixo estrutu-rador nico (famlia, escola e/ou cultura de massa) epela circularidade das referncias, o indivduo con-temporneo estaria mantendo novas relaes com omundo exterior.

    Consideraes finais

    O objetivo deste artigo foi refletir sobre a espe-cificidade do processo de socializao no mundo con-temporneo. Para empreender essa anlise, apresen-tei uma interpretao da teoria do habitus de PierreBourdieu, considerando uma nova configurao nopanorama institucional entre as instncias tradicionaise informais da socializao.

    Saliento nessas reflexes que a contemporanei-dade se caracteriza por ser uma era em que a produ-o de referncias culturais, bem como a circularidadeda informao, ocupam um papel de destaque na for-mao tica, identitria e cognitiva do homem. Com-preendo, portanto, o processo de socializao e, comodecorrncia, o processo de construo dos habitus doindivduo na modernidade, construdo segundo umaconfigurao particular.

    Ou seja, considero as instncias tradicionais daeducao, a famlia e a escola e a mdia estaltima agente especfico da socializao no mundo

  • A teoria do habitus em Pierre Bourdieu

    Revista Brasileira de Educao 69

    contemporneo , instncias socializadoras que coe-xistem numa relao tensa de interdependncia. Soinstncias que configuram uma forma permanente edinmica de relao. No so estruturas reificadas oumetafsicas que existem acima e por cima dos indiv-duos (Elias, 1970). So, antes de tudo instituiesconstitudas por sujeitos em intensa e contnua inter-dependncia entre si e, portanto, no podem ser vis-tas como estruturas que pressionam umas as outras,mas instncias constitudas por indivduos que se pres-sionam reciprocamente na dinmica simblica da so-cializao (Setton, 2002).

    Creio ser necessrio salientar aqui a realidade dacultura de massa, com sua pluralidade de produtos emensagens, com sua capacidade de circulao, comouma nova matriz cultural. Mais do que isso, conside-ro a cultura de massa dividindo uma responsabilidadepedaggica com os agentes tradicionais da educao.Assim, difundindo mltiplas informaes e refernciasidentitrias, pode alimentar-se de, ou concorrer com,em uma conflituosa e ambgua relao, modelosnormativos da famlia e da escola (Morin, 1984).

    A coexistncia de distintas e interdependentesinstncias de socializao configuram, no meu enten-der, um campo hbrido e diversificado de refernciase padres identitrios, caracterizando a socializaoda modernidade com base em mltiplos modelos dereferncia. Assim, possvel identificar a tendnciade forjar um outro habitus, possvel pensar na cons-truo de um novo agente social portador de umhabitus alinhado s presses modernas. No caso es-pecfico dos indivduos da atualidade, grande partedeles precocemente socializados pela mdia, a reali-dade da cultura de massa parece ser inexorvel. Pul-verizando e tornando visvel uma srie de experin-cias biogrficas, modelos identitrios distintos dosapreendidos nos contextos locais da famlia e da es-cola, a mdia opera como agente socializador descon-textualizado.

    Enfim, neste estudo, considero que esta novamatriz cultural, particularidade vivida e experimen-tada pelo agente social da atualidade, pode forjar umnovo habitus: habitus compreendido como um siste-

    ma flexvel de disposio, no apenas visto como asedimentao de um passado incorporado em insti-tuies sociais tradicionais, mas um sistema de es-quemas em construo, em constante adaptao aosestmulos do mundo moderno; habitus como produtode relaes dialticas entre uma exterioridade e umainterioridade; habitus visto de uma perspectiva rela-cional e processual de anlise, capaz de apreender arelao entre indivduo e sociedade, ambos em pro-cesso de transformao.

    MARIA DA GRAA JACINTHO SETTON professorade sociologia da educao, na Faculdade de Educao da USP.Publicou: Indstria cultural: Bourdieu e a teoria clssica (RevistaComunicao e Educao, ECA/USP, dezembro de 2001); Astransformaes do final do sculo: ressignificando os conceitosde autoridade e autonomia (In: Aquino, Jlio (org.). Autoridade eautonomia na escola; alternativas tericas e prticas. So Paulo:Summus, 1999); Os projetos de profissionalizao dos estudantesda FFLCH-USP: algumas consideraes (Revista Avaliao,Unicamp, 1998). E-mail: [email protected]

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  • Maria da Graa Jacintho Setton

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    Recebido em outubro de 2001

    Aprovado em junho de 2002

  • Resumos/Abstracts

    Revista Brasileira de Educao 153

    dois tipos de leitura escolar a leiturapara aprender a ler e a leitura recreati-va; as relaes entre as formas do livroe a progressiva consolidao da escolae de seus agentes; as relaes entre oslivros de leitura brasileiros e franceses;os usos e as apropriaes dos livros nasprticas educativas cotidianas.Palavras-chave: livro didtico, histriada educao, leitura escolar.

    School reading books: a morphology(1866-1956)The present study makes use of thepartial results of a research of broaderscope. It aims to describe themorphology of the school reading bookduring the period 1866 1956.Schoolbooks constitute the major sourceof the investigation, particularly thosethat make up the collection of CEALE/UFMG. These are taken to constitute anexample of a school library, andtherefore, an indirect representative ofthe production of books in Brazil duringthe period in question. The study revealsthe existence of two major types ofbooks (i.e. graded series and individualbooks), four major book genres(compendiums, anthologies, narrativesand exercise books) and five majormodels of books (palaeographic,instructive, formative, rhetorical-literary and autonomous). The studyalso allowed the identification of fourphenomena, whose role in the make upof these classifications requires furtherinvestigation, namely, the progressivedistinction between two types of readingin schools (reading in order to learnhow to read and reading for pleasure);the relationship between the forms ofthe book and the progressiveconsolidation of the school and itsagents; the relationship betweenreading books in Brazil and in France;the uses of books and theirappropriateness for every-dayeducational activities.Key-words: textbooks, history ofeducation, school reading.

    Juan Casassus

    Cambios paradigmticos en educacinAnalisa dois cmbios paradigmticos,qualitativos, que esto ocorrendo atual-mente na educao e que esto afetan-do a comunidade de educadores. O pri-meiro situa-se no plano organizacional,ou seja, na forma de representar o con-texto no qual funciona o sistema edu-cativo. Trata-se fundamentalmente deentender as propostas atuais de gesto,que envolvem o conceito de qualidade,qualidade como resposta s demandase identidade pedaggica. O segundoocorre nos componentes da matriz dis-ciplinar e expressa-se no nvel daaprendizagem, do currculo e da avalia-o. Neste ltimo caso, afirma que seest passando de uma matriz conduti-vista para um matriz construtivista.Conclui afirmando que os cmbiosparadigmticos devem assumir comoeixo fundamental o reposicionamentodo sujeito. Isso implica, de um lado,nova compreenso de como prendem ecomo interagem os indivduos com ou-tros indivduos. De outro lado, implicatambm colocar o sujeito no centro daaprendizagem, como ator ativo daconstruo de conhecimentos.Palavras-chave: paradigmas em educa-o, mudanas em educao.

    Paradigmatic changes in educationThe article analyses two qualitativeparadigmatic changes, which aretaking place in education and whichare affecting the community ofeducators. The first occurs at theorganisational level, that is, in the wayof representing the context in which theeducation system functions. The funda-mental objective is to understandcurrent management proposals whichinvolve the concept of quality as areply to demands and pedagogicalidentity. The second takes place withinthe components of the curricularmatrix and is expressed at the level oflearning, syllabus and evaluation. In

    the latter case, the article argues thatthe conductivist matrix is giving way toa constructivist matrix. The articleconcludes by affirming that theparadigmatic changes ought to assumeas their fundamental tenet therepositioning of the subject. Thisimplies, on the one hand, a newunderstanding of how individuals cometo terms and interact with otherindividuals. On the other, it alsoimplies placing the subject at thecentre of learning, as an active actor inthe construction of knowledge.Key-words: paradigms in education,changes in education.

    Maria da Graa Jacintho Setton

    A teoria do habitus em PierreBourdieuO objetivo deste artigo refletir sobrea particularidade do processo de socia-lizao e construo das identidadesdos sujeitos no mundo contemporneo.Para empreender essa anlise irei meapoiar no conceito de configurao deNorbert Elias, na teoria do habitus dePierre Bourdieu e na concepo institu-cional de modernidade de AnthonyGiddens. Trata-se especificamente deuma interpretao do conceito dehabitus luz da especificidade doscondicionamentos sociais e culturaisvividos pelas formaes modernas.Palavras-chave: socializao, habitus,configurao, modernidade.

    The theory of habitus in PierreBourdieu: a contemporary readingThe purpose of this article is to reflectupon the peculiarity of the process ofsocialisation and the construction ofidentity of individuals in thecontemporary world. To undertake thisanalysis I make use of Norbert Elias'concept of configuration, of PierreBourdieu's theory of habitus and ofAnthony Giddens' institutional conceptof modernity. The article dealsspecifically with an interpretation of

  • Resumos/Abstracts

    154 Maio/Jun/Jul/Ago 2002 N 20

    the concept of habitus, based on thesingularity of those social and culturalconditionings experienced by modernsocieties.Key-words: socialisation, habitus,configuration, modernity.

    Marisa Vorraber Costa

    Ensinando a dividir o mundo; asperversas lies de um programa detelevisoAo analisar o programa dirio da RedeGlobo de Televiso Bambulu diri-gido a crianas e adolescentes, eu apre-sento esse artefato cultural como umdispositivo que integra o aparato peda-ggico das sociedades governamentais,ensinando muitas coisas s pessoas,entre elas, um conjunto de verdadesque compe o currculo no qual seaprende a dividir o mundo. Meu argu-mento que boa parte da modelagemidentitria empreendida pelas socieda-des neoliberais levada a efeito pelamdia e por outros artefatos da inds-tria cultural. Autores/as que desenvol-vem anlises da cultura contemporneacomo Shirley Steinberg, DouglasKellner e Stuart Hall, com pesquisado-res/as de um campo que vem sendo de-nominado estudos foucaultianos (JorgeLarrosa, Nikolas Rose, Alfredo Veiga-Neto), ajudam-me a entender esses ar-tefatos como linguagens que investemno entretenimento como uma forma deproduzir significados convenientes aprojetos polticos, sociais e culturaishegemnicos, colocando em funciona-mento tcnicas de governo que forjamconscincias e moldam comportamen-tos. Eles so parte da poltica culturalque dispe pessoas e grupos hierarqui-camente nas sociedades em que vivem.Palavras-chave: mdia e educao, edu-cao e televiso, pedagogias culturais,estudos culturais, currculo.

    Teaching how to divide the world;the perverse curriculum of atelevision programme

    In analysing a Brazilian dailytelevision programme for children andyoung people Bambulu I presentthis cultural artefact as a device usedfor integrating the pedagogicalapparatus of governmental societies,teaching people many things, includinga set of truths which make up thecurriculum through which we learn todivide the world. I argue that mediapedagogies and other artefacts of thecultural industry carry out much of theidentity shaping that is undertaken bycontemporary neoliberal societies.Authors like Shirley Steinberg,Douglas Kellner and Stuart Hall,along with researchers from a fieldcalled Foucaultian studies (JorgeLarrosa, Nikolas Rose, Alfredo Veiga-Neto), have helped me to understandthese artefacts as languages whichinvest in entertainment as a way ofproducing convenient meanings forpolitical, social and culturalhegemonic projects, putting intooperation governmental techniqueswhich conflate consciousness andshape behaviour. They are part of acultural policy that deploys people andgroups hierarchically in the societiesin which they live.

    Key-words: media and education,education and televison, culturalpedagogies, cultural studies,curriculum.

    Rosa Maria Bueno Fischer

    Problematizaes sobre o exerccio dever: mdia e pesquisa em educaoApresento e discuto uma propostametodolgica para investigaes que,no campo educacional, tratam da anli-se de produtos da mdia, especialmenteda televiso. Apoiada em autores comoFoucault e Deleuze, Beatriz Sarlo eMartn-Barbero, argumento em favorde um trabalho de pesquisa que busquedescrever, a partir de um estudo da lin-guagem audiovisual, os discursos que,

    circulando como verdade em nossotempo, produzem, para indivduos e di-ferentes grupos sociais, determinadosmodos de subjetivao. A anlise dosdiscursos da mdia entendida comouma ferramenta para descrever prticasdiscursivas e no-discursivas, o visvele o enuncivel dos modos de ver con-temporneos.Palavras-chave: mdia, recepo, anli-se do discurso, pesquisa em educao,subjetivao.Problematising ways of seeing:media and educational researchThis article presents and discusses amethodological proposal forinvestigating media, especiallytelevision products, in the educationalfield. With theoretical support fromauthors like Foucault, Deleuze, BeatrizSarlo and Martn-Barbero, I argue forinvestigations into audio-visuallanguage that seek to describediscourses circulating as hegemonictruths, in order to produce determinedways of subjectivation. Analysis ofdiscourse, related to media products,works as a "tool" for describingpractices of discourse and non-discourse about ways of seeing incontemporary life.Key-words: media, reception, analysisof discourse, educational research,subjectivation.

    Ana Lcia Silva Ratto

    Cenrios criminosos e pecaminososnos livros de ocorrncia de umaescola pblicaO artigo identifica relaes entre atemtica da confisso e a narrativa exis-tente nos livros de ocorrncia recentesde uma escola pblica de Curitiba, base-ando-se em referenciais analticos ps-estruturalistas. Esses livros relatam ca-sos de alunos considerados pela escolacomo problemticos e indisciplinados,contendo um total de 517 ocorrnciasnos anos de 1998 e 1999. Trata-se de