a teoria de justiÇa procedimental de john rawls: … · examinadora do programa de...

170
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: Uma tensão entre o procedimentalismo puro e o procedimentalismo perfeito PABLO CAMARÇO DE OLIVEIRA Teresina Setembro/2014

Upload: votuong

Post on 18-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍPRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRASMESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS:Uma tensão entre o procedimentalismo puro e o procedimentalismo perfeito

PABLO CAMARÇO DE OLIVEIRA

TeresinaSetembro/2014

Page 2: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

PABLO CAMARÇO DE OLIVEIRA

A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS:Uma tensão entre o procedimentalismo puro e o procedimentalismo perfeito

Dissertação de mestrado apresentada comorequisito parcial para obtenção do grau de Mestrepelo Programa de Pós-Graduação em Ética eEpistemologia da Universidade Federal do Piauí.

LINHA DE PESQUISA: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA

ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR ALDIR ARAÚJO CARVALHO FILHO

TeresinaSetembro/2014

Page 3: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade
Page 4: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

PABLO CAMARÇO DE OLIVEIRA

A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS:Uma tensão entre o procedimentalismo puro e o procedimentalismo perfeito

Dissertação de mestrado apresentada comorequisito parcial para obtenção do grau de Mestrepelo Programa de Pós-Graduação em Ética eEpistemologia da Universidade Federal do Piauí.

TERMO DE APROVAÇÃO

Dissertação defendida em 25 de setembro de 2014, considerada aprovada pela banca

examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de

Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí.

Teresina, 25 de setembro de 2014.

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________Prof. Dr. Aldir Araújo Carvalho Filho

UFMA/PPGE (Orientador)

_____________________________________________________Prof. Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho

UFPI/PPGE (Examinador interno)

_____________________________________________________Prof. Dr. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

UFC (Examinador externo)

Page 5: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

E a palavra do Senhor veio novamente a Zacarias:"Assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘Administrem a verdadeira

justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros. Nãooprimam a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado. Nemtramem maldades uns contra os outros’.

"Mas eles se recusaram a dar atenção; teimosamente viraram ascostas e taparam os ouvidos. Endureceram o coração para não ouvirema Lei e as palavras que o Senhor dos Exércitos tinha falado pelo seuEspírito por meio dos antigos profetas. Por isso o Senhor dos Exércitosirou-se muito".

" ‘Quando eu os chamei, não deram ouvidos; por isso, quandoeles me chamarem, também não ouvirei’, diz o Senhor dos Exércitos.

‘Eu os espalhei com um vendaval entre nações que eles nemconhecem. A terra que deixaram para trás ficou tão destruída queninguém podia atravessá-la. Foi assim que transformaram a terraaprazível em ruínas’ ".

Zacarias 7: 8-18. Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional.

Page 6: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço a Deus, “porque Ele é bom, e Seu amor dura para

sempre” (Salmo 136). Isso, por si só, já basta para reconhecê-Lo em toda Sua

grandeza.

Agradeço também aos meus pais, por haverem mostrado, não mediante

palavras, mas por atitudes, que um dos núcleos do amor de pais a filhos está na

negação dos próprios interesses em prol daqueles que mais recentemente chegaram

ao mundo, vulneráveis diante de uma realidade tão áspera e insensível. Nisto, eles

souberam propagar a mesma atitude amorosa de meus avós para com eles. Agradeço

à minha irmã, por ser uma companhia querida e indispensável nesta tão rápida

passagem dos dias.

Agradeço aos professores Carlos Brandão e Nelson Juliano, por haverem,

desde a graduação em Direito, encorajado-me a enfrentar o desafio do Mestrado em

Filosofia da Universidade Federal do Piauí.

Agradeço aos amigos e missionários Lars Gustav Ingelsrud, Adriano Menezes e

Paulo Albino por terem negado sua própria vida para fazerem a divulgação do

Evangelho. Graças à ação combinada de todos eles, guiados pelo Espírito Santo,

pude, após muita peleja e resistência, abrir os olhos – que anteriormente marcavam a

minha cegueira espiritual – para compreender que Cristo busca um relacionamento

pessoal e constante com todos os seus filhos, demonstrando um amor que transcende

todos os limites do entendimento humano.

Agradeço também ao testemunho bíblico exemplar dado pela vida de pessoas

como José (filho de Jacó), Josué (o guerreiro), Davi (o homem segundo o coração de

Deus), Elias (o profeta), Daniel (o profeta da cova dos leões), João (o discípulo amado)

e Paulo de Tarso (o antigo Saulo). Sem o testemunho de vida deles, eu não teria

apreendido o verdadeiro sentido da mensagem viva de Jesus Cristo.

Agradeço também ao testemunho de vida exemplar de outros gigantes na fé:

Agostinho de Hipona (autor das Confissões), John Newton (autor de Amazing Grace),

William Wilberforce (o abolicionista britânico), Charles Spurgeon (o príncipe dos

pregadores), Derek Prince e Billy Graham (evangelistas do século passado). Graças a

eles compreendi mais nitidamente, que é possível, também em nosso tempo, fazer a

diferença num mundo tão atribulado.

Page 7: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

No âmbito do Mestrado, agradeço ao professor Luizir de Oliveira por haver sido

o professor que me ensinou a querer se engajar em debates filosóficos. Agradeço à

professora Elnora Gondim pela paciência quanto às reformulações do primeiro capítulo

desta dissertação. Agradeço ao professor Aldir Carvalho Filho pela paciência e

sacrifício que lhe foram exigidos ao aceitar o ônus de me orientar na elaboração deste

texto. Agradeço também a todas as valorosas amizades e parcerias que pude vivenciar

com os demais alunos e professores do Mestrado.

Ao fim, só concluo como o salmista: “bendito seja o Senhor, minha rocha, que

adestra as minhas mãos para a peleja e os meus dedos para a guerra” (Salmo 144).

Page 8: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

RESUMO

Rawls sustentou, em sua teoria da “justiça como equidade”, o objetivo de

apresentar uma proposta de justiça declarada como procedimentalmente pura, assim

entendida a proposta de um procedimento que não apresenta um critério prévio que

defina o conteúdo da justiça. Nesta proposta, o resultado justo decorre apenas de o

próprio procedimento – uma deliberação entre sujeitos hipotéticos preocupados em

eleger princípios de justiça – ser seguido tal como delimitado. Há regras e restrições

presentes na própria situação hipotética de discussão, que objetivam apenas assegurar

as condições equitativas do próprio procedimento, mas sem impor um resultado prévio.

Com isso, ele quis se afastar da postura veiculada em teorias de justiça

procedimentalmente perfeitas, que impõem, previamente, uma noção prévia de justiça,

que já interfere, decisivamente, no próprio resultado final do procedimento, vinculando

o próprio conteúdo dos princípios de justiça. Tanto em Uma teoria da justiça (1971)

quanto em O liberalismo político (1993), Rawls declarou expressamente a pretensão de

veicular uma proposta de procedimentalismo puro, em vez de uma proposta de

procedimentalismo perfeito. Tal opção se justifica pela preocupação ralwsiana com a

autonomia e com a imparcialidade. As duas obras são significativamente diferentes

entre si, o que sugere que o procedimentalismo efetivamente presente em cada uma

delas pode ser também distinto. Muitas críticas foram dirigidas às duas obras, havendo

controvérsias sobre o sucesso (ou insucesso) da proposta rawlsiana, em cada uma das

duas obras. Essas críticas também repercutem na controvérsia quanto ao êxito (ou

fracasso) de realização do pretenso objetivo de se aproximar do procedimentalismo

puro e de se afastar do procedimentalismo perfeito. Assim, apenas o exame dos

argumentos ralwsianos e dos argumentos dos comentadores e críticos permitirá trazer

alguma conclusão, ainda que provisória, dado o estatuto aberto da discussão filosófica,

no âmbito da controvérsia sobre o enquadramento da sua proposta, tanto em Uma

teoria da justiça quanto em O liberalismo político, como um modelo de

procedimentalismo puro.

Palavras-chave: Justiça, equidade, procedimentalismo, autonomia, imparcialidade,

John Rawls.

Page 9: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

ABSTRACT

John Rawls announced in his theory named “justice as fairness”, the goal of

presenting a proposal of justice declared procedurally pure, so understood the proposal

of justice that does not have a prior criterion that defines the content of justice. In this

proposal, the fair result arises only from the procedure itself - a debate between

hypothetical subjects concerned to elect principles of justice - be followed just as

defined. There are rules and restrictions contained in the hypothetical situation of

discussion, which will intend only to ensure a fair field of the procedure itself, but without

imposing a prior result. With this, he wanted to get away from the attitude conveyed in

procedurally perfect theories of justice, which previously impose a prior notion of justice

that already interferes decisively in the final result of the procedure itself, tying the final

content of the principles of justice. In A Theory of Justice (1971), as well in Political

Liberalism (1993), Rawls explicitly declared the intention of conveying a proposal of

pure proceduralism, rather than a proposal for a perfect proceduralism. This choice is

justified by Rawlsian concern with autonomy and impartiality. The two works are

significantly different, and these differences suggest that effectively present

proceduralism in each of them can also be distinguished. Many criticisms were

addressed to the two works, and there are controversies about the success (or failure)

of the Rawlsian proposal in each of these works. These criticisms also reflect on the

controversy about the success (or the failure) on achieving the alleged goal of

approaching the pure proceduralism and get away from the perfect proceduralism.

Thus, only after the examination of Rawlsian arguments and the arguments provided by

commentators and critics will bring some conclusion, although provisional, given the

open status of philosophical discussion, within the framework of the controversy about

categorizing its proposal, both in A Theory of Justice and in Political Liberalism, as a

model of pure proceduralism.

Keywords: Justice, fairness, proceduralism, autonomy, impartiality, John Rawls.

Page 10: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

SUMÁRIO

Abreviaturas

INTRODUÇÃO...............................................................................................................01

Capítulo I – JUSTIÇA COMO EQUIDADE: A PROPOSTA DE RAWLS......................061.1 A relevância e a compreensão da justiça como equidade.......................................061.2 Principais diferenças entre Uma teoria da Justiça e O liberalismo político..............131.3 Elementos centrais de Uma teoria da Justiça: a posição original, o equilíbrioreflexivo e o véu da ignorância.......................................................................................171.4 A compreensão do problema a partir do equilíbrio reflexivo....................................24

Capítulo II – O PROCEDIMENTALISMO EM UMA TEORIA DA JUSTIÇA ….............312.1 Os três tipos de procedimentalismo: uma classificação rawlsiana...........................312.2 A pretensão subjacente a um procedimentalismo puro: a preocupação com aautonomia.......................................................................................................................362.3 Outra preocupação subjacente a um procedimentalismo puro: a questão daimparcialidade.................................................................................................................442.4 Um projeto deontológico de justiça e a defesa indireta da autonomia.....................592.5 Duas objeções à prioridade da justiça: a conjectura de Samuel Freeman...............652.6 Outras questões sobre a autonomia: o contratualismo e a rejeição do utilitarismo.762.7 Críticas direcionadas a Uma teoria da justiça com repercussão sobre o mérito doprocedimentalismo puro.................................................................................................86

Capítulo III – O PROCEDIMENTALISMO EM O LIBERALISMO POLÍTICO….........1003.1 Os objetivos do liberalismo político........................................................................1003.2 A caracterização de uma concepção política de justiça: três requisitos fundamentaisdo liberalismo político...................................................................................................1033.3 Procedimentalismo puro e autonomia no liberalismo político.................................1093.4 Uma concepção construtivista................................................................................1143.5 Críticas ao liberalismo político: o afastamento do procedimentalismo puro...........1233.6 A resposta rawlsiana às críticas direcionadas ao liberalismo político....................141

CONCLUSÃO …..........................................................................................................149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................156

Page 11: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Abreviaturas dos textos

TJ – Uma teoria da justiça

CKTM –O construtivismo kantiano na teoria moral

JD – Justiça e Democracia

LP – O liberalismo político

JE – Justiça como equidade: uma reformulação

0

Page 12: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

INTRODUÇÃO

John Rawls, um dos formuladores de uma teoria de justiça que conquistou

espaço no debate contemporâneo, denominada, por ele mesmo, de “justiça como

equidade”, manifestou, já no prefácio de Uma teoria da justiça (doravante denominada

TJ), publicada em 1971, sua insatisfação com o predomínio, em grande parte da

filosofia moral do século XX, de concepções utilitaristas e intuicionistas acerca da

justiça. Rawls considerava inconsistentes as duas variantes, a ponto de ter pretendido

manter o distanciamento de ambas também em O liberalismo político (doravante

denominado LP1), publicado em 1993. Contra o utilitarismo, Rawls apontava

obscuridades no princípio da utilidade, bem como algumas incongruências entre muitas

de suas implicações e as convicções morais da cultura política democrática

contemporânea. No que diz respeito ao intuicionismo, sua discordância2, dentre outros

pontos, é contra a pressuposição de que os princípios e juízos morais primeiros,

quando corretamente elaborados, são tratados como afirmações verdadeiras (em vez

de razoáveis) a respeito de uma ordem independente de valores morais, obtidas sem

qualquer contribuição significativa da utilização criativa da razão.

Em face disso, propôs, inicialmente, em Uma teoria da justiça, uma alternativa

que julgava mais coerente com nossos juízos morais e políticos sistematizados, e que

constituiria a base moral mais apropriada para uma sociedade democrática: uma

concepção de justiça amparada na teoria tradicional do contrato social de Locke,

Rousseau e Kant (sem menção expressa a Hobbes), apontando o caminho para uma

elaboração maior dessa concepção, com uma estrutura argumentativa amparada em

elementos marcantemente kantianos. Com relação a essa feição kantiana, Nythamar

Oliveira esclareceu que:

A filiação kantiana do neocontratualismo de Rawls reside sobretudo noseu procedimentalismo, na medida em que concebe a justiça comoimparcialidade, em oposição a modelos hobbesianos (justiça comoregramentos de interesses ou barganha); sua argumentaçãodeontológica (a posição original enquanto teste de universalizabilidade);

1 Portanto, as referências a Uma Teoria da Justiça e a O Liberalismo Político serão feitas,respectivamente, utilizando as abreviaturas “TJ” e “LP”.2 Cf. TJ, §7º (pp. 36-44) e LP, III, §1º (pp. 135-143).

1

Page 13: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

e seu liberalismo constitucional (reapropriação dos ideais de liberdade etolerância, de John Locke, e de igualdade e vontade geral, de Jean-Jacques Rousseau) (OLIVEIRA, 2003, p. 17).

Assim, um dos pontos característicos da formulação inicial da justiça como

equidade, tal como sistematizada em Uma teoria da justiça, é seu enquadramento na

tradição do liberalismo deontológico. Para Rawls, em atenção a este pretenso caráter

deontológico marcante em sua teoria, ao contrário de outras teorias que impõem uma

concepção prévia de bem, uma concepção adequada de justiça seria produto de um

procedimento que garante um resultado justo, seja ele qual for, não havendo uma

definição prévia do conteúdo que permitiria considerar justo o resultado. Nota-se,

assim, que há uma pressuposição, em Uma teoria da justiça, da pretensa prioridade do

justo sobre o bem.

Atento a isso, um de seus pontos cruciais é o enquadramento de Uma teoria da

justiça como uma “justiça procedimental pura”. Rawls utilizou esta terminologia para,

nitidamente, tentar se afastar daquilo que classificou como “justiça procedimental

perfeita”, assim entendida uma teoria que impõe, previamente, o resultado desejado e

cria um procedimento que com certeza viabilizará a produção daquele resultado único.

Fica claro, portanto, que o outro ponto de filiação kantiana – o procedimentalismo

preocupado com a justiça como imparcialidade – está diretamente relacionado a esse

caráter pretensamente deontológico.

Não faltaram críticos para avaliar a consistência de Uma teoria da justiça. Um

dos mais notórios é Michael Sandel, que afirmou que o propósito rawlsiano não logrou

o êxito pretendido, pois há uma recriação da posição original e das partes que

conduzem a uma concepção de comunidade para além dos limites do liberalismo

(SANDEL, 2000, p. 29). Visando subsidiar esta conclusão, Sandel apontou, sob uma

perspectiva crítica e comunitarista, diversas inconsistências de Uma teoria da justiça,

focadas em aspectos do contrato, da concepção de parte na posição original e das

implicações das condições de escolha. Para ele, Rawls formulou, na verdade, uma

concepção de justiça que conduz a um único resultado justo, o que significa um

afastamento do pretenso procedimentalismo puro e uma aproximação do

procedimentalismo perfeito.

Outros autores também apontaram críticas no sentido de que Uma teoria da

justiça contém pressuposições morais já previamente incorporadas, sendo elas

delimitadoras (ou, para alguns, determinantes) do próprio resultado final do processo

2

Page 14: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

hipotético que conduz aos princípios de justiça. Há quem aponte, inclusive, que Rawls

segue uma espécie de intuicionismo moral na justificação dos princípios. Essas críticas,

trazidas para o âmbito específico do procedimentalismo, sugerem uma aproximação ao

procedimentalismo perfeito, em vez do procedimentalismo puro tão preconizado por

Rawls.

Deste modo, a análise que Michael Sandel, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor,

Michael Walzer, dentre outros críticos, realizaram sobre as contradições e as

incoerências da teoria de Rawls, avalia, em última instância, a própria viabilidade do

procedimentalismo puro. A objeção apresentou alguma plausibilidade, e tanto é assim

que Rawls, em artigos posteriores a estas críticas, dirigidas a Uma teoria da justiça,

fundamentou algumas posturas teóricas que modificaram consideravelmente a

exposição da justiça como equidade. Essas alterações, de alguma maneira,

repercutiram no procedimentalismo puro pretensamente declarado na sua primeira

grande obra.

Essas mudanças estão presentes em O liberalismo político (expostas no

próximo tópico), que foram mantidas na obra posterior (publicada em 2001) Justiça

como equidade: uma reformulação (doravante denominando JE). As reformulações

conduziram a uma nova perspectiva do procedimentalismo que, de certa forma,

veicularam o intento rawlsiano de rebater críticas como as de Sandel, Taylor, MacIntyre

e Walzer, além de buscar tornar mais exequível a justiça como equidade.

Contudo, mesmo que a reformulação rawlsiana tenha buscado rebater algumas

dessas críticas, que repercutiam no êxito de se tratar a teoria da justiça a partir do

modelo de procedimentalismo puro, a nova postura também foi alvo de outras críticas.

Diversos autores apontaram que o liberalismo político não é tão imparcial como deveria

ser para que pudesse ser considerado um modelo de procedimentalismo puro. Assim,

as críticas dirigidas a O liberalismo político também repercutem no êxito ou fracasso de

haver Rawls efetivamente se afastado do procedimentalismo perfeito, tal como ele

pretendia.

Deste modo, a presente dissertação investiga essa justiça procedimental pura

proposta por Rawls em Uma teoria da justiça, bem como as modificações

metodológicas posteriores, verificadas em O liberalismo político e consolidadas em

Justiça como equidade: uma reformulação, no que diz respeito ao procedimentalismo.

A maneira de abordar essa questão é expor, separadamente, tanto para Uma

teoria da justiça quanto para O liberalismo político, as pretensões ralwsianas.

3

Page 15: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Compreendidas as diferentes pretensões de Rawls nas duas obras, aprofundam-se

tópicos, dentro de cada um das obras, que estão diretamente relacionados com a

questão do procedimentalismo. Isso permite esclarecer os motivos da opção rawlsiana

pelo procedimentalismo puro em vez do procedimentalismo perfeito. Também serão

expostas as justificativas que Rawls forneceu no intuito de cumprir a sua pretensão

declarada. Aprofundado o esclarecimento dos tópicos da justiça como equidade

relevantes à compreensão da questão proposta, avança-se para os argumentos

críticos. Os críticos diagnosticaram diversos pontos da justiça como equidade que

sugerem a adoção rawlsiana de algumas posturas contrárias às pretensões

declaradas. Essas críticas repercutem, inegavelmente, na conclusão de ser (ou de não

ser) a justiça como equidade uma proposta de procedimentalismo puro (como

pretendia Rawls) ou perfeito (postura nitidamente rejeitada).

O objetivo da abordagem é mostrar a motivação rawlsiana ao optar pelo

procedimentalismo puro, rejeitando o procedimentalismo perfeito. Objetiva-se, também,

avaliar qual das duas obras é mais satisfatória como uma proposta de justiça. Além

disso, objetiva-se verificar se Rawls, nas duas obras, efetivamente se alinhou à

pretensão declarada de procedimentalismo, ou se adotou premissas que permitem

concluir o que seu objetivo, quanto a este ponto, foi frustrado, por haver incorrido em

uma modalidade distinta de procedimentalismo.

Esta concepção de justiça como equidade vale-se de um método cuja

argumentação parte da posição original, utilizando-se do “véu da ignorância”. A

compreensão do problema, assim, exige esclarecer as noções de procedimentalismo e

as diversas pretensões rawlsianas veiculadas em Uma teoria da justiça e Liberalismo

político, bem como alguns elementos da própria justiça como equidade.

Com esses objetivos em mente, torna-se compreensível a disposição dos

capítulos da presente dissertação: o primeiro capítulo mostra a relevância da proposta

da justiça como equidade, especificando, de maneira mais global, as diferentes

pretensões de Uma teoria da justiça e de O liberalismo político. Após, esclarecem-se

alguns elementos centrais da teoria de justiça ralwsiana, explicando a noção de

posição original, de equilíbrio reflexivo e de véu da ignorância. Com isso, torna-se

possível explicar a questão do procedimentalismo puro e do procedimentalismo

perfeito. É também mostrada uma outra maneira de enxergar a questão objeto da

presente dissertação: a controvérsia sobre a versão posterior do equilíbrio reflexivo

admitir, ou não, espaço para o intuicionismo.

4

Page 16: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

O segundo capítulo aborda, em profundidade, características de Uma teoria da

justiça que repercutem diretamente na questão do procedimentalismo pretensamente

declarado por Rawls nessa obra. Explica-se a classificação proposta por Rawls em que

três diversos tipos de procedimentalismos são apontados. Mostra-se que a opção

rawlsiana pelo procedimentalismo puro está diretamente relacionada com

preocupações de respeito tanto à autonomia individual quanto à imparcialidade. Expõe-

se a relevância do contratualismo no resguardo da autonomia. Apontam-se também

argumentos que visam rebater críticas no sentido de que a preocupação excessiva com

a autonomia possa desnaturar a própria possibilidade de pretensa imparcialidade na

escolha dos princípios de justiça. São mostradas, também, algumas críticas sobre o

êxito rawlsiano quanto ao efetivo respeito à autonomia e à imparcialidade, repercutindo

diretamente na questão do procedimentalismo. As críticas exemplificadas sugerem que

Rawls, nos escritos posteriores a Uma teoria da justiça efetuou mudanças que visavam

reformular a justiça como equidade de maneira a tornar-se imune a essas críticas.

Já o terceiro capítulo examina os caracteres e modificações de O liberalismo

político que também repercutem diretamente na questão do procedimentalismo. É

apresentado o objetivo de Rawls nessa obra, bem como os pontos relevantes à

consecução do fim pretendido: a formulação de uma concepção política de justiça. É

mostrada a relação entre procedimentalismo e autonomia nesta obra. Também é

esclarecida a opção pelo construtivismo especificamente político. Em seguida, são

apresentadas críticas que apontam a falta tanto de imparcialidade quanto de respeito à

autonomia, comprometendo o próprio enquadramento da justiça como equidade no

procedimentalismo puro.

Toda essa análise irá permitir cumprir os objetivos propostos nesta dissertação.

Ao investigar o procedimentalismo presente na proposta rawlsiana de justiça, a minha

hipótese é a de que a justiça como equidade está mais próxima de um

procedimentalismo perfeito, e mais distanciada do pretenso procedimentalismo puro.

5

Page 17: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

CAPÍTULO I

JUSTIÇA COMO EQUIDADE: A PROPOSTA DE JOHN RAWLS

Neste capítulo, será compreendida a relevância da proposta da justiça como

equidade de John Rawls. Serão explicadas, também, algumas das principais diferenças

entre Uma teoria da justiça e O liberalismo político, cujos contornos diferenciados

apontam, sugestivamente, que há também diferenças quanto à maneira de efetivar as

questões correlatas à opção rawlsiana por um procedimentalismo puro, em paralelo

com a rejeição rawlsiana de um procedimentalismo perfeito. Serão mostrados, ainda,

alguns elementos centrais de Uma teoria da justiça, relevantes para a compreensão da

justiça como equidade. Por último, será abordada uma maneira alternativa de

compreender o problema referente às pretensões do procedimentalismo puro.

1.1 – A relevância e a compreensão da justiça como equidade

Dentre as muitas distintas maneiras pelas quais se podem abordar os

questionamentos sobre a justiça, há propostas de justiça que se preocupam,

primariamente, com considerações de imparcialidade3 entre os diversos sujeitos

envolvidos. Esta postura, de inspiração kantiana, preocupa-se em assegurar um trato

imparcial aos diversos sujeitos interessados em deliberações sobre como devem ser as

normas de justiça. Rawls, nitidamente, propôs uma teoria de justiça que buscava

assegurar essa imparcialidade, ao buscar respeitar as demandas frequentemente

conflitantes entre os diferentes sujeitos interessados em propor as regras de justiça que

devem reger a estrutura básica de uma sociedade.

Assim, por se tratar de uma teoria de justiça com viés normativo, uma vez que

há a pretensão de definição dos princípios justos, pode-se vislumbrar o tipo de

pretensão veiculada pelo projeto rawlsiano. Rawls se propôs a responder perguntas3 A maneira de se compreender a imparcialidade será mais detalhadamente exposta no tópico 2.3. Porora, pode-se entender que, nesta perspectiva, há uma preocupação em representar a situação deeleição das regras justas com características tais que se possa assegurar que os interesses particularesde todas as partes envolvidas sejam tomados em igual consideração.

6

Page 18: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

que brotam das discussões sobre a justiça, e ainda que suas respostas fossem

restritas ao particular âmbito de obtenção de um consenso sobre a estrutura básica da

sociedade, elas têm suscitado posicionamentos contrapostos ao longo de milênios, por

pensadores com as mais variadas opiniões.

Desse modo, Rawls preferiu apresentar uma teoria de justiça baseada,

primariamente, em considerações de imparcialidade, com resultados que pretendem

dizer como a estrutura básica da sociedade deve ser ordenada. Uma tal pretensão

acarreta, para Rawls, a necessidade de enfrentar vários questionamentos adicionais,

por se tratar de um projeto de busca de uma normatividade mais aceitável para nós.

Considere-se, apenas a título de exemplo das dificuldades adicionais de uma tal

pretensão, a tentativa rawlsiana de conciliar a concepção de liberdade dos antigos com

a idéia de liberdade dos modernos. Acrescente-se, também como exemplo, a tentativa

de conciliar contribuições distintas de diversos contratualistas, a exemplo da

acomodação do liberalismo de Locke com o republicanismo de Rousseau. Ressalte-se,

ainda, o zelo pela autonomia dos indivíduos, e a correlata preocupação com a

imparcialidade, à feição kantiana. Trata-se de desafios que acomodam, no seu interior,

o enfrentamento de temas bastante controversos, por vezes considerados

inconciliáveis, a exemplo do binômio liberdade e igualdade. Rawls declarou

expressamente essa pretensão em O construtivismo kantiano na teoria moral, sem

negar as dificuldades que certamente teria, ao encarar um impasse tal como o que se

dá entre

duas tradições do pensamento democrático, uma associada com Locke,a outra com Rousseau. Se utilizar a distinção feita por BenjaminConstant entre a liberdade dos Modernos e a liberdade dos Antigos, eudirei que a tradição derivada de Locke dá prioridade à primeira, isto é,às liberdades civis, e em particular à liberdade de consciência e depensamento, a certos direitos básicos da pessoa e aos direitos depropriedade e de associação. Ao contrário, a tradição oriunda deRousseau atribui a prioridade às liberdades políticas iguais para todos eaos valores da vida pública e considera as liberdades civis comosubordinadas. Claro está que essa oposição é, em grande parte,artificial e historicamente inexata. Porém ela serve para fixar as ideias enos permite ver que uma simples acomodação entre essas duastradições (mesmo que cheguemos a nos pôr de acordo quanto à melhorinterpretação de cada uma) seria pouco satisfatória. De um modo ou deoutro, devemos encontrar uma formulação pertinente da liberdade e daigualdade, bem como de sua prioridade relativa, que esteja enraizadanas noções mais fundamentais de nossa vida política e que esteja deacordo com a nossa concepção da pessoa (RAWLS, 2000, p. 52).

7

Page 19: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Nota-se, com essas observações, as dificuldades conscientemente presentes

em indagações sobre a justiça tais como as realizadas nos moldes pretendidos por

Rawls. Acrescente-se, agora, e dentro do campo específico do liberalismo, o contexto

da época do lançamento de Uma teoria da justiça. Isaiah Berlin afirmara, em 1962, que

não surgira nenhuma obra dominante4 de teoria política no século XX. Tal apatia se

explicou porque, no curso daquele século adotou-se uma postura tímida: a teoria

política tinha sido desmembrada em disciplinas estanques, focadas ora na história do

pensamento político, ora na análise dos conceitos políticos. Faltava, na filosofia

política, uma grande obra que encarasse o desafio de tratar das questões básicas da

desejabilidade, em cotejo com os aspectos de exequibilidade. A obra que

desempenhou esse papel ousado foi exatamente Uma teoria da justiça de John Rawls5,

lançada em 1971.

Eduardo Bello, por sua vez, trouxe outra observação que também demonstra a

importância de Rawls: na década anterior ao lançamento de Uma teoria da justiça,

Hegel e Marx dominavam a filosofia de um lado, enquanto Wittgenstein e Quine

dominavam o outro polo da filosofia. Rawls foi ousado ao retomar a teoria tradicional do

contrato social de Locke e Rousseau, construindo uma teoria de traços fortemente

kantianos, como uma alternativa ao utilitarismo que dominava, à época, o fornecimento

das respostas às demandas sobre a justiça6.

Compreendido o propósito rawlsiano que motivou a elaboração de Uma teoria

da justiça, pode-se avançar numa rápida exposição da sua teoria, tal como

apresentada nessa primeira obra.

John Rawls quis conceber um método que viabilizasse a construção de uma

concepção satisfatória do justo, como também proceder a um minucioso estudo para

revelar o seu próprio conteúdo. Qual é o principal objeto da justiça? Na ótica rawlsiana,

é, genericamente, a estrutura básica da sociedade, porque é dela que emanam e de

onde são sentidos todos os efeitos profundos da interação social. A justiça como

equidade considera os princípios que sujeitos livres e racionais aceitariam numa

posição inicial de igualdade. Esses princípios regulam todos os pactos sociais

supervenientes (pois o contrato social inicial seria a escolha dos princípios) e são

escolhidos sob um véu da ignorância. Na posição inicial, as pessoas escolheriam os

princípios de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade. Esta se

4 Cf. PETTIT, 2005, p. 13.5 Cf. PETTIT, 2005, pp. 13-19.6 Cf. BELLO, 2004, pp. 103-104.

8

Page 20: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

traduz no meio pelo qual as instituições políticas, sociais e econômicas se

estruturariam sistematicamente para atribuir direitos e deveres aos cidadãos,

determinando suas possíveis formas de vida7 – projetos e metas individuais, ideias de

bem, senso de justiça, etc.

Dois princípios8 são assim enunciados, de maneira mais ou menos completa, em

Uma teoria da Justiça: 1º) cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente

sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível9 com um sistema

semelhante de liberdades para todas as outras; 2º) as desigualdades econômicas e

sociais (de riqueza ou de autoridade, por exemplo) devem ser ordenadas de tal modo

que, concomitantemente, (a) tragam o maior benefício possível para os menos

favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam

vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa

(efetiva) de oportunidades. Destaquem-se as duas regras de prioridade: I) pela primeira

(prioridade da liberdade), os princípios de justiça devem ser classificados em ordem

lexical10 e, portanto, as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da

liberdade; II) pela segunda (prioridade da justiça sobre o bem-estar e sobre a

eficiência), o segundo princípio de justiça é lexicalmente anterior ao princípio da

eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade

equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença.

Quanto a esta ordenação em série lexicográfica, Nythamar Oliveira esclareceu

que:

Tal prioridade traduz decerto a chamada primazia do justo sobre o bem,características de modelos deontológicos (moral do dever), emcontraposição a modelos teleológicos e utilitaristas (éticas das virtudese morais hedonistas) [...] Assim, a inviolabilidade das liberdades

7 Cf. OLIVEIRA, 2003, p. 148 Cf. TJ: §§3º, 11 e 46.9 Ou seja, ao mencionar a compatibilidade, a intenção veiculada por esta formulação é a de garantir quetodas as liberdades básicas (a exemplo da liberdade política, da liberdade de expressão e reunião,liberdade de consciência e de pensamento, liberdades pessoais, direito à propriedade privada, e aproteção contra a prisão e a detenção arbitrárias) sejam atribuídas, em grau máximo, de maneira igual acada pessoa, em condições compatíveis com a coexistência dos direitos igualmente assegurados atodos.10 A ordem lexical é no sentido de haver uma ordenação serial, havendo a prioridade de um princípioantecedente sobre um segundo princípio. A necessidade de ordem lexical decorre do fato de outrasteorias morais elegerem um único princípio como prioritário, enquanto a justiça como equidade elegedois princípios prioritários, necessitando efetuar uma relação precisa de preponderância entre os dois. Éesclarecedor observar a afirmação de Rawls no sentido de que os dois princípios listados são um casoespecial de uma concepção mais geral de justiça que pode ser assim enunciada: “todos os valoressociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem serdistribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valorestraga vantagem para todos” (TJ, §11, p. 66).

9

Page 21: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

individuais está assegurada acima de todos os ajustes sociaisenvolvendo questões de oportunidades e desigualdades, de forma aevitar o sacrifício de indivíduos (OLIVEIRA, 2003, pp. 18-19).

A posição original proposta por Rawls é evidentemente hipotética, mas as

premissas seriam, segundo ele, aceitáveis por todos nós. Seria possível chegar

naturalmente ao véu da ignorância por meio da exclusão do conhecimento individual

das contingências de cada um, que criam disparidades entre os homens e que lhes

inclinaria a orientarem-se pelos seus preconceitos e interesses particulares. Partindo-

se de uma posição original em que as partes são iguais e, portanto, éticas, e capazes

de bem entender quaisquer princípios propostos e agir em conformidade com eles,

seria aceitável definir

os princípios da justiça como sendo aqueles que pessoas racionaispreocupadas em promover seus interesses consensualmente aceitariamem condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de serfavorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais. (TJ,§4°).

Rawls afirmou que “a ideia intuitiva da justiça como equidade é considerar que

os princípios primordiais da justiça constituem, eles próprios, o objeto de um acordo

original em uma situação inicial adequadamente definida” (TJ, p. 127). Esses princípios

representam a solução para o problema de escolha apresentado pela posição original.

Eles indicam o norte que pessoas racionais interessadas em promover seus interesses

aceitariam nessa posição inicial de igualdade, para delimitação das regras mais

básicas para a necessária associação social (posterior e real). A posição original é um

estado de coisas em que as pessoas são igualmente representadas como sujeitos

dignos, de modo que o resultado não sofra as arbitrárias influências das contingências

ou das demais forças sociais.

O véu da ignorância é o artifício teórico que busca assegurar as condições para

a delimitação da noção mais imparcial possível de justiça. É uma situação em que

“ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou o seu

status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes

naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante” (TJ, p. 147).

Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades do seu plano

de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia. Note-se,

aqui, a preocupação com a autonomia em moldes análogos à perspectiva kantiana.

10

Page 22: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Rawls apresentou, em Uma teoria da justiça, objeções contra teorias utilitaristas

e perfeccionistas, que priorizam o bem (good) sobre o justo (right): essas teorias são

teleológicas porque posicionam um fim que devemos perseguir11. Essa formulação é

amparada em W. D. Ross, que define o bem (good) como aquilo que é valioso

perseguir, ao passo que o justo (right) é aquilo que é obrigatório12. O justo é uma

qualidade referente à ação, enquanto que o bom é um qualificativo ligado à qualidade

do fim ou objeto que se persegue. A diferenciação entre ambos torna-se mais clara

com a análise da motivação do agente13. Se a adesão ou o respeito aos princípios de

justiça decorre de o agente os haver (hipoteticamente) escolhido, o justo é anterior e

prioritário em relação ao bem. Já, em outra situação distinta, se a adesão do agente

aos princípios de justiça ocorre porque os fins ou objetos escolhidos possuem um valor

intrínseco, o bem é anterior e prioritário em relação ao justo.

Essa filiação rawlsiana ao liberalismo deontológico, análoga à perspectiva

kantiana, também está presente em O liberalismo Político, embora com alguns

contornos distintos não só da proposta kantiana, como também da própria versão

apresentada na primeira obra rawlsiana.

Ainda sobre o enquadramento de Uma teoria da justiça no liberalismo

deontológico, Paul Graham esclareceu que, “no núcleo desta teoria há a ideia de que o

procedimento valida o resultado” (GRAHAM, 2007, p. 35). Assim, consequentemente, a

escolha desempenha um papel fundamental ao explicar porque somos obrigados a

respeitar um conjunto de princípios políticos de justiça: é a isso que se denomina

construtivismo14. Para ele, o construtivismo possui vantagem sobre outros métodos

alternativos de formulação porque “os princípios podem ser, ao menos hipoteticamente,

reconhecidos pelos agentes como produto de suas próprias ações (escolha), tornando-

os mais propensos e motivados a respeitá-los” (GRAHAM, 2007, p. 35). Neste ponto,

por haver o recurso ao construtivismo, a influência kantiana é notória. Contudo,

ressalta-se que o construtivismo rawlsiano (que é político, especialmente na segunda

obra) é apenas análogo ao kantiano (que é moral), no sentido de que possui suas

próprias especificidades.

11 Cf. GRAHAM, 2007, p. 35.12 Cf. ROSS, 1998, p. 3.13 Cf. GRAHAM, 2007, p. 36.14 Cf. GRAHAM, 2007, p. 35.

11

Page 23: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Compreendida esta preocupação rawlsiana com alguns elementos nitidamente

kantianos, destacando-se, dentre outros tópicos, a opção pelo construtivismo, pode-se,

agora, tecer algumas palavras sobre como se deve compreender o procedimentalismo.

Neste sentido, Rawls esboçou, em Uma teoria da justiça, uma classificação

segundo a qual uma concepção de justiça procedimental pode ser enquadrada como

perfeita, como imperfeita ou, ainda, como pura15. A justiça procedimental perfeita

possui um critério independente e anterior para a consagração de uma divisão justa,

sendo, adicionalmente, possível criar um procedimento que com certeza trará o

resultado desejado. Já na justiça procedimental imperfeita, embora haja um critério

independente para a produção do resultado correto ou justo, não há um processo

factível que com certeza leve a ele. Em contraste com ambas, surge a justiça

procedimental pura: aqui não há critério independente para o resultado correto ou justo;

em vez disso, surge um procedimento correto ou justo cujo resultado será também

correto ou justo, seja ele qual for, desde que respeitada a aplicação do procedimento.

Trata-se, desta última perspectiva, de adotar um procedimento que vele pela

imparcialidade e pela autonomia.

A justiça procedimental pura foi, então, a postura declaradamente defendida16

por Rawls em Uma teoria da justiça. Por este motivo, o autor sentiu a necessidade de

se efetivar uma configuração equitativa do procedimento na posição original que fosse

apto a conduzir a deliberação entre as partes a um resultado satisfatório. Para que se

pudesse aplicar essa noção às partes da posição original, Rawls procedeu às

delimitações de uma estrutura básica equitativa, que pressupõe uma constituição

política razoável e uma organização também razoável das instituições econômicas e

sociais: apenas com tais configurações é que se poderia dizer que houve o pré-

requisito do procedimento equitativo17.

A compreensão do procedimentalismo depende, de certa forma, do objetivo da

apresentação da justiça como equidade. Os diferentes objetivos veiculados por Rawls

em suas duas obras principais repercutem em diversos tópicos da teoria, que

interferem também nas indagações quanto ao procedimentalismo pretensamente

declarado por Rawls e o procedimentalismo efetivamente presente em suas obras.

Contudo, em razão das diferenças entre Uma teoria da justiça e O liberalismo

político, convém, preliminarmente, antes de delimitar mais precisamente a

15 Cf. TJ, §14.16 Cf. TJ, § 14.17 Cf. TJ, §14.

12

Page 24: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

compreensão do procedimentalismo, apontar as mudanças gerais efetuadas entre as

duas obras.

O delineamento geral das duas obras, bem como a explicação das mudanças

operadas entre uma e outra, estão no próximo tópico.

1.2 Principais diferenças entre Uma teoria da justiça e O liberalismo político

Neste tópico, apresentam-se os diferentes propósitos ralwsianos veiculados nas

duas obras. Essa diferença de escopos conduz à diferenciação da abordagem de

diversos tópicos da justiça como equidade, que repercutem em diversos elementos da

teoria rawlsiana.

Assim, para compreender a distinção, nota-se, inicialmente, que em Uma teoria

da justiça há uma pretensão de desenvolvimento da doutrina do contrato social,

encarada posteriormente18 por Rawls como uma explicação filosófica “parcialmente

abrangente” (partially comprehensive) de uma concepção de justiça social e política.

Essa compreensão de que Uma teoria da justiça sustenta uma doutrina abrangente

decorre do seguinte:

Ela é "abrangente" no sentido de que, em primeiro lugar, ela apela paravalores morais adicionais à justiça (autonomia completa, o bem dacomunidade); e, em segundo lugar, ela invoca explicações filosóficassobre a natureza da agência e da razão prática, da objetividade moral,justificação moral, e verdade moral. Rawls nunca fraqueja em suaconvicção de que estas posições filosóficas e morais estabelecidas emUma Teoria da Justiça são todas corretas e filosoficamente justificáveis(mesmo que sua defesa delas fosse parcialmente defeituosa), assimcomo ele nunca fraqueja em sua convicção de que a justiça comoequidade é também verdadeira (ou, na sua linguagem, "mais razoável").Mas dizer que estas posições são filosoficamente justificáveis everdadeiras não significa que elas sejam publicamente justificáveis aosmembros de uma sociedade democrática. As considerações rawlsianasem Teoria sobre o valor, a agência, a objetividade, a justificação moral,etc., são todas posições filosóficas controversas, e pessoas razoáveis podem entrar em desacordo sobre elas. É da natureza da filosofia sercontroversa e sujeita a desacordo razoável, mesmo que (como Rawlscontinuou acreditando em Uma teoria da justiça) uma posição filosóficapossa ser mais razoável e/ou verdadeira (FREEMAN, 2007, p. 325,tradução minha19).

18 Este será um dos pontos marcantes presentes em O liberalismo político, no qual Rawls,diferentemente de Uma teoria da justiça, vai pretender apresentar uma concepção de justiça que nãoseja abrangente.19 Cf. original: “It is “comprehensive” in that, first, it appeals to moral values in addition to justice (fullautonomy, the good of community); and second, it invokes philosophical accounts of the nature of agencyand of practical reason, of moral objectivity, moral justification, and moral truth. Rawls never wavers in his

13

Page 25: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Desta maneira, em atenção ao pluralismo, que está presente não só nos

debates entre os integrantes de uma sociedade, mas na própria arena filosófica, deve-

se ter como ponto da partida o reconhecimento “da inevitabilidade do desacordo

razoável sobre questões filosóficas, morais e religiosas” (FREEMAN, 2007, p. 325).

Deste modo, a partir do momento em que se admite que os membros de uma

sociedade bem ordenada, tal como preconizada pela justiça como equidade, podem

não ter que necessariamente concordar com a justificação filosófica dos princípios

apresentados, surge um problema com Uma teoria da justiça, pois, nesta, a aceitação

dos princípios requereria uma adesão necessária à justificação filosófica/moral dos

princípios apresentados. Ao se admitir que cada pessoa pode razoavelmente discordar

das outras em questões filosóficas, morais e religiosas, o problema da indagação dos

princípios de justiça parte de pressupostos distintos daqueles contidos em Uma teoria

da justiça. Neste sentido:

O principal problema com o argumento na Teoria é que […] os membrosde uma sociedade bem ordenada da justiça como equidade poderiam,razoavelmente, não concordar entre eles com a justificação filosóficados princípios de justiça que todos eles endossam. Este é o problemaque dá origem ao Liberalismo Político, que se preocupa em abordá-lo(FREEMAN, 2007, p. 325, tradução minha20).

Por este motivo, a preocupação que motivou a exposição de O liberalismo

político foi uma questão mais prática: como é possível perdurar, ao longo do tempo,

uma sociedade democrática que é estável pelos motivos corretos, de cidadãos livres e

iguais, em que todos concordam com uma concepção liberal de justiça, mas

permanecem profundamente divididos por doutrinas morais, religiosas e filosóficas

razoáveis? Nesta perspectiva, já é tomado como fato que pessoas razoáveis em

conviction that these philosophical and moral positions set forth in A Theory of Justice are all correct andphilosophically justifiable (even if his defense of them was partially defective), just as he never wavers inhis conviction that justice as fairness is also true (or “most reasonable” in his parlance). But to say thesepositions are philosophically justifiable and true does not mean they are publicly justifiable to themembers of a democratic society. Rawls’s accounts in Theory of value, agency, objectivity, moraljustification, etc. are all controversial philosophical positions, and reasonable people can disagree aboutthem. It is the nature of philosophy to be controversial and subject to reasonable disagreement, eventhough (as Rawls continued to believe of A Theory of Justice) one philosophical position may be mostreasonable and/or true.”20 Cf. original: “The primary problem with the argument in Theory is that […] the members of a well-ordered society of justice as fairness could not themselves reasonably agree upon the philosophicaljustification of the principles of justice that they all endorse. This is the problem that gives rise to andwhich is addressed in Political Liberalism.”

14

Page 26: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

sociedades liberais sustentam, inevitavelmente, diferentes “doutrinas abrangentes

razoáveis”21 (reasonable comprehensive doctrines).

Sobre essa mudança de postura, Catherine Audard afirmou que, de acordo com

a visão mais largamente difundida desse “segundo” Rawls:

O que Rawls está dizendo agora é que a unanimidade tal como exigidapelos argumentos da posição original é irrealista, tendo em vista ocaráter das sociedades modernas e do seu pluralismo. Isto tem sidoamplamente entendido como uma redução de ambições. Se nós todosnão podemos endossar a concepção pública de justiça sobre a base deuma mesma concepção do bem, então nós temos que concordar sobreuma base menos exigente, em reconhecimento a nossas diferenças.Nós temos que adicionar uma concepção de tolerância, que estavafaltando em Uma teoria da justiça, e renunciar ao universalismo como oponto de referência de processos justificatórios públicos ideais em cursonas sociedades democráticas. Tal movimento parece sinalizar queRawls está renunciando aos valores do Iluminismo, que são tãocaracterísticos de Uma teoria da justiça e da influência de Rousseau eKant em seus argumentos (2007, p. 183, tradução minha22).

Para ela, um sinal claro de que o Rawls de Liberalismo político perdera o ímpeto

e a direção de Uma teoria da justiça em nome do pragmatismo foi que, posteriormente,

conforme ela ressaltou, autores como Richard Rorty o elogiaram por haver finalmente

abandonado a lealdade ao projeto excessivamente kantiano e modificado o escopo de

sua produção teórica23. As palavras de Rorty que sufragam esse posicionamento são

essas:

Os escritos de Rawls posteriores a Uma Teoria da Justiça nos ajudarama perceber que estávamos interpretando mal seu livro, que tínhamoscomo super-enfatizados os elementos kantianos e como negligenciadosos seus elementos provenientes de Hegel e de Dewey (...). Rawls nãoestá interessado em condições para a identidade do sujeito, masapenas em condições para a cidadania em uma sociedade liberal(RORTY, 1991, pp. 185, 189, tradução minha24).

21 Cf. FREEMAN, 2007, p. 326.22 Cf. original: “What Rawls is saying now is that unanimity as required by OP [original position] argumentsis unrealistic in view of the character of modern societies and of their pluralism. This has been widelyunderstood as a lowering of ambitions. If we cannot all endorse the public conception of justice on thebasis of the same conception of the good, then we have to agree on a less demanding basis, on therecognition of our differences. We have to add a conception of toleration, which was missing in A Theoryof Justice and to renounce universalism as the benchmark of ideal public justificatory processes at workin democratic societies. Such a move seems to signal that Rawls is renouncing the values of theEnlightenment that are so characteristic of A Theory of Justice and of the influence of Rousseau and Kanton its arguments.”23 Cf. AUDARD, 2007, p. 184.24 Cf. original: “Rawls’ writings subsequent to A Theory of Justice have helped us realize that we weremisinterpreting his book, that we had overemphasized the Kantian and underemphasized the Hegelianand the Deweyan elements (…) Rawls is not interested in conditions for the identity of the self, but only inconditions for citizenship in a liberal society”.

15

Page 27: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Apesar desse posicionamento de Rorty, no sentido de Rawls ter se tornado um

contextualista, Habermas, que não deixa de ser um neokantiano, não entendeu do

mesmo modo, como se pode notar abaixo:

Claro, Rawls não quer limitar-se unicamente às convicções normativasfundamentais de uma cultura política particular: mesmo nos dias dehoje, Rawls, diferentemente de Richard Rorty, não se tornou umcontextualista. Seu objetivo, como antes, é reconstruir um substrato deideias intuitivas latentes na cultura política de sua sociedade e suastradições democráticas. Mas se as experiências associadas a umainstitucionalização incipiente e bem-sucedida de princípios de justiça jáse tornaram sedimentadas na cultura política existente - na culturapolítica americana, por exemplo - uma tal apropriação reconstrutivapode realizar mais do que um mero esclarecimento hermenêutico deuma tradição contingente (HABERMAS, 1998, p.60, tradução minha25).

Em O liberalismo político, portanto, o foco, diferentemente de Uma teoria da

justiça, não é perguntar qual a concepção de justiça que é mais desejável e compatível

com nossas convicções ponderadas de justiça; também não é representar a posição

original como o ponto de vista a partir do qual os eus noumênicos olham o mundo26.

Trata-se, agora, de desenvolver um construtivismo político rawlsiano, análogo ao

kantiano, mas com suas próprias especificidades, que apresente um modelo teórico

capaz de estabelecer um consenso mínimo necessário no domínio político, para que

possam coexistir diversas doutrinas abrangentes, em uma sociedade democrático-

liberal, numa concepção razoável de pluralismo.

Nota-se assim, que, como para o construtivismo rawlsiano de O liberalismo

político, a teoria da justiça como equidade é a mais apropriada para sociedades

democráticas pluralistas, por ser a mais satisfatória ou aquela que melhor traduza o

consenso justaposto, “o construtivismo político não se opõe, assim, ao intuicionismo

como tal” (OLIVEIRA, 2003, p. 29). Com isso, os princípios de justiça construídos são

direcionados ao equacionamento normativo da liberdade e igualdade no âmbito das

democracias constitucionais modernas.

25 Cf. original: “Of course, Rawls does not wish to limit himself solely to the fundamental normativeconvictions of a particular political culture: even the present day Rawls, pace Richard Rorty, has notbecome a contextualist. His aim, as before, is to reconstruct a substratum of intuitive ideas latent in thepolitical culture of his society and its democratic traditions. But if experiences associated with anincipiently successful institutionalization of principles of justice have already become sedimented in theexisting political culture – in American political culture, for example – such a reconstructive appropriationcan accomplish more than merely the hermeneutic clarification of a contingent tradition”.26 Cf. OLIVEIRA, 2003, pp. 29-31.

16

Page 28: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, de Uma teoria da justiça a O liberalismo político, vê-se como Rawls foi

restringindo a discussão, inicialmente direcionada à busca de princípios de justiça

universalmente aceitáveis, a uma construção posteriormente limitada à busca de

princípios políticos de justiça voltados a uma democracia constitucional moderna. Isso

implicou uma mudança significativa não só de pretensões, como também de

implicações da própria justiça como equidade. Como exemplo disso, a mudança

posterior interferiu, de alguma maneira, na pretensão inicial de imparcialidade, que

justificava a adoção de um procedimentalismo puro. Com isso, nota-se que a própria

perspectiva de se propor uma justiça procedimental pura pode ter sido modificada ou,

até mesmo, descaracterizada.

Compreendidos os delineamentos gerais das principais mudanças entre as duas

obras principais, é necessário examinar, agora, mais detidamente, dentro da

construção inicial da justiça como equidade, tal como delimitada em Uma teoria da

justiça, alguns conceitos centrais presentes, a saber: posição original, equilíbrio

reflexivo, véu da ignorância. A abordagem desses três pontos centrais de Uma teoria

da justiça constitui o núcleo do próximo tópico.

1.3 Elementos centrais de Uma teoria da justiça: a posição original, o equilíbrio

reflexivo e o véu da ignorância

Em Uma teoria da justiça, a posição original é o status quo inicial apropriado à

elaboração de consensos equitativos. Rawls explicitamente afirmou que uma

concepção de justiça é mais razoável que outra, no que diz respeito à “justiça como

equidade”, quando pessoas racionais nessa situação inicial escolhem seus princípios

para o papel de justiça ao invés dos presentes em outras concepções. Ele sustentou

que, dessa perspectiva, a questão da justificativa se resolve com a solução de um

problema de deliberação: “precisamos definir quais princípios seriam racionalmente

adotados dada a situação contratual. Isso associa a questão da justiça à teoria da

escolha racional27” (TJ, §4º, p. 19).27 Rawls explicou que introduziu a noção de racionalidade deliberativa seguindo uma ideia de Sidgwick:“ele caracteriza o bem futuro de uma pessoa, em termos gerais, como aquilo que ela buscaria agora seas consequências de todos os vários sentidos de conduta que lhe estão disponíveis fosse, no presente,precisamente previstas por ela e adequadamente realizadas na imaginação […] Ajustando a noção deSidgwick à escolha de planos, podemos dizer que o plano racional para uma pessoa é aquele que (entreos planos consistentes com os princípios de cálculo e outros princípios da escolha racional, quandoforam estabelecidos) ela escolheria com racionalidade deliberativa. É o plano que seria escolhido como oresultado de uma reflexão cuidadosa na qual o agente revisaria, à luz de todos os fatos relevantes, comoseria realizar esses planos e portanto adquiriria uma certeza sobre o curso de ação que realizaria de

17

Page 29: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Neste ponto, ele explicou que há a pressuposição de que a escolha dos

princípios ocorre em circunstâncias determinadas, pois o objetivo da abordagem

contratualista é apresentar uma descrição particular da situação inicial que já incorpora

as restrições aceitas. Dentre as restrições que efetuou – direcionadas à argumentação

em defesa dos princípios de justiça –, as quais reputa razoáveis e de ampla aceitação,

destacam-se: a) ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido pela sorte natural ou

pelas particularidades das circunstâncias sociais em que está inserido o indivíduo; b) é

impossível adaptar princípios às condições de um caso pessoal; c) inclinações e

aspirações particulares e concepções individuais de bem não devem afetar os

princípios adotados. Como exemplo, Rawls citou28 que se um homem soubesse que

era rico, ele poderia achar racional defender como princípio que vários impostos a favor

do bem-estar social fossem injustos; ao passo que, se ele soubesse que era pobre,

muito provavelmente iria racionalmente defender exatamente o contrário.

Então, para representar essas restrições desejáveis, imagina-se uma situação

na qual todos estejam privados desse tipo de informação. Fica, assim, excluído o

conhecimento dessas contingências que criam disparidades entre os homens e os

inclinam a se orientarem conforme seus preconceitos e interesses próprios. Com este

artifício, “chega-se ao véu de ignorância de maneira natural” (TJ, §4º, p. 21).

Supõe-se, também, que todas as partes na posição original são iguais, ou seja,

todas têm os mesmos direitos no processo de deliberação dos princípios. A finalidade

dessas restrições é “representar a igualdade entre os seres humanos como pessoas

éticas, como criaturas que têm uma concepção de seu próprio bem e que são capazes

de ter um senso de justiça” (TJ, §4º, p.21). Com isto, Rawls concluiu que:

Juntamente com o véu de ignorância, essas condições definem osprincípios de justiça como sendo aqueles que pessoas racionaispreocupadas em promover seus interesses consensualmente aceitariamem condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de serfavorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais (TJ, p.21).

Rawls também acrescentou outro aspecto para justificativa de uma determinada

descrição da posição original: trata-se de “observar se os princípios eventualmente

escolhidos combinam com nossas ponderações sobre a justiça ou se as ampliam de

um modo aceitável” (TJ, p.22). Pode-se, então, avaliar uma interpretação dessa

forma mais efetiva os seus desejos mais fundamentais” (TJ, §64, p. 461).28 Cf. TJ, §4°, p. 21.

18

Page 30: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

situação inicial pela capacidade de seus princípios em atender às nossas convicções

mais profundas e em oferecer orientações. Nessa procura pela descrição mais

adequada da situação inicial, parte-se de dois extremos:

Começamos por descrevê-la de modo que represente condiçõesgeralmente partilhadas e preferivelmente genéricas. Observamos entãose essas condições têm força suficiente para produzir um conjuntosignificativo de princípios. Em caso negativo, procuramos outraspremissas igualmente razoáveis. Mas em caso afirmativo, e se essesprincípios correspondem às nossas ponderadas convicções sobre ajustiça, então até este ponto tudo está correto. Deve-se, porém, suporque haverá discrepâncias. Nesse caso temos uma escolha. Podemosou modificar a avaliação da situação inicial ou revisar nossos juízosatuais, pois até mesmo os julgamentos que provisoriamente tomamoscomo pontos fixos estão sujeitos a revisão (TJ, §4º, pp. 22-23).

É nesse ponto de Uma teoria da justiça que surge o conceito de “equilíbrio

reflexivo”. Para compreendê-lo, veja-se a argumentação da parte final do §4º de TJ:

sendo natural que haja inicialmente essas discrepâncias (acima mencionadas) quanto

aos princípios a escolher, procede-se a uma revisão dos juízos e elaboram-se

julgamentos provisórios, que culminam em pontos ainda sujeitos a revisão. Em

seguida, avança-se e recua-se quanto aos pontos de julgamento, às vezes alterando

as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original, às vezes

modificando os nossos próprios juízos e conformando-os aos novos princípios.

Reiterando tal procedimento, encontra-se uma configuração da situação inicial que, ao

mesmo tempo, expressa pressuposições razoáveis e produz princípios que combinam

com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. “Trata-se de um equilíbrio

porque finalmente nossos princípios e julgamentos coincidem; e é reflexivo porque

sabemos com quais princípios os nossos julgamentos se conformam e conhecemos as

premissas das quais derivam” (TJ, p. 23).

Ressaltou o autor, contudo, que, apesar de atingido, esse equilíbrio não é

necessariamente estável, pois está sujeito a alterações decorrentes de outro exame

das condições impostas à situação contratual e de casos particulares que recomendem

a revisão dos julgamentos. Mas, pelo menos, fez-se o possível para tornar coerentes e

justificar nossas convicções sobre justiça social, além de se ter atingido uma

concepção da posição original.

Daqui surge também outra interpretação da posição original, que pode ser vista

como o resultado da aplicação desse roteiro hipotético de deliberação. Ela representa,

aí, a tentativa de acomodar, num único sistema, tanto os pressupostos filosóficos

19

Page 31: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

razoáveis impostos aos princípios, quanto os nossos juízos ponderados sobre a justiça.

Aqui também há a ressalva de que os princípios não são almejados como verdades

necessárias ou evidências que possam derivar desse tipo de verdade. Como

argumentou Rawls:

Uma concepção de justiça não pode ser deduzida de premissasaxiomáticas ou de pressupostos impostos aos princípios; ao contrário,sua justificativa é um problema de corroboração mútua de muitasconsiderações, do ajuste de todas as partes numa única visão coerente(TJ, p. 23).

Assim, os princípios se justificam porque foram aceitos consensualmente numa

situação inicial de igualdade, ressaltando-se que: a) essa posição original é puramente

hipotética; b) as premissas incorporadas na posição original são aceitáveis por nós ou,

ao menos, podemos nos convencer a aceitá-las mediante raciocínio filosófico. Portanto,

em Uma teoria da justiça, uma forma de considerar a construção da posição original é

tomá-la como um recurso de exposição que resume o significado de todos esses

postulados e nos auxilia a extrair as suas consequências29.

Compreendidas as noções de posição original e de equilíbrio reflexivo, pode-se

avançar para a noção de véu da ignorância. O véu da ignorância é, basicamente, um

recurso restritivo, aplicado à posição original, que garante que as partes elegerão os

princípios de justiça sem que saibam que posição efetivamente ocuparão na

sociedade. Para se compreender a relevância desse recurso, atente-se para as

negociações reais entre pessoas reais racionais: como cada pessoa sabe dos dons e

talentos de que dispõe, além de conhecer as vantagens que sua posição social

permite, há, na conclusão dos acordos, uma certa imposição de um poder de barganha

dos mais abastados sobre aqueles em situações mais desfavorecidas. Então, para se

corrigir essa distorção de os mais desfavorecidos serem prejudicados em acordos

firmados com pessoas mais favorecidas, Rawls imaginou um contrato hipotético

equitativo, em que esse poder de barganha não fosse possível. Para conseguir isto,

algumas restrições devem ser aplicadas às partes hipotéticas para assegurar uma

situação equitativa de deliberação: uma delas é, exatamente, o desconhecimento das

contingências e particularidades das partes envolvidas. A eliminação dessas

informações, portanto, viabiliza excluir, nas deliberações e pactos a efetuar, várias

concepções que fossem racionalmente tendenciosas para os interesses específicos de

apenas alguns setores sociais, que teriam à sua disposição um poder maior de29 Cf. TJ, §4º, p. 24.

20

Page 32: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

negociação ou mesmo de imposição, tal como ocorre nas decisões institucionais da

prática social e política ou ainda nos contratos do mundo real.

Nota-se, assim, que o véu da ignorância é uma das restrições às partes

presentes na situação hipotética designada de posição original. Ele serve, assim, para

cumprir o propósito rawlsiano de viabilizar delimitações equitativas tais que o acordo

resultante daquela situação inicial também seja equitativo. Nesta, situação, a

deliberação das partes direciona-se à escolha dos dois princípios de justiça de Rawls,

que devem regulamentar a estrutura básica da sociedade. Esse consenso é obtido,

conforme já exposto, em uma situação de equilíbrio reflexivo.

Assim, visando anular os efeitos das contingências específicas que colocam os

homens em situação de disputa – e que os inclina a explorar as circunstâncias naturais

e sociais em seu próprio benefício –, Rawls determinou que as partes presentes na

posição original – enquanto representantes hipotéticos de pessoas morais racionais –

não conhecem certos tipos de fatos particulares30. Primeiramente, ninguém sabe seu

lugar na sociedade, nem sua posição de classe ou status social; além disso, ninguém

sabe sua própria sorte na loteria da distribuição arbitrária dos dotes naturais e

habilidades como inteligência e força. Em segundo lugar, ninguém conhece suas

próprias concepções de bem e as particularidades de seu plano de vida racional, e nem

mesmo os traços de sua psicologia, a exemplo de uma postura mais otimista e

perseverante ou pessimista. As partes também não conhecem os traços de sua própria

sociedade, aí incluindo detalhes como nível de produção econômica ou cultural e

posição política, ou até mesmo os talentos que são por ela mais valorizados por meio

de maiores recompensas. As pessoas também não sabem a que geração pertencem.

Na medida do possível, o único fato particular que as pessoas conhecem é que

sua sociedade está sujeita às circunstâncias de justiça (abaixo detalhadas) e a

quaisquer consequências resultantes disso. Contudo, considera-se também que elas

conhecem os fatos genéricos31 sobre a sociedade humana: entendem as relações

políticas e princípios da teoria econômica, conhecem a base da organização social e as

leis que regem a psicologia humana. De fato, não há limites para a informação genérica

que seja apta a interferir na escolha dos princípios, tais como as referentes às leis e

teorias gerais, uma vez que as concepções de justiça devem ser ajustadas às

30 Cf. TJ, §24, p. 147.31 Cf. TJ, §24, pp. 146-147.

21

Page 33: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

características dos sistemas de cooperação que devem regular, não havendo razão

para a exclusão desses fatos.

Antes de expor as circunstâncias de justiça da maneira como foram

apresentadas por Rawls, convém ter em consideração as distinções entre Hume, Kant

e Rawls, tal como apresentadas por Sandel,32 quanto a este aspecto. Como elas já

estão expostas no próximo capítulo, pode-se avançar para as circunstâncias de justiça

apontadas por Rawls em Uma teoria da justiça: elas podem ser definidas “como as

condições normais sob as quais a cooperação social é tanto possível quanto

necessária” (TJ, §22, p. 136). Há dois tipos de circunstâncias: as objetivas e as

subjetivas.

As circunstâncias objetivas33 são a coexistência simultânea de muitos indivíduos

em um território geograficamente definido, tendo eles capacidades físicas e mentais

similares, sendo cada um vulnerável a ataques e sujeitos a ver frustrados seus planos

na eventualidade de uma união de forças dos outros. Além disso, há uma condição de

escassez moderada implícita: os recursos naturais ou de outros tipos não são

abundantes a ponto de tornarem desnecessário um esquema de cooperação, e nem as

condições são tão difíceis a ponto de condenarem empreendimentos vantajosos ao

insucesso.

As circunstâncias subjetivas34 são os aspectos relevantes dos sujeitos de

cooperação: embora as partes tenham interesses e necessidades aproximadamente

semelhantes ou frequentemente complementares – o que torna possível a cooperação

mutuamente vantajosa –, cada uma das partes têm seus próprios planos de vida ou

concepções do bem dignos de reconhecimento. Essa diversidade de concepções de

bem leva as partes a terem objetivos e propósitos diferentes, havendo uma diversidade

de crenças filosóficas, políticas, religiosas e sociais, motivando-as a fazer

reivindicações conflitantes em relação aos recursos naturais e sociais disponíveis. As

suas exigências, portanto, são merecedoras de uma igual satisfação.

Assim, Rawls trouxe para Uma teoria da justiça elementos de Hume,

enfatizando, sinteticamente, o destaque à condição de escassez moderada e de

conflito de interesses como circunstâncias que devem estar presentes para que se

32 Cf. SANDEL, 2000, pp. 56-61. A compreensão desse ponto da exposição ficará mais clara se forlevada em consideração o esclarecimento de Sandel apontando as distinções entre Hume, Kant e Rawls.Esses esclarecimentos estão presentes no segundo capítulo dessa dissertação, no tópico 2.3, após aexposição de Brian Barry sobre as duas distintas perspectivas de propostas de teoria de justiça.33 Cf. TJ, §22, p. 137.34 Cf. TJ, §22, pp. 137-138.

22

Page 34: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

torne oportuna e necessária a virtude da justiça. Além disso35, ele informou

explicitamente que as partes da posição original sabem que as circunstâncias de

justiça se verificam, além de pressupor que as partes tentam promover a sua

concepção de bem da melhor maneira possível, de maneira que, ao fazerem isso, elas

não estão ligadas entre si por vínculos morais prévios, sendo mutuamente indiferentes.

Também ressaltou que não faz nenhuma suposição restritiva a respeito das

concepções que as partes têm do bem, exceto que elas são planos racionais a longo

prazo. Note-se, portanto, que, mesmo admitindo moderadamente o uso de elementos

empíricos em sua argumentação, Rawls mantém a preocupação com a questão da

autonomia.

Portanto, com o encerramento deste tópico, pode-se perceber como Rawls

expôs, em Uma teoria da justiça, a noção de posição original, de véu da ignorância e

de equilíbrio reflexivo. Nota-se que a interligação de todos estes pontos já traz indícios

de como Rawls se preocupa com a autonomia dos indivíduos – na escolha de suas

concepções de bem –, buscando zelar pela imparcialidade de consideração de suas

demandas. Ao impor o véu da ignorância, as partes hipotéticas da posição original, na

condição de representantes de pessoas racionais, vão ter argumentos com pesos

igualmente válidos na deliberação, não se podendo fazer prevalecer a opção de bem

de nenhum indivíduo por sobre as concepções de bem distintas também dos demais

indivíduos. Como os efeitos nocivos das contingências sociais – dentre os quais Rawls

destacou o poder de barganha dos mais favorecidos sobre os mais desfavorecidos –

são anulados por meio da abstração efetuada pelo véu da ignorância, busca-se, desta

maneira, assegurar a imparcialidade na consideração das reivindicações de cada

sujeito, de maneira a zelar pela autonomia de cada um deles.

Esse respeito à autonomia e à imparcialidade explicam a opção rawlsiana pelo

procedimentalismo puro e a sua rejeição ao procedimentalismo perfeito. Isso se torna

ainda mais forte como motivação quando se atenta que as pretensões de Uma teoria

da justiça estão direcionadas a buscar princípios de justiça de aceitação

tendenciosamente universal, no que diz respeito ao regramento da estrutura básica de

uma sociedade. Uma proposta de aceitação e justificação universal de princípios de

justiça não poderia conter, previamente, um fator que já fosse, por si só, algo

determinante do resultado final da deliberação.

35 Cf. TJ, §22, pp. 138-139.

23

Page 35: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Todavia, há controvérsias exatamente sobre o fato de Rawls conseguir, ou não,

seguir efetivamente o procedimentalismo puro tal como por ele delineado. Há quem

sustente que sua teoria contém elementos fundacionistas similares ao do intuicionismo

enquanto tentativa de justificação dos princípios de justiça. Isso implicaria a adoção de

um indesejado procedimentalismo perfeito.

Uma das maneiras de abordar essa controvérsia é examinar, em profundidade,

os tópicos correlatos à imparcialidade e à autonomia, tanto em Uma teoria da justiça

quanto em O liberalismo político. Esse caminho será o vetor condutor das discussões

efetuadas no segundo capítulo – que tratará do procedimentalismo na primeira obra – e

no terceiro capítulo – que versará sobre o procedimentalismo da segunda obra.

Contudo, há uma outra maneira de se expor a controvérsia referente àquela

discussão mais profunda que será efetuada nos outros capítulos, examinando

diretamente os tópicos referentes à autonomia e à imparcialidade. Esta maneira

alternativa de se enxergar o mesmo problema parte da análise de como o equilíbrio

reflexivo é apresentado nas duas obras. Esse exame permite aferir se há ou não a

admissão, na justiça como equidade, do intuicionismo como justificação dos princípios.

Assim, antes do exame aprofundado nos outros capítulos, por outra via de

análise, avança-se, no próximo tópico, para a maneira alternativa de se enxergar a

controvérsia, tendo como ponto de partida o equilíbrio reflexivo.

1.4 A compreensão do problema a partir do equilíbrio reflexivo

Samuel Freeman trouxe alguns comentários sobre o equilíbrio reflexivo

apresentado por Rawls nos primeiros escritos, entre os quais inclui Uma teoria da

justiça36. Nessa versão inicial, o método se apresenta como uma alternativa ao

intuicionismo filosófico e ao naturalismo em ética: de acordo com ele, as considerações

morais mais abstratas não possuem qualquer prioridade especial na justificação de

princípios morais. Desta perspectiva, o equilíbrio reflexivo é não fundacionista, pois:

ele não tenta "fundamentar" princípios morais em outros princípios oujuízos abstratos que são tomados como axiomáticos, auto-evidentes enão abertos a revisões. Em vez disso, as convicções moraisconsideradas em todos os níveis de generalidade devem se "ajustar"com princípios morais se os princípios devem ser justificados. Mas, umavez que temos muitos tipos diferentes de convicções morais, o equilíbrioreflexivo assume que algumas das nossas convicções morais estarão

36 Cf. FREEMAN, 2007, pp. 32-42.

24

Page 36: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

sujeitas a revisão, desde que tentemos torná-los compatíveis com osprincípios morais em equilíbrio reflexivo. Aqui, importante destacar, asnossas "intuições filosóficas” mais abstratas não podem recebernenhuma prioridade neste processo de reflexão. "É um erro pensarconcepções abstratas e princípios gerais como sempre substituindonossos julgamentos mais particulares" (PL, 45). De fato, talvezpossamos ser levados a abandonar a convicção mais geral (assumindoque nós a endossamos) de que deveríamos promover o bemimparcialmente construído, se ela não puder ser acomodada com osprincípios de justiça mais compatíveis com a grande maioria de outrasconvicções morais consideradas (FREEMAN, 2007, p. 33, tradução37

minha).

Essa versão do equilíbrio reflexivo é denominada como a mais “robusta” ou,

ainda, chamada de “interpretação kantiana” do equilíbrio reflexivo (FREEMAN, 2007, p.

37). Essa versão é caracterizada pela pressuposição rawlsiana, em Uma teoria da

justiça, de que todas as pessoas possuem em si a forma completa de uma concepção

moral. O enquadramento como uma interpretação kantiana ocorre por dois38 motivos.

Em primeiro lugar, há o paralelo com a ideia kantiana de que a moralidade e o

imperativo categórico são implícitos na consciência moral, e que eles devem ser

descobertos por um tipo de razão prática que é socrática, e, assim, envolve o exame

crítico de nossas convicções morais consideradas. O segundo ponto é que, estar

implícito na consciência moral significa, tanto para Kant como para o primeiro Rawls (o

Rawls de Uma teoria da justiça, distinto do Rawls de Liberalismo político), que os

princípios morais não são fatos que são prioritários/anteriores e independentes da

razão prática, mas são, de alguma maneira, um produto da própria razão prática.

Esse paralelismo com a proposta kantiana, referente à primeira obra rawlsiana,

“conecta a moralidade com a ideia de autonomia, incluindo a autonomia da razão

prática, e conecta o equilíbrio reflexivo com o que Rawls chama de construtivismo

kantiano na teoria moral” (FREEMAN, 2007, p. 38).

Essas considerações tornam mais clara a conclusão de Samuel Freeman no

sentido de que o equilíbrio reflexivo das obras posteriores de Rawls (como em O

37 Cf. original: “it does not attempt to “ground” moral principles in other principles or abstract judgmentsthat are taken as axiomatic, self-evident, and not open to revision. Instead, considered moral convictionsat all levels of generality must “fit” with moral principles if principles are to be justified. But since we havemany different kinds of moral convictions, reflective equilibrium assumes that some of our moralconvictions will be subject to revision once we try to make them consistent with moral principles inreflective equilibrium. Here, importantly, our more abstract “philosophical intuitions” are to be given nopriority in this process of reflection. “It is a mistake to think of abstract conceptions and general principlesas always overriding our more particular judgments” (PL, 45). Indeed, perhaps we will be led to abandonthe most general conviction (assuming we endorse it) that we ought to promote the good impartiallyconstrued, if it cannot be accommodated with the principles of justice most compatible with the great bulkof other considered moral convictions”.38 Cf. FREEMAN, 2007. pp. 37-38.

25

Page 37: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

liberalismo político) é mais moderado. Para ele, não mais há, ali, a mesma oposição de

outrora às posturas fundacionistas como o intuicionismo racional. Desta nova

perspectiva, é possível concluir que:

Após reflexão, pode muito bem ser que, levando em conta todas ascoisas, as nossas convicções morais consideradas têm uma basededutiva em princípios morais altamente abstratos, e que estesprincípios abstratos ("tratar os casos semelhantes da mesma forma","maximizar o bem imparcialmente construído", "a conduta corretapromove bem-estar humano", etc) são auto-evidentes. Destaconsideração moderada do equilíbrio reflexivo, mostrar que as nossasconvicções morais "se encaixam em equilíbrio reflexivo" requer quedemonstremos como as nossas convicções mais consideradas sobrecerto e errado são deriváveis a partir de uma concepção moral que temdentro de si uma base dedutiva nestas intuições racionais abstratas. Aoinvés de contrastar o equilíbrio reflexivo com posições fundacionistascomo o intuicionismo racional, Rawls, em trabalhos posteriores,contrasta tais posições com o construtivismo em filosofia moral epolítica (FREEMAN, 2007, p. 34, tradução minha39).

Essa compreensão de que a versão posterior do equilíbrio reflexivo, visível em

O liberalismo político, é mais moderada que a versão presente em Uma teoria da

justiça, permite concluir que a nova perspectiva é parcialmente compatível com uma

visão fundacionista. Ora, se em O liberalismo político se considera, diferentemente de

Uma teoria da justiça, que não há mais a oposição direta ao fundacionismo, a versão

posterior da justiça como equidade passa a abrir algum espaço para o intuicionismo

moral, que é uma modalidade de fundacionismo. Essa questão, referente a O

liberalismo político, de haver ou não a aceitação de uma postura fundacionista divide

os autores.

Para ilustrar a controvérsia, Stephen White argumentou que, mesmo que Rawls,

em O liberalismo político, tenha afirmado sustentar uma concepção de justiça em

sentido político, que se pretende livre de visões religiosas ou filosóficas fundacionais,

“há uma pressuposição muito forte da idéia moral fundacional de igual respeito entre as

partes e uma ontologia correspondente que constitui pessoas como entidades

39 Cf. original: “Upon reflection, it may well be that, all things considered, our considered moral convictionsdo have a deductive basis in highly abstract moral principles, and that these abstract principles (“treatsimilar cases similarly,” “maximize the good impartially construed,” “right conduct promotes humanwelfare,” etc.) are self-evident. On this moderate account of reflective equilibrium, to show that our moralconvictions “fit together in reflective equilibrium” requires that we demonstrate how our most consideredconvictions about right and wrong are derivable from a moral conception which itself has a deductivebasis in these abstract rational intuitions. Rather than contrasting reflective equilibrium withfoundationalist positions like rational intuitionism, Rawls in later works instead contrasts such positionswith constructivism in moral and political philosophy”.

26

Page 38: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

possuidoras de uma dignidade e, portanto, dignas de respeito por um valor intrínseco”

(WHITE, 2009, p. 76). Desse modo, ao se referir a Rawls:

Se ele claramente afirma a dignidade e respeito igual, isso significariaque ele nos deve algum tipo de uma nova justificação do seu caráterfundamental? Provavelmente não; em vez disso, ele sustentaria quesua afirmação apenas reflete o que já é uma suposição amplamentecompartilhada em “sociedades democráticas modernas”. Ésimplesmente a presença cultural desta afirmação que revela aquestão-chave que inicia a sua concepção de justiça. Enquantodignidade e respeito são afirmados, ele não precisa mais se preocuparcomo tais afirmações são justificadas. Esta postura é perfeitamenteplausível do ponto de vista da intenção de Rawls na construção de umaconcepção política de justiça da "estrutura básica" de uma sociedade.Mas a partir de uma perspectiva mais ampla que eu estou tomandoneste trabalho – um ethos de cidadania moderno e tardio –, uma talpostura de não-envolvimento com as questões fundamentais acima nãopode ser justificada. A razão para isso é que um ethos assim indaganão só sobre a justeza de estruturas básicas, mas também sobre comonós pensamos sobre "viver nessas estruturas" (nas palavras de CharlesTaylor). Isto significa que devemos estar tão preocupado comdisposições e motivações cotidianas como estamos com as estruturasfundamentais (WHITE, 2009, p. 65, tradução minha40).

De uma outra perspectiva, Norman Daniels, em Wide reflective equilibrium and

theory acceptance in ethics, discordou dos que criticaram o método do equilíbrio

reflexivo amplo como uma forma disfarçada de intuicionismo moral41 e, portanto, de um

subjetivismo. Nesse sentido, incluindo na discussão interior do método um plano de

fundo de várias teorias distintas, com teorias de justiça procedimental, de pessoa, de

teorias sociais gerais, bem como teorias sobre o papel da moralidade na sociedade,

nada é tomado como um elemento fundacionista:

Na busca de equilíbrio reflexivo amplo, estamos constantementeefetivando juízos de plausibilidade sobre qual dos nossos juízos moraisconsiderados devemos revisar a luz de considerações teóricas emtodos os níveis. Nenhum tipo de julgamentos morais considerados é

40 Cf. original: “If he did clearly affirm dignity and equal respect, would that mean he owes us some sort offurther justification of its foundational character? Probably not; rather he would argue that his affirmationmerely reflects what is already a widely shared assumption in “modern democratic society.” It is simplythe cultural presence of this affirmation that is the key issue for getting his conception of justice started.As long as dignity and respect are affirmed, he need not look further into issues of how such anaffirmation is justified. This stance is perfectly plausible from the point of view of Rawls’s intention toconstruct a political conception of the justice of the “basic structure” of a society. But from the broaderperspective I am taking in this paper – an ethos of late-modern citizenship – such a stance of non-engagement with the foundational issues above cannot be justified. The reason for this is that such anethos inquires not only about the justness of basic structures, but also about how we go about “living thestructures” (in Charles Taylor’s words). This means we must be as concerned with everyday dispositionsand motivations, as we are with fundamental structures”.41 Cf. DANIELS, 1996, pp. 21-23.

27

Page 39: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

considerado imune à revisão. [...] É desta forma que nós fornecemosum sentido à noção de um "ponto fixo provisório" entre os nossos juízosponderados. [...] O equilíbrio reflexivo amplo nos impede de tomarjulgamentos morais considerados pelo seu próprio valor intrínseco, pormais que eles possam ser tratados como pontos de partida naconstrução de nossa teoria. Em vez disso, eles estão sempre sujeitos arevisão exaustiva e são "testados", assim como são testados osprincípios morais contra um corpo relevante de teorias. Em cada ponto,somos obrigados a avaliar a receptividade dos juízos tanto em relaçãoàs teorias que os incorporam quanto em relação às teorias alternativasque incorporam diferentes julgamentos morais considerados (DANIELS,1996, p. 28, tradução minha42).

Por isso, torna-se compreensível a conclusão de Norman Daniels, presente em

seu outro artigo Reflective equilibrium and justice as political, no sentido de que o

equilíbrio reflexivo amplo antes da politização (ou seja, referente a Uma teoria da

justiça) propõe o racional como baseado em argumentos filosóficos compartilhados43,

incluindo a visão kantiana de autonomia, que desempenhou um papel central no

argumento da convergência. Já no equilíbrio após a politização (ou seja, o verificado

em O liberalismo político), há essa independência dos elementos filosóficos, obtendo-

se os resultados dentro do âmbito da discussão efetuada nos moldes delimitados pelo

método do próprio equilíbrio reflexivo amplo, já incluindo a aceitação do fato do

pluralismo razoável.

Essa controvérsia sobre ser ou não fundacionista a justiça como equidade tal

como apresentada em O liberalismo político acarreta implicações na questão do

procedimentalismo puro. Relembre-se que a opção rawlsiana, em Uma teoria da

justiça, pelo procedimentalismo puro, ampara-se na preocupação correlata que Rawls

destinou à questão da autonomia e da imparcialidade.

Assim, se se considera que a justiça como equidade tal como apresentada em O

liberalismo político é fundacionista, ou, ainda, admite alguma forma moderada de

intuicionismo, então os contornos da autonomia e da imparcialidade são afetados, de

maneira que o procedimentalismo também sofrerá alguma alteração, ou, talvez, até

42 Cf. original: “In seeking wide reflective equilibrium, we are constantly making plausibility judgmentsabout which of our considered moral judgements we should revise in light of theoretical considerations atall levels. No one type of considered moral judgments is held immune to revision. […] It is in this way thatthat we provide a sense to the notion of a “provisional fixed point” among our considered judgments. […]Wide reflective equilibrium keeps us from taking considered moral judgments at face value, howevermuch they may be treated as starting points in our theory construction. Rather, they are always subjectedto exhaustive review and are “tested”, as are the moral principles, against a relevant body of theories. Atevery point, we are forced to assess their acceptability relative to theories that incorporate them andrelative to alternative that theories incorporating different considered moral judgments” (DANIELS, 1996,p. 28).43 Cf. DANIELS, 1996, p. 156.

28

Page 40: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

mesmo uma descaracterização, em relação àquele apresentado em Uma teoria da

justiça. Filiando-se a este ponto de vista, Brian Barry concluiu que a noção de justiça

processual pura de Rawls fracassou44, pois ao se tornar a construção dos princípios de

justiça dependente do intuicionismo, o projeto rawlsiano aproximou-se do

procedimentalismo perfeito.

Por outro lado, se a teoria tal como exposta em O liberalismo político for

considerada como não fundacionista, os contornos da autonomia e da imparcialidade

serão bastante similares, senão iguais, aos estabelecidos em Uma teoria da justiça.

Deste último ponto de vista, a conclusão seria no sentido de que O liberalismo político

teria mantido a proposta de justiça procedimental pura da maneira como formulada em

Uma teoria da justiça.

Portanto, essa discussão sobre haver ou não algum apelo ao intuicionismo como

justificação em O liberalismo político interfere diretamente na discussão sobre a

manutenção ou o afastamento, em O liberalismo político, da proposta de justiça

procedimental pura apresentada em Uma teoria da justiça.

Resta evidente, assim, com a exposição do problema pela via alternativa

(observando-se a partir do equilíbrio reflexivo), a controvérsia em torno das pretensões

e do que efetivamente construiu Rawls, tanto em Uma teoria da justiça quanto em O

liberalismo Político, no que diz respeito especificamente ao procedimentalismo puro,

em atenção às preocupações com a autonomia individual e a imparcialidade.

Está claro que o sucesso (ou insucesso) da reformulação rawlsiana, no que se

refere ao êxito (ou fracasso) no respeito à imparcialidade e à autonomia, interfere

diretamente na questão da viabilidade do procedimentalismo puro, que se ampara na

ausência de uma definição prévia de uma concepção de bem. Apenas uma análise

mais detida, com o levantamento dos principais argumentos favoráveis e contrários, de

diversos comentadores, permitirá que o estudo seja concludente para um dos lados.

Esta análise mais aprofundada estará presente nos próximos dois capítulos. O

segundo capítulo examina os contornos de Uma teoria da justiça, desde seus objetivos

até as questões que repercutem no procedimentalismo puro, sem olvidar do

levantamento das críticas que lhe foram direcionadas, em especial as provenientes dos

comunitaristas. Já o terceiro capítulo examina as reformulações rawlsianas após essas

críticas comunitaristas, expondo as delimitações de O liberalismo político, abrangendo

os objetivos ali presentes e a abordagem do procedimentalismo ali efetuado, sem

44 Cf. BARRY, 2001, pp. 296-300.

29

Page 41: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

deixar de lado as críticas posteriores dirigidas à versão aperfeiçoada da justiça como

equidade, tal como apresentada nessa última obra.

Convém, assim, ao prosseguir na análise, estar atento às já ressaltadas

mudanças de pensamento de Rawls ao longo do tempo, manifestada aos poucos em

suas sucessivas obras.

30

Page 42: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

CAPÍTULO II

O PROCEDIMENTALISMO EM UMA TEORIA DA JUSTIÇA

Neste capítulo, explica-se, inicialmente, a caracterização rawlsiana dos três tipos

de teorias procedimentais de justiça, bem como a motivação pela escolha do

enquadramento da justiça como equidade na modalidade de justiça procedimental

pura. Em seguida, analisam-se os contornos de respeito à autonomia e à

imparcialidade tal como reclamados pelo procedimentalismo puro, na maneira como foi

apresentada a justiça como equidade em Uma teoria da justiça. Após, são

apresentadas críticas com repercussão sobre esses pontos, que sugerem uma

descaracterização do procedimentalismo rawlsiano.

2.1 Os três tipos de procedimentalismo: uma classificação rawlsiana

Neste primeiro tópico, será exposta a questão da justiça procedimental tal como

Rawls a delimitou em Uma teoria da justiça, distinguindo entre procedimentalismo puro,

perfeito e imperfeito.

As características distintivas das três modalidades de procedimentalismo, bem

como daquela pela qual Rawls declaradamente optou, estão expostos no §14 de Uma

teoria da justiça, intitulado “A igualdade equitativa de oportunidades e a justiça

procedimental pura”. Em razão da relevância do parágrafo, providenciamos uma

exposição45 das ideias mais importantes ali contidas, do ponto de vista de Rawls.

Veja-se, então, como Rawls delimitou os três tipos de procedimentalismo. Rawls

iniciou reafirmando que:

o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade (...) Aestrutura básica é um sistema público de regras que definem umesquema de atividades que conduz os indivíduos a agirem juntosvisando produzirem uma maior quantidade de benefícios e atribuindo acada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O queuma pessoa faz depende do que as regras públicas determinam a

45 Cf. TJ, §14, pp. 89-95.

31

Page 43: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

respeito do que ela tem direito a fazer, e os direitos de uma pessoadependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta dessesprincípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas secomprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas. (TJ, p. 90)

Ora, sendo a estrutura básica da sociedade o objeto principal da justiça como

equidade, a maneira pela qual Rawls articulou o modo de pensar as questões

propostas foi interpretar a sociedade como um empreendimento cooperativo que

propicia vantagem46 para todos. Com essas considerações, Rawls sugeriu a ideia de

que a distribuição justa decorre de uma questão de justiça procedimental pura, que é

melhor compreendida quando comparada com a justiça procedimental perfeita e com a

justiça procedimental imperfeita.

O procedimentalismo perfeito é ilustrado por Rawls com o exemplo de um grupo

de pessoas visando à divisão justa de um bolo: a solução óbvia e justa é fazer com que

a pessoa que reparte o bolo seja a última a receber seu pedaço, permitindo aos demais

colherem sua fatia antes dele. O homem que reparte vai dividir em partes iguais o bolo,

pois desse modo ele assegura a si mesmo a maior parte possível. Com essa ilustração,

bastante simplificada, deixando de lado algumas questões técnicas, e desprezando

algumas outras considerações menores e irrelevantes, Rawls apontou os dois traços

característicos da justiça procedimental perfeita. Em primeiro lugar, há um critério

independente para uma divisão justa, que é definido em separado e antes de o

processo ocorrer. Além disso, é possível criar um procedimento que com certeza

viabilizará o advento do resultado pretendido.

Nesse exemplo, Rawls reconheceu que devem ser feitas algumas suposições

adicionais para deixar o exemplo mais preciso. Todavia, acrescentar essas suposições

seria irrelevante nesse momento, pois o ponto que Rawls quis destacar foi que “o

essencial é que haja um padrão independente para decidir qual resultado é justo e um

procedimento que com certeza conduzirá a ele” (TJ, p. 91).

Rawls também admitiu que esse procedimentalismo perfeito é “bastante raro,

para não dizer impossível, em casos de interesses muito mais concretos” (TJ, §14, p.

91). Com este posicionamento, percebe-se que ele admitiu que, para questões mais

fundamentais à existência social, em que há pretensões conflitantes sobre a justiça dos

ganhos, é mais complicado estipular, previamente, um critério já dado ou fixado do que

seja justo.

46 Cf. TJ, § 14, p. 90.

32

Page 44: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

O procedimentalismo imperfeito, por sua vez, foi exemplificado por Rawls com o

julgamento do processo criminal. Aqui, “o resultado almejado é que o réu seja

declarado culpado se, e somente se, ele cometeu o crime de que é acusado” (TJ, p.

91). Estabelece-se, assim, um procedimento para julgamento criminal que vai buscar

estabelecer os parâmetros de verdade que serão considerados na apuração da culpa

ou da inocência do acusado: a doutrina jurídica processual vai examinar os elementos

mais indicados para alcançar esse propósito, a exemplo da determinação da sequência

de depoimentos de acusação e de defesa perante o magistrado, confiando na

produção de resultados certos na maior parte do tempo, embora não sempre.

Todavia, ainda nesse exemplo, Rawls entendeu que é impossível determinar as

regras legais de maneira tal que elas sempre conduzam ao resultado correto: mesmo

que a lei seja cuidadosamente cumprida, e os processos devidamente conduzidos,

pode-se chegar a um resultado errado, condenando-se um inocente ou absolvendo-se

um culpado. A injustiça não decorre da falha humana, mas de uma combinação fortuita

de circunstâncias que frustram a finalidade das normas legais estipuladas. Por isso ele

concluiu que “a marca característica da justiça procedimental imperfeita é que, embora

haja um critério independente para produzir o resultado correto, não há processo

factível que, com certeza, leve a ele” (TJ, §14, p. 92).

Neste sentido, Rawls exemplificou que, no utilitarismo, há, a princípio, um critério

independente para julgar todas as distribuições, amparado na produção do maior saldo

líquido de satisfação. Dessa forma, para o utilitarismo, conforme Rawls o

compreendeu, as instituições são organizações sociais mais ou menos imperfeitas,

moldadas para a consecução desses objetivos já especificados. Por isso Rawls

afirmou, referindo-se ao utilitarismo, que “uma vez que esses programas de ação social

estão sujeitos às inevitáveis restrições e obstáculos do cotidiano, a estrutura básica é

um caso de justiça procedimental imperfeita”(TJ, §14, p. 95).

Em contraste com essas duas primeiras modalidades de procedimentalismo, na

justiça procedimental pura não há critério independente para o resultado correto: “em

vez disso, há um procedimento correto ou justo que, tendo sido corretamente aplicado,

conduz a um resultado também correto ou justo, qualquer que seja ele” (TJ, §14, p. 92).

Rawls exemplificou com o caso de vários jogadores que fazem apostas em uma série

de rodadas de um mesmo jogo: se as sucessivas apostas forem justas, sem trapaças,

a distribuição final do dinheiro após a última rodada é justa, qualquer que seja a

33

Page 45: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

distribuição. Assim, todas essas distribuições finais possíveis são justas, uma vez que

as circunstâncias contextuais eram justas e aceitas livremente.

Rawls ressaltou que uma característica distintiva do procedimentalismo puro é

que o processo para a determinação do resultado justo deve ser realmente levado a

cabo, pois não há critério independente em referência ao qual se pode demonstrar que

um resultado definitivo é justo. O autor destacou, também, prudentemente, que isso

não permite dizer que um estado particular de coisas é justo porque poderia ter sido

alcançado pela obediência a um processo justo: isso seria ir muito longe, ao permitir

que qualquer pessoa argumentasse que quase todas as distribuições de bens são

justas ou equitativas porque poderiam ser decorrências de jogos justos. O que

efetivamente torna o resultado final das apostas justo é que ele tenha sido produzido

após uma série de apostas justas. Um procedimento equitativo imprime sua equidade

no resultado apenas quando é efetivamente47 cumprido. Assim, para Rawls, é dentro

do procedimento que as circunstâncias contextuais – pensadas para as

particularidades daquele empreendimento – vão definir como o procedimento é justo.

Portanto, voltando-se ao questionamento referente à estrutura básica da

sociedade, para que se possa aplicar “a noção de justiça procedimental pura às partes

distributivas, é necessário construir e administrar imparcialmente um sistema justo de

instituições” (TJ, §14, p. 93). Com esse intuito, apenas quando há a referência ao

contexto de uma estrutura básica equitativa, que inclui uma constituição política

razoável e uma organização satisfatória das instituições econômicas e sociais, é que se

pode afirmar haver o pré-requisito48 do procedimento justo.

Rawls argumentou que a vantagem prática de se optar por uma teoria de justiça

procedimental pura é que deixa de se tornar necessário o controle da infindável

variedade de circunstâncias, bem como das posições relativas particulares de pessoas

mutáveis dentro de uma sociedade. Assim, evitam-se os erros (e as consequentes

dificuldades e complexidades emergentes) de focalizar a atenção sobre as posições

relativas variáveis dos indivíduos e de exigir que toda mudança, considerada como

uma transação única e isolada, seja em si mesma justa. É a organização da estrutura

básica que passa a ser analisada e julgada de um ponto de vista geral. As distribuições

de vantagens não são avaliadas primeiramente através do confronto entre uma quantia

disponível de benefícios e necessidades dadas de indivíduos determinados. A alocação

47 Cf. TJ, § 14, pp. 92-93.48 Cf. TJ, § 14, p. 93.

34

Page 46: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

dos itens produzidos ocorre consoante o sistema público de regras, que determina o

que é produzido, quanto é produzido, e por que meios. Esse sistema também

determina reivindicações legítimas que, quando respeitadas, criam a distribuição

resultante. Assim, na justiça procedimental pura, a correção da distribuição está

fundada na justiça do esquema de cooperação social do qual ela surge e na satisfação

das reivindicações de indivíduos nele engajados. Uma distribuição não pode ser

julgada separadamente do sistema de que resulta ou abstraída das ações individuais

realizadas de boa-fé à luz de expectativas49 estabelecidas.

Rawls acrescentou que a sabedoria da reflexão social consiste na construção de

instituições formuladas de uma tal maneira que não surjam dificuldades incontroláveis

com muita frequência, com a aceitação da necessidade de utilização de ideias e de

princípios claros e simples. Em meio a essas noções simples, a justiça como equidade

abrange50 estrutura básica, véu de ignorância, ordem lexical, posição menos

favorecida, procedimentalismo puro, dentre outros.

Nota-se, pelos pontos explicados, que Rawls declarou, em Uma teoria da justiça

a pretensão de se afastar do procedimentalismo perfeito. A motivação desta rejeição

poderia estar nas maiores dificuldades que surgiriam ao se optar por um

procedimentalismo perfeito, por exigir uma definição prévia do justo. O

procedimentalismo puro, sendo mais modesto, preocupa-se em delimitar um

procedimento justo que legitime seus resultados também como justos. Está evidente

que essa escolha se traduz, de um ponto de vista prático, como uma simplificação

teórica. Por outro lado, a rejeição ao procedimentalismo imperfeito está na esterilidade

de se delimitar um procedimento de representação de debate sobre justiça que não

conduza a um resultado necessariamente justo. Rawls, afinal, sempre se preocupou

em buscar uma maneira justa de se pensar a estrutura básica da sociedade.

Com essas informações, restou esclarecida a caracterização de três posturas

procedimentalistas distintas, tal como formuladas por Rawls. Além disso, pôde-se notar

que Rawls optou expressamente pela justiça procedimental pura, em vez da perfeita e

da imperfeita. Sugeri, por último, a possibilidade de a escolha estar motivada,

aparentemente, na maior simplicidade teórica dos recursos construtivos e dos

elementos integrantes de sua proposta de justiça.

49 Cf. TJ, § 14, pp. 93-94.50 Cf. TJ, § 14, p. 95

35

Page 47: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Contudo, apesar dessa sugestão, convém atentar para outros argumentos

rawlsianos, presentes em escritos publicados posteriormente a Uma teoria da justiça.

Num artigo posterior a Uma teoria da justiça, Rawls abordou a preocupação de buscar

representar, adequadamente, a autonomia das partes envolvidas no processo de

deliberação sobre a justiça. A análise desta preocupação está diretamente ligada com

sua opção pelo procedimentalismo puro.

Assim, no próximo tópico, aborda-se essa preocupação com a autonomia, que

repercute na opção por um procedimentalismo pretensamente puro.

2.2 A pretensão subjacente a um procedimentalismo puro: a preocupação com a

autonomia

Nove anos após o advento de Uma teoria da justiça, Rawls publicou, em 1980, o

artigo51 “Kantian Constructivism in Moral Theory”, trazendo algumas considerações

adicionais sobre a justiça como equidade. Em meio ao mencionado artigo, ao tratar da

posição original, Rawls esclareceu que a mesma é carregada de “um grau muito

elevado de justiça processual pura” (CKTM, p. 58), uma vez que, quaisquer que sejam

os princípios selecionados pelas partes na lista possível, eles serão justos. Explicitou,

novamente, que a justiça como equidade se opõe à justiça processual perfeita, na qual

já existe um critério independente e previamente estabelecido daquilo que é justo (ou

equitativo) e na qual há um procedimento que garante um resultado que respeita esse

critério independente. Reiterou que “a característica essencial da justiça procedimental

pura (...) é a ausência de um critério independente de justiça: o que é justo se define

apenas pelo resultado do próprio procedimento” (CKTM, p. 58). Até aqui, nada há de

diferente em relação ao que foi apresentado em Uma teoria da justiça.

Contudo, continuando o texto, Rawls acrescentou52 um comentário relevante: um

dos motivos para descrever a posição original como caracterizada pelo

procedimentalismo puro é a possibilidade de explicar em que sentido as partes

hipotéticas, enquanto agentes racionais do processo de construção, são igualmente

autônomas. Para Rawls, o recurso ao procedimentalismo puro implica, de fato, que os51 Esse artigo está disponível em inglês no Collected Papers de John Rawls. Há também uma coletâneade alguns artigos de Rawls compilados em francês por Catherine Audard em seu Justice et Démocratie.Essa coletânea de Audard foi traduzida para o português como Justiça e Democracia, tendo sido o artigomencionado traduzido como O construtivismo kantiano na teoria moral (que será apresentado comoCKTM, nas citações). Esta versão em português foi a que serviu de base para as referências indicadasneste tópico.52 Cf. CKTM, p. 58.

36

Page 48: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

próprios princípios de justiça são construídos por um processo de deliberação, que é

conduzido pelas partes na posição original.

Como o processo deliberativo é conduzido pelas partes, o peso apropriado das

considerações em favor (ou em desfavor) dos diferentes princípios é fornecido pelo

peso das ponderações efetuadas pelos próprios agentes. Além disso, o peso final das

considerações sobre os princípios “é dado pelo acordo que se efetiva” (CKTM, p. 58).

Com isto, Rawls quis dizer que:

Recorrer à justiça processualística pura na posição original significaque, em suas deliberações, os parceiros não precisam aplicar osprincípios de justiça estabelecidos anteriormente e que, portanto, elesnão estão limitados por um cerceamento deste tipo. Em outras palavras,não existe instância exterior à perspectiva própria dos parceiros que oslimite em nome de princípios anteriores e independentes para julgar asquestões de justiça que se podem apresentar para eles enquantomembros de uma determinada sociedade (CKTM, pp. 58-59).

Para aclarar este ponto, Freeman esclareceu53 que esse processo deliberativo

de construção (a posição original) incorpora os requisitos formais e substantivos do

raciocínio prático, que são as concepções ideais de pessoas como livres, morais,

racionais e razoáveis, e da sociedade bem-ordenada com uma concepção política de

justiça que todos aceitam. Como esse procedimento deliberativo construtivista

incorpora esses requisitos, ele tem um status validador do resultado. Assim, para

Freeman, na teoria de Rawls, diferentemente do que se verifica no realismo moral ou

no intuicionismo racional, não há um padrão de correção independente desse

raciocínio conduzido corretamente por este ponto de vista objetivo (o procedimento

com os requisitos incorporados). Na justiça como equidade, então, a objetividade do

julgamento é que define os padrões de avaliação das verdades morais. Para mostrar o

contraste das outras posturas com a de Rawls, Freeman ilustrou que: a) o realismo

inverte esta prioridade e explica a objetividade de julgamentos com base na

possibilidade de eles satisfazerem condições necessárias para averiguação de

verdades morais anteriores; b) o realismo sustenta que os julgamentos são moralmente

corretos ou verdadeiros em uma maneira que representam fatos morais, ou princípios

ou valores morais que são anteriores ao raciocínio prático.

Então, até este ponto, uma primeira definição de autonomia das partes está no

“fato de serem livres para dar sua concordância a qualquer concepção de justiça que

lhes seja proposta com base em sua avaliação racional das probabilidades que ela terá

53 Cf. FREEMAN, 2007, pp. 292-293.

37

Page 49: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

de favorecer os seus interesses” (CKTM, p. 60). Afinal, nas deliberações a efetuar, “os

agentes não precisam aplicar nem levar em conta princípios de justiça particulares:

eles devem tomar sua decisão respeitando apenas o que ordenam os princípios de

racionalidade, nos limites de sua situação” (CKTM, p. 60). A decisão deve ser tomada

com base nos cálculos e estimativas proporcionados pela racionalidade. Sobre a

racionalidade, Catherine Audard esclareceu, no glossário de Justiça e Democracia54

(JD, p. 381), que: “em Uma teoria da justiça, Rawls considera a pessoa racional como

aquela que classifica um conjunto de opções a seu dispor de acordo com a sua

efetividade em promover seus propósitos”.

Porém, Rawls ressaltou que a pertinência do termo autonomia, quando aplicado

às partes, depende tanto55 dos seus interesses quanto dos cerceamentos aos quais

estão submetidas. Rawls prosseguiu explicando que, na posição original, as partes

hipotéticas são representantes (ou guardiões) de pessoas que são cidadãos de uma

sociedade bem ordenada. As pessoas morais (que são os cidadãos) possuem duas

faculdades morais e dois interesses superiores que consistem na realização e no

exercício dessas faculdades. Uma das faculdades, referente ao senso de justiça, é a

capacidade de compreender e aplicar os princípios de justiça, para agir segundo eles, e

não meramente de acordo com eles. A outra faculdade é a capacidade de formar,

revisar e defender de modo racional uma concepção de bem. Os dois interesses

superiores, correspondentes a essas duas capacidades, animam as pessoas. Além

disso, eles são superiores no sentido de que “dada a maneira pela qual se define a

concepção-modelo da pessoa, esses interesses governam a nossa vida no grau mais

elevado e de maneira eficaz” (CKTM, p. 61). Isso implica, para Rawls, que esses

interesses governam a nossa deliberação e a nossa conduta como pessoas morais.

Como as partes hipotéticas representam as pessoas morais, elas são, também,

“movidas por esses mesmos interesses que buscam garantir o desenvolvimento e o

exercício das faculdades morais” (CKTM, p. 61).

Rawls também pressupôs que as partes representam pessoas morais

desenvolvidas, isto é, cidadãos que possuem uma concepção particular de bem que

determina seus fins últimos. Contudo, as partes hipotéticas, que estão na posição

original, não sabem o conteúdo dessas concepções de bem. Isso produz nelas uma

54A obra Justiça e Democracia será, doravante, designada como JD nas citações. Trata-se de umacompilação de artigos escritos por Rawls, mas com organização de Catherine Audard, com algumasnotas explicativas trazidas pela autora em diversos pontos.55 Cf. CKTM, p. 60.

38

Page 50: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

terceira motivação, “isto é, um interesse mais elevado que busca proteger e efetivar

sua concepção de bem da melhor forma que possam, seja ela qual for” (CKTM, p. 61).

Considerados esses três interesses reguladores, Rawls compreendeu que o véu

de ignorância suscita o problema de como constituir a posição original de maneira que

as partes, na condição de representantes de pessoas detentoras destes interesses,

cheguem a um acordo. Foi nesse ponto que Rawls introduziu a análise dos bens

primeiros. Ao estipular que as partes avaliam as concepções de justiça com relação a

suas preferências por esses bens primários, elas ficam dotadas de desejos

suficientemente específicos para que suas deliberações cheguem a um resultado

preciso. A ideia diretora56 é que os bens primários são definidos ao se indagar quais as

condições sociais e os meios gerais polivalentes necessários ao desenvolvimento e

exercício das duas faculdades morais, bem como para a concretização eficaz de uma

concepção de bem (ou seja, a busca dos fins últimos escolhidos por cada pessoa, que

não excede certos limites).

Rawls propôs aqui uma explicação sucinta das razões que motivam as partes

hipotéticas a preferir os bens primários que foram enumerados em Uma teoria da

justiça:

I) As liberdades básicas (liberdade de pensamento e liberdade deconsciência etc.) são as instituições do contexto social necessárias parao desenvolvimento e o exercício da capacidade de escolher, de revisare de efetivar racionalmente uma certa concepção do bem. Do mesmomodo, essas liberdades permitem o desenvolvimento e o exercício dosenso da justiça em condições sociais caracterizadas pela liberdade. (II)A liberdade de movimento e a livre escolha de sua ocupação, numcontexto de oportunidades diversas, são necessárias para aconsecução de fins últimos e para a eficácia da nossa decisão derevisá-las e modificá-las se o desejarmos. (III) Os poderes e asprerrogativas das funções e dos postos de responsabilidade sãonecessários para desenvolver as diversas capacidades autônomas esociais do eu (self). (IV) A renda e a riqueza, consideradas no sentidoamplo, são meios polivalentes (providos de um valor de troca) quepermitem concretizar, direta ou indiretamente, quase todos os nossosfins, sejam eles quais forem. (V) As bases sociais do respeito por simesmo são constituídas pelos aspectos das instituições básicas quesão, em geral, essenciais para os indivíduos a fim de que eles adquiramuma noção verdadeira de seu próprio valor enquanto pessoas morais epara que sejam capazes de concretizar os seus interesses de ordemmais elevada e de fazer progredirem os seus próprios fins comentusiasmo e autoconfiança. (CKTM, pp. 62-63).

56 Cf. CKTM, pp. 61-63.

39

Page 51: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Com isto, Rawls considerou “as necessidades sociais e as circunstâncias da

existência humana numa sociedade democrática” (CKTM, p. 63). Ora, a concepção que

define as pessoas morais como detentoras de certos interesses superiores bem

precisos, condiciona, para Rawls, a definição dos bens primários. Assim, esses bens

não são compreendidos “como meios gerais essenciais à consecução de quaisquer fins

últimos, que um estudo empírico permitiria atribuir (...) às pessoas” (CKTM, p. 63).

Portanto, a busca desses bens primários não resulta57 de um levantamento puramente

psicológico58, estatístico ou histórico, mas de uma concepção de pessoa com seus

respectivos interesses superiores.

Após todas essas observações, Rawls pôde apontar a pertinência das

observações sobre os bens primários para a questão da autonomia racional:

Observamos que essa autonomia depende certamente, em parte, dosinteresses que mobilizam os parceiros e não apenas pelo fato de elesestarem ligados por algum princípio de justiça autônomo e anterior. Seos parceiros fossem movidos somente por impulsos de ordem inferior,como, por exemplo, a alimentação e a bebida, ou por certas vinculaçõesa esse ou àquele grupo de pessoas, associação ou comunidade, nós osconsideraríamos como heterônomos, e não como autônomos. Contudo,na base do desejo pelos bens primários encontram-se interessessuperiores da personalidade moral e a necessidade de garantir nossaprópria concepção do bem (seja ela qual for). Desse modo os parceirosnão fazem mais do que assegurar e efetivar as condições necessárias

57 Cf. CKTM, pp. 63-64.58 Convém ressaltar que, apesar de um procedimentalismo puro não dever trazer critérios prévios paradefinição do resultado, e apesar de Rawls ter aqui sustentado que não pretende um levantamentopuramente psicológico, deve-se notar que no § 69 de Uma Teoria da Justiça, ao se referir aos membrosde uma sociedade bem-ordenada, Rawls incorporou certas teorias psicológicas na caracterizaçãodesses membros. Ao buscar examinar a estabilidade da estrutura básica no tocante à justiça, Rawlscompreendeu que os sentimentos morais são necessários para a garantia dessa estabilidade. Então, aotratar do modo como esses sentimentos se formam, ele mencionou duas tradições principais: a) uma énascida da doutrina do empirismo, encontrada em utilitaristas de Hume a Sidgwick, que encara aconduta correta como aquela que geralmente beneficia os outros, ao passo que a conduta errada é ocomportamento geralmente prejudicial aos outros e à sociedade; parte dessa tradição também sustentaque o desejo de estar de acordo com os padrões morais é normalmente despertado em tenra idade,antes de adquirirmos um entendimento adequado dos motivos dessas normas; b) uma segunda tradiçãoda aprendizagem moral deriva do pensamento racionalista e é ilustrada por Rousseau, Kant, Mill e, maisrecentemente pela teoria de Piaget, que sustentam que a aprendizagem moral é um desenvolvimento denossas capacidades inatas, de acordo com a sua tendência natural. Após expor as duas tradições,Rawls disse que “não tentarei avaliar os méritos relativos dessas duas concepções de aprendizagemmoral. Com certeza, há muitos elementos sólidos em ambas, e parece preferível tentar combiná-las deuma maneira natural” (TJ, §69, p. 511). Nos §§ 70 a 72 de Uma Teoria da Justiça, Rawls prosseguiuesboçando o curso do desenvolvimento moral em uma sociedade bem-ordenada que implementasse osprincípios da justiça como equidade. Três leis psicológicas são incorporadas no § 75 de Uma Teoria daJustiça. Por último, veja-se como é esclarecedora a nota de rodapé n. 8 da p. 512 do §69 do capítuloVIII, transcrita na p. 692: “Embora a visão de desenvolvimento moral a ser seguida nos §§ 70-72 sedestine a adequar-se à teoria da justiça, eu a tomei emprestada de várias fontes: […] William McDougall[…]; a obra de Piaget, The moral judgement of the child, me sugeriu a contraposição entre a moralidadede autoridade e as moralidades de grupo e de princípios, e grande parte da descrição desses estágios.Ver também a elaboração que Kohlberg faz desse tipo de teoria” (TJ, §69, p. 692).

40

Page 52: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

para o exercício das faculdades que os caracterizam enquanto pessoasmorais. É certo que uma motivação assim não é nem heterônoma nemegocêntrica. Esperamos e até queremos que as pessoas se preocupemcom as suas liberdades e oportunidades a fim de efetivar essasfaculdades e pensamos que, ao renunciar a isso, elas carecem derespeito por si mesmas e demonstram fraqueza de caráter. (CKTM, pp.64-65).

Os agentes racionais (as partes hipotéticas) de um processo de construção (a

posição original), são, portanto, para Rawls, autônomos de dois pontos de vista59. Em

primeiro lugar, ao efetuarem suas deliberações, os agentes não precisam aplicar nem

seguir princípios de justiça que sejam prévios e anteriores. Isso se trata de

procedimentalismo puro. Em segundo lugar, eles são descritos como motivados por

seus interesses superiores, que são aqueles que têm por objeto suas faculdades

morais já explicadas, bem como se preocupam em efetivar as concepções de bem

determinadas (dos cidadãos, que são representados), ainda que elas sejam

desconhecidas para as partes hipotéticas, em razão do véu da ignorância. É nesse

sentido, portanto, que a análise e definição dos bens primários expressa esse aspecto

da autonomia: “dada a existência do véu de ignorância, os parceiros só podem ser

movidos por esses interesses superiores, que, por sua vez, eles devem concretizar por

meio de sua preferência pelos bens primários” (CKTM, p. 65).

Entendida a noção de autonomia racional, que é aplicada às partes da posição

original (agentes artificiais apenas racionalmente autônomos), consideradas agentes de

construção, convém passar para a autonomia completa, que “se efetiva com os

cidadãos de uma sociedade bem ordenada no curso da sua vida cotidiana” (CKTM, p.

65). Rawls ressaltou que, embora a autonomia completa se efetive na vida prática dos

cidadãos (pessoas morais), ela deve figurar de maneira apropriada na posição original.

Para ele, os cidadãos alcançam sua autonomia completa quando60: aprovam os

princípios primários que seriam eleitos na posição original, reconhecem publicamente o

procedimento que viabiliza o acordo, agem com base nesses princípios e em

conformidade com os imperativos de seu senso de justiça. Como esses elementos não

estão presentes na descrição das deliberações e motivações das partes hipotéticas,

deve-se atentar para como as restrições do razoável e racional estão representadas61

na posição original.

59 Cf. CKTM, p. 65.60 Cf. CKTM, p. 66.61 Cf. CKTM, pp. 66-67.

41

Page 53: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Então, para compreensão desse ponto, veja-se como Rawls diferenciou a noção

de racional da noção de razoável, explicando, primeiramente, como ambas estão

caracterizadas nas pessoas representadas (cidadãos de uma sociedade bem

ordenada), para, em seguida, ilustrar a maneira como, paralelamente, as duas noções

também se fazem presentes nos contornos da posição original.

A restrição do racional – correspondente ao desejo que as pessoas

representadas têm de efetivar e exercer suas faculdades morais, bem como garantir o

avanço de sua concepção de bem – é traduzido, na posição original, com a

especificação dos interesses superiores das partes, com as deliberações sendo

conduzidas pelos princípios de escolha racional.

Já a restrição do razoável – correspondente à reciprocidade ou mutualidade

entre as pessoas beneficiárias da cooperação social – fica incorporado às disposições

da posição original que situam as partes simetricamente umas em relação às outras,

estando elas obrigadas a adotar uma concepção pública da justiça, devendo avaliar

seus princípios tendo em mente essa condição.

Rawls também ressaltou que o véu da ignorância implica que as pessoas sejam

representadas como pessoas morais, e não como pessoas beneficiadas ou

prejudicadas pelas suas contingências sociais. Daí resulta que elas ficam situadas de

maneira igual e, portanto, numa representação equitativa. Isso também se explica

porque a “única característica pertinente ao estabelecimento dos termos básicos de

cooperação social é a posse das faculdade morais mínimas e apropriadas que

constituem a personalidade moral” (CKTM, pp. 67-68).

Um outro cerceamento à posição original, também relevante para a questão da

autonomia, é o seguinte: sendo o objeto primeiro da justiça a estrutura básica da

sociedade – “o conjunto das suas principais instituições e a maneira pela qual elas se

organizam para formar um sistema único” (CKTM, p. 68) – justifica-se, para Rawls, o

fato de situar as partes equitativamente, e limitar suas informações pelo véu da

ignorância. Então, somente quando a estrutura básica satisfaz às exigências da justiça

do contexto social, é que se pode considerar que uma sociedade trata seus membros

como pessoas morais iguais62.

Então, retomando a distinção entre o razoável e o racional, no âmbito da

convivência entre os cidadãos de uma sociedade bem ordenada, veja-se como Rawls

tratou da relação entre os dois conceitos:

62 Cf. CKTM, p. 68.

42

Page 54: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

O Razoável pressupõe e condiciona o Racional. Ele define os termoseqüitativos da cooperação que seriam aceitos por todos os membros deum grupo qualquer, constituído por pessoas identificáveisseparadamente, cada um deles possuindo e exercendo as duasfaculdades morais que indicamos. Todos têm uma concepção do seubem, que permite definir onde está a sua vantagem racional, e cada umtem, de forma geral, um senso efetivo da justiça, isto é, a capacidade derespeitar os termos eqüitativos da cooperação. O Razoável pressupõe oRacional porque, sem as concepções do bem que mobilizam osmembros do grupo, a cooperação social não teria sentido algum, comotampouco o teriam as noções de justo e de justiça, ainda que umacooperação desse tipo concretize valores que vão muito além do quepodem propor concepções do bem tomadas isoladamente. O Razoávelcondiciona o Racional porque os seus princípios limitam e até mesmo,tomado num sentido kantiano, limitam de modo absoluto os fins últimosque podem ser visados (CKTM, p. 68).

Veja-se, agora, como Rawls resumiu essas observações, traduzindo, para o

âmbito da posição original, os contornos das relações entre o razoável e o racional:

Dessa maneira, na posição original, consideramos que o Razoável éexpresso pelo conjunto dos cerceamentos aos quais estão submetidasas deliberações dos parceiros (enquanto agentes racionais de umprocesso de construção). Os representantes desses cerceamentos sãoa condição de publicidade, o véu de ignorância e a simetria da situaçãodos parceiros uns em relação aos outros, bem como a estipulação deque a estrutura básica seja o objeto primeiro da justiça. Os princípios dejustiça habituais são exemplos de princípios razoáveis, e os princípioscorrentes da escolha racional constituem exemplos de princípiosracionais. A maneira de representar o Razoável na posição originalconduz aos dois princípios de justiça. Esses princípios são construídos,na teoria da justiça como eqüidade, como sendo o conteúdo que teria oRazoável para a estrutura básica de uma sociedade bem ordenada.(CKTM, pp. 68-69).

Portanto, com todas essas considerações, nota-se que uma das motivações

decisivas em prol do procedimentalismo puro é exatamente a preocupação de Rawls

em preservar a autonomia completa dos cidadãos de uma sociedade bem ordenada,

bem como a autonomia racional das partes hipotéticas da posição original.

Uma tal autonomia seria prejudicada caso a justiça como equidade fosse

proposta, no que diz respeito ao papel construtivo das partes, como uma questão de

imposição ou de mero reconhecimento de princípios de justiça que fossem anteriores e

independentes das deliberações construídas pelos agentes. Afinal, isso significaria que

o debate proposto pelas partes às próprias partes seria encarado como já restringido

no campo das possibilidades a levantar, confrontar, argumentar e decidir. E essa

restrição arbitrária da extensão e do alcance das propostas a serem sugeridas pelas

43

Page 55: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

partes seria encarada como uma determinação prévia marcantemente heterônoma. E,

como se sabe, uma das preocupações de Rawls é evitar incorrer em heteronomia,

buscando realizar a deliberação de maneira autônoma.

E, ainda em reforço do pretenso zelo pela autonomia, a motivação com base nos

bens primários evita a heteronomia que estaria presente caso a motivação das partes

estivesse, no curso da deliberação, cingida a desejos de ordem inferior. Assim, é de se

ver que a preocupação com a autonomia é um dos pontos primordiais que motivaram a

adoção, por Rawls, de um procedimentalismo pretensamente puro.

Há, ainda, um outro ponto bastante relevante, conexo com a questão da

autonomia, cuja análise revela que ele também foi decisivo na opção pela justiça

procedimental pura: trata-se da preocupação rawlsiana com a questão da

imparcialidade. Isto será esclarecido no próximo tópico.

2.3 Outra preocupação subjacente a um procedimentalismo puro: a questão da

imparcialidade

Qual é a base motivacional para que as pessoas ajam com justiça, tornando-as

seres preocupados com instituições e normas justas? Essa é uma pergunta que, para

alguns autores, permite uma divisão em duas teorias distintas de justiça. Buscando

responder essa indagação, Brian Barry defendeu que há duas categorias distintas63 de

teorias de justiça, definidas pela natureza da situação a partir da qual há de se obter o

acordo.

O primeiro grupo teórico centra suas explicações nas circunstâncias de justiça:

considerando as pretensões conflitantes dos indivíduos, busca-se superar os

desentendimentos interpessoais mediante um ponto conveniente de acordo, constituído

pela interação dos esforços autointeressados das partes. Aqui, cada parte busca o

melhor estado para si mesma, de maneira tal que o acordo resultante não é de índole

intrinsecamente cooperativa. Assim, da forma como as circunstâncias de justiça estão

dadas, todas as partes podem se beneficiar ao se apartarem dos pontos de desacordo.

Deste modo, a preocupação preponderante desse tipo de teoria de justiça seria

explicar como os negociadores idealmente racionais dividiriam os ganhos e perdas por

meio desse acordo de vantagens mútuas.

63 Cf. BARRY, 2001, p. 288.

44

Page 56: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Sobre esta corrente, denominada por Catherine Audard como “justiça como

vantagem mútua” (justice as mutual advantage), tem-se o seguinte panorama, em que,

ilustrativamente, até pessoas injustas e desonestas concordariam com os benefícios:

O primeiro aspecto do conceito de justiça é prudencial, e sua basemotivacional seria a vantagem mútua esperada ou a promoção denosso bem-estar, a um custo aceitável para nós mesmos e para osoutros. [...]. Justiça representa um sacrifício racional e prudencial departe do nosso bem em prol de um bem maior: mais segurança eestabilidade. Sua base motivacional é, assim, firmemente fundamentadana "benesse" ou "utilidade" da justiça. [...]. Nesse sentido limitado, ajustiça equivale a ordem. Isso significa estabilidade ou segurançamedidas pelo avanço do bem das pessoas individuais e pela prevençãode conflitos destrutivos entre eles. Mesmo as pessoas injustas, que nãopodem atuar motivadas pela própria justiça (...) vão reconhecer a virtudeda justiça como uma fonte indireta de vantagem mútua. Isso leva a umbem menor (...) do que aquele obtido caso estivéssemos totalmentelivres para agir, mas para um bem maior do que aquele que seria obtidose estivéssemos ameaçados o tempo todo pelaspretensões/perseguições dos outros membros (AUDARD, 2007, pp. 35-36, tradução minha 64).

Para ilustrar a longanimidade dessa maneira de encarar a justiça, veja-se um

antigo exemplo de teoria de justiça como vantagem mútua, apontado por Glauco em

seu discurso contra Sócrates, no livro II da República:

Dizem que [...] ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem quehá em cometê-Ia. De maneira que, quando as pessoas praticam ousofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parecevantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra,chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem seremvítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convençõesentre elas e a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Talseria a génese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entreo maior bem — não pagar a pena das injustiças — e o maior mal — serincapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entreestes dois extremos, deve, não pleitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. [...]. Aqui tens, óSócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo évoz corrente.

64 Cf. original: “The first aspect of the concept of justice is prudential, and its motivational basis would beexpected mutual advantage or the promotion of our wellbeing at an acceptable cost to ourself and toothers. [...]. Justice represents a rational and prudential sacrifice of part of our good for the sake of agreater good: more security and stability. Its motivational basis is thus firmly grounded in the “goodness”or “usefulness” of justice. […]. In that limited sense, justice equates with order. It means stability orsecurity measured by the advancement of the good of individual persons and the avoidance ofdestructive conflicts between them. Even unjust persons, who cannot act for justice’s sake (…) willrecognize the virtue of justice as an indirect source of mutual advantage. It leads to a lesser good (…)than if we were totally free to act, but to a greater good than if we were threatened all the time by othermembers’ pursuits”.

45

Page 57: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Sentiremos melhor como os que observam a justiça o fazem contravontade, por impossibilidade de cometerem injustiças, se imaginarmos ocaso seguinte. Demos o poder de fazer o que quiser a ambos, aohomem justo e ao injusto; depois, vamos atrás deles, para vermos ondea paixão leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao justo, a caminharpara a mesma meta que o injusto, devido à ambição, coisa que toda acriatura está por natureza disposta a procurar alcançar como um bem;mas, por convenção, é forçada a respeitar a igualdade. (PLATÃO, 2007,pp. 45-46, s.359).

Como um exemplo mais recente desta perspectiva da mera escolha racional,

David Hume argumentou, em An Enquiry concerning the principles of morals, no

sentido de que “a justiça é algo útil à sociedade, e, portanto, o seu mérito é proveniente

tão-somente de sua utilidade pública, tendo em vista as consequências benéficas desta

virtude” (HUME, 1809, p. 231, tradução minha). Ele compreendeu que as regras de

justiça entre os homens dependem inteiramente das condições desfavoráveis e

estados particulares de escassez em que os homens estão colocados, tendo sua

origem e existência condicionadas e limitadas à utilidade pública resultante da

observância regular e estrita65 dessas regras por parte das pessoas. Tanto é assim que

ele propôs o seguinte experimento mental:

Anule, em qualquer circunstância considerável, a condição dos homens:produza extrema abundância ou extrema necessidade; implante nopeito humano moderação e humanidade perfeitas, ou voracidade emalícia perfeitas; ao tornar a justiça totalmente inútil, você destróitotalmente a sua essência, e suspende sua obrigatoriedade sobre ahumanidade (HUME, 1809, p. 236, tradução minha66).

Ainda dentro desta perspectiva de justiça como vantagem mútua, poderia ser

incluída a teoria de Hobbes, embora sua maior preocupação não estivesse centrada

nos questionamentos de justiça. Ressalta-se que, mesmo que o foco da discussão de

Hobbes não recaísse sobre questões de justiça, a abordagem que ele efetuou para a

obediência às regras sociais, por parte das pessoas, está próxima desta perspectiva de

justiça como vantagem mútua. Para melhor compreensão, convém apontar um

panorama do contratualismo hobbesiano:

A abordagem hobbesiana vê a moralidade como constituída por umconjunto de princípios cuja adoção é vantajosa para todos de uma

65 Cf. HUME, 1809, p. 236.66 Cf. original: “Reverse, in any considerable circumstance, the condition of men: produce extremeabundance or extreme necessity: implant in the human breast perfect moderation and humanity, orperfect rapaciousness and malice: by rendering justice totally useless, you thereby totally destroy itsessence, and suspend its obligation upon mankind”.

46

Page 58: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

maneira que significa que cada pessoa teria razões (não-morais) paraadotar os princípios, enquanto os outros também o façam [... ] É comose um conjunto de princípios estabelecidos e internalizados comsucesso, que exigem certos tipos de atos, exigindo a consideração dosoutros, e a confiança na subscrição destes princípios pelos outros, quevão agir em conformidade com eles, iria aliviar problemas que nóstodos, de outra forma, iriamos enfrentar. Restrições recíprocas,selecionadas de maneira inteligente, conduzem à vantagem mútua. [...]As vantagens que cada um de nós usufrui da moralidade vêm,principalmente, de os outros abraçarem princípios morais e,secundariamente, da nossa inibição dos fardos que sofreríamos casofossem os outros a nos punir por violar esses princípios (SAYRE-MCCORD, 2000, pp. 260-261, tradução minha67).

Todavia, tomando como referência, no tocante ao trato das questões de justiça,

uma perspectiva como a hobbesiana, “a defesa de uma moralidade que precisa apelar

para nossas considerações de vantagem e consideração sobre os outros, torna-a

preponderantemente contingente, sob duas vias criticáveis” (SAYRE-MCCORD, 2000,

p. 262). Assim, duas críticas recaem sobre tal postura. Em primeiro lugar, o conteúdo

dos princípios morais torna-se contingente por embasar-se sobre a existência e a forma

de nossas preocupações com os outros. Em segundo lugar, a força do argumento

legitimador dos princípios será tão contingente como são as preocupações e interesses

reais daqueles a quem são endereçados.

Deste modo, para quem considera plausíveis as duas críticas apontadas por

Sayre-McCord, torna-se viável buscar uma postura diferente no que diz respeito ao

enfrentamento das questões atinentes à justiça. Visando, portanto, evitar incorrer

nesses erros indicados, surge uma perspectiva diferente sobre a justiça. Assim, um

segundo grupo teórico adota uma nova perspectiva – diferente daquela primeira,

apresentada por Glauco, Hume e Hobbes –, centrando as suas explicações em

considerações morais, em vez de se limitar a buscar as meras vantagens decorrentes

de um acordo ou pacto de interesses conflitantes entre si. Brian Barry ilustrou a

distinção afirmando que este segundo grupo concentra a discussão nas circunstâncias

morais de imparcialidade68, diferentemente do primeiro grupo, que se foca nas

67 Cf. original: “ The Hobbesian approach views morality as constituted by a set of principles the adoptionof which is advantageous for everyone in a way that means each person would have (non-moral) reasonsto adopt the principles as long as others did as well [...] It looks as if a successfully established andinternalized set of principles requiring certain sorts of acts, demanding the consideration of the others,and underwriting confidence that others will act in concert, would alleviate problems we would allotherwise face. Reciprocal constraints, intelligently selected, lead to mutual advantage. […] Theadvantages we each enjoy from morality come primarily from others embracing moral principles andsecondarily from our avoiding the burdens we would suffer were others to punish us for violating thoseprinciples ».68 Cf. BARRY, 2001, p. 288.

47

Page 59: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

circunstâncias que tornam necessário o advento de normas de justiça (a exemplo da

escassez em David Hume). Aqui, parte-se da preocupação em representar a situação

de eleição das regras justas com características tais que se possa assegurar, de

alguma maneira, que os interesses de todas as partes sejam tomados em igual

consideração.

Dentro desta perspectiva, denominada por Catherine Audard como “justiça como

imparcialidade” (justice as impartiality), destaca-se, inicialmente, a proposta de Kant.

Para que se compreenda isso, note-se que Kant, em sua Fundamentação da

metafísica dos costumes69, diferentemente da postura de Hume, não considerou

legítima a tomada de considerações empíricas – tais como escassez de recursos e

dificuldades provenientes dos possíveis conflitos humanos – para que se fundamentem

normas morais de justiça. Ele revelou sua insatisfação para com aqueles que buscam

explicar as ações humanas como limitadas apenas aos próprios interesses e

inclinações70 individuais, pois estas posturas desconsideram a relevância da

moralidade como uma consideração digna de respeito pelo homem na motivação de

suas ações. Ressalte-se que, para Kant,

Princípios empíricos não são de todo aptos para constituírem a basedas leis morais. Isso porque a universalidade que estas devem manterpara todos os seres racionais, sem distinção, - a necessidade práticaincondicional, que é, assim, imposta sobre eles – torna-se um nada se asua base é tomada a partir da constituição especial da naturezahumana ou a partir das circunstâncias contingentes em que ela ésituada (KANT, 1997, p. 48, tradução minha71).

Kant rejeitou elementos empíricos para a motivação das ações porque

pretendeu fugir daquilo que acusou de heteronomia, para se aproximar daquilo que

denominou autonomia. Veja-se como ele conceitou a heteronomia e porque ele julgou

insatisfatório a vontade (“razão prática”) formular a lei a si mesma desta forma:

Se a vontade busca a lei que é para determiná-la em qualquer outrolugar que não seja na aptidão de suas máximas para a elaboração desua própria lei universal – consequentemente, se, indo além de simesma, busca essa lei em uma propriedade de qualquer de seus

69 O título da obra em inglês (que serviu para extração das citações e referências deste tópico) éGroundwork of the Metaphysics of Morals, na tradução de Mary Gregor. Ressalte-se que a obra foioriginariamente escrita em alemão.70 Cf. KANT, 1997, p. 19.71 Cf. original: “Empirical principles are not at all fit to be the ground of moral laws. For, the universalitywith which these are to hold for all rational beings without distinction - the unconditional practicalnecessity which is thereby imposed upon them - comes to nothing if their ground is taken from the specialconstitution of human nature or the contingent circumstances in which it is placed”.

48

Page 60: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

objetos –, daí sempre resulta a heteronomia. A vontade, nesse caso,não fornece a lei a si mesma; em vez disso, o objeto, por meio da suarelação com a vontade, é que impõe a lei a ela. Essa relação, sejabaseada sobre a inclinação ou sobre as representações da razão, fazcom que apenas imperativos hipotéticos se tornem possíveis: eudeveria fazer alguma coisa, porque eu quero algo mais. (KANT, 1997, p.47, tradução minha72).

Rejeitando, então, essa postura heterônoma, eis como Kant considerou

apropriado agir com autonomia, de maneira que a vontade (“razão prática”) – e não

algum objeto fora dela – seja a suprema legisladora de si mesma:

De maneira contrária, o imperativo moral e, portanto, categórico diz: eudeveria agir de tal ou tal maneira, mesmo que eu não quisesse nadamais. Por exemplo, o primeiro diz [referindo-se a quem age de modoheterônomo]: eu não deveria mentir se eu quero manter a minhareputação; mas este último diz [referindo-se a quem age de modoautônomo]: eu não deveria mentir, mesmo que isso não me traga ummínimo descrédito. Este último deve, portanto, abstrair-se de todos osobjetos na seguinte medida: eles – os objetos – não têm nenhumainfluência em toda a vontade, de modo que a razão prática (a vontade)pode não apenas administrar um interesse que não pertence a ele / maspode simplesmente mostrar sua própria autoridade de comando comosuprema legisladora de si mesma. Assim, por exemplo, eu deveriatentar promover a felicidade dos outros, não como se a sua existênciatrouxesse consequência para mim (seja por causa da inclinaçãoimediata ou por causa de alguma afabilidade indireta através da razão),mas simplesmente porque uma máxima que exclui esta postura nãopode ser incluída como uma lei universal para a volição de um sujeito.(KANT, 1997, pp. 47-48, tradução minha73,, itálicos meus).

Um outro exemplo de justiça como imparcialidade é o projeto de Rawls. Veja-se

como Catherine Audard apontou a caracterização dos delineamentos da justiça como

imparcialidade dentro da proposta rawlsiana:

72 Cf. original: “ If the will seeks the law that is to determine it anywhere else than in the fitness of itsmaxims for its own giving of universal law - consequently if, in going beyond itself, it seeks this law in aproperty of any of its objects - heteronomy always results. The will in that case does not give itself thelaw; instead the object, by means of its relation to the will, gives the law to it. This relation, whether it restsupon inclination or upon representations of reason, lets only hypothetical imperatives become possible: Iought to do something because I will something else.”73 Cf. original: “On the contrary, the moral and therefore categorical imperative says: I ought to act in suchor such a way even though I have not willed anything else. For example, the former says: I ought not tolie if I will to keep my reputation; but the latter says: I ought not to lie even though it would not bring methe least discredit. The latter must therefore abstract from all objects to this extent: that they have noinfluence at all on the will, so that practical reason (the will) may not merely administer an interest notbelonging to it/ but may simply show its own commanding authority as supreme lawgiving. Thus, forexample, I ought to try to further the happiness of others, not as if its existence were of any consequenceto me (whether because of immediate inclination or because of some indirect agreeableness throughreason), but simply because a maxim that excludes this cannot be included as a universal law in one andthe same volition”.

49

Page 61: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Um segundo aspecto do conceito de justiça para Rawls é ético e não serefere apenas ao fato de que uma sociedade seja ordenada, mastambém ao quão bem ordenada ela seja. Imparcialidade ou equidadecomo a exigência de que "tratemos igualmente os casos semelhantes ediferentemente os casos distintos" é uma base motivacional para ajustiça, na medida em que sabemos que as leis não são tendenciosasou arbitrárias. [...] O que é distintivo na justiça como um valor moral éque o sistema de regras que ela estabelece não é dependente de seusresultados e dos benefícios que ele produz para alguns. É um sistemapublicamente acordado que é valorizado em si mesmo, que podesobreviver a conflitos interpessoais, mesmo que ele pudesse feririnteresses pessoais. A justiça é um imperativo moral que caracteriza associedades bem ordenadas que não estão satisfeitas apenas com aestabilidade e com a ordem, mas que reclamam uma ordem justificada.O primado da justiça está intimamente ligado com a autorrepresentaçãodos regimes democráticos (AUDARD, 2007, pp. 36-37, traduçãominha74).

Ainda dentro desta perspectiva, convém ressaltar que essa preocupação de

Rawls com a imparcialidade ao enfrentar problemas de justiça é um dos traços de sua

filiação kantiana. Todavia, convém ressaltar que, apesar da forte inspiração kantiana,

Rawls apresentou uma caracterização própria para a sua proposta de justiça como

equidade. É nesse sentido que se pode dizer que a teoria de Rawls é análoga

(guardando afinidade, mas não sendo igual) à de Kant.

Para compreender esse ponto de originalidade de Rawls diante de Kant, Sandel

mostrou75 que, apesar das semelhanças entre Kant e Rawls, há um ponto de distinção,

que repercute nas circunstâncias de justiça. Conforme explicou Sandel, no pensamento

de Kant, ao argumentar que a atuação moral do homem deve ser realizada acima das

influências heterônomas e determinações contingentes de suas condições naturais e

sociais, conclui-se que se deve atuar de acordo com um princípio dado apenas pela

razão prática. Deste modo, as circunstâncias presentes na situação de deliberação

sobre a justiça, para Kant, devem estar contidas num plano puramente ideal e abstrato,

sem considerações empíricas, concretas ou contingentes. Assim, para Kant, no

levantamento das circunstâncias a considerar no debate sobre a justiça, não são

admissíveis aquelas circunstâncias presentes na sociedade humana que tornam a

74 Cf. original: “A second aspect of the concept of justice for Rawls is ethical and refers not only to the factthat a society is ordered, but also to how well it is ordered. Impartiality or fairness as the requirement thatwe “treat like cases alike and different cases differently” is a motivational basis for justice, as we knowthat the laws are not biased or arbitrary. […] What is distinctive of justice as a moral value is that thesystem of rules it establishes is not contingent on its outcomes and on the benefits that it yields for some.It is a publicly agreed system that is valued in itself, that can survive interpersonal conflicts, even if itmight hurt personal interests. Justice is a moral imperative that characterizes well-ordered societies thatare not satisfied simply with stability and order, but that call for a justified order. The primacy of justice istightly connected with the self-representation of democratic regimes”.75 Cf. SANDEL, 2000, pp. 56-61.

50

Page 62: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

justiça necessária (como definiu Hume, com alguma leve influência presente também

em Rawls), pois só se admitem as condições da deliberação presentes em um domínio

ideal abstraído a partir da sociedade humana, que torna possível a moralidade e a

justiça em geral: o território do reino dos fins, acima do mundo fenomênico.

Prosseguindo na comparação, Sandel explicou que Rawls, embora também

enquadrado na justiça como imparcialidade (tal como Kant), consideraria que a

perspectiva puramente kantiana é insatisfatória como base para a justiça humana, pois

se aplicaria apenas a seres humanos separados de suas circunstâncias humanas

reais, o que equivaleria a tratá-los como agentes que deixaram de ser humanos. A

eleição de um eu noumênico poderia, da perspectiva de Rawls, ser arbitrária. Por isso

Rawls preferiria que a teoria de justiça pudesse ter liberdade de utilizar, a seu gosto,

suposições contingentes e fatos gerais.

Assim, com esse intuito, o projeto rawlsiano buscava manter a prioridade do

justo e a eliminação das contingências entre as pessoas, mas permitindo

considerações empíricas das circunstâncias da justiça: a base que Rawls toma a partir

de certas preferências e desejos humanos generalizados para a derivação dos

princípios de justiça (o que seria uma indesejada heteronomia, para o ponto de vista de

Kant). Deste modo, a preocupação de Rawls seria afastar as contingências que

diferenciam as pessoas entre si e possam repercutir de maneira indesejável na

deliberação sobre a justiça. Mantém-se, assim, diferentemente de Kant, uma

contingência mais global, com atributos comuns aos seres humanos como tais, e que,

além de não serem problemas para Rawls, seriam, inclusive, elementos essenciais em

sua teoria de justiça. Afinal, os princípios de justiça que Rawls buscou eram para ser

aplicados a seres humanos do mundo real76, e não para seres transcendentes e

incorpóreos abstraídos do mundo.

Nota-se, assim, conforme destacado acima, a diferença entre as teorias da

justiça como vantagem mútua e como imparcialidade, apontando Glauco, Hume e

Hobbes como exemplos da primeira modalidade, e Kant e Rawls como exemplos da

segunda perspectiva. Além disso, destacou-se também que, a despeito do

enquadramento de Kant e Rawls na mesma perspectiva quanto à maneira de lidar com

a justiça, Rawls apresentou alguns pontos em que se apartou da postura estritamente

kantiana. Compreendida a distinção entre as teorias da justiça como vantagem mútua e

76 Cf. SANDEL, 2000, p. 60.

51

Page 63: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

como imparcialidade, convém avançar em algumas considerações referentes a essa

divisão.

Para Bryan Barry, essas duas maneiras distintas de se encarar a justiça são

inconciliáveis. Para ele, a distinção entre as duas correntes é tamanha que só podem

estar unidas em um nível mais profundo, no sentido de serem ambas, em um sentido

amplo, contratualistas. Com isto, ele quis dizer que a semelhança entre ambas limita-se

ao fato de considerarem importante o que as partes concordariam em uma situação

hipotética. Sustentou, contudo, que, “mesmo nesse ponto único de semelhança, já há

diferenças visíveis” (BARRY, 2001, pp. 289-290), que são as seguintes: enquanto a

teoria da vantagem mútua se ajusta mais ao conceito ordinário de contrato, pois há um

estado de coisas que só se pode obter após esse acordo entre as partes, a teoria da

imparcialidade adota uma versão bastante atenuada de contrato, pois a noção de

vantagem mútua (traço essencial de um contrato com muitos interesses conflitivos)

perde espaço para uma motivação presumidamente mais afinada com a razoabilidade

buscada.

Ainda reforçando a tese da distinção substancial e irredutível entre as duas

perspectivas, Brian Barry providenciou uma argumentação sustentando, no que diz

respeito à obtenção de um resultado satisfatório para uma situação em que há conflitos

entre duas ou mais partes (indivíduos, grupos, instituições ou países) com pretensões

incompatíveis, que as teorias da justiça como imparcialidade fornecem melhores

respostas77 do que as teorias da justiça como vantagem mútua. Para ele, enquanto a

teoria da vantagem só é sustentada pelas partes na medida em que possam ser

beneficiadas, uma vez que, naturalmente, elas rejeitariam uma determinada norma que

lhes desfavorecesse diretamente, a teoria da imparcialidade carrega a exigência moral

de que o acordo pode prevalecer78 inclusive sobre o maior interesse pessoal de amplo

alcance de alguma parte eventualmente desfavorecida em uma situação específica.

Com isso, na imparcialidade, uma pessoa busca justificar as ações próprias sobre as

das demais amparadas em bases com as quais as demais pessoas não podem

razoavelmente rejeitar, sendo pressuposto, evidentemente, que elas concordem com o

sistema e com os operadores da justiça, bem como com os critérios e normas eleitos.

Brian Barry também concluiu que, nessa disputa entre os enfoques

“racionalistas” e “de sentido moral”, com respeito à justiça, “há um empate: ambas

77 Cf. BARRY, 2001, p.301.78 Cf. BARRY, 2001, pp. 302-305.

52

Page 64: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

conseguem acertar o que negam (o que rejeitam na outra), mas erram no que afirmam”

(BARRY, 2001, pp. 306-309). Diante deste empate, ele considerou, adicionalmente,

que: a) parece mais natural perguntar se podemos agir além de nossa própria

perspectiva individualizada, para agir amparado em razões que sejam razões válidas

para qualquer um; b) se buscarmos um ponto de vista em que expomos nossas

demandas em relação com as demandas dos outros, torna-se difícil negar que somos

um como qualquer outro, eliminando quaisquer noções de status de superioridade ou

inferioridade de uns sobre os outros, repercutindo na rejeição da postura de preferir os

interesses de alguns sobre os interesses dos outros; c) alguém preocupado em eleger

um princípio imparcial que governe a vida de todos não poderia subscrever um

princípio apenas por favorecer a si em detrimento dos demais, pois é óbvio que os

colocados em situação desvantajosa nessa aplicação possivelmente iriam rejeitá-lo,

sem se poder dizer que eles estariam agindo sem razoabilidade. Com isto, ele concluiu

em favor da “prioridade dos motivos morais diferenciadores por sobre os reclamos do

autointeresse” (BARRY, 2001, p. 307, tradução minha79).

Vejam-se os seguintes excertos que apontam sua preferência pela opção da

justiça como imparcialidade:

A busca de uma base para um acordo espontâneo com os outros exigeo abandono da parcialidade. Pode-se encontrar um fundamento comum,se é que se pode, somente quando todos adotam um ponto de vistaimparcial […] E se perguntarmos o que estamos dizendo sobre umaatitude ou de uma instituição, quando dizemos que é injusta, a respostageral é, eu sugiro, a seguinte. Estamos dizendo que ela não pode serdefendida publicamente, que os princípios da distribuição, nestainstância, poderiam ser razoavelmente rejeitados por aqueles a quemeles prejudicam (BARRY, 2001, pp. 309 e 310, tradução minha80).

E, ainda insistindo nessa diferenciação, ele enquadrou a proposta de Rawls

como filiada à justiça como imparcialidade:

Em Rawls é bastante claro, então, que a constituição da posição originaltem de ser justificada por argumentos que não são eles própriosdeduções da ideia de racionalidade. Em vez disso, como ele coloca, 'aintenção aqui é simplesmente tornar vívidas para nós mesmos as

79 Cf. original: “prioridad de los motivos morales distintivos por encima de los reclamos del autointerés”.80 Cf. original: “la búsqueda de una base para un acuerdo no forzado con los demás, necesita elabandono de la parcialidad. Puede encontrarse un fundamento común, si es que se puede, sólo cuandotodos adoptan una perspectiva imparcial […] Y si preguntamos qué estamos diciendo acerca de unaactitud o de una institución cuando decimos que es injusta, la respuesta general es, sugiero, la siguiente.Estamos afirmando que no puede ser defendida públicamente, que los principios de la distribución enesta instancia podrían razonablemente ser rechazados por aquellos a quienes perjudica”.

53

Page 65: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

restrições que parece razoável impor em argumentos para os princípiosde justiça e, portanto, sobre esses próprios princípios' […]. A construção da posição original de Rawls está ancorada emconsiderações morais substantivas em ambas finalidades. Eu mostreicomo as características da posição original devem incorporar asrestrições razoáveis. [ ...] A versão da posição original apresentada porRawls é a sua contribuição para a busca de equilíbrio reflexivo: 'elerepresenta a tentativa de acomodar dentro de um esquema tanto ascondições filosóficas razoáveis sobre os princípios, quanto os nossosjuízos ponderados de justiça'. Seria difícil imaginar uma declaração maisexplícita das intenções de Rawls, ou uma que torne mais clara quãolonge ele anda de uma marca como um racionalista puro. (BARRY,1995, pp. 54 e 55, tradução minha81).

Inclusive, ao interpretar Rawls dessa forma, ele criticou a descrição da posição

original como uma situação em que as partes perseguem sua própria concepção de

bem, pois, para uma tal descrição, embora a busca dos princípios estivesse atenta às

considerações de equidade, “os princípios seriam eles mesmos, contraditoriamente,

resultados de um processo de vantagem mútua que reflete o poder de barganha das

partes” (BARRY, 1995, pp. 57-58). Por este motivo, haveria a aplicação do véu da

ignorância, justamente para evitar essa busca pessoal das próprias concepções de

bem.

Convém, neste ponto, após explicitada a opinião de Brian Barry, apontar uma

controvérsia sobre o enquadramento da justiça como equidade de Rawls nessa divisão

entre os dois distintos tipos de teorias da justiça. Rawls, em O liberalismo político,

afirmou, expressamente, e referindo-se a essa questão, que:

A ideia de reciprocidade situa-se entre a ideia de imparcialidade, que éaltruísta (ser movido pelo bem geral), e a ideia de benefício mútuo, nosentido da obtenção de vantagens por todos em relação à situaçãopresente ou esperada para o futuro, sendo as coisas como são. Damaneira entendida pela justiça como equidade, a reciprocidade é umarelação entre os cidadãos expressa pelos princípios de justiça queregulam um mundo social onde todos se beneficiam, julgando-se porum padrão apropriado de igualdade definido com respeito a essemundo. Isso traz à tona um outro ponto, ou seja, que a reciprocidade éuma relação entre cidadãos numa sociedade bem-ordenada (§6)

81 Cf. original: “Rawls is quite clear then, that the constitution of the original position has to be justified byarguments that are not themselves deductions from the idea of rationality. Rather, as he puts it, ‘the ideahere is simply to make vivid to ourselves the restrictions that it seems reasonable to impose onarguments for principles of justice, and therefore on these principles themselves’ […] Rawls’sconstruction of the original position is anchored in substantive moral considerations at both ends. I haveshown how the features of the original position are supposed to embody reasonable constraints. [...] Theversion of the original position put forward by Rawls is his contribution to the search for reflectiveequilibrium: ‘it represents the attempt to accommodate within one scheme both reasonable philosophicalconditions on principles as well as our considered judgments of justice’. It would be hard to imagine amore explicit statement of Rawls’s intentions, or one that made it clearer how wide of the mark is thedepiction of him as a pure rationalist.”

54

Page 66: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

expressa por sua concepção política e pública de justiça. Portanto, osdois princípios de justiça, mais o princípio da diferença (§1.1), com suareferência implícita à divisão igual como padrão de comparação,expressam uma idéia de reciprocidade entre os cidadãos. Finalmente,essas observações deixam claro que a idéia de reciprocidade não é aidéia do benefício mútuo (LP, Conferência I, §3º, p. 59).

E, em reforço desta tese, Rawls também acrescentou, às considerações acima,

que: “Barry acha que a justiça como eqüidade oscila de forma indecisa entre a

imparcialidade e o benefício mútuo, enquanto Gibbard acha que ela se encontra entre

essas duas concepções, na idéia de reciprocidade. Acho que Gibbard tem razão” (LP,

p. 5982). Portanto, no que se refere a este questionamento, do ponto de vista de Rawls,

manifestado em O liberalismo político, a justiça como equidade estaria situada a meio

caminho entre as duas posturas de justiça apontadas por Barry.

Prosseguindo na controvérsia, mesmo que o próprio Rawls houvesse concluído,

em 1993, que a justiça como equidade, tal como apresentada na versão de O

liberalismo político, era uma espécie de justiça como reciprocidade – que conjuga

ambos os aspectos ora diferenciados, referentes à racionalidade das vantagens e à

consideração moral de imparcialidade –, para Brian Barry, a justiça como equidade

seria, na verdade, uma teoria da justiça como imparcialidade:

Rawls segue a sugestão de Gibbard no sentido de que sua própriateoria é melhor visualizada como uma postura de justiça comoreciprocidade. Além da terminologia, não há nada de novo aqui, umavez que Uma Teoria da Justiça está repleta de referências a umasociedade como um "esquema de cooperação para benefício mútuo".Justiça é, portanto, de acordo com Rawls, sobre a repartição dosganhos da cooperação. No entanto, a linha de referência a partir da qualos ganhos são calculados deve, ela mesma, ser equitativa, e Rawlstoma uma base justa como sendo uma base igual. Assim, a postura nãopode ser uma teoria de justiça como reciprocidadeautossuficiente/independente, porque requer a importação de uma linhade base eticamente orientada, e as razões para isso não podem ... virda idéia de reciprocidade em si. (BARRY, 1995, p. 59, traduçãominha83).

82 Destaca-se que a informação transcrita está na nota de rodapé n. 18 da página 59 de LP.83 Cf. original: “Rawls follows Gibbard’s suggestion that his own theory is best viewed as one of justice asreciprocity. Apart from the terminology, there is nothing new here, since A Theory of Justice is repletewith references to a society as a ‘cooperative scheme for mutual advantage’. Justice is therefore,according to Rawls, about the sharing out of the gains from cooperation. However, the baseline fromwhich gains are to be calculated must itself be fair, and Rawls takes a fair baseline to be an equal one.Thus, the theory cannot be a self-contained theory of justice as reciprocity, because it requires theimportation of an ethically driven baseline, and the rationale for that cannot … come from the idea ofreciprocity itself”. (BARRY, 1995, p. 59).

55

Page 67: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, nota-se que, para Brian Barry, ou uma teoria de justiça se baseia,

prioritariamente, na questão da racionalidade da vantagem mútua, ou se baseia,

primariamente, em considerações razoáveis de imparcialidade. Um dos dois aspectos

deve ser, para ele, preponderante, e a escolha vai repercutir em toda a condução da

deliberação da teoria de justiça a construir. Além disso, ele enquadrou o projeto

rawlsiano como uma teoria de imparcialidade, mesmo tendo o próprio Rawls opinado

em sentido distinto, tal como expostos acima.

Contudo, ainda sobre essa controvérsia, e apesar de toda a argumentação,

Catherine Audard discordou do posicionamento de Brian Barry, aproximando-se da

postura de Gibbard e do próprio Rawls. A discordância não ocorre no sentido da

suposta “superioridade” que a justiça como imparcialidade apresenta sobre a justiça

como vantagem mútua. A discordância está em que, para ela, as duas perspectivas

são conciliáveis, admitindo-se uma terceira vertente de teorias da justiça, que foi a que

Gibbard e Rawls denominaram “justiça como reciprocidade” (justice as reciprocity),

sendo a proposta rawlsiana um nítido exemplo desta vertente:

Contra essas afirmações, eu gostaria de dizer, primeiramente, que, paraRawls, o aspecto prudencial da justiça não é totalmente coberto pelaidéia de auto-interesse e de interesse mútuo, como Barry, em últimainstância, reconhece. [...]. Em segundo lugar, sua compreensão doaspecto moral da justiça é distintivo, não equiparando simplesmente ajustiça com a imparcialidade, pois Rawls rejeita os pressupostosdensamente altruístas de tal conceito. Em vez disso, o conceito dejustiça de Rawls inclui ambos os aspectos, mas de uma formainovadora, que ele denomina "justiça como reciprocidade", quecombina, de maneira mais satisfatória, o compromisso para consigomesmo e para com os outros, no ideal de justiça [...]. Minhainterpretação sustenta que, para Rawls, assim como para Sidgwick [...],os dois aspectos da razão prática, o prudencial ou racional e o ético ourazoável (PL: 48-54), são inseparáveis, mas não podem ser traduzidosnos dois conceitos simplistas de vantagem mútua e imparcialidade.Justiça como a reciprocidade é a concepção que, para ele, combina ovalor prudencial de cooperação com o valor moral do igual respeito, detratar uns aos outros de maneira imparcial. Rawls é claramenteinspirado em uma longa tradição da filosofia política bastante ciente doentrelaçamento dessas duas dimensões, e não quer sacrificar uma emprol da outra (AUDARD, 2007, pp. 37-38, tradução minha84).

84 Cf. original: “Against these claims, I would like first to say that, for Rawls, the prudential aspect of justiceis not fully covered by the idea of self-interest and of mutual advantage, as Barry ultimately recognizes.[…]. Secondly, his understanding of the moral aspect of justice is distinctive and does not simply equatejustice with impartiality, as Rawls rejects the thick altruistic assumptions of such a concept. Instead,Rawls’ concept of justice includes both aspects but in an innovative way, in what he calls “justice asreciprocity”, which combines more satisfactorily concerns for the self and for others, in the ideal of justice[…]. My interpretation maintains that, for Rawls as for Sidgwick […], the two aspects of practical reason,the Prudential or Rational and the Ethical or Reasonable (PL: 48–54), are inseparable but cannot betranslated into the two simple concepts of mutual advantage and impartiality. Justice as reciprocity is the

56

Page 68: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Avançando na argumentação, ela explicou que o conceito de justiça como

reciprocidade conjuga, de maneira indissociável, três aspectos: 1) um traço de

racionalidade, com a respectiva base motivacional na vantagem mútua, preocupada

com interações individuais; 2) um traço de considerações morais, referente a como

uma sociedade é satisfatoriamente ordenada, com a respectiva consideração à

imparcialidade no tratamento das pessoas; 3) um aspecto social, com uma respectiva

base motivacional em nossos interesses de ordem mais elevada por um esquema de

cooperação justo ou equitativo, com a busca dos bens primários que permitam a

realização das faculdades morais superiores, no caso de Rawls. Uma teoria focada

primariamente em apenas um dos dois primeiros aspectos, enquadra-se,

respectivamente, no primeiro ou segundo grupo teórico acima exposto por Brian Barry.

Por seu turno, uma teoria do terceiro tipo, ao invés de se limitar, de maneira

excludente, às duas perspectivas anteriores, engloba as duas dimensões

simultaneamente, centrando-se nos aspectos sociais da natureza humana e da

razoabilidade como elementos constitutivos85 de um mundo social valorizado enquanto

elo de ligação entre as pessoas.

Rawls parece ter, realmente, englobado, conjuntamente, na justiça como

equidade, os três aspectos acima mencionados por Catherine Aurdad. E a ênfase de

Rawls na reciprocidade como distinta da mera vantagem mútua ou da mera

imparcialidade tornou-se ainda mais relevante em O liberalismo Político, tal como

transcrito anteriormente, mas agora destacando a preocupação de índole política para

com a estabilidade das democracias:

Vários pontos relativos à ideia de reciprocidade introduzida [...] precisamser comentados. Um deles é que a ideia de reciprocidade situa-se entrea ideia de imparcialidade [...] e a ideia de benefício mútuo [...]. Damaneira entendida pela justiça como equidade, a reciprocidade é umarelação entre os cidadãos expressa pelos princípios de justiça queregulam um mundo social onde todos se beneficiam, julgando-se porum padrão apropriado de igualdade definido com respeito a essemundo. Isso traz à tona um outro ponto, ou seja, que a reciprocidade éuma relação entre cidadãos numa sociedade bem-ordenada (§6)expressa por sua concepção política e pública de justiça. (LP,Conferência I, §3°, pp. 58-59).

conception that, for him, combines the prudential value of cooperation with the moral value of equalrespect, of treating each other impartially. Rawls is clearly inspired by a long tradition of politicalphilosophy acutely aware of the entanglement of these two dimensions and does not want to sacrificeone to the other” (AUDARD, 2007, pp. 37-38). 85 Cf. AUDARD, 2007, p. 38.

57

Page 69: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Por isso, Rawls concluiu que o razoável (com sua ideia de reciprocidade) não é

equivalente ao altruísmo (agir exclusivamente em favor dos interesses dos outros) nem

à preocupação consigo mesmo (mover-se somente pelos próprios fins e afetos). Numa

sociedade razoável, todos têm seus próprios fins racionais, que esperam realizar, e

todos estão dispostos a propor termos equitativos, razoavelmente aceitáveis, de modo

que todos possam beneficiar-se e aprimorar o que cada um pode fazer sozinho. Deste

modo, essa sociedade razoável não é uma composição de santos ou egoístas. É parte

de nosso mundo humano comum, dentro do nosso alcance. Há, assim, uma faculdade

moral – encarada como “uma virtude social essencial” (LP, Conferência II, §1º, pp. 97-

98) – que “está por trás da capacidade de propor, de aceitar, e, depois, de motivar-se a

agir em conformidade com os termos equitativos de cooperação por seu próprio valor

intrínseco” (LP, Conferência II, §1º, p. 98).

Expostos os argumentos da controvérsia sobre o enquadramento da justiça

como equidade em diversos grupos de teorias da justiça, nota-se que, para alguns, ela

é uma espécie de justiça como imparcialidade, enquanto que, para outros, é uma

espécie de justiça como reciprocidade.

Assim, diante da discussão, acredito que a justiça como equidade possa ser

encarada como uma teoria de justiça como reciprocidade, que engloba tanto as

considerações da justiça como vantagem mútua, quanto as preocupações morais da

justiça como imparcialidade. Portanto, no que se refere a esta controvérsia, concordo

com a postura de Gibbard, Audard e do próprio Rawls. Por outro lado, do ponto de vista

da tese oposta, a proposta rawlsiana de justiça seria uma espécie de teoria de justiça

como imparcialidade. O que se destaca, contudo, diante dessa controvérsia, é que,

ainda que se posicione tal como na tese divergente, sustentada por Brian Barry, nota-

se que a imparcialidade é uma preocupação levada suficientemente a sério na justiça

como equidade. Isso reforça a preocupação rawlsiana constante com considerações de

imparcialidade, não só em Uma teoria da justiça, como também em O liberalismo

Político.

Ora, se é perceptível que Rawls se preocupou seriamente com considerações

morais de imparcialidade nas duas obras, pode-se buscar uma ligação desta

preocupação com o procedimentalismo declaradamente pretendido por Rawls. Quando

Rawls rejeitou o procedimentalismo perfeito, ele rejeitou a imposição prévia, às partes

hipotéticas da posição original, de uma determinada concepção de bem. Caso ele

impusesse uma determinada concepção de bem às partes, a deliberação na posição

58

Page 70: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

original não seria imparcial, pois haveria um parâmetro prévio substantivo delimitador

do resultado da escolha dos princípios de justiça. Portanto, essa postura implicaria a

imposição de uma determinada concepção, em detrimento de outras, que interferiria

decisivamente no resultado final. Assim, o que se verificaria no procedimentalismo

perfeito, seria a violação da imparcialidade.

Deste modo, ao optar por um procedimentalismo pretensamente puro, Rawls

quis evitar a postura antidemocrática de impor, previamente, às partes hipotéticas que

vão deliberar sobre os princípios de justiça, uma determinada concepção de bem. Ou

seja, ele quis evitar imposições parciais e substantivas que repercutiriam, de maneira

decisiva, no resultado da discussão efetuada na posição original. Afinal, a imposição

prévia de uma concepção de bem implicaria uma reprovável rejeição de outras

concepções razoáveis de bem que não poderiam ser a priori descartadas, pois isto

significaria a adoção de uma postura arbitrária. Assim, a busca de resultados, tais

como preconizados pela justiça procedimental pura, reclama a consideração e a

adoção de preocupações sérias, incorporadas em elementos construtivos e recursos

teóricos aptos a viabilizarem a imparcialidade da deliberação sobre a escolha dos

princípios.

Isto torna patente que outra motivação subjacente à opção pelo

procedimentalismo puro é a preocupação com o respeito à imparcialidade. Além disso,

a discussão exposta sugere que Rawls manteve, mesmo na obra posterior, a

preocupação com uma justiça procedimental pretensamente pura.

Até aqui, portanto, pôde-se compreender que a opção por uma justiça

procedimental pura carrega a preocupação de assegurar tanto a autonomia individual,

quanto a imparcialidade de consideração das diversas demandas individuais. Assim,

um ponto correlato à opção por um procedimentalismo puro é a questão de a teoria

rawlsiana poder ser traduzida e encarada como uma proposta de liberalismo

deontológico. Este é o próximo tópico a ser analisado.

2.4 Um projeto deontológico de justiça e a defesa indireta da autonomia

O liberalismo deontológico é a concepção de liberalismo que defende a primazia

da justiça sobre outros ideais morais e políticos tomados como prioritários em outras

tradições liberais. Rawls se identificou com o liberalismo deontológico ao defender que

o justo é anterior/prioritário em relação ao bem. Deste ponto de vista, a sociedade –

59

Page 71: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

sendo composta de uma pluralidade de pessoas em que cada uma sustenta sua

própria concepção de bem, seus objetivos e seus interesses particulares – “é melhor

organizada quando regida por princípios que não pressupõem, em si, qualquer

concepção particular de bem” (SANDEL, 2000, p. 13). Deste modo, o que justifica tais

princípios não é a promoção ou maximização do bem, mas a noção de justo como uma

categoria moral que é dada anteriormente 86 ao bem, e que dele é independente.

Assim formulado, o liberalismo deontológico imprime a primazia à justiça de

duas maneiras. Pela primeira, fica consignada a primazia moral da justiça, de maneira

que nenhum outro valor político ou social possa triunfar sobre ela, de modo que os

direitos individuais dos cidadãos não podem ser sacrificados em busca de quaisquer

outros bens ou objetivos. Além deste sentido de primazia, surge uma segunda

implicação, mais profunda e distintiva, de que, abordando a justiça como um valor de

justificação privilegiada, o justo é anterior ao bem não só no sentido de reclamar

precedência, mas também no sentido de que os princípios de justiça sejam construídos

independentemente do bem. Essa postura traz duas vantagens: a) a primazia

fundacional da justiça torna a sua justificação independente dos valores particulares

(concepções de bem, interesses ou objetivos particulares); b) a derivação dos

princípios não decorre de uma referência particular ao bem, pois uma perspectiva

assim limitada conduziria a uma imposição coercitiva de concepção de bem a alguém

que sustentasse outra concepção distinta87. Assim, para estabelecer uma primazia

moral segura e não-coercitiva à justiça, a derivação dos princípios deve ser

fundamentada em algo distinto da multiplicidade de circunstâncias particulares e

competitivas adotadas pelos seres humanos.

Foi a teoria do sujeito/pessoa/agente/“self” de Kant, o liberal deontológico

clássico, que explicou essa prioridade do justo sobre o bem. Para ele, o que é mais

fundamental e valoroso no ser humano não são os interesses particulares e

concepções do bem que os homens formulam, mas a capacidade de pensar e agir de

maneira autônoma, escapando da heteronomia presente no reino da natureza

causalmente determinada. Assim, na proposta de liberalismo com feição kantiana, o

que importa não são os fins que os humanos elegem, mas a capacidade de escolher, e

se essa capacidade é anterior a qualquer bem ou concepção particular, então o sujeito

é anterior/prioritário em relação aos seus fins88. Logo, conforme as observações de

86 Cf. SANDEL, 2000, p. 13; MULHALL & SWIFT, 1996, p. 42.87 Cf. SANDEL, 2000, pp. 14-19; MULHALL & SWIFT, 1996, pp. 42-43.88 Cf. SANDEL, 2000, pp. 20-21; MULHALL & SWIFT, 1996, pp. 43-44.

60

Page 72: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Sandel, a tese da prioridade absoluta da justiça é paralela à tese da prioridade absoluta

do sujeito (como fim supremo ou incondicional) sobre os fins (condicionais).

Sandel destacou três pontos89, considerados fundamentais em Uma teoria da

justiça, que permeiam toda a obra de Rawls, e que permitem enquadrá-la “como uma

proposta de liberalismo deontológico” (SANDEL, 2000, p. 31). O primeiro ponto é a

absoluta primazia moral conferida à justiça, que é expressamente declarada, por

Rawls, em Uma teoria da justiça, logo no início do §1º, como a primeira virtude das

atividades humanas. O segundo ponto é a primazia fundacional da justiça, vista como

antecedente e prioritária em relação ao bem, afastando-se das doutrinas teleológicas,

que definem a prioridade do bem sobre o justo. O terceiro ponto é a regulação da

sociedade com amparo no que é fundamental na personalidade humana: os seres

humanos entendidos como pessoas morais são, fundamentalmente, eleitores

autônomos de seus fins, de maneira que a sociedade deve ser organizada por um

caminho que respeite essa característica da personalidade sobre qualquer outra.

Compreendido o enquadramento da teoria de justiça rawlsiana como um projeto

de liberalismo deontológico, convém avançar para outros pontos. Um deles é a questão

da defesa indireta da autonomia.

Tendo em vista que, em Uma teoria da justiça, há a prioridade do justo sobre o

bem, há também uma concepção de autonomia que serve de suporte ao projeto de

índole deontológica. Contudo, deve-se atentar para a observação de Catherine Audard

no sentido de ser equivocado90 interpretar essa doutrina mais profunda da autonomia

como o ponto inicial de Uma teoria da justiça. Ela ressaltou que “o objetivo de Uma

teoria da justiça é providenciar uma justificação satisfatória para os princípios que

fornece, de maneira que a defesa da autonomia é indireta” (AUDARD, 2007, p. 40).

Veja-se como ela justificou essa afirmação.

Partindo da distinção feita por G. E. Moore entre duas dimensões que não

podem ser confundidas – a dimensão das coisas que devem existir por seu próprio

valor (o bem) e a dimensão das ações que deveríamos realizar (o justo) –, surge a

principal distinção entre várias doutrinas filosóficas, referente a como se dá o manejo 91

destas duas ordens distintas. As doutrinas éticas deontológicas sustentam a prioridade

do justo sobre o bem, ao passo que as doutrinas éticas teleológicas derivam o justo do

bem.

89 Cf. SANDEL, 2000, pp. 31-41; MULHALL & SWIFT, 1996, pp. 44-4590 Cf. AUDARD, 2007, p. 40.91 Cf. AUDARD, 2007, p. 40.

61

Page 73: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Além dessa distinção principal, há mais diferenças entre as duas doutrinas éticas

que merecem ser expostas. As doutrinas teleológicas sustentam a existência de um

bem supremo (ou, simplesmente, “primário”, no sentido de ser o bem “mais importante

e não dispensável”), de um fim último ou de um télos, sendo o justo definido como

aquilo que maximiza aquele fim fundamental. Como exemplo destas posturas, elege-se

um bem como a felicidade, ou como o prazer, e, uma vez eleito esse bem primário, a

noção de justiça se limita ao que meramente viabilize a concretização daquele bem

dominante. Assim, nesta postura, há uma nítida rejeição da prioridade do justo sobre o

bem.

Deste modo, as questões de justiça, na maneira como encaradas por essas

doutrinas teleológicas, limitam-se a discussões que Rawls considerou mais simplistas92,

porque a noção de justo não passa de uma derivação da noção de bem. Contudo,

apesar da alegada maior simplicidade à noção do justo, por parte destas posturas, há

um inconveniente quanto à questão da autonomia, pois:

Para Rawls, as doutrinas teleológicas relacionam o direito/justo e o bomem um caminho equivocado, pois elas podem deixar sem nenhumespaço a autonomia como a capacidade de alguém escolher os própriosfins e o próprio bem (AUDARD, 2007, p. 41, tradução minha93).

Em contraste, as doutrinas deontológicas, como a de Kant, sustentam a

prioridade do justo sobre o bem como a prioridade da liberdade individual sobre fins

empíricos e heterônomos, a exemplo da felicidade. Veja-se, a título de ilustração do

pensamento kantiano, o seguinte excerto do escrito de 1792 intitulado “Theory and

Practice”:

Ninguém pode me obrigar a ser feliz de acordo com a sua concepçãodo bem-estar dos outros, pois cada um pode buscar a sua felicidade nocaminho que lhe aprouver, desde que ele não infrinja a liberdade dosoutros de perseguir os seus respectivos propósitos [...] ele deve estar deacordo com os outros terem o mesmo direito que ele busca para simesmo (KANT, 1991, p. 74, tradução minha94).

Além disso, as doutrinas deontológicas não especificam o bem

independentemente do justo, e não interpretam o justo como aquilo que meramente

92 Cf. AUDARD, 2007, p. 41.93 Cf. original: “For Rawls, teleological doctrines relate the right and the good in the wrong way, as theycan make no room for autonomy as the capacity to choose one’s own ends and good”.94 Cf. original: “No-one can compel me to be happy in accordance with his conception of the welfare ofothers, for each may seek his happiness in whatever way he sees fit, so long as he does not infringeupon the freedom of others to purse a similar end […] he must accord to others the same right as heenjoys himself” (KANT, 1991, p. 74).

62

Page 74: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

maximiza o bem, distanciando-se95, por exemplo, do consequencialismo visível no

utilitarismo. O foco está no dever e no valor moral da obrigação em si. Contudo,

ressalte-se que “isso não implica um afastamento total do consequencialismo”

(AUDARD, 2007, p. 42), pois, para Rawls, toda doutrina ética, ao avaliar a justiça de

uma instituição ou ação, leva em consideração, de alguma forma, as consequências do

ato. A prioridade do justo sobre o bem significa, no fim, “a aceitação da ideia de que os

interesses que exigem a violação da justiça não tem nenhum valor. Não tendo

absolutamente nenhum mérito, eles não podem anular as reivindicações de justiça”

(TJ, §6º, p. 34).

Portanto, partindo-se da perspectiva do liberalismo deontológico, a justiça não

pode ser simplesmente instrumental para uma ordem social ou para ganhos pessoais

na implementação de uma concepção particular de bem, pois a justiça possui um valor

em si mesma, como um imperativo independente que pode nos motivar a agir de modo

justo. Deste modo, a capacidade de agir de acordo com a justiça expressa a

concepção de pessoas como autônomas e como merecedoras de um igual respeito.

Para Catherine Audard, pode-se notar a influência dessa postura nas atuais

democracias nos seguintes termos, ao não comprometer os cidadãos com a imposição

de alguma concepção particular de bem ou felicidade:

Tal concepção de autonomia é o ideal moral regulador das democraciascontemporâneas e da proteção das liberdades básicas iguais e dosdireitos iguais, em contraste com as sociedades hierárquicas outradicionais. Ela expressa um reconhecimento moral da dignidadehumana e da personalidade baseada em sua natureza como livre eautônoma que substitui quaisquer outras preocupações, tais como bem-estar ou a felicidade na qualificação de uma boa sociedade (AUDARD,2007, pp. 42-43, tradução minha96).

A inspiração de Uma teoria da justiça na doutrina de Kant, quanto a este ponto,

é tão visível que vale mencionar como Kant formulou, em 1795, no escrito “Perpetual

Peace”, a prioridade do justo sobre o bem:

as máximas políticas adotadas não devem ser influenciadas pelaperspectiva de quaisquer benefícios ou felicidade que poderiam advir aoEstado que se propusesse a segui-los [...] elas devem ser influenciadas

95 Cf. AUDARD, 2007, p. 42.96 Cf. original: “Such a conception of autonomy is the regulative moral ideal of contemporary democraciesand of the protection of equal basic liberties and rights, in contrast with hierarchical or traditionalsocieties. It expresses a moral recognition of human dignity and personality grounded in its nature as freeand autonomous that overrides any other concerns such as welfare or happiness in qualifying the goodsociety”.

63

Page 75: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

apenas pelo puro conceito de dever legítimo, ou seja, por umaobrigação cujos princípios são dados a priori pela razão pura. (Kant,1991, pp. 123–124, tradução minha97).

Ocorre que a prioridade da justiça, tal como formulada por Kant, é baseada em

“um argumento transcendental obscuro que opõe o mundo empírico dos phenomena,

referente às coisas como elas nos aparecem no tempo e no espaço, com o mundo

inteligível dos noumena, referentes às coisas como elas são em si mesmas” (AUDARD,

2007, p. 43). Paralelamente98 a isso, “a prioridade da justiça expressa a prioridade do

sujeito noumênico sobre o mundo causal e empírico” (AUDARD, 2007, p. 44).

Para Catherine Audard, embora consciente99 da dificuldade de sustentar essa

dicotomia metafísica de mundo sensível e mundo inteligível para tratar da moral – que

obriga a apelar à ideia de “fato da razão” –, Kant sustentou que o ditado fiat justicia,

pereat mundus – que implicaria deixar a justiça reinar, ainda que com o perecimento

dos clamores do mundo – seria verdadeiro, a despeito de parecer exagerado, pois é

“um princípio de justiça que deveria ser encarado como uma obrigação de todos,

justamente para não negar ou diminuir os direitos invioláveis de qualquer sujeito”

(KANT, 1991, p. 123).

Também ciente dessas dificuldades, mas posicionando-se diferentemente de

Kant, Rawls buscou superá-las, tentando desconectar o aspecto de primazia da justiça

da necessidade de uma defesa direta da autonomia individual, criando uma doutrina

diferenciada em prol de uma defesa indireta da autonomia. Veja-se como Catherine

Audard abordou esse distanciamento de Rawls a Kant:

No entanto, Rawls desprende-se de Kant assim que rejeitaconsistentemente qualquer apelo ao argumento transcendental com ointuito de resolver as antinomias de liberdade - LHMP: 86-8 - . Ele, emvez disso, construiu um argumento muito sofisticado para superar asdificuldades de Kant e para desconectar a primazia da justiça da defesaliberal de autonomia individual. A defesa da autonomia é indireta. É oresultado de um processo de justificação que se dirige aos própriospoderes de julgamento das pessoas e suas capacidades para aescolha, que é "doutrinariamente autônoma" nesse sentido. A doutrinainovadora de Rawls é tanto teórica quanto praticamente uma defesa daautonomia que não pode ser vista como a imposição de um bem ouvalor dominante (AUDARD, 2007, p. 44, tradução minha100).

97 Cf. original: “the political maxims adopted must not be influenced by the prospect of any benefit orhappiness which might accrue to the state if it followed them […] they should be influenced only by thepure concept of rightful duty, i.e. by an obligation whose principles are given a priori by pure reason”.98 Cf. AUDARD, 2007, pp. 43-44.99 Cf. AUDARD, 2007, pp. 43-44. 100Cf. original: “However, Rawls detaches himself from Kant as he consistently rejects any appeal to thetranscendental argument in order to solve the antinomies of freedom (LHMP: 86–8). He has instead built

64

Page 76: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Essa defesa indireta da autonomia pode levantar um questionamento: quando

Rawls defendeu, em Uma teoria da justiça, o respeito à autonomia individual, ele não

estaria elegendo a própria autonomia como um bem que prevaleceria sobre o justo?

Conforme exposto, Catherine Audard compreendeu que a resposta seria negativa,

pois, para ela, a defesa dessa autonomia não significa a imposição de um bem ou valor

dominante. Mas Samuel Freeman, ao fornecer também uma resposta negativa, trouxe

uma argumentação que enfrentou essa questão mais detalhadamente. Essa

argumentação mais detalhada de Freeman – que repercute no mérito do

procedimentalismo puro – constitui o objeto do próximo tópico.

2.5 Duas objeções à prioridade da justiça: a conjectura de Samuel Freeman

A prioridade da justiça defendida por Rawls em Uma teoria da justiça apresenta

algumas ideias correlatas101 com O liberalismo político. Numa dessas correlações, há a

defesa rawlsiana, na última obra, no sentido de que, em uma sociedade bem ordenada,

a justiça como equidade é boa para as pessoas individualmente, porque o exercício

das duas faculdades morais implica a sua prática como um bem. Em Uma teoria da

justiça, isso se manifesta como o uso de uma psicologia moral que usa um princípio

aristotélico.

Antes de prosseguir, convém destacar, sinteticamente, como Rawls fez uso do

princípio aristotélico, no §65 de Uma teoria da justiça. No §64 de Uma teoria da justiça,

Rawls usou uma concepção de bem como racionalidade que era, segundo ele, “apenas

formal” ou “fraca” (TJ, p. 469). A concepção de bem utilizada seria fraca o suficiente

para não caracterizar a escolha de um bem específico propriamente dito – ou uma

opção específica de uma concepção de vida –, de maneira que não se descaracterize o

caráter deontológico do liberalismo rawlsiano. Nesse sentido:

A definição do bem é puramente formal. Simplesmente afirma que obem de uma pessoa é determinado por um plano racional de vida queela escolheria com racionalidade deliberativa a partir de um gruposuperior de planos […] Ainda não podemos deduzir, da simples

up a very sophisticated argument to overcome Kant’s difficulties and to disconnect the primacy of justicefrom the liberal defence of individual autonomy. The defence of autonomy is indirect. It is the outcome ofa justificatory process that addresses people’s own powers of judgement and capacities for choice, that is“doctrinally autonomous” in that sense. Rawls’ innovative doctrine is both theoretically and practically adefence of autonomy that cannot be seen as the imposition of a dominant good or value”.101Cf. FREEMAN, 2007, pp. 272-273.

65

Page 77: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

definição de planos racionais, que tipos de objetivos esses planostendem a encorajar (TJ, §65, pp. 469-470).

Então, com essas ressalvas prévias, considerando a teoria “fraca” do bem,

Rawls pôde fazer uso do princípio aristotélico. Veja-se como esses pontos se

correlacionam:

O princípio aristotélico afirma o seguinte: em circunstâncias iguais, osseres humanos sentem prazer ao pôr em prática as suas capacidades(sejam elas habilidades inatas ou treinadas), e esse prazer cresce namedida em que cresce a capacidade posta em prática, ou a suacomplexidade. A ideia intuitiva aqui é a de que os seres humanos têmmais prazer em alguma atividade na medida em que se tornam maiscompetentes em sua execução, e, de duas atividades quedesempenham igualmente bem, preferem aquela que exige uma maiorcapacidade para discriminações intricadas e sutis […] Parece inevitávelque, se quisermos encontrar nosso caminho, devemos seguir nossainclinação natural e os ensinamentos legados por nossa experiênciaanterior. […] O princípio aristotélico é um princípio motivacional. Explicamuito dos nossos maiores desejos, e também por que preferimos fazercertas coisas e não outras, exercendo constantemente uma influênciasobre o fluxo de nossas atividades. Além disso, expressa uma leipsicológica que governa mudanças no padrão de nossos desejos (TJ,§65, pp. 471-473).

Prosseguindo a argumentação, Rawls afirmou que, “aceitando-se o princípio

aristotélico como um fato natural, será geralmente racional, em vista de outras

suposições, desempenhar e treinar capacidades plenamente desenvolvidas” (TJ, p.

474). Contudo, Rawls destacou algumas ressalvas102, evitando a interpretação errônea

do princípio: I) ele expressa apenas uma tendência, e não um padrão invariável de

escolha; II) ele não afirma a preferência por algum tipo particular de atividade: define,

apenas, que, em circunstâncias iguais, certas atividades serão preferidas em razão do

maior repertório de capacidades pressupostas.

Assim, “como o princípio aristotélico é uma característica dos desejos humanos

como agora se configuram, os planos racionais devem levá-lo em consideração” (TJ, p.

478). Deste modo, referindo-se à teoria fraca do bem, o papel do princípio aristotélico

é “afirmar um fato psicológico profundo que, juntamente com outros fatos genéricos e

com a concepção de um plano racional, explica nossos juízos ponderados de valor”

(TJ, p. 478). Rawls, assim, demonstrou acreditar que, ao pressupor o princípio

aristotélico, tornamo-nos mais capazes de explicar quais coisas são boas para os seres

102 Cf. TJ, § 65, pp. 474-476.

66

Page 78: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

humanos, além de o princípio ocupar uma posição central na psicologia moral103 que

está implícita na justiça como equidade.

Compreendido o uso do princípio aristotélico, a ideia, aqui, agora, é que a

capacidade de um senso de justiça está entre nossas capacidades mais elevadas: ela

envolve a habilidade de entender, aplicar e agir a partir dos princípios de justiça e em

conformidade com eles. Assim, uma vez que todos possuem essa capacidade de um

senso de justiça em uma sociedade bem ordenada, torna-se racional, para cada um,

desenvolver essa capacidade como parte de seu próprio plano de vida. Essa prioridade

da justiça sobre o bem, presente em Rawls, portanto, pode ser compreendida, da

perspectiva de uma pessoa racional e moral, como a capacidade de um senso de

justiça prevalecendo104, como interesse primário ou regulador, sobre todos os demais

fins ou propósitos. Essa prioridade, contudo, “pode, suscitar duas objeções”

(FREEMAN, 2007, p. 273).

A primeira objeção pode ser assim compreendida: embora todas as pessoas

possam possuir as mesmas capacidades naturais, elas podem ser existentes em graus

variáveis em cada indivíduo. As capacidades cujo desenvolvimento seriam

racionalmente defendidas pelas pessoas variariam de uma para outra de acordo com

suas contingências. Assim, baseando-se no princípio aristotélico, o que se concluiria é

que seria racional para cada indivíduo desenvolver algumas capacidades mais

elevadas. Todavia, o elenco de habilidades individuais que deveriam ser mais

desenvolvidas iria se diferenciar entre os indivíduos. Como, então, poder-se-ia concluir

que a capacidade para a justiça deveria ocupar um lugar nos planos racionais de todos

os indivíduos? Como defender isso considerando a possibilidade de que, embora

alguns indivíduos pretendam desenvolver essa capacidade, outros podem

simplesmente não ter essa mesma pretensão?

A segunda objeção aprofunda a primeira: o que garantiria que a capacidade de

justiça fosse a suprema reguladora de todos os demais fins? Por que não poderia um

indivíduo, de maneira também consistente com o princípio aristotélico, fazer um outro

valor ou virtude ser o supremo regulador de seus outros fins, sacrificando inclusive a

justiça quando ela conflitasse com seu fim maior?

Samuel Freeman, então, visando colher os possíveis elementos rawlsianos

aptos a responderem a estas objeções, sustentou que, de acordo com a interpretação

103 Cf. TJ, § 65, pp. 478-479.104 Cf. FREEMAN, 2007, p. 273.

67

Page 79: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

construtivista da justiça como equidade, a justiça é “construída como aqueles princípios

que seriam justificados e aceitos por todas as partes sob condições que as

caracterizassem como pessoas morais iguais, racionais e livres” (FREEMAN, 2007, p.

274). A posição original, assim, é um artifício hipotético que especifica105 essas

condições para a deliberação sobre os princípios de justiça: “ela é uma interpretação

procedimental da nossa natureza como seres racionais iguais e livres (FREEMAN,

2007, p. 274).

Então, considerando a concepção rawlsiana de pessoa, a interpretação

construtivista da justiça como equidade, e utilizando o princípio aristotélico já

mencionado, a argumentação que, segundo Freeman106, Rawls faria para responder à

primeira objeção seria a seguinte sequência, abaixo resumida:

(1) As pessoas, vistas como agentes morais, são, por sua natureza, seres

racionais morais, iguais e livres. Agentes racionais numa sociedade bem ordenada

(aqui referenciada como “SBO”) concebem a si mesmos nesta postura como pessoas

primariamente morais.

(2) Membros racionais de uma SBO possuem o desejo não arbitrário de

expressar sua natureza como pessoas morais livres e iguais. Isso implica que:

(3) Membros de uma SBO desejam ter um plano racional de vida consistente

com a sua natureza, o que implica uma preferência fundamental por condições que os

capacitem a um modo de vida que expresse sua natureza de seres racionais iguais e

livres.

(4) Ter um plano racional de vida compatível com esse desejo de expressar sua

natureza – de seres racionais iguais e livres – requer que as pessoas ajam a partir de

princípios que seriam escolhidos caso essa natureza fosse um elemento decisivo. Essa

é a função da posição original: ela especifica condições que caracterizam ou

representam os indivíduos como pessoas morais livres e iguais na interpretação

construtivista.

(5) Nessa interpretação construtivista, a posição original desempenha o papel de

tornar vívidas para nós as restrições que parece razoável considerar na deliberação

das partes pela escolha dos princípios de justiça. Como uma tentativa de redesenhar,

por meio de um contexto, o conceito de imparcialidade e de simetria das partes, ela

105 Cf. TJ, §4°.106 Cf. FREEMAN, 2007, pp. 274-276. Nesse ponto da exposição, Freeman esclareceu que utilizou os §§40, 85 e 86 de TJ, além de outros argumentos pontuais verificados em diversos outros parágrafos daobra. Tudo isto está assim fragmentado porque, segundo Freeman (ver nota de rodapé 36 da p. 504),não houve uma sistematização desse argumento por parte do próprio Rawls.

68

Page 80: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

incorpora condições de equidade que você e eu presumivelmente achamos

apropriados para um acordo sobre princípios que regularão a estrutura básica da

sociedade.

(6) O desejo normalmente efetivo de aplicar os princípios que seriam aceitos

numa posição original de igualdade e de agir conforme esses princípios constitui o

senso de justiça.

(7) Tomados em conjunto, os argumentos (4), (5) e (6), sugerem que o desejo de

agir de maneira a expressar a natureza dos sujeitos como seres racionais, livres e

iguais é, na prática, afirmar o mesmo desejo como a vontade de agir de acordo com

princípios de justiça aceitáveis a partir de uma posição inicial de igualdade.

(8) Assim, para que indivíduos em uma SBO possam cumprir seus desejos

racionais de realizar sua natureza como seres racionais, livres e iguais, requer-se que

eles ajam sobre e a partir de seu senso de justiça.

(9) Pelo princípio aristotélico mencionado, é racional realizar a natureza dos

sujeitos afirmando o seu senso de justiça. Da aplicação do princípio aristotélico segue-

se que esta expressão da natureza dos sujeitos é um elemento fundamental do bem

dos indivíduos de uma SBO.

(10) O senso de justiça é, em virtude do seu conteúdo, (um desejo por) uma

disposição reguladora suprema: ele requer que se dê prioridade estrita aos princípios

do direito e da justiça no raciocínio e na ação.

(11) Afirmar o senso de justiça implica reconhecê-lo e aceitá-lo como supremo,

adotando-o como um desejo regulador de ordem mais elevada no plano racional de

alguém.

(12) Ter a justiça como um fim de ordem mais elevada é a expressão mais

adequada de nossa natureza como seres racionais iguais e livres, bem como

moralmente autônoma. A autonomia é, assim, um bem intrínseco para as pessoas

morais, livres e iguais.

Então, como explicou Freeman ao se referir à postura de Rawls, o senso de

justiça pertence à nossa natureza no seguinte sentido107: em Uma teoria da justiça,

Rawls apoiou a posição kantiana de que as pessoas são livres, iguais e racionais, e

que, em uma sociedade bem-ordenada, elas consideram-se publicamente como tal.

Contudo, para Rawls, diferentemente de Kant, a natureza de ser racional, livre e igual é

107 Cf. FREEMAN, 2007, p. 276.

69

Page 81: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

a sua personalidade moral108. A personalidade moral é definida, em Rawls, pelas

faculdades morais, que são as capacidades de raciocínio prático aplicado às questões

de justiça. Elas incluem: a) a capacidade para um senso de justiça: compreender,

aplicar e agir a partir das exigências e dos princípios de justiça; b) a capacidade para

uma concepção do bem: poder formular, rever e buscar um plano racional de vida.

Essas capacidades são centrais para a razão humana. Assim é que:

A ideia de Rawls é que, do ponto de vista prático, ao agirmos comoagentes racionais e morais, nós consideramos a nós mesmos e aosoutros como agentes livres, capazes de determinar nossas ações,ajustando os nossos desejos, e moldando os nossos fins, tudo deacordo com as exigências dos princípios morais e racionais: "uma vezque vemos as pessoas como capazes de dominar e ajustar as suasnecessidades e desejos, elas são consideradas responsáveis por fazê-lo" [...] Além disso, não vemos nossas vidas como uma questão deacaso, simplesmente imposta a nós por nossas situações. Em vezdisso, dentro dos limites das circunstâncias que enfrentamos,normalmente vemos nossas ações e vidas como sob nosso controle. Éem virtude das capacidades para a personalidade moral que somoscapazes de decidir quais fins e atividades devemos perseguir, epodemos tornar esses fins em um plano de vida coerente e cooperativoque está de acordo com os princípios da escolha racional e com osprincípios de justiça (FREEMAN, 2007, pp. 276-277, tradução minha109).

108 Cf. TJ, §§ 77 e 85. Neste ponto há uma grande diferença entre Kant e Rawls. Kant distinguiu entre“natureza do ser moral” que é comum a todos, transcendental, e “personalidade moral”, ou seja, o modocomo aquele indivíduo realiza a natureza moral. A “personalidade moral” é algo que caracteriza umsujeito, e que decorre de possuir uma natureza moral (“transcendental”) e de exercê-la. O próprio Rawlsexplicou, em História da Filosofia Moral, que, para Kant, ao lado de nossa livre faculdade de escolha, hátrês predisposições originais ao bem, que constituem a natureza humana: a) a predisposição àanimalidade, quando somos vistos como seres vivos, e caracterizada como um amor-próprio físico epuramente mecânico; b) a predisposição à humanidade, quando somos vistos não só como seres vivos,mas também como seres racionais, e caracterizada como um amor-próprio que, embora físico, aomesmo tempo compara e julga nossa própria felicidade em relação à felicidade alheia; c) a predisposiçãoà personalidade, quando somos vistos não apenas como seres racionais,mas também como serescomprometidos ou responsáveis. Essa predisposição à personalidade contém dois aspectos: I) acapacidade de entender e aplicar de maneira inteligente a lei moral; II) a capacidade de respeitar essa leicomo um motivo suficiente, em si mesma, para nossa livre faculdade de escolha. Cf. RAWLS, História daFilosofia Moral, 2005, pp. 333-335. Diferentemente de Kant, Rawls ressaltou, na justiça como equidade,“a observação de que as exigências mínimas que definem a personalidade ética referem-se a umacapacidade e não à realização dela” (RAWLS, TJ, §77, p. 565). Ou seja, para Rawls basta que o sujeitotenha esta capacidade, ainda que não a desenvolva. Acrescente-se a seguinte observação: “Como eu jádisse, a personalidade moral se caracteriza por duas aptidões: uma para a concepção de bem, e a outrapara um senso de justiça. Quando realizadas, a primeira se expressa por meio de um plano racional devida, e a segunda por um desejo determinante de agir conforme certos princípios do justo” (RAWLS, TJ,§85, p. 623). 109 Cf. original: “Rawls’s idea is that from a practical point of view, when acting as rational and moralagents, we regard ourselves and others as free agents, capable of determining our actions, adjusting ourwants, and shaping our ends, all according to the demands of rational and moral principles: “Since weview persons as capable of mastering and adjusting their wants and desires, they are held responsible fordoing so.” […] Moreover, we do not see our lives as a matter of happenstance, simply imposed on us byour situations. Instead, within the limits of the circumstances we confront, we normally see our actionsand lives as under our control. It is by virtue of the capacities for moral personality that we are able todecide what ends and activities we should pursue, and can fashion these ends into a coherent and

70

Page 82: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Então, prosseguindo na argumentação de Freeman, por causa desse papel

central, as faculdades morais constituem nossa natureza como pessoas morais.

Afirmar isso não traz uma carga metafísica a Rawls, pois significa simplesmente que110,

quando somos encarados em nossa capacidade de agentes engajados em planejar

nossos propósitos em contextos sociais, o mais importante em nosso ser um agente

sobre esses fins são as faculdades morais. Trata-se do oposto de uma visão de um

sujeito puramente naturalístico, como um organismo físico ou objeto cujo

comportamento é determinado por uma combinação de forças.

Afinal, prossegue Freeman, e se referindo sobre as discussões quanto aos

princípios de justiça, não é sob esta última perspectiva (puramente naturalística ou

mecanicista) “que encaramos a nós mesmos nos contextos práticos que envolvem

deliberação e ação, mesmo que alguns de nós pudéssemos, em outros contextos,

imaginarmo-nos como puramente naturalísticos” (FREEMAN, 2007, p. 277). Caso

assim enxergássemos uns aos outros, estaríamos a nos ver e tratar mais como objetos

naturais, situados fora do reino da responsabilidade pelos desejos, escolhas e atitudes

tomadas. Uma tal postura seria indesejada num contexto específico de uma

deliberação equitativa que visa eleger princípios de justiça que sejam aptos a reger,

com razoabilidade, a estrutura básica de uma sociedade pretensamente bem

ordenada.

Portanto, ao defender que o senso de justiça pertence à nossa natureza, “Rawls

pode sustentar que afirmá-lo implica exercer uma capacidade que é fundamental para

o nosso ser” (FREEMAN, 2007, p. 276). Deste modo, com a aplicação do princípio

aristotélico nos termos expostos, a expressão que as pessoas imprimem à sua

natureza de seres racionais, livres e iguais integra o seu próprio bem, de maneira tal

que a concretização do senso de justiça vai propiciar o seu próprio bem-estar.

Desta forma, pode-se responder à primeira objeção apontada com a conclusão

de que realizar a natureza de alguém implica agir em conformidade com o senso de

justiça e a partir dele. O desenvolvimento do senso de justiça (bem como a capacidade

de uma concepção de bem) é uma condição para que as pessoas sejam seres morais

racionais que são capazes de assumir responsabilidades por suas ações e tomar parte

nos benefícios111 da vida social. Para exemplificar, pense-se em pessoas que

cooperative life-plan that accords with principles of rational choice and principles of justice”.110 Cf. FREEMAN, 2007, p. 277.111 Cf. FREEMAN, 2007, p. 278.

71

Page 83: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

desenvolveram seu senso de justiça, mas não desenvolveram suas capacidades para

fins outros como dança, poesia, matemática: elas podem falhar nas atividades que

exigem essas capacidades, mas, como detentoras de responsabilidade e beneficiárias

da participação social, podem, ainda, viver igualmente bem em uma sociedade bem

ordenada e engajadas em outros propósitos diferentes dos apontados. Pense-se,

agora, em outra hipótese distinta: as pessoas que desenvolveram essas capacidades

“secundárias”, mas não desenvolveram as capacidades morais para a justiça e as

capacidades para serem racionais, são, simplesmente, inaptas a uma vida social plena,

estando elas mesmas se excluindo dos benefícios da sociedade cooperativa e regida

por princípios razoáveis de justiça, ao mesmo tempo em que são pressionadas a

aprender e perseguir um modo de vida mais condizente com as exigências de

razoabilidade de uma sociedade bem ordenada sobre seus cidadãos.

Avance-se, agora, para a segunda objeção. Esta segunda pergunta pode ser

compreendida e retomada também nos seguintes termos: mesmo se fosse pressuposto

que a justiça é um bem, por que ela deveria ser a reguladora de todos os outros

valores e propósitos? Ora, já se ressaltou que agir em concordância com as demandas

de justiça é uma maneira de expressar nossa natureza prática de seres racionais livres

e iguais na interpretação construtivista de Uma teoria da justiça. Isto servirá de guia na

argumentação quanto a este ponto.

Supõe-se, como exemplo, que uma pessoa é moralmente motivada por um

senso de justiça e está deliberando sobre o peso que dará à justiça no seu plano de

vida. Ela pretende ser uma pessoa justa, mas também pretende ser leal à sua família e

às suas amizades, ser bem-sucedida em sua carreira profissional, ser devota à sua

religião, e desenvolver certo talento como música amadora. Estes são os fins primários

que marcam a estrutura de sua vida. Então, o que ocorre se, após uma deliberação

completa, ela imprime ao senso de justiça uma posição de importância igual àquela por

ela conferida aos demais fins?

Se as pessoas em geral agissem e raciocinassem deste modo, e esta postura

fosse publicamente112 conhecida, então “as pessoas não veriam as ações dos outros

conforme os parâmetros de uma sociedade bem ordenada” (FREEMAN, 2007, p. 280),

ocasionando, nas pessoas, a insuficiência da motivação de agir de maneira razoável, o

que prejudicaria a estabilidade da sociedade. Em última instância, isso equivale a

sustentar que é contrário à razão valorizar o senso de justiça em face de outros fins em

112 Cf. FREEMAN, 2007, pp. 279-280.

72

Page 84: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

perspectivas similares e meramente ordinárias. Assim, necessita-se mostrar que é

racional dar ao senso de justiça uma estatura de ordem mais elevada nos planos

racionais. E, partilhando desse entendimento que vela pela prioridade da justiça, veja-

se que, no projeto rawlsiano, defende-se que, “diferentemente dos outros desejos, há

algo especial sobre o desejo de ser uma pessoa justa, que o torna supremo regulador

de todos os demais desejos, independente dos desejos ou escolhas de uma pessoa”

(FREEMAN, 2007, p. 280).

Um caminho para assinalar essa prioridade é estabelecer que há o desejo de

ser um certo tipo de pessoa. Parte do conteúdo desse desejo é que os desejos de

primeira ordem de uma pessoa (desejos por objetos particulares) conformem-se a um

ideal a que ela aspira ser/corresponder. Dado o conteúdo do desejo de viver por um

ideal, alguém não pode alcançá-lo caso esse ideal seja colocado no mesmo plano dos

outros ideais de relevância apenas secundária. Foi nesse sentido que Rawls sustentou,

em O construtivismo kantiano na teoria moral, uma maior intensidade do desejo de agir

conforme o ideal de justiça:

Dada essa relação, o senso efetivo da justiça, isto é, o desejo de agir apartir de princípios de justiça, não está no mesmo plano que asinclinações naturais. É um desejo de ordem superior, eficaz e regulador,de agir a partir de certos princípios em razão de seu vínculo com umaconcepção da pessoa livre e igual. Um desejo desse tipo não éheterônomo; de fato, saber se um desejo é heterônomo é decidido porseu modo de origem e por seu papel no interior do eu, bem como porseu objeto. Ora, nesse caso o desejo é efetivamente o de ser um certotipo de pessoa em conformidade com a concepção dos cidadãoscompletamente autônomos de uma sociedade bem ordenada (CKTM,2000, p. 74).

Nota-se, assim, que, para Rawls, esse desejo regulador não é considerado

heterônomo. Na verdade, para ele, agir priorizando a justiça é a própria maneira de

expressar a liberdade humana frente ao acaso e às contingências. Portanto, esse

desejo é completamente distinto dos demais, pois até sua consecução ocorre de

maneira distinta daquela como se alcançam os demais desejos:

Mas o desejo de expressar nossa natureza de seres racionais livres eiguais só pode ser concretizado se agirmos concedendo prioridadeabsoluta aos princípios do justo e da justiça (...) como os princípios sãodeterminantes, o desejo de agir em conformidade com eles só ésatisfeito na medida em que for, ele próprio, determinante em relação aoutros desejos. É agindo de acordo com essa precedência queexpressamos a nossa liberdade em relação à contingência e ao acaso(...) Esse sentimento não se pode concretizar se estiver vinculado a

73

Page 85: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

alguma condição e se for ponderado em relação a outros objetivosapenas como mais um desejo entre outros. É um desejo de, acima detudo, agir de certas maneiras, um esforço que traz em si sua própriaprioridade. Outros objetivos podem ser alcançados através de um planoque permite um lugar para cada um deles, já que a sua satisfação épossível independentemente de seu lugar na ordenação. Mas o mesmonão acontece com o senso do justo e da justiça. (TJ, § 86, pp. 639-640).

Constata-se, assim, a precedência da justiça sobre os demais objetivos pessoais

e os interesses específicos por concepções particulares de bem. Observa-se, também,

que essa postura foi explicitamente defendida tanto em Uma teoria da justiça quanto

em O construtivismo kantiano na teoria moral. Com isto, conclui-se que o senso de

justiça é “um desejo de que todos os desejos e objetivos de alguém se conformem aos

requerimentos reguladores da justiça” (FREEMAN, 2007, p. 281). Acrescente-se que,

do ponto de vista rawlsiano, tendo em conta a identidade prática entre o senso de

justiça e o desejo de expressar nossa natureza (conforme argumento ‘6’, na conjectura

de Freeman), não poderemos expressar nossa natureza se seguirmos um plano que

veja o senso de justiça como nada mais do que um mero desejo a ser contrabalançado

em face dos outros. Ou seja, “Rawls assume que cidadãos em uma sociedade bem

ordenada enxergam a personalidade moral como o aspecto fundamental do sujeito”

(FREEMAN, 2007, p. 281). Como resultado disto, os cidadãos desejam ser agentes

dotados de autonomia completa – já explicada anteriormente.

Por último, atentando para o argumento ‘12’ precedente, considere-se que, da

maneira como Rawls descreveu113 a perspectiva kantiana, uma pessoa está agindo

autonomamente quando os princípios de suas ações são escolhidos por ela como a

expressão mais adequada de sua natureza como um ser racional livre e igual. Assim,

os princípios pelos quais ela age não são adotados por causa de sua posição social ou

desenvolvimento natural, ou em vista de um tipo particular de sociedade em que ela

vive ou por coisas específicas que ela deseja. Agir dessa outra forma seria, na

perspectiva kantiana114, agir de maneira heteronôma.

Preocupando-se com essas considerações kantianas, Rawls pretendeu trazer

para a justiça como equidade uma maneira de evitar que as partes agissem de maneira

heterônoma na escolha dos princípios de justiça. Com isto, é compreensível a

afirmação rawlsiana de que “o véu da ignorância priva as pessoas na posição original

do conhecimento que as incitaria a escolher princípios heterônomos” (TJ, §40, p. 276).

113 Cf. TJ, §40, p. 276.114 Cf. TJ, §40, p. 276.

74

Page 86: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Sobre a posição original, ele acrescentou que “as partes chegam às suas escolhas em

conjunto, na condição de pessoas racionais iguais e livres, sabendo apenas da

existência daquelas circunstâncias que originam a necessidade de princípios de justiça”

(TJ, §40, p. 276). Ressalte-se que Rawls reconheceu que, ao argumentar em prol dos

princípios de justiça, ele fez vários acréscimos à posição de Kant, a exemplo da

originalidade da aplicação direcionada à estrutura básica da sociedade. Todavia, ele

afirmou que “acredito que esses e outros acréscimos são bastante naturais, e se

mantém muito próximos da doutrina de Kant, pelo menos quando se tem uma visão

global de seus escritos sobre a ética” (TJ, §40, p. 277).

Assim, na justiça como equidade, agir conferindo essa precedência ao senso de

justiça significa o afastamento de uma escolha heterônoma de princípios de justiça,

viabilizando uma escolha com autonomia, o que expressa, do ponto de vista rawlsiano,

a nossa pretensa liberdade do domínio da contingência e do acaso.

Convém ressaltar que em O construtivismo kantiano na teoria moral, bem como,

posteriormente, em O liberalismo político, Rawls distinguiu, no âmbito da justiça como

equidade, dois tipos de autonomia115, estando cada uma associada com uma das

faculdades morais. A "autonomia racional" significa agir em um plano racional de vida

e, portanto, de acordo com os princípios da escolha racional na persecução dos fins

que fazem parte do plano de vida que alguém escolheu em uma deliberação racional.

Já a "autonomia moral” implica agir de acordo com e a partir dos princípios da justiça. A

"autonomia completa", por sua vez, envolve a combinação destas duas modalidades

anteriores de autonomia, na qual à justiça é dada a prioridade de mais alta ordem na

regulação do plano racional de alguém. Nesta perspectiva, a autonomia completa

envolve a congruência do justo e do bem.

Com essa distinção em mente, Samuel Freeman concluiu que:

Assim, "quando os princípios de justiça (...) são afirmados e postos emprática por cidadãos iguais na sociedade, os cidadãos agem, então,com autonomia completa." Autonomia completa (ao invés de umasimples "autonomia racional", agindo a partir de um plano de vidaracional livremente escolhido e que é o próprio plano do indivíduo) é,então, a última conseqüência de pessoas realizando a sua naturezaquando elas atribuem ao senso de justiça a prioridade de mais altaordem em seus planos racionais. Isso significa, dado o resto doargumento de Rawls, que a autonomia é um bem intrínseco. Assim,Rawls conclui: "Esse sentimento [de justiça] revela o que a pessoa é, e

115 Essa distinção entre autonomia racional e completa já foi exposta no início desse capítulo, no tópicoreferente à questão da autonomia. Essa distinção será novamente trabalhada no capítulo seguinte,quando se estiver discutindo a autonomia na obra O Liberalismo Político.

75

Page 87: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

se comprometer com ele significa não permitir a alguém se conduzirlivremente pelas próprias rédeas, mas fazê-la destinar o devido caminhoàs contingências e aos acidentes do mundo" (TJ, 575/503 rev.). Elerevela "o que a pessoa é", praticamente, como um agente moral e,assim, compromissar-se com ele é comprometer a própria agência livrede alguém. (2007, p. 282, tradução minha116).

Deste modo, Freeman reputou resolvidas as duas objeções apontadas sobre a

prioridade da justiça. Assim, pode-se concluir que: I) Rawls optou expressamente por

uma teoria deontológica de justiça; II) por este motivo, há a prioridade do justo sobre o

bem em Uma teoria da justiça; III) o caráter deontológico visa preservar a autonomia

completa dos cidadãos, mas sob a perspectiva de uma defesa indireta; IV) deste modo,

o respeito à autonomia completa não significa a imposição de um bem sobre o conceito

de justo; V) a prioridade da justiça, assim, respeita essa autonomia, viabilizando, por

parte dos cidadãos, o próprio exercício da natureza de seres racionais livres e iguais.

Assim, restam compreendidas as possíveis objeções no sentido de a defesa

rawlsiana da autonomia implicar uma descaracterização das próprias premissas do

liberalismo deontológico. Pôde-se notar, também, por meio da conjectura de Samuel

Freeman, qual seria a possível resposta rawlsiana a esta crítica. Convém, agora,

avançar para alguns outros pontos que dizem respeito à questão da autonomia. Esse é

o assunto do próximo tópico.

2.6 Outras questões sobre a autonomia: o contratualismo e a rejeição do

utilitarismo

Neste tópico, serão tratadas duas questões que estão relacionadas à

preocupação de Rawls com a autonomia dos cidadãos. A primeira questão é a rejeição

de Rawls às propostas sobre justiça fornecidas por um grupo de teorias que ele

identificou, de maneira mais genérica, como “utilitarismo”. A segunda questão é a

adoção, pela justiça como equidade, de uma postura contratualista.

116 Cf. original: “So, “when the principles of justice (…) are affirmed and acted upon by equal citizens insociety, citizens then act with full autonomy.” Full autonomy (as opposed to simply “rational autonomy,” oracting from a freely chosen rational life plan that is one’s own) is, then, the ultimate consequence ofpersons realizing their nature when they assign the sense of justice highest-order priority in their rationalplans. This means, given the rest of Rawls’s argument, that autonomy is an intrinsic good. So Rawlsconcludes: “This sentiment [of justice] reveals what the person is, and to compromise it is not to achievefor the self free rein but to give way to the contingencies and accidents of the world” (TJ, 575/503 rev.). Itreveals “what the person is” practically, as a moral agent, and so to compromise it is to compromise one’sfree agency”.

76

Page 88: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Examine-se, inicialmente, a primeira questão: a rejeição das premissas do

utilitarismo. Antes da exposição, convém trazer alguns esclarecimentos. Rawls admitiu

claramente que “há muitas formas de utilitarismo” (TJ, §5º, p. 24), reconhecendo,

portanto, uma pluralidade de concepções utilitaristas. Diante dessa variedade de

concepções utilitaristas, ele informou que “meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça

que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e,

consequentemente, a todas as suas diferentes versões” (TJ, §5º, p. 24). Esclareceu

também que “o tipo de utilitarismo que descreverei aqui é a rigorosa doutrina clássica

que em Sidgwick tem talvez sua formulação mais clara e acessível” (TJ, §5º, p. 25). A

idéia principal desse utilitarismo, para Rawls, é a de que a sociedade está ordenada de

forma justa117 quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a

conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações

individuais de todos os seus membros. Em O liberalismo político, Rawls também

considerou que o utilitarismo estava presente em uma “longa linhagem [...] de Hume e

Adam Smith a Edgeworth e Sidgwick” (LP, p. 22).

Portanto, quando Rawls utilizou o termo “utilitarismo” em seus escritos, ele quis

se referir a esse corpo de representantes daquela tradição. O fato de Rawls ter

realizado algumas generalizações sobre a tradição utilitarista, abrangendo alguns

pontos controversos entre os próprios utilitaristas, sem incluir algumas idéias

diferenciadas de outros autores dessa tradição, abriu uma série de críticas quanto ao

acerto de Rawls na exposição do que ele denominou “utilitarismo”. A título de exemplo,

Samuel Scheffler compreendeu não só que “a crítica rawlsiana simplesmente não se

aplica a versões contemporâneas do utilitarismo que não objetivam construir o bem

hedonisticamente” (SCHEFFLER, 2003, p. 438), mas que há até “algumas afinidades

genuínas entre justiça como equidade e as ideias utilitaristas” (SCHEFFLER, 2003, p.

428). Inclusive, neste sentido, Samuel Scheffler apontou alguns pontos em comum118

entre a justiça como equidade e o utilitarismo. Tais pontos comuns seriam os

seguintes: ambos buscam construir uma solução clara para o problema de subordinar

os preceitos de justiça do senso comum a critérios mais elevados, sem buscar apelar

para as vias do intuicionismo, visando providenciar uma justificação sistemática para

princípios interpessoais de justiça distributiva. Contudo, esta matéria extrapola o objeto

da presente dissertação. O que importa, para os presentes propósitos, é ter uma ideia

117 Cf. TJ, §5º, p. 25.118 Cf. SCHEFFLER, 2003, pp. 442-448.

77

Page 89: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

de quais autores e posturas utilitaristas Rawls tinha em mente ao falar, genericamente,

em “utilitarismo”. Esclarecido o ponto, avança-se para a exposição.

Rawls considerou defeituosas duas características do utilitarismo: não respeitar

a separação entre as pessoas (e, consequentemente, a autonomia delas), além de não

reconhecer a natureza pluralista do bem. Essas duas críticas119 decorrem de a postura

utilitarista “desconsiderar dois elementos constitutivos do liberalismo sustentado por

Rawls, que são justamente essa separação entre as pessoas (e o consequente

respeito à autonomia delas) e a pluralidade das concepções de bem” (AUDARD, 2007,

p. 45). Afinal, na concepção de justiça como equidade, devem ser respeitadas as

diferenças entre os planos e projetos de vida (por vezes opostos) dos diversos

cidadãos, não se podendo impor certos valores ou fins como dominantes.

Convém, neste ponto, trazer a seguinte observação sobre a preocupação

rawlsiana com o respeito mútuo:

Apenas princípios de justiça que os cidadãos afirmem em uma basecomum são aqueles pelos quais eles podem mostrar respeito de umpara com os outros como pessoas. A ideia de que a comunidadepolítica deve descansar sobre esse tipo de respeito mútuo pertence aocoração da filosofia de Rawls. Ele sustenta uma das maneiras maisreveladoras que ele tem de contrastar sua visão da justiça comoequidade com as concepções utilitaristas. O utilitarismo [...] enxerga aspessoas como linhas diferentes para a alocação de benefícios eencargos que irão maximizar o saldo líquido de satisfação, a julgar porum observador “simpático” (compreensivo, complacente). Respeitar adistinção entre as pessoas, pelo contrário, é buscar princípios que elaspossam reconhecer livremente antes de outros – isto, é, princípios emque cada um pode ver que os outros têm as mesmas razões paraendossá-los. Esse reconhecimento mútuo dos princípios é a própriaessência do que Rawls entende por equidade como uma concepção dejustiça (LARMORE, 2003, p. 374, tradução minha120).

Compreendida a preocupação rawlsiana com o respeito mútuo às pessoas,

pode-se avançar para a crítica por ele formulada contra o utilitarismo. Pela primeira

crítica, o utilitarismo falha em tratar as pessoas como seres distintos. Isso se explica

por que, do ponto de vista do liberalismo rawlsiano, cada cidadão pode eleger uma

119 Cf. AUDARD, 2007, p. 45.120 Cf. original: “Only principles of justice which citizens affirm on a common basis are ones by which theycan show one another respect as persons. The idea that political community should rest on this sort ofmutual respect belongs to the heart of Rawls’s philosophy. It underlies one of the most telling ways hehas of contrasting his view of justice as fairness with utilitarian conceptions. Utilitarianism […] regardspersons as different lines for an allocation of benefits and burdens that will maximize the net balance ofsatisfaction as judged by a sympathetic observer. To heed the separateness of persons, by contrast, is toseek principles which they can freely acknowledge before one another – principles, that is, which eachcan see that others have the same reasons to endorse as he. This mutual acknowledgment of principlesis the very essence of what Rawls means by fairness as a conception of justice”

78

Page 90: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

concepção de bem específica, sem estar vinculado à concepção de bem dos demais.

Então, de maneira contrastante, Rawls considera haver, no utilitarismo, uma

predeterminação da concepção de bem de primeira ordem (bem primário, que

prevalece sobre os demais bens). Essa determinação da concepção de bem primário

ocorre vinculando os desejos de primeira ordem dos indivíduos, que se tornam

direcionados àquele objeto ou valor específico, fazendo com que os demais desejos

(de segunda ordem) sejam meramente direcionados àqueles desejos primários. Trata-

se, assim, do ponto de vista rawlsiano, de um desrespeito à autonomia das pessoas e

ao direito delas a escolhas possivelmente distintas de concepções de bem.

Desconsidera-se, ainda, com a adoção de tal postura, a possibilidade de se

compreenderem as reivindicações individuais por recursos sociais escassos como

naturalmente conflitantes entre si. Além disso, não se leva a sério nem a pluralidade de

pessoas, nem a distinção121 entre elas. Há também uma falha ao se utilizar de um

princípio de maximização da utilidade geral, pois, assim procedendo, usa-se, quanto ao

trato dispensado às pessoas pelas instituições, uma medida agregativa de satisfação,

confundindo os desejos de primeira ordem dos cidadãos com as suas concepções de

bem.

Assim, eis as considerações que Catherine Audard fez sobre o diagnóstico de

Rawls acerca do princípio da utilidade geral do utilitarismo:

Ele não reconhece a separação entre as pessoas: que a satisfaçãodelas não é negociável, que elas têm interesses de primeira ordemdistintos, talvez não apenas concorrentes, mas também incompatíveis,mesmo que elas compartilhem os mesmos interesses de ordemsuperior. Como consequência dessa falta de distinção entre as pessoas,o princípio da utilidade propõe alegremente que os benefícios paraalguns possam compensar as dificuldades dos outros. As relaçõesmorais entre as pessoas como membros de um empreendimentocomum não são levadas em consideração [...] A unidade social e justiçaresultam de uma eficiência administrativa de ordem superior, e não dospróprios agentes. [...] Preferências e interesses, desejos e necessidadessão dados independentemente da estrutura social e de quaisquerrelações morais entre as pessoas. [...]. Não há espaço para areciprocidade, nem para relações morais, tais como a preocupação coma igualdade que molda os desejos e interesses (AUDARD, 2007, pp. 45-46, tradução minha122).

121 Cf. TJ, §5°, pp. 24-30.122 Cf. original: “It does not recognize the separateness of persons: that their satisfaction is notexchangeable, that they have distinct, perhaps not only competing but also incompatible first-orderinterests, even if they share higher-order interests. As a consequence of this lack of distinction betweenpersons, the utility principle would happily propose that benefits for some might compensate for hardshipon others. Moral relations between persons as members of a joint undertaking are not taken into account[…] Social unity and justice are the results of a higher-order administrative efficiency, not of the agents

79

Page 91: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Compreendido o teor da primeira crítica rawlsiana ao utilitarismo, avance-se

para segunda. Sendo o utilitarismo uma doutrina teleológica, há uma falha quanto à

compreensão da liberdade, referente à pluralidade de escolhas possíveis por parte das

pessoas diante da natureza pluralista do bem. No contexto moderno liberal, tal como

defendido por Rawls, ressalvada a prioridade atribuída ao senso de justiça, não pode

haver um fim dominante que todos endossem, dados os inúmeros fins humanos que

podem ser escolhidos e devem ser respeitados. O utilitarismo, da maneira como Rawls

o compreendeu, sendo teleológico, seria incompatível com os valores de uma

democracia constitucional pluralista, especialmente com a autonomia – tão relevante

para o liberalismo deontológico – porque não seria justo diante da natureza pluralista

do bem. Deste modo, o utilitarismo não fornece uma proteção adequada dos direitos e

liberdades individuais, podendo servir até para justificar, do ponto de vista de Rawls, o

sacrifício desses direitos para alguns em nome de um ganho quantitativo “maior”

proveniente do somtaróio da satisfação de um número maior de pessoas. Em

contraste, num liberalismo como o rawlsiano "a primazia da justiça está fortemente

conectada à autorrepresentação dos regimes democráticos, nos quais a proteção dos

direitos humanos básicos é constitutiva de sociedades justas e bem ordenadas”

(AUDARD, 2007, p. 46).

Deste modo, considerando a postura rawlsiana de enxergar a justiça como a

preocupação social mais importante, ela não pode ser sacrificada em nome do bem-

estar de uma maioria ou de qualquer outro objetivo: nisso reside a afinidade com as

democracias constitucionais. Sem as proteções asseguradas pela prioridade da justiça,

podem surgir situações em que há ameaças ao próprio senso de justiça. Vejam-se os

exemplos fornecidos por Catherine Audard, quando se abre mão123 dessa prioridade:

minorias, como trabalhadores migrantes ilegais, famílias monoparentais, casais

homoafetivos, dentre outras hipóteses, não estão protegidas contra a opinião

majoritária e hostil, o que conduz ao sacrifício de seus direitos humanos pelas crenças

e preferências da maioria. Isso representaria uma ameaça à democracia, esvaziando o

próprio status de cidadania de pessoas morais, que devem ser tratadas como livres e

iguais.

themselves. […] Preferences and interests, desires and needs are given independently of the socialstructure and of any moral relation between the persons. […]. There is no room for reciprocity, no moralrelations such as a concern for equality that shapes desires and interests”.123 Cf. AUDARD, 2007, p. 47.

80

Page 92: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, essa primazia conferida à justiça correlaciona-se com as democracias

constitucionais, na medida em que:

De todas estas observações, podemos ver claramente que a prioridadede justiça corresponde a um certo regime político com o qual Kant sópoderia ter sonhado, um regime que viemos a chamar democraciaconstitucional: a aliança da democracia e do liberalismo, do sufrágiouniversal, soberania popular e governo representativo, por um lado, oEstado de Direito, o governo limitado, freios e contrapesosconstitucionais e uma Declaração de Direitos, por outro. [...] Afirmar aprioridade da justiça é afirmar que os sentimentos e opiniõesmajoritários não são suficientes para proteger os direitos dos cidadãos,e que precisamos validar regras diretivas de toda uma sociedadedemocrática que prevaleçam sobre as regras da maioria simples, comouma Constituição e uma Declaração de Direitos. Compreender osignificado da justiça e da prioridade dos direitos é de suma importânciapara a continuidade e estabilidade de um tal sistema de regulação.Devemos, portanto, ter em mente essa compreensão intuitiva daprioridade da justiça e as preocupações pessoais profundas que Rawlsexpressou muitas vezes sobre o futuro de uma democracia, que estáprogressivamente se transformando em uma "democracia de mercado",como a forma contemporânea da "tirania das maiorias" deplorada porMill (AUDARD, 2007, pp 46-47, tradução minha124).

Nota-se, assim, como a preocupação rawlsiana com o respeito à autonomia

individual veicula, também, a pretensão de evitar a tirania de maiorias sobre minorias,

na medida em que se busca assegurar a proteção da autonomia das pessoas incluídas

também em contextos minoritários, hostilizados pela concepção de bem eventualmente

eleita pela opinião majoritária.

Com estas considerações, abordou-se o primeiro ponto deste tópico, referente à

rejeição do utilitarismo pela justiça como equidade. Viu-se que essa rejeição ocorre por

haver Rawls compreendido que o utilitarismo não respeita a autonomia dos cidadãos

da mesma maneira que a sua proposta de liberalismo deontológico. Avança-se, agora,

para o segundo ponto, referente à relevância da justiça como equidade como uma

versão de contratualismo, concernente ao respeito à autonomia.

124 Cf. original: “From all these remarks, we can see clearly that the priority of justice corresponds to acertain political regime that Kant could only have dreamt of, a regime that we have come to callconstitutional democracy: the alliance of democracy and liberalism, of universal suffrage, popularsovereignty and representative government, on the one hand, the rule of law, limited government,constitutional checks and balances and a Bill of Rights, on the other. […] To affirm the priority of justice isto affirm that the majority of feelings and opinions are not enough to protect citizens’ rights and that weneed valid regulating rules of a democratic society over simple majority rule such as a Constitution and aBill of Rights. Understanding the meaning of justice and of the priority of rights is of paramountimportance for the continuity and stability of such a regulating system. We should, therefore, keep in mindthis intuitive understanding of the priority of justice and the deep personal worries that Rawls expressedmany times about the future of a democracy, which is progressively turning into a “market democracy” asthe contemporary form of the “tyranny of majorities” deplored by Mill”.

81

Page 93: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Em Uma teoria da justiça, a justiça é definida como equidade porque,

conduzindo-se um procedimento equitativo, respeitando a igualdade moral das partes,

bem como a sua autonomia, e abstraída (ou seja, feita a abstração) de circunstâncias

sociais e contingências naturais, chega-se a um resultado que é justo.

Ressalte-se que a autonomia é a concepção de liberdade que insiste não só na

liberdade de escolha, mas também na responsabilidade por essas escolhas e nos

deveres que delas derivam. Ela constitui, nesse sentido, a base para status e dignidade

morais. Deste ponto de vista, ser livre implica não só que o destinatário seja o autor da

lei moral, mas também que ele esteja efetivamente sujeito a ela, estando obrigado só

por ela (a lei que ele mesmo se impôs). Ainda dentro desta perspectiva, “a

heteronomia125 é o oposto de autonomia: ela significa que a vontade de alguém é

sujeita a uma autoridade baseada não na razão, mas em algo externo a ela” (AUDARD,

2007, pp. 297-298).

Kant é o principal filósofo associado a essa visão de liberdade. Todavia, embora

Rawls esteja próximo desta postura kantiana, a justiça como equidade contém

especificidades que indicam, em alguns pontos, opções teóricas distintas126 da

concepção de Kant. Ressalte-se, adicionalmente, que a teoria de Rawls rejeita o

realismo moral127, assim compreendida a postura em que há a afirmação/sustentação

de uma ordem moral de valores que é anterior à nossas concepções de pessoa e de

sociedade, bem como independente delas e do papel social público das doutrinas

morais.

O apelo à visão contratualista sustenta que a legitimidade política ocorre por

meio do recurso a um contrato equitativo entre sujeitos iguais e livres. Com isso, evita-

se o apelo da legitimidade a uma autoridade independente ou divina, ou ao direito

natural. Isso se explica porque uma postura afinada com a liberdade democrática não

admite o acesso a um critério de justiça antecedente e independente. Preocupado com

isto, compreende-se a opção rawlsiana pela perspectiva da justiça procedimental pura,

ao invés da adoção de uma proposta de justiça procedimental perfeita. Afinal, o

liberalismo rawlsiano se preocupa com a pluralidade de fins, apelando para a

pluralidade das opções de vida das pessoas. Sobre tal postura, houve quem se125 A explicação breve da compreensão da autonomia e da heteronomia consta da nota de rodapé 27 docapítulo primeiro, cf. AUDARD, 2007, pp. 297-298.126 Algumas dessas diferenciações foram expostas nos tópicos passados. Outras serão apresentadascom mais clareza no capítulo seguinte, ao se tratar da justiça como equidade tal como apresentada naobra de Rawls lançada quase duas décadas após Uma teoria da justiça: trata-se de O liberalismopolítico.127 Cf. AUDARD, 2007, p. 48.

82

Page 94: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

pronunciasse favoravelmente, nos seguintes termos: “este é o único jeito de dar

expressão política à ideia de liberdade como autonomia de tratar os seres humanos

não somente como meios, mas como fins em si mesmos, como diz Kant” (AUDARD,

2007, p. 48, tradução minha128).

Portanto, em Uma teoria da justiça, há o recurso às doutrinas do contrato social,

mas sob uma nova roupagem, pois Rawls também incorporou à teoria aspectos

deontológicos, oriundos de Kant. Assim, a combinação, feita por Rawls, de elementos

da teoria contratualista com elementos do liberalismo deontológico, para o âmbito da

deliberação sobre os princípios de justiça, “viabiliza a colocação da liberdade como

autonomia no centro do processo de legitimação” (AUDARD, 2007, p. 49, tradução

minha).

Nesse sentido, como afirmou Catherine Audard, referindo-se, inicialmente, a

Kant, “o acordo tem força moral porque o próprio processo revela, em si, a autonomia

dos cidadãos” (AUDARD, 2007, p. 51). Ao deliberar conforme os preceitos kantianos,

ou seja, agindo com razoabilidade e de maneira autônoma, os cidadãos não permitem

que as normas sejam ditadas meramente por seus interesses particulares, visando

apenas benefícios atuais, como ocorreria caso se adotasse uma postura de

heteronomia129.

Trazendo-se tais contornos de inspiração kantiana para a situação de contrato

hipotético criada por Rawls, nota-se que, de maneira análoga, na posição original

rawlsiana, com todas as restrições que tornam o procedimento de deliberação

equitativo, as partes não agem apenas com base na racionalidade, mas também com

base nas delimitações da razoabilidade. Além disso, agem com autonomia, em vez de

agirem com heteronomia, de maneira que expressam, na deliberação, a natureza dos

cidadãos representados, que são considerados seres morais, racionais, livres e iguais.

Há também outra vantagem na utilização das doutrinas do contrato social por

parte de Rawls: as teorias contratualistas mais antigas foram, posteriormente,

duramente criticadas pela tradição que Rawls denominou utilitarista130. Ora, Rawls

expressamente pretendeu se opor ao utilitarismo predominante. Assim, construir uma

teoria de justiça rawlsiana com alguns caracteres do contratualismo era mais um

caminho para acentuar131 a crítica de Rawls à perspectiva utilitarista. Essa tradição

128 Cf. original: “ this is the only way of giving a political expression to the idea of freedom as autonomy ortreating human beings not solely as means but as ends in themselves, as Kant says” 129 Cf. AUDARD, 2007, p. 51.130 Cf. AUDARD, 2007, p. 49.131 Cf. AUDARD, 2007, pp. 49-50.

83

Page 95: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

rejeitada por Rawls compreendia que o valor de um acordo estaria nas consequências

benéficas dele, e não na liberdade presente no consenso que o funda. Assim, para um

ponto de vista utilitarista, um contrato hipotético, sem ganhos, não faria sentido.

Diferentemente disto, Rawls se preocupou em ver, no aspecto contratualista, uma

maneira de manifestar as partes pactuantes como livres em seu processo de

deliberação, que culminaria num contrato fundado na liberdade.

Por último, há três motivações principais132 que tornam vantajosa a adoção

rawlsiana de uma perspectiva contratualista, em vez de posturas utilitaristas,

intuicionistas ou perfeccionistas: “tal posicionamento cumpre a tríplice exigência de

autonomia doutrinal, política e moral” (AUDARD, 2007, pp. 51-52).

Em primeiro lugar, a abordagem do contrato social é compatível com a

concepção de pessoa como ser moralmente autônomo, um traço característico das

sociedades democráticas. As pessoas são encaradas como seres morais, livres, iguais,

racionais e razoáveis, que possuem a capacidade de justiça – que implica não só agir

de acordo com a lei moral, mas também a partir da lei moral. Com esta postura,

reconhece-se a necessidade de protegê-las da imposição de doutrinas heterônomas e

de interferências ilegítimas por parte dos outros.

Em segundo lugar, a teoria contratualista garante a autonomia política dos

cidadãos tanto quanto respeita os seus interesses e valores mais importantes. A

autoridade do Estado não pode ser derivada de alguma espécie de autoridade

supostamente superior, nem extraída tão-somente a partir de um comando divino. Em

vez disso, a autoridade do Estado é considerada como uma criação do povo soberano

que o constitui. Ressalte-se que, embora essa “humanização” do fundamento do poder

não seja exclusiva dos contratualistas, eles foram os primeiros a questionar o

fundamento da autoridade religiosa no pensamento político ocidental. Assim, como

cada um sabe que os outros também se submetem àquela autoridade constituída,

cumpre-se a exigência indispensável de publicidade de uma situação contratual

equitativa, fazendo surgir a justiça como reciprocidade. Há uma esfera pública onde os

cidadãos deliberam juntos, modificam seus pontos de vista, cientes de que todos

reconhecem as mesmas regras de ligação e compartilham um mesmo poder político.

Em terceiro lugar, uma razão apontada apenas nos escritos posteriores, como

em O liberalismo político e no “Reply to Habermas”, de 1995, é a preocupação com a

autonomia doutrinária, vista não simplesmente como um valor teórico, mas como uma

132 Cf. AUDARD, 2007, pp. 51-52.

84

Page 96: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

característica da prática de justificação. Ele proporcionou uma concepção política de

justiça que é, em si, doutrinariamente autônoma. Isso se explica porque os valores

políticos da justiça e razão pública não são impostos externamente ou exigidos de nós

por outros cidadãos, cujas doutrinas abrangentes rejeitamos. Os cidadãos

compreendem esses valores como baseados em sua razão prática unida com a

concepção política de cidadãos como livres e iguais e de sociedade como um sistema

justo de cooperação.

Nesse sentido, ainda sobre a preocupação rawlsiana com a autonomia,

compreendida não como um valor intrínseco, superior e imposto, mas como uma

prática ou um modo de pensar e agir, eis a conclusão de Catherine Audard:

A autonomia não é um valor defendido em contraste com, digamos, autilidade. A autonomia é uma prática, um modo de ser, de agir e depensar, que deve repercutir na própria concepção teórica. É estacaracterística da doutrina do contrato social que a torna uma concepçãopolítica capacitante, no sentido de que os cidadãos, ansiosos paraentender o sistema político em que vivem, podem avaliar as instituiçõesde justiça, seguindo o método desenvolvido em Uma Teoria da Justiça.A teoria da justiça capacita os cidadãos porque ela os encara comoassumindo o controle, tanto intelectualmente quanto politicamente, desuas instituições mais importantes, do sistema a que estãonormalmente submetidos, graças à experiência de pensamento docontrato social (AUDARD, 2007, p. 53, tradução minha133).

Essa conclusão é correlata àquela de que a autonomia, em Uma teoria da

justiça, não é um bem que acaba se sobrepondo ao conceito de justo,

descaracterizando o caráter deontológico do liberalismo ralwsiano. A autonomia é, do

ponto de vista de Rawls, a prática que permite exatamente respeitar a natureza das

pessoas morais, livres e iguais, sem impor uma prévia concepção de bem. A autonomia

vem, exatamente, admitir a pluralidade de concepções de bens, e, portanto, reconhecer

a pluralidade de pessoas como seres autônomos aos quais não se pode impor,

previamente, uma determinada concepção de bem. A prioridade do senso de justiça,

como vista nos tópicos anteriores, é a maneira, segundo Rawls, de viabilizar essa

pretensão do liberalismo deontológico.

133 Cf. original: “Autonomy is not a value advocated in contrast to, let us say, utility. Autonomy is apractice, a mode of being, of acting and thinking, which should reverberate in the theoretical conceptionitself. It is this feature of the social contract doctrine that makes it an empowering political conception inthe sense that citizens anxious to understand the political system in which they live can assess theinstitutions of justice following the method developed in A Theory of Justice. The theory of justiceempowers citizens because it sees them as taking control, both intellectually and politically, of their mostimportant institutions, of the system to which they are normally subjected, thanks to the thoughtexperiment of the social contract".

85

Page 97: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Compreendidas, portanto, as preocupações rawlsianas com a imparcialidade e

com a autonomia (pilares do procedimentalismo puro), convém, agora, atentar às

críticas ao projeto de Uma teoria da justiça. Essas críticas repercutem em pontos

integrantes dos contornos da autonomia e da imparcialidade rawlsianas, trazendo

sugestões quanto à possível descaracterização do procedimentalismo puro, e uma

possível aproximação do procedimentalismo perfeito. Essas críticas serão analisadas

no próximo tópico.

2.7 Críticas direcionadas a Uma teoria da justiça com repercussão sobre o mérito

do procedimentalismo puro

Exposto o procedimentalismo de Uma teoria da justiça, pode-se notar que Rawls

não negou a pluralidade de concepções sustentadas pelos indivíduos. Ressalte-se que

ele chegou a defender como saudável a existência de um pluralismo razoável em O

liberalismo político. Contudo, em vez de se subtrair a uma discussão normativa que

busque esclarecer os princípios de justiça em uma sociedade plural, Rawls assumiu

uma postura preocupada com um procedimento imparcial de deliberação e com a

autonomia das partes. Contudo, apesar da pretensa imparcialidade procedimental, o

resultado da deliberação são princípios de justiça com conteúdo substantivo. Com isso,

ele pretendeu viabilizar um projeto em que coexistissem diversas pessoas, com

diversas concepções de bem, sem descuidar da obtenção de um consenso aceitável

quantos aos princípios políticos aptos à regência de uma sociedade bem ordenada.

Assim, uma das tarefas de Rawls foi justamente o desafio de conciliar o que poderia

parecer inconciliável: trata-se de compatibilizar valores como liberdade, igualdade,

autonomia, que por vezes são apresentados como excludentes uns dos outros.

Assim, atento a esses objetivos, nota-se que Rawls se propôs não só a erigir um

método que viabilizasse a construção pretensamente imparcial de uma concepção

procedimental do justo, como também procedeu a um minucioso estudo voltado à

revelação do possível conteúdo dos princípios de justiça assim construídos.

Evidentemente, tratando-se de tema de per si já bastante farto de controvérsias,

não faltaram críticas dirigidas ao projeto rawlsiano, formuladas por outros autores, que

sustentaram as mais variadas teses. Destacam-se, a título ilustrativo, algumas críticas

pontuais formuladas a partir da perspectiva dos comunitaristas. Vejam-se algumas

objecões realizadas por Sandel, Taylor, Walzer e MacIntyre.

86

Page 98: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Inicia-se a exposição com a crítica de Michael Sandel (Liberalism and the limits

of justice, 1982), que é diretamente relacionada ao tema ora debatido. Sandel

preocupou-se em apontar diversas inconsistências da teoria de Rawls, defendendo,

categoricamente, que “o propósito de Rawls não alcança o êxito pretendido” (SANDEL,

2000, p. 29). Sandel propôs uma releitura menos expansiva de Uma teoria da justiça,

querendo dizer, com isso, que os princípios escolhidos na posição original são

considerados justos, simplesmente, porque as partes escolheram os princípios

corretos, dada a sua situação peculiar. A posição original estaria configurada de uma

tal maneira que se garantiria que as partes só poderiam querer escolher certos

princípios determinados. Desta perspectiva, “qualquer acordo que se obtenha na

posição original é justo não porque o procedimento consagre qualquer resultado como

justo, mas porque a situação assegura um resultado determinado” (SANDEL, 2000, p.

162, tradução minha134).

Ora, se os princípios eleitos são justos porque só os princípios justos podem ser

escolhidos, o aspecto voluntarista – assim compreendido o foco na primazia da

vontade das partes pactuantes, em respeito à autonomia dos envolvidos – já não é tão

amplo como parecia querer Rawls. Rawls permitiria, segundo Sandel, confirmar essa

leitura distinta ao defender que os princípios de justiça que ele aponta em sua teoria

constituem a única eleição coerente com a descrição completa da posição original,

culminando num raciocínio135 estritamente dedutivo. A noção de que uma descrição

completa da posição original determina uma única eleição possível, em que a as partes

não podem sugerir outros resultados concorrentes, limitando-se a reconhecer os

princípios “impostos”, implicaria dois problemas: I) a introdução de um elemento

meramente cognitivo à justificação dos princípios, ao invés da proposta de uma

construção autônoma em que as partes envolvidas conduzem o debate; II) o

surgimento de um questionamento quanto à pretensa prioridade do procedimento

sobre os princípios (traço típico do projeto deontológico), pois o resultado do

procedimento já estaria predeterminado antes do próprio procedimento.

Em reforço de seus argumentos, Sandel sustentou três pontos136.

Primeiramente, as partes da posição original não negociariam no sentido usual,

porque ao estarem equitativamente situadas, raciocinarão de forma similar, não

134 Cf. original: ”cualquier acuerdo que se obtenga en la posición original es justo, no porque elprocedimiento consagre cualquier resultado como justo, sino porque la situación garantiza un resultadodeterminado”.135 Cf. SANDEL, 2000, pp. 162-163.136 Cf. SANDEL, 2000, pp. 164-165.

87

Page 99: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

havendo base alguma para negociar no sentido usual do termo. A negociação, em

qualquer sentido, requer alguma diferença entre os interesses e preferências dos

envolvidos, cujo conhecimento está completamente eliminado pelo véu da ignorância.

Em segundo lugar, se as partes são convencidas pelos mesmos argumentos e

agem da mesma maneira, é improvável que uma certa ideia ocorra a um dos sujeitos e

não aos outros. A discussão construtiva, assim como a negociação, supõe alguma

diferença entre as percepções e concepções dos envolvidos, que também é eliminada

na posição original. Assim, não há diferenciação suficiente para o surgimento de um

efetivo debate de escolha de princípios de justiça.

Em terceiro lugar, considerando a falta de diferenciação entre os sujeitos, não

haveria um acordo propriamente dito, mas uma única concepção meramente tomada

de forma unânime. Concedendo-se, contudo, para fins argumentativos, que há um

acordo, Sandel propôs uma classificação dual de acordos para esclarecer a crítica. A

espécie de acordo que surgiria na posição original não seria constitutivo ou criador,

assim entendido aquele em que uma pluralidade de pessoas firma, conjuntamente,

suas intenções, com base na sua vontade autônoma. O acordo resultante seria

meramente cognitivo, assim compreendido aquele em que poderia haver um só sujeito,

que sequer exerceria a sua faculdade de vontade autônoma, mas conformar-se-ia em

reconhecer a validade de um princípio anteriormente dado, ou em admitir a veracidade

de uma dada proposição. Diversas pessoas estarem de acordo, neste sentido, significa

que várias pessoas iguais compreendem igualmente algo que já é previamente

existente. Não se trata mais de decidir efetivamente qual o melhor resultado, mas de se

limitar a reconhecer a correção de um postulado.

Assim, argumentou Sandel que, tendo em mente estes tópicos, e baseando-se

nas próprias explicações rawlsianas sobre a justificação, a eleição e a pluralidade, a

interpretação voluntarista do acordo na posição original vai cedendo espaço para a

perspectiva predominantemente cognitivista: os trechos que antes pareciam descrever

um acordo ou eleição no sentido voluntarista podem também ser relidos137 sob uma

ótica meramente cognitivista ou de reconhecimento de princípios previamente

existentes. Para esse fim, Sandel destacou pelo menos seis excertos da própria Uma

teoria de justiça como aptos a sufragar a conclusão de que as partes na posição

original simplesmente reconhecem princípios que já existem.

137 Cf. SANDEL, 2000, pp. 166-167.

88

Page 100: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Deste modo, o que começou com uma pretensa ética construtiva de eleição e de

consentimento de vontades autônomas, culminaria, ainda que de maneira não

deliberada, em uma ética de (re)conhecimento138 e de autocompreensão. Assim, para

Sandel, a linguagem final presente em Uma teoria de justiça, referente à eleição

construtiva baseada na vontade autônoma, é substituída pela linguagem da mera

percepção e do mero conhecimento, à medida em que a imagem voluntarista (inspirada

em Kant) cede espaço ante a imagem meramente cognitiva.

Assim, concluiu o comunitarista afirmando que o segredo da posição original – e

a chave de sua força139 como justificação – não está no que se faz, cria, ou elege, mas

no que se apreende, se descobre ou se apercebe: o que ocorre na posição original não

é, ao final de tudo, um contrato, mas a conquista da autoconsciência de um ser

intersubjetivo. Ou seja, para Sandel, o empreendimento de Rawls equivaleria a uma

tentativa de descrição da autocompreensão do núcleo normativo referente à justiça de

uma sociedade bem ordenada.

Portanto, para Sandel, embora Rawls pretenda um contrato hipotético (como um

recurso heurístico) de criação dos princípios de justiça, cujo resultado é justo porque o

procedimento foi justo, se a consequência das delimitações da posição original for

confrontada em profundidade com as aspirações teóricas do próprio Rawls, haverá

uma inconsistência. Tal se dá porque a justiça como equidade acaba por desnaturar a

si mesma, afastando, em última instância, a própria premissa de os princípios de justiça

serem legitimamente decorrentes de um contrato, de um instrumento que, embora

hipotético, preza pela autonomia das partes, viabilizando o acordo e a coexistência de

diversas crenças particulares essenciais (por ele denominadas doutrinas abrangentes,

que são as noções de vida que cada pessoa carrega consigo mesma e trata de suas

maiores convicções pessoais).

Em outras palavras, o que Sandel constatou é que a teoria rawlsiana, levada às

suas últimas consequências, não é tão amparada na autonomia como pretende ser

desde o início. Haveria, em verdade, algo anterior e já determinado (uma concepção de

justiça subjacente) que desnaturaria a própria idéia de um contrato eletivo de criação

de princípios. Ora, tal situação configura, em uma perspectiva mais profunda, um

exame acerca da própria viabilidade do procedimentalismo puro. Sob esta perspectiva

crítica, configura-se, um afastamento do procedimentalismo puro almejado por Rawls e

138 Cf. SANDEL, 2000, p. 168.139 Cf. SANDEL, 2000, p. 168.

89

Page 101: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

uma aproximação rawlsiana a um indesejado ou talvez imprevisto procedimentalismo

perfeito, uma vez que haveria um único resultado possível, referente à escolha dos

princípios de justiça. A posição original, pela crítica de Sandel, não escolhe um

resultado possível dentre outros: trata-se de um processo que apenas se limita a

revelá-lo.

Por sua vez, Charles Taylor sustentou (Atomism, 1985) que o liberalismo

concebe o homem atomisticamente, de maneira que as instituições liberais acabam

carregando consigo um efeito atomizador sobre os indivíduos, o que deixa as

pretensões da sociedade abaixo dos direitos individuais140. Assim, o liberalismo é

acusado de adotar uma concepção excessivamente atomista de pessoa.

Para ele, o desenvolvimento da liberdade requer uma certa compreensão do

sujeito (self) em que as aspirações de autonomia e autodirecionamento sejam

concebíveis, além de pressupor que essa autocompreensão não pode ser desenvolvida

apenas por nós mesmos individualmente considerados. A nossa identidade é sempre

parcialmente definida em interação com os outros ou através do entendimento comum

subjacente às práticas de nossa sociedade. A tese141 dele é que a identidade do sujeito

autônomo e auto-determinante requer uma matriz social.

Assim, para Taylor, há divergências significativas entre atomistas e não-

atomistas, uma vez que a discussão inclui a natureza da liberdade e a própria

compreensão do que é o ser humano. Neste ponto, as duas posturas também

divergem sobre o que seria a identidade humana, bem como a sua definição e

sustentação. Desta perspectiva, eis algumas diferenças:

Para atomistas a discussão sobre a identidade e as suas condições naprática social parece impossivelmente abstrusa e especulativa. Elespreferem apoiar-se na intuição clara e distinta que todos nóscompartilhamos (todos nós nesta sociedade) sobre os direitos humanos.Para os não-atomistas, no entanto, essa mesma confiança em seuponto de partida é uma espécie de cegueira, uma ilusão de auto-suficiência que lhes impede de ver que o indivíduo livre, o portador dedireitos, só pode assumir essa identidade graças ao seu relacionamentocom uma civilização liberal desenvolvida; que há um absurdo emcolocar este sujeito em um estado de natureza, onde ele nunca poderiaalcançar essa identidade e, consequentemente, nunca poderia criar, porcontrato, uma sociedade que respeitasse isso. Em vez disso, oindivíduo livre, que se afirma como tal, já tem a obrigação de completar,restaurar ou manter a sociedade em que essa identidade é possível(TAYLOR, 1985, p. 209, tradução minha142).

140 Cf. PETTIT, 1990, p. 134.141 Cf. TAYLOR, 1985, p. 209.

90

Page 102: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Note-se que, na teoria de Rawls, há uma consideração de sujeitos hipotéticos

envolvidos em uma situação equitativa denominada posição original, submetidos a um

véu de ignorância que elimina o conhecimento concreto de sua identidade social. Isso,

do ponto de vista de Taylor, seria uma cegueira atomista, equivalente a acreditar que

um sujeito que nunca alcançou identidade criaria, em um estado de natureza inicial, a

própria sociedade. Deste modo, para Taylor, um projeto como o rawlsiano carrega

todos os problemas inerentes a uma postura atomista.

Portanto, nota-se que do ponto de vista de Taylor, não há como uma proposta

de justiça procedimentalmente pura, tal como a rawlsiana, ser apta a criar resultados

satisfatórios, pois a abstração efetuada pelo véu da ignorância torna inviável trazer uma

compreensão satisfatória da liberdade e da própria identidade das pessoas.

Já Michael Walzer, em Spheres of Justice (1983) e em Philosophy and

Democracy (1981), argumentou que a busca de regras para a vivência social demanda

questões políticas, e não filosóficas, cujas respostas devem provir de um conhecimento

político em vez de uma construção filosófica. O foco não seria buscar princípios

universais que regessem problemas universalizáveis: os problemas surgem no interior

de associações políticas, com recursos fornecidos pelas práticas e tradições

fundamentais para as associações.

Walzer partiu de uma interessante comparação143 entre magistrados (juízes) e

filósofos. Para ele, os juízes são membros de uma comunidade política: muitos deles

foram, no passado, chefes de escritórios de advocacia, ativistas políticos, participando

ativamente da arena política e dos debates. Eles estão acostumados a sustentarem

opiniões e teses que sabem ser questionáveis pelos demais participantes da arena.

Depois, ao ingressarem na magistratura, por exigências democráticas

institucionalizadas, terão que se afastar um pouco da política do dia a dia, para que

possam ter possibilidade de uma reflexão mais calma em busca de uma maior

imparcialidade ao julgar os processos que lhe serão confiados. Mas, mesmo assim,

142 Cf. original: “For atomists the talk about identity and its conditions in social practice seems impossiblyabstruse and speculative. They would rather found themselves on the clear and distinct intuition which weall share (all of us in this society, that is) about human rights. For non-atomists, however, this veryconfidence in their starting point is a kind of blindness, a delusion of self-sufficiency which prevents themfrom seeing that the free individual, the bearer of rights, can only assume this identity thanks to hisrelationship to a developed liberal civilization; that there is an absurdity in placing this subject in a state ofnature where he could never attain this identity and hence never create by contract a society whichrespects it. Rather, the free individual who affirms himself as such already has an obligation to complete,restore, or sustain the society within which this identity is possible”. 143 Cf. WALZER, 1981, pp 388-390.

91

Page 103: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

eles serão integrantes de uma tradição legal específica, que eles compartilham com

suas antigas associações políticas e profissionais.

Já o filósofo, quando comprometido com a crença em formas ideais,

normalmente busca verdades eternas e universais, não tentando encontrar pontos de

acordo dentro de uma comunidade histórica e real: ele constrói uma situação ideal em

que as pessoas se desprendem de suas ideologias para produzirem um discurso

universal e, posteriormente, trazer, para a prática institucional, conclusões que são

distintas do resultado de qualquer debate democrático atual.

Com base nesta distinção, veja-se como ele contrastou o perfil concretamente

situado dos juízes com o perfil de motivação abstrata dos filósofos:

A instância do filósofo é muito diferente [...] Na maioria das vezes, hoje,ele constrói para si (já que ele não pode, como Platão, descobrir por simesmo) uma comunidade ideal, habitada por seres que não têmnenhuma das características particulares e nenhuma das opiniões oucompromissos de seus antigos concidadãos. Ele imagina um encontroperfeito em uma "posição original" ou "situação ideal de discurso", naqual os homens e mulheres participantes são liberados de suas própriasideologias ou sujeitos a regras universalizantes de discurso. E, emseguida, ele pergunta quais princípios, regras e disposiçõesconstitucionais essas pessoas iriam escolher caso instadas a criar umaordem política real. Eles são, por assim dizer, os representantesfilosóficos do restante de nós, e eles legislam em nosso nome. Opróprio filósofo, no entanto, é o único habitante real da comunidadeideal, o único participante real no "encontro perfeito”. Assim, osprincípios, as regras e as constituições que dali emergem são, naverdade, o produto de seu próprio pensamento, "concebido por umavontade fantasiosamente moldada", sujeita apenas a quaisquerrestrições que ele impõe sobre si (WALZER, 1981, pp. 389-390,tradução minha144).

Deste modo, no entendimento de Walzer, o filósofo retorna desse mundo ideal

com conclusões que merecem um status diferenciado do resultado advindo dos

debates democráticos institucionalizados. Isso porque os filósofos arrogam saber dizer

o que é justo e o que seria decidido para nossos fins em uma situação de

144 Cf. original: “ The stance of the philosopher is very different. (…) Most often, today, he constructs forhimself (since he cannot, like Plato, discover for himself) an ideal commonwealth, inhabited by beingswho have none of the particular characteristics and none of the opinions or commitments of his formerfellow-citizens. He imagines a perfect meeting in an "original position" or "ideal speech situation" wherethe men and women in attendance are liberated from their own ideologies or subjected to universalizingrules of discourse. And then, he asks what principles, rules, constitutional arrangements these peoplewould choose if they set out to create an actual political order. They are, as it were, the philosophicalrepresentatives of the rest of us, and they legislate on our behalf. The philosopher himself, however, isthe only actual inhabitant of the ideal common-wealth, the only actual participant in the 'perfect meeting.So the principles, rules, constitutions, with which he emerges are in fact the products of his own thinking,"designed at will in an orderly fashion," subject only to whatever constraints he imposes upon himself”.

92

Page 104: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

representantes ideais. Então, os representantes políticos das pessoas no mundo

institucionalizado são convidados a revisar suas próprias conclusões à luz do trabalho

do filósofo. Quando o filósofo publica o livro, ele estaria implicitamente presenteando as

pessoas com aquelas conclusões, e convidando-as a adotarem aquele pensamento.

Contudo, para Walzer, na arena política, as verdades do filósofo são mais

propensas a serem tomadas145 como um quadro de opiniões, a ser argumentado,

defendido, atacado, adotado em parte, rejeitado em outra parte, ou até mesmo

ignorado. Diferentemente dos juízes, que podem ser persuadidos a dar uma atenção

distinta ao argumento do filósofo: eles normalmente estão investidos em um status

judicial de mediação de opiniões temporariamente estabelecidas na arena democrática

e de verdades trabalhadas filosoficamente por comunidades idealizadas.

Assim, do ponto de vista de Walzer, Rawls estaria atuando na instância

filosófica, ao invés da instância política: constrói-se uma comunidade ideal, através da

posição original, supondo-se seres hipotéticos submetidos a um véu de ignorância,

completamente dissociados de suas contingências sociais e políticas, que vão

participar de regras universalizantes no debate sobre os princípios de justiça. O

resultado do procedimento seria a melhor proposta de justiça obtida a partir de

restrições que nada mais seriam do que opiniões de Rawls, enquanto filósofo,

moldando uma situação idealizada para, justamente, se adequar às suas opiniões

particulares.

Portanto, para Walzer, por não estar a teoria de Rawls situada no âmbito do

político, onde se admite, naturalmente, o intercâmbio entre visões conflitantes, a justiça

como equidade estaria fadada ao caráter arbitrário da instância filosófica, veiculando

nada mais que opiniões próprias de um filósofo específico, que presume arrogar haver

obtido a melhor proposta imparcial de justiça, válida para qualquer comunidade política

que se pretenda razoável.

Já do ponto de vista de Alasdair MacIntyre, um projeto como o rawlsiano não

tem como fornecer boas respostas. Para MacIntyre, o sujeito especificamente moderno

(por ele encarado como emotivista), não encontra limites estabelecidos para

julgamentos de pontos de vista, pois é negada a existência de critérios racionais de

avaliação. Tudo pode ser criticado de qualquer perspectiva arbitrariamente escolhida.

Assim, ser um agente moral torna-se, para alguns filósofos, afastar-se de toda e

qualquer situação em que se possa estar envolvido, bem como de toda e qualquer

145 Cf. WALZER, 1981, p. 390.

93

Page 105: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

característica que se possua, e submetê-las a julgamento de uma perspectiva

puramente universal e abstrata, destacada de qualquer particularidade social146. No

domínio da “moral, a supremacia da discordância é exaltada pelo título de ‘pluralismo’”

(MACINTYRE, 2001, p.65).

MacIntyre sugeriu que alguns episódios da história da Filosofia transformaram,

fragmentaram e deslocaram muito a moralidade, gerando a possibilidade desse eu

emotivista147. Nesse sentido, ele argumentou que a combinação profunda e incoerente

do novo alicerce prático e filosófico para um modo de vida antigo e herdado é a

consequência lógica do projeto iluminista de oferecer um alicerce racional para a

moralidade e sua justificação.

Ele exemplificou duas teses fundamentais à filosofia moral de Kant, que não

seriam aceitáveis148: I) se as normas da moralidade são racionais, devem ser iguais

para todos os seres racionais; II) se as normas de moralidade são obrigatórias para

todos os seres racionais, então a capacidade contingente de tais seres as obedecerem

deve ser irrelevante, pois o que importa é a vontade de obedecê-las. MacIntyre

continuou argumentando que Kant, Kierkegaard, Diderot e Hume fracassaram em seus

projetos, pois a justificação de cada postura foi feita para se apoiar no fracasso das

outras, e o total da soma da crítica de cada postura pelas outros demonstrou ser o

fracasso de todas149. Nesse sentido, MacIntyre concluiu que:

O projeto de oferecer uma justificativa racional da moralidade fracassaradecisivamente; e, daquele ponto em diante, a moralidade da nossacultura predecessora – e, por conseguinte, da nossa própria cultura –carecia de fundamentos lógicos ou justificativas públicas ecompartilhadas. Num mundo de racionalidade secular, a religião nãopoderia mais servir de pano de fundo em comum e de alicerce para odiscurso e a ação moral; e o fracasso da Filosofia em oferecer o que areligião não podia mais fornecer foi causa importante para que aFilosofia perdesse seu papel cultural fundamental e se tornasse umadisciplina periférica, estritamente acadêmica (2001, p. 96).

Para entender mais a fundo a importância desse fracasso de proporcionar uma

justificativa racional pública e compartilhada da moralidade, MacIntyre destacou que o

fracasso não decorreu apenas de uma sucessão de argumentações particulares – dos

filósofos acima mencionados –, pois bastaria, neste caso, aguardar alguém mais hábil

no manejo dos argumentos. Ele supôs que o fracasso se deveu a certas características

146 Cf. MACINTYRE, 2001, p. 65; MULHALL & SWIFT, 1996, pp. 75-76147 Cf. MACINTYRE, 2001, pp. 73 e 85.148 Cf. MACINTYRE, 2001, pp.85-89.149 Cf. MACINTYRE, 2001, p.95-96.

94

Page 106: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

em comum oriundas de suas circunstâncias históricas bem específicas. Eles

fracassaram como simples herdeiros de um esquema bem específico e particular de

crenças morais, num quadro de incoerência interna garantidora da falta de sucesso do

projeto filosófico desde o início150.

Ora, é perceptível, da perspectiva de MacIntyre, a rejeição a um projeto de

justificativa moral universal e abstrata tipicamente iluminista como o kantiano. Como

Kant buscava construir a lei moral a partir de um procedimento universalizante e

deontológico, velando pela vontade autônoma do sujeito, abstraindo-se das

contingências e das concepções de bem, para evitar uma vontade heterônoma na

criação de leis universais, essa postura implicaria incorrer na estrutura argumentativa

tipicamente iluminista que MacIntyre considerou incapaz de trazer resultados objetivos

com uma racionalidade aceitável.

Note-se, então, em acréscimo às considerações sobre esse modelo

argumentativo iluminista que MacIntyre tanto rejeitou, que a argumentação de Rawls na

busca de uma eleição imparcial dos princípios de justiça, abstraído das contingências e

das particularidades dos contextos sociais, assemelha-se consideravelmente a uma

perspectiva como a kantiana. Havendo essa semelhança, quanto aos aspectos

destacados por MacIntyre, conclui-se que a crítica direcionada ao projeto kantiano

também recai sobre o projeto rawlsiano de busca de justiça como imparcialidade com

traços deontológicos. Logo, do ponto de vista de MacIntyre, estando Rawls também

incluído nesse projeto iluminista, tal como Kant, o seu projeto de argumentação

racional, universal e abstrato também está condenado ao mesmo fracasso denunciado.

Portanto, é possível concluir que MacIntyre reprovou uma proposta que, nos

termos rawlsianos, equivale a uma proposta de justiça procedimental pura: tal

promessa não passaria de uma opção iluminista incapaz de oferecer respostas válidas

às demandas morais, dentre as quais se inclui os questionamentos sobre a justiça.

Deste modo, para MacIntyre, torna-se inócua a pretensão de uma proposta

universalizante de justiça.

Assim, com a exposição de alguns tópicos explicados por Sandel, Taylor, Walzer

e MacIntyre, pôde-se obter uma compreensão de como se dá a crítica comunitarista a

Uma teoria da justiça. Mulhall e Swift, após analisarem as críticas de Sandel, Taylor,

Walzer e MacIntyre e, sintetizaram as críticas comunitaristas a Uma teoria da justiça,

150 Cf. MACINTYRE, 2001, p. 97.

95

Page 107: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

agrupando-as em alguns tópicos principais comuns a todos eles151. Os tópicos comuns

da crítica comunitarista a Uma teoria da justiça são: a rejeição da concepção de pessoa

tal como delimitada pelo liberalismo, a rejeição da postura de um individualismo anti-

social, a descabida pretensão de universalidade acultural, a aspiração inaceitável de

conversão do subjetivismo em objetivismo e uma falsa neutralidade fundada numa

suposta postura de anti-perfeccionismo.

Outros autores, como Kukathas e Pettit (Rawls: ‘A Theory of Justice’ and Its

Critics,1990), Mulhall e Swift (Liberals and Communitarians, 1996) voltaram os olhos

para essas críticas, bem como para as próprias reformulações rawlsianas posteriores a

Uma teoria da justiça, visíveis em diversos artigos que, quando consolidados

sistematicamente, culminaram no advento de O liberalismo político, trazendo algumas

opiniões relevantes para a discussão proposta. Essas posturas são controversas, e o

debate repercute em questões referentes não só ao questionamento sobre o êxito ou

fracasso do projeto rawlsiano visível em Uma teoria da justiça, como também no

tocante à viabilidade, ou não, do procedimentalismo puro. A discussão também

repercute na consistência ou inconsistência da resposta rawlsiana às críticas

formuladas pelos comunitaristas.

O exame dos pontos até aqui levantados revela como as críticas comunitaristas

– a maioria delas dirigidas à justiça como equidade tal como apresentada ainda em

Uma teoria da justiça – imputaram incoerências ao projeto rawlsiano. Eis, nesse

sentido, um breve panorama da acusação comunitarista quanto à pretensa

neutralidade teórica (que, na presente dissertação, denominamos de imparcialidade) do

liberalismo:

Podemos, então, pensar a crítica comunitarista como a exposição da viapela qual a justificação padrão (ou seja, antes de O liberalismo Político)de doutrinas liberais da neutralidade do Estado foram elas mesmasbaseadas em um forte compromisso nada neutro com uma concepçãoliberal abrangente do bem. Taylor, por exemplo, argumentou que darprioridade ao justo sobre o bem pressupõe um compromisso com o bemsupremo liberal de autonomia, e Sandel argumentou que a visãorawlsiana da política foi fundada em uma concepção metafísicaaltamente controversa do sujeito (MULHALL & SWIFT, 2003, p. 473,tradução minha152).

151 Cf. MULHALL e SWIFT, 1996, pp. 9-33.152 Cf. original: “We can then think of the communitarian critique as exposing the way in which thestandard (i.e., pre-Political Liberalism) justifications of liberal doctrines of state neutrality were themselvesbased upon a strongly nonneutral commitment to a comprehensive liberal conception of the good. Taylor,for example, argued that giving priority to the right over the good presupposed a commitment to the liberalhypergood of autonomy; and Sandel argued that the Rawlsian vision of politics was founded on a highly

96

Page 108: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Nota-se, então, que as críticas comunitaristas apontam que a justiça como

equidade não é tão imparcial como parecia prometer. Deixando de ser imparcial, ela

também não estaria conseguindo imprimir o devido respeito à autonomia individual,

pois haveria, na deliberação hipotética conduzida sob o véu da ignorância, preferências

tanto sobre concepções de bem que estariam impostas, quanto sobre concepções de

bem que estariam previamente eliminadas dos debates efetuados na posição original.

Desta perspectiva, então, há quem interprete que as mudanças efetuadas por

Rawls em O liberalismo Político, ao delimitar o âmbito de discussão para a esfera

política, veicularam satisfatoriamente as pretensões de responder a essas acusações

de falta de neutralidade formulada pelos comunitaristas contra a primeira versão da

justiça como equidade:

A distinção de Rawls entre concepções políticas e abrangentes do bemfornece-lhe o que parece ser uma forma muito poderosa de responder àacusação de que suas pretensões de neutralidade são ilusórias. Eleargumenta que a prioridade do justo sobre o bem o capacita a usarcinco idéias diferentes do bem em sua teoria geral da justiça, sem violaro tipo de neutralidade com a qual ele está preocupado em conseguir.[...] Pressupor essas idéias do bem é, Rawls argumenta, compatívelcom um grau significativo de neutralidade entre as concepções do bem,porque elas são valores puramente políticos, aplicando-se apenas àesfera da política e elaborada a partir de recursos disponíveis na culturapolítica pública; a sua afirmação não pressupõe compromisso comqualquer concepção particular abrangente do bem, em vez disso,constrói sobre o terreno comum entre a gama de concepçõesabrangentes razoáveis sustentadas pelos cidadãos (MULHALL &SWIFT, 2003, pp. 471-472. tradução minha153).

Ainda sobre essa questão, Rainer Forst alertou que nenhuma teoria liberal

defende a tese de uma “neutralidade de efeitos” ou “de consequências”, no sentido de

que a implementação institucional de normas no interior de um sistema de direitos

tenham os mesmos efeitos sobre todas as opções pessoais de vida e concepções de

bem existentes no interior daquela comunidade jurídica. O que se vai proibir é a

discriminação das opções pessoais de vida, devendo-se observar, assim, uma

controversial metaphysical conception of the self.”153 Cf. original: “Rawls’s distinction between political and comprehensive conceptions of the good giveshim what seems a very powerful way of responding to the charge that his claims to neutrality are illusory.He argues that the priority of the right over the good allows him to use five different ideas of the good inhis overall theory of justice without violating the kind of neutrality he is concerned to achieve. […]Presupposing these ideas of the good is, Rawls argues, compatible with a significant degree of neutralitybetween conceptions of the good because they are purely political values, applying only to the sphere ofpolitics and elaborated from resources available in the public political culture; their affirmation does notpresuppose commitment to any particular comprehensive conception of the good but rather builds on thecommon ground between the range of reasonable comprehensive conceptions held by citizens”.

97

Page 109: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

“neutralidade de fins”154 para que as instituições básicas e as políticas públicas não

sejam orientadas a favorecer qualquer doutrina abrangente específica.

Assim, diante da perspectiva comunitarista acima ilustrada, Uma teoria da

justiça parece adotar um projeto pretensamente imparcial, tendo em vista tratar-se de

uma teoria liberal que se preocupa com o respeito às escolhas individuais da própria

noção de bem (ou, no vocabulário de O liberalismo político, a autonomia de escolha da

doutrina abrangente por parte de cada pessoa). Contudo, há delimitações e contornos

da posição original que culminam, quanto aos diversos posicionamentos que possam

ser debatidos pelas partes para eleição dos princípios de justiça, numa exclusão prévia

e definitiva de determinadas concepções de pessoa, de bem e até mesmo de

comunidade.

Considerando-se haver essa eliminação prévia de algumas concepções

importantes para o pensamento comunitarista, que não podem ser necessariamente

acusadas de serem “desprovidas de razoabilidade”, torna-se possível compreender que

a sua exclusão prévia do debate efetuado na posição original implica um caráter de

arbitrariedade. Essa arbitrariedade compromete a imparcialidade e a autonomia

pretendidas pela justiça como equidade. Desta maneira, o debate na posição original

seria, na perspectiva comunitarista, efetivamente menos neutro do que o sustentado

por Rawls.

Essa inconsistência denunciada pelos comunitaristas acima mencionados

implicaria, ao final, uma violação da autonomia individual e da imparcialidade tão

preconizada por Rawls, uma vez que determinadas posturas que não são, à primeira

vista, despidas de razoabilidade, seriam eliminadas do debate na posição original.

Como o procedimentalismo puro foi adotado por Rawls justamente para assegurar,

com imparcialidade, essa autonomia individual (e, em O liberalismo político, para

assegurar o pluralismo razoável), haveria um fracasso exatamente neste ponto. E esse

fracasso seria, quanto ao efeito final, equivalente ao erro de se aproximar, senão de

adotar, um procedimentalismo perfeito (tão rejeitado pelo próprio Rawls), que reside na

eliminação prévia da possibilidade de cada indivíduo escolher, com autonomia,

imparcialidade e razoabilidade, a concepção de bem, de pessoa e de comunidade que

lhe seja mais consentânea com sua existência concreta.

Por outro lado, a força das críticas comunitaristas a Uma teoria da justiça

motivou Rawls a efetuar algumas mudanças graduais, a ponto de em O liberalismo

154 Cf. FORST, 2010, p. 66.

98

Page 110: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Político sustentar uma versão da justiça como equidade com algumas distinções

significativas. E, mesmo quanto a esta nova versão, restrita ao domínio do político, há

entendimentos, como já exposto, no sentido de que há espaço para o intuicionismo

como modalidade de fundacionismo, o que também interfere nas questões da

imparcialidade e da autonomia que motivavam a proposta de uma justiça procedimental

pura, em vez de uma justiça procedimental perfeita.

Pode-se notar, portanto, como as críticas comunitaristas aqui exemplificadas,

dirigidas contra Uma teoria da justiça, podem ter guiado as reformulações ralwsianas

presentes em O liberalismo político. Quanto à acusação de Sandel de haver um único

resultado possível na deliberação da posição original, Rawls providenciou a defesa de

um pluralismo razoável, que passou a ocupar espaço decisivo na sua segunda obra.

Quanto à acusação de Taylor no sentido de que a proposta rawlsiana é inviável por

estar distanciada da matriz social, Rawls fortaleceu a concepção política de pessoa

como cidadão de uma sociedade bem ordenada. No tocante à crítica de Walzer

enquadrando a teoria da justiça como uma proposta meramente filosófica, ao invés de

política, Rawls efetuou mudanças para buscar, exatamente, uma concepção política de

justiça, sem pressuposições filosóficas, metafísicas ou religiosas. Quanto à acusação

de MacIntyre de ser estéril buscar uma justificação universalizante sobre questões de

justiça, abstraídas dos contextos sociais, Rawls passou a delimitar a busca de

princípios políticos de justiça direcionados para democracias constitucionais modernas,

a exemplo da sociedade estadunidense.

Essas mudanças, bem como suas implicações, constituem o objeto do próximo

capítulo.

99

Page 111: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

CAPÍTULO III

O PROCEDIMENTALISMO EM O LIBERALISMO POLÍTICO

Neste capítulo, analisam-se os contornos de respeito à autonomia e à

imparcialidade tal como reclamados pelo procedimentalismo puro, na maneira como foi

apresentada a justiça como equidade em O liberalismo político. Após, são

apresentadas críticas com repercussão sobre esses pontos, que sugerem uma

descaracterização do procedimentalismo rawlsiano.

3.1 Os objetivos do liberalismo político

Já na introdução de O liberalismo político, Rawls esclareceu que seus objetivos

são bem diferentes daqueles que motivaram Uma teoria da justiça. Ele explicou que,

em relação a Uma teoria da justiça, a tradição do contrato social aparece como parte

da filosofia moral e não se faz nenhuma distinção entre filosofia moral e política. Nas

palavras do próprio Rawls, “em Teoria, uma doutrina moral da justiça de alcance geral

não se distingue de uma concepção estritamente política de justiça” (LP, Introdução, p.

23). Deste modo, não há, na primeira obra, grande relevância no contraste entre, de

um lado, doutrinas filosóficas e morais abrangentes, e, de outro, concepções limitadas

ao domínio do político. No entanto, conforme ressaltou Rawls, essas distinções155 são

fundamentais em O liberalismo político.

Prosseguindo no detalhamento de sua proposta em O liberalismo político, Rawls

explicou que, no mundo antigo, no que dizia respeito às deliberações sobre a justiça,

não se conhecia o choque entre religiões salvacionistas, doutrinárias e expansionistas.

Em contraste156, o mundo moderno foi influenciado por três processos históricos

decisivos: I) a Reforma no século XVI, que fragmentou a unidade religiosa da Idade

Média e levou ao pluralismo religioso, acarretando, para os séculos seguintes, o

155 Cf. LP, p. 23.156 Cf. LP, pp. 28-31.

100

Page 112: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

fortalecimento de outros pluralismos; II) o desenvolvimento do Estado Moderno com

sua administração central, governado inicialmente por monarcas dotados de muitos

poderes; III) o desenvolvimento da ciência moderna no século XVII (Copérnico, Kepler,

Newton, Leibniz).

Especificamente no que diz respeito à Reforma, houve o surgimento de uma

tradição cristã protestante que passou a disputar espaço com a tradição cristã já

presente no interior da sociedade medieval. Com as guerras religiosas advindas dessa

cisão, surgiu, no entendimento de Rawls, o problema de como ser possível a

convivência, no mesmo espaço político público, de pessoas de diferentes concepções

religiosas. Assim, essas controvérsias sobre a tolerância157 religiosa, estariam na

origem histórica do liberalismo político e do liberalismo em geral. O debate sobre a

limitação dos poderes dos monarcas absolutistas por princípios constitucionais

adequados também integrou essa discussão, viabilizando o advento e a consolidação

progressiva da doutrina da proteção de direitos e de liberdades básicas. A partir disto,

teria surgido a noção moderna de liberdade de consciência e pensamento.

Deste modo, o choque irreconciliável entre as concepções de bem das pessoas

só pôde ser moderado pelas liberdades iguais de consciência e de pensamento. É

neste sentido, então, que, para Rawls, “o liberalismo político começa por levar a sério a

profundidade absoluta desse conflito latente e irreconciliável” (LP, p. 34). Prosseguindo,

Rawls apontou que, no tocante à relação entre o liberalismo político e a filosofia moral

do período moderno, enquanto a filosofia moral estava profundamente afetada pela

situação religiosa pós-Reforma, os principais escritores do século XVIII esperavam

estabelecer uma base de conhecimento moral independente da autoridade eclesiástica

e acessível à pessoa comum158, razoável e conscienciosa. Com esse intuito em mente,

três questões básicas passaram a ser investigadas pela filosofia moral.

A primeira questão é sobre o acesso e o conhecimento das normas que

regulamentam como se deve agir: essas regras são dadas diretamente a apenas

alguns poucos privilegiados (como o clero), ou são acessíveis a todas as pessoas

normalmente razoáveis e conscienciosas? A segunda pergunta é se a ordem moral

exigida de nós deriva de uma fonte externa (como uma ordem de valores divinos) ou

surge, de alguma maneira, da própria natureza humana, juntamente com os requisitos

de nossa vida em comum na sociedade. A terceira indagação é se devemos ser

157 Cf. LP, pp. 31-32.158 Cf. LP, p. 34.

101

Page 113: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

persuadidos ou levados a nos convencer de nossos deveres e obrigações por uma

motivação externa (como as sanções divinas ou estatais) ou por motivos suficientes já

contidos em nossa natureza.

Sobre as três perguntas, Rawls esclareceu que Hume e Kant, por exemplo,

optaram pela segunda alternativa de cada um dos questionamentos, afastando-se

categoricamente da postura segundo a qual somente alguns poucos teriam

discernimento moral e todos deveriam ser obrigados a fazer o certo pelas sanções

externas. Referindo-se a eles, disse que “nesse sentido, suas ideias fazem parte

daquilo a que chamo de liberalismo abrangente, em contraposição ao liberalismo

político” (LP, p. 35).

Explicando o delineamento específico do liberalismo político, distinto do

liberalismo abrangente, veja-se como essas três questões são abordadas:

O liberalismo político não é um liberalismo abrangente. Não adota umaposição geral sobre as três questões acima; deixa que sejamrespondidas à sua própria maneira pelas diferentes visões abrangentes.Contudo, no que diz respeito a uma concepção política de justiça numregime democrático constitucional, o liberalismo político defendecategoricamente a segunda alternativa em cada uma das questõespropostas. Nesse caso fundamental, defender essas alternativas fazparte do construtivismo político. Os problemas gerais de filosofia moralnão são da alçada do liberalismo político, exceto quando afetam amaneira pela qual a cultura de base e suas doutrinas abrangentestendem a apoiar um regime constitucional. O liberalismo político vê suaforma de filosofia política como possuidora de um tema próprio, qualseja: como é possível a existência de uma sociedade justa e livre emcondições de profundo conflito doutrinário, sem perspectiva deresolução? Para manter a imparcialidade entre doutrinas abrangentes, oliberalismo político não discute especificamente os tópicos morais quedividem essas doutrinas (LP, Introdução, pp. 35-36).

Concluindo esse tópico, Rawls afirmou que “procurei mostrar nas observações

acima que agora entendo justiça como equidade como uma forma de liberalismo

político”. Ou seja, não se trata mais de um mero liberalismo kantiano. Com estas

considerações, pode-se vislumbrar qual a perspectiva rawlsiana em O liberalismo

político.

Esclarecido o objetivo de O liberalismo político, convém avançar para a nova

caracterização da justiça como equidade, que passou a ser tomada como uma

concepção política de justiça. Essa caracterização será abordada no próximo tópico.

102

Page 114: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

3.2 A caracterização de uma concepção política de justiça: três requisitos

fundamentais do liberalismo político

Da nova perspectiva ralwsiana, percebe-se como o objetivo da justiça como

equidade é prático: “apresenta-se como uma concepção de justiça que pode ser

compartilhada pelos cidadãos como a base de um acordo político racional, bem-

informado e voluntário” (LP, Conferência I, §1º, p. 52). Ela expressa a razão política

compartilhada e pública de uma sociedade.

Para se chegar a uma razão compartilhada, a concepção de justiça deve ser,

tanto quanto possível, independente das doutrinas filosóficas e religiosas professadas

pelos cidadãos, que são conflitantes e, por vezes, opostas. Ao formular esta

concepção, o liberalismo político aplica o princípio da tolerância à filosofia: as doutrinas

religiosas, que noutros séculos formavam a base reconhecida da sociedade, e que

depois não mais conseguiam desempenhar esse papel conciliador e unificador, foram

gradualmente cedendo espaço para princípios constitucionais de governo que todos os

cidadãos pudessem endossar159, independente de quais sejam suas visões religiosas

em particular.

Desta perspectiva, doutrinas filosóficas e morais abrangentes não podem mais

constituir-se na base reconhecida da sociedade. Desse modo, o liberalismo político

procura uma concepção política de justiça que possa conquistar o apoio de um

consenso sobreposto que abarque as doutrinas religiosas, filosóficas e morais

razoáveis de uma sociedade regulada por ela. Por isto Rawls afirmou que “essa

concepção política deve ser, por assim dizer, política e não metafísica” (LP, p. 53).

Detalhando o enquadramento desta concepção como uma doutrina não

metafísica, Rawls afirmou que:

Por conseguinte, o liberalismo político tem por objetivo uma concepçãopolítica de justiça que se constitua numa visão auto-sustentável. Nãodefende nenhuma doutrina metafísica ou epistemológica específica,além daquela que a própria concepção política implica. Enquantointerpretação de valores políticos, uma concepção política auto-sustentável não nega a existência de outros valores que se apliquem,digamos, àquilo que é pessoal, familiar ou próprio das associações;tampouco afirma que os valores políticos são separados de outrosvalores ou que estejam em descontinuidade com eles. Um objetivo,como disse, é especificar a esfera política e sua concepção de justiçade tal forma que as instituições possam conquistar o apoio de umconsenso sobreposto. Nesse caso, os próprios cidadãos, no exercício

159 Cf. LP, Conferência I, §1º, pp. 52-53.

103

Page 115: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

de sua liberdade de pensamento e consciência, e considerando suasdoutrinas abrangentes, vêem a concepção política como derivada de —ou congruente com — outros valores seus, ou pelo menos não emconflito com eles (LP, Conferência I, §1º, p. 53).

Em seguida, Rawls, objetivando apresentar uma formulação mais explícita e

precisa, apontou as três características principais de uma concepção política de justiça,

ressaltando que a justiça como equidade possui os três caracteres típicos160 de uma tal

concepção.

A primeira característica refere-se ao objetivo de uma concepção política.

Embora tal concepção seja, evidentemente, uma concepção moral, trata-se de uma

concepção moral elaborada, especificamente, para instituições políticas, sociais e

econômicas. Ela se aplica, particularmente, ao que Rawls denominou “estrutura básica”

da sociedade, que, para seu propósito, ele supõe que seja uma democracia

constitucional moderna (um regime democrático). A estrutura básica é compreendida

como as principais instituições políticas, sociais e econômicas de uma sociedade, e a

maneira pela qual se combinam em um sistema unificado de cooperação social de uma

geração até a seguinte. Deste modo, o foco inicial de uma concepção política de justiça

é a estrutura das instituições básicas e os princípios, critérios e preceitos que se

aplicam a ela, bem como a maneira pela qual essas normas devem estar expressas no

caráter e nas atitudes dos membros da sociedade que realizam seus ideais.

A segunda característica refere-se ao modo de apresentação: uma concepção

política de justiça aparece como uma visão auto-sustentada. Embora se possa desejar

que uma concepção política seja justificada com referência a uma ou mais doutrinas

abrangentes, ela não é apresentada como tal, nem deriva de uma doutrina desse tipo

aplicada à estrutura básica da sociedade, como se essa estrutura fosse simplesmente

outro tópico ao qual a doutrina é aplicada. Há uma distinção entre a forma pela qual

uma concepção política é apresentada e o fato de fazer parte ou poder ser derivada de

uma doutrina abrangente. Rawls pressupôs que todos os cidadãos professem uma

doutrina abrangente que se relacione de alguma forma com a concepção política que

aceitam. Todavia, um traço distintivo de uma concepção política é o fato de ser

apresentada como auto-sustentável e explanada à parte, ou sem qualquer referência a

um contexto tão amplo. Nesse sentido, uma concepção política de justiça diferencia-se

de muitas doutrinas morais, pois estas são comumente consideradas visões gerais e

abrangentes. Uma concepção política tenta elaborar uma concepção razoável somente

160 Cf. LP, Conferência I, §2º, pp. 53-58.

104

Page 116: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

para a estrutura básica, e pretende não envolver, na medida do possível, nenhum

compromisso mais amplo com qualquer outra doutrina.

Ainda sobre a segunda característica, Rawls considerou que se torna mais claro

perceber o contraste entre uma concepção política de justiça e outras concepções

morais quando se atenta ao alcance delas, isto é, ao leque de objetos a que uma

concepção se aplica e ao conteúdo requerido. Uma concepção moral é geral quando

se aplica a um amplo espectro de objetos e, em casos extremos, a todos os objetos,

universalmente. É abrangente quando trata de concepções sobre o que tem valor na

vida humana, ideais de caráter pessoal, de amizade, de relações familiares e

associativas, bem como outras coisas que devem orientar a conduta e, em casos

extremos, a vida como um todo. Uma concepção é inteiramente abrangente quando

compreende todos os valores e virtudes reconhecidos dentro de um sistema articulado

de forma precisa; por sua vez, uma concepção é apenas parcialmente abrangente

quando compreende uma série, mas não todos os valores e virtudes não políticos,

exibindo articulação mais frouxa. Assim, muitas doutrinas religiosas e filosóficas

aspiram tanto à generalidade quanto à abrangência, diferentemente do que ocorre com

uma concepção política.

A terceira característica fundamental é a mais relevante para o presente estudo,

no que diz respeito à análise do procedimentalismo, pois trata de ideias implícitas na

cultura política pública de feição democrática. Sobre ela, vejam-se as palavras do

próprio Rawls:

A terceira característica de uma concepção política de justiça é que seuconteúdo é expresso por meio de certas ideias fundamentais, vistascomo implícitas na cultura política pública de uma sociedadedemocrática. Essa cultura pública compreende as instituições políticasde um regime constitucional e as tradições públicas de suainterpretação (inclusive as do judiciário), bem como os textos edocumentos históricos que são de conhecimento geral. As doutrinasabrangentes de todos os tipos — religiosas, filosóficas e morais —fazem parte do que podemos chamar de "cultura de fundo" dasociedade civil. É a cultura do social, não do político. É a cultura da vidacotidiana, de suas diversas associações: igrejas e universidades,sociedades de eruditos e cientistas, clubes e times, para citar apenasalgumas. Numa sociedade democrática, há uma tradição depensamento democrático, cujo teor é, no mínimo, familiar e inteligível aosenso comum civilizado dos cidadãos em geral. As diversas instituiçõesda sociedade, e as formas aceitas de interpretá-las, são vistas como umfundo de ideias e princípios implicitamente compartilhados (LP,Conferência I, §2º, p. 56).

105

Page 117: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Ora, nota-se que há um fundo político de ideias e princípios que, do ponto de

vista de Rawls, são implicitamente compartilhados. Como esses elementos são

considerados por Rawls na construção de seus princípios de justiça, abre-se espaço

para a consideração de que Rawls já utilizou, como ponto de partida, uma determinada

tradição, que já imprime seus contornos decisivos no resultado final da deliberação em

busca dos princípios de justiça. Isso permite espaço para críticas que apontam uma

parcialidade161 no projeto rawlsiano. Veja-se, com essas considerações, uma afirmação

do próprio Rawls especialmente relevante para o ponto destacado:

Assim sendo, a justiça como equidade parte de uma certa tradiçãopolítica e assume como sua ideia fundamental a ideia de sociedadecomo um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo, de umageração até a seguinte (§3). Essa ideia organizadora central correparalela a duas outras, fundamentais, que são suas companheirasinseparáveis: a de que os cidadãos (aqueles envolvidos na cooperação)são pessoas livres e iguais (§§3-3 e 5); e a de que uma sociedade bem-ordenada é efetivamente regulada por uma concepção política dejustiça (§6). (LP, Conferência I, §2º, pp. 56-57).

Rawls, ainda, acrescentou, sobre essa terceira característica, que essas ideias

podem ser trabalhadas numa concepção política de justiça capaz de conquistar um

consenso sobreposto. Esse consenso abrange todas as doutrinas religiosas, filosóficas

e morais razoáveis e conflitantes que provavelmente perdurarão ao longo das muitas

gerações e conquistarão número considerável de adeptos em um regime constitucional

mais ou menos justo, cujo critério de justiça é essa mesma concepção política.

Rawls, em outra passagem, referiu-se, novamente, mas desta vez de maneira

mais sistematizada, a um grupo de ideias e concepções que servem como ponto de

partida do liberalismo político, aí incluindo, até mesmo, concepções de pessoa e de

sociedade:

Para expor aquilo que chamei de liberalismo político, parti de váriasidéias básicas e conhecidas, implícitas na cultura política pública deuma sociedade democrática. Essas idéias foram elaboradas até setransformarem numa família de concepções em cujos termos oliberalismo político pode ser formulado e compreendido. A primeiradelas é a própria concepção de justiça política (§2); seguem-se a elatrês idéias fundamentais: a concepção de sociedade como um sistemaeqüitativo de cooperação social ao longo do tempo (§3) e as duas idéiasque a acompanham — a concepção da pessoa como livre e igual (§5) ea concepção de uma sociedade bem-ordenada (§6). Empregamos aindaduas outras idéias para apresentar a justiça como eqüidade: asconcepções de estrutura básica (§2) e da posição original (§4).

161Algumas dessas críticas estão detalhadamente tratadas no item 3.5 deste capítulo.

106

Page 118: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Finalmente, para apresentar uma sociedade bem-ordenada como ummundo social possível, acrescentamos a essas idéias as de umconsenso sobreposto e de uma doutrina abrangente e razoável (§6). Opluralismo razoável é especificado com referência a esta última. Anatureza da unidade social é dada por um consenso sobreposto estávelentre doutrinas abrangentes e razoáveis (IV: 1). (LP, Conferência I, §8º,pp. 87-88)

Em seguida, Rawls apontou os três requisitos que considera suficientes162 para

que a sociedade seja um sistema equitativo e estável de cooperação entre cidadãos

livres e iguais, profundamente divididos por doutrinas abrangentes e razoáveis que

professam: I) a estrutura básica da sociedade é regulada por uma concepção política

de justiça; II) essa concepção política é objeto de um consenso sobreposto entre

doutrinas abrangentes e razoáveis; III) a discussão pública, quando os fundamentos

constitucionais e questões de justiça básica estão em jogo, é conduzida nos termos da

concepção política de justiça. Com isso, ele concluiu que “esse resumo bem sucinto

caracteriza o liberalismo político e a forma segundo a qual ele entende o ideal de

democracia constitucional” (LP, Conferência I, §1º, p. 88).

E, finalizando o tópico, Rawls considerou que alguns poderiam protestar contra

esse uso de muitas concepções abstratas na construção de sua teoria. Em resposta a

essas possíveis críticas, Rawls argumentou163 que: I) na filosofia política, o trabalho de

abstração é necessário, uma vez que é acionado por conflitos políticos profundos; II)

controvérsias profundas e de longas datas preparam o terreno para a idéia de

justificação razoável enquanto problema prático, e não epistemológico ou metafísico;

III) recorre-se à filosofia política quando as percepções políticas compartilhadas

desmoronam e surgem profundas cisões interiores.

Ainda sobre esse ponto, em uma passagem que parece responder à acusação

de que a justiça como equidade seria uma concepção filosófica em que está

pressuposta a imposição de uma verdade desvencilhada de um contexto político,

Rawls afirmou que:

A filosofia política não se afasta, como pensam alguns, da sociedade edo mundo. E também não pretende descobrir o que é a verdade comseus próprios métodos distintivos de raciocínio, apartada de toda equalquer tradição de prática e pensamento políticos. Nenhumaconcepção política de justiça poderia ter peso entre nós se nãoajudasse a colocar em ordem nossas convicções refletidas de justiçaem todos os níveis de generalidade, do mais geral ao mais particular.Ajudar-nos a fazer isso é um dos papéis da posição original. […]

162 LP, Conferência I, §8º, p. 88.163 LP, Conferência I, §8º, p. 89.

107

Page 119: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, o trabalho de abstração não é gratuito: não se trata deabstração pela abstração. É, em vez disso, uma forma de continuar adiscussão pública, uma vez desmoronadas as percepçõescompartilhadas de menor generalidade. Devemos estar preparadospara descobrir que, quanto mais profundo o conflito, tanto maior o nívelde abstração a que devemos chegar para ter uma visão clara eordenada de suas raízes (LP, Conferência I, §8º, pp. 89-90).

Ainda neste ponto, há outra passagem de Rawls que também parece querer

responder às objeções comunitaristas164 no sentido de que a justiça como equidade

acaba trazendo imposições prévias, que são consideradas arbitrárias. Lembre-se da

observação de Sandel no sentido de que a posição original elimina, do debate,

algumas concepções de bem, além de impor princípios de justiça que seriam

dedutivos. Recorde-se, também, a argumentação de Walzer no sentido de pretender o

filósofo trazer opiniões filosóficas pessoais para o regramento do espaço político

público. Veja-se a maneira como Rawls parece querer responder a estas críticas:

A filosofia política, assim como os princípios da lógica, não pode impor-nos nossas convicções refletidas. […] Apesar disso, podemos, aocontrário, reafirmar nossos julgamentos mais específicos e decidirmodificar a concepção de justiça proposta, com seus princípios eideais, até que os juízos, em todos os níveis de generalidade, estejamfinalmente alinhados de uma forma refletida. É um erro pensar que asconcepções abstratas e os princípios gerais sempre se impõem emdetrimento de nossos juízos mais particulares. Esses dois lados denossa reflexão prática (para não falar dos níveis intermediários degeneralidade) são complementares e devem ser ajustados um ao outro,de modo que passem a fazer parte de uma visão coerente (LP,Conferência I, §8º, pp. 89-90).

Nota-se, aqui, pelo teor do argumento, uma possível resposta de Rawls à crítica

formulada por Walzer já exposta anteriormente, valendo-se, ainda que sem menção

expressa, da força da argumentação a partir do equilíbrio reflexivo.

Exposta, portanto, a caracterização de uma concepção política de justiça, pôde-

se vislumbrar como Rawls pretendeu replicar a algumas objeções provenientes do

pensamento comunitarista. Nota-se, também, ao adotar um ponto de partida situado

dentro de uma determinada tradição política, a abertura para críticas sobre a

(im)parcialidade de sua proposta. Essa acusação de parcialidade repercute no exame

do procedimentalismo puro.

Convém, portanto, analisar, agora, o outro ponto relevante para o

procedimentalismo puro: a autonomia. Esse é o objeto do próximo tópico.

164 Essas críticas estão expostas no item 2.7 desta dissertação.

108

Page 120: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

3.3 Procedimentalismo puro e autonomia no liberalismo político

Para Rawls, os cidadãos concebem a si mesmos como pessoas livres sob três165

aspectos: I) como pessoas que têm a capacidade moral de formular, revisar e buscar

concretizar racionalmente uma concepção do bem; II) como pessoas que são fontes

auto-autenticadoras de reivindicações válidas; III) como pessoas capazes de assumir

responsabilidade por seus fins. Dispor de liberdade conforme esses três aspectos

possibilita aos cidadãos ter autonomia, tanto a racional quanto a plena, que são

distintas, e explicadas por Rawls nos termos seguintes.

A autonomia racional é baseada no exercício da capacidade de formular, revisar

e procurar concretizar uma concepção do bem, e de deliberar de acordo com ela.

Também se manifesta na capacidade de entrar em acordo com os demais, quando as

restrições que são apresentadas são razoáveis. Nesse ponto, Rawls retomou a mesma

classificação dos procedimentalismos que mencionou em Uma teoria da justiça, bem

como alguns tópicos presentes em O construtivismo kantiano na teoria moral, e afirmou

que “a autonomia racional é representada fazendo-se da posição original um caso de

justiça procedimental pura” (LP, Conferência II, §5º, p. 117).

Com isto, ele quis dizer que os próprios cidadãos – por meio de seus

representantes, em vez do apelo a fontes externas ou autoridades divinas – é que

devem especificar os termos equitativos de sua cooperação social. Desta maneira, o

resultado da posição original produz os princípios de justiça apropriados para cidadãos

livres e iguais. Rejeita-se, então, da mesma maneira como Rawls já sustentara em

Uma teoria da justiça, a proposta de uma justiça procedimental perfeita, em que há um

critério independente e já determinado do que é justo (ou equitativo) e é possível criar

um procedimento capaz de assegurar um resultado que satisfaça esse critério.

Confirmando a manutenção da mesma proposta de procedimentalismo puro já

ventilada em Uma teoria da justiça, Rawls afirmou, agora em O liberalismo político,

que:

A característica essencial da justiça procedimental pura, emcontraposição à justiça procedimental perfeita, é a especificação do queé justo pelo resultado do procedimento, qualquer que seja. Não há umcritério prévio e já determinado em relação ao qual o resultado deva seravaliado (LP, Conferência II, §5º, p. 117).

165 Cf. LP, Conferência I, §5º (pp. 72-78) e Conferência II, §5º, pp. 116-117.

109

Page 121: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Considerando a posição original como um caso de justiça procedimental pura,

as deliberações das partes são conduzidas de maneira que possam modelar a

autonomia racional dos cidadãos representados. Há duas maneiras, segundo Rawls,

pelas quais essas partes são racionalmente166 autônomas167.

Convém, antes de explicar as duas maneiras, explicitar que as partes são os

sujeitos hipotéticos que participam da posição original, e, portanto, estão submetidas

ao véu da ignorância. Ou seja, as partes são, na situação hipotética, representantes de

cidadãos168 (pessoas reais), que possuem, em um dado momento da vida, uma

concepção de bem, interpretada por alguma doutrina abrangente. Portanto, partes e

cidadãos não se confundem. Devido ao véu da ignorância, as partes não conhecem as

concepções particulares de bem dos cidadãos representados. Mesmo assim, as partes

têm um interesse de ordem superior que as orienta a adotar princípios de justiça que

permitam às pessoas representadas (cidadãos) proteger e defender algumas

concepções não especificadas de bem ao longo de toda a vida, sem vedar a

possibilidade de mudança de opinião ou até de conversões de uma determinada

concepção abrangente para outra. Assim, caso se suponha que os cidadãos instruam

as partes sobre como querem ver seus interesses protegidos, e se a deliberação

ocorrer conforme as restrições da posição original, então as motivações deliberativas

não serão heterônomas ou egoístas. Essa postura de deliberação com autonomia é

afinada com uma cultura democrática169, em que os cidadãos se preocupam com suas

liberdades e oportunidades básicas, de maneira a viabilizar o desenvolvimento e o

exercício de suas capacidades morais, bem como a realização de suas concepções de

bem.

Compreendida essa distinção entre partes hipotéticas representantes e cidadãos

representados, pode-se avançar para as duas formas pelas quais as partes são

racionalmente autônomas. A primeira caracterização da autonomia racional das partes

está na constatação de que os princípios de justiça apropriados para uma regulação

equitativa da cooperação social constituem o resultado de um processo de deliberação

166 Cf. LP, Conferência II, § 5º, pp. 118-119.167 Neste ponto de O liberalismo político, nota-se que Rawls retomou e aperfeiçoou os delineamentossobre autonomia racional e autonomia completa que já foram sucintamente expostos em Oconstrutivismo kantiano na teoria moral, explicando como tais características estão presentes no planoda posição original (ressalvando-se, evidentemente, a autonomia completa, que faz parte dos cidadãosrepresentados, mas não das partes hipotéticas), bem como a maneira pela qual são consideradas noplano dos cidadãos da sociedade bem ordenada.168 Cf. LP, Conferência II, § 5º, p. 119.169 Cf. LP, Conferência II, § 5º, p. 121.

110

Page 122: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

racional conduzido pelas próprias partes. Deste modo, a avaliação das razões

favoráveis e contrárias aos possíveis princípios a escolher é determinada pela

ponderação efetuada pelas próprias partes. Assim, a combinação do peso de todas as

razões, em equilíbrio, determina os princípios em que se efetiva a concordância. Nesse

sentido:

Justiça procedimental pura significa que, em suas deliberaçõesracionais, as partes não se vêem obrigadas a aplicar nenhum princípiode direito e justiça determinado previamente, nem se consideramlimitadas por ele. Em outras palavras, não reconhecem nenhumaopinião externa a seu próprio ponto de vista, enquanto representantesracionais, pela qual sejam limitados por princípios anteriores eindependentes de justiça. Isso leva à ideia de que, quando os cidadãosestão equitativamente situados uns em relação aos outros, cabe a elesespecificar os termos equitativos de cooperação social, à luz do quecada um considera seu benefício pessoal, ou bem. Lembre-se (1:4) deque esses termos não são estabelecidos por uma autoridade externa,pela lei de Deus, por exemplo; e tampouco são reconhecidos comoequitativos por referência a uma ordem de valores anterior eindependente, conhecida por intuição racional (LP, Conferência II, §5º,p. 118).

A segunda maneira pela qual as partes são racionalmente autônomas é definida

pela natureza dos interesses que orientam suas deliberações como representantes dos

cidadãos. Como os cidadãos têm duas capacidades morais – capacidade de ter uma

concepção de bem e capacidade de ter um senso de justiça –, há também dois

interesses de ordem superior que lhes são correspondentes, voltados ao

desenvolvimento e exercício dessas duas capacidades morais. Esses interesses são

de ordem superior no sentido de que são vistos como básicos e, normalmente, efetivos

e reguladores dos demais interesses. Disso decorre, então, que, “como representantes

dos cidadãos, as partes adotam princípios garantidores das condições que asseguram

a essas capacidades seu desenvolvimento adequado e pleno exercício” (LP,

Conferência II, §5º, p. 119).

Portanto, pode-se sintetizar que Rawls considerou que os cidadãos são

racionalmente autônomos de duas formas: são livres dentro dos limites da justiça

política para realizar suas concepções permissíveis de bem, e, também, são motivados

a realizar seus interesses de ordem superior associados a suas capacidades morais.

De maneira análoga, as partes da posição original são racionalmente autônomas de

duas formas: são livres, dentro das delimitações da posição original, para realizarem

um acordo sobre quaisquer princípios de justiça que considerem mais vantajosos e,

111

Page 123: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

também, ao estimarem esses ganhos, consideram os interesses de ordem superior

dessas pessoas. Assim, “em ambas as formas, a descrição das partes modela a

autonomia racional dos cidadãos” (LP, Conferência II, §5º, p. 119).

Assim, o objetivo das partes na posição original é obter um acordo sobre os

princípios de justiça que capacite os cidadãos por elas representados a se tornarem

pessoas plenas, que desenvolvem adequadamente e exercem plenamente suas

capacidades morais e suas concepções de bem.

Rawls ressaltou que a autonomia racional, sendo distinta da autonomia plena, é

apenas um aspecto da liberdade. Na condição de detentoras de mera autonomia

racional, as partes são apenas pessoas artificiais que são supostas como participantes

da posição original enquanto dispositivo de representação. Daí a adjetivação da

autonomia racional também como artificial (algo como um mero artifício da razão, tal

como a posição original), que não é política.

Compreendida a noção de autonomia racional (artificial, não política),

prossegue-se para a noção de autonomia plena (política, não ética). Enquanto a

autonomia racional dos cidadãos é modelada na posição original pela maneira como as

partes, na condição de representantes, deliberam na posição original, a autonomia

plena dos cidadãos, por seu turno, é modelada pela maneira como as partes, na

posição original, se situam170 umas com relação às outras, bem como aos limites de

informação impostos à deliberação.

Quem é plenamente autônomo não são as partes da posição original, mas os

cidadãos de uma sociedade bem ordenada, em sua vida pública. Isso implica que, em

sua conduta, os cidadãos aceitam os princípios de justiça e agem conforme esses

princípios considerados justos. Eles também reconhecem tais princípios como aqueles

que seriam escolhidos na posição original. Deste modo, a autonomia plena é realizada

pelos cidadãos quando agem de acordo171 com os princípios de justiça que especificam

os termos equitativos de cooperação que eles aplicariam a si mesmos, quando

equitativamente representados como pessoas livres e iguais.

Rawls também alertou que essa autonomia plena atingida pelos cidadãos é um

valor político, e não um valor ético, de maneira a veicular a pretensão de se afastar de

doutrinas morais ou filosóficas abrangentes. Vejam-se as palavras que revelam a sua

preocupação de destacar a autonomia apenas numa feição estritamente política,

170 Cf. LP, Conferência II, § 6º, p. 122.171 Cf. LP, Conferência II, § 6º, p. 122

112

Page 124: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

apartando-se de uma defesa da autonomia que exigisse o compromisso com alguma

doutrina abrangente:

Enfatizo aqui que a autonomia plena é atingida pelos cidadãos: é umvalor político, não um valor ético. Com isso, quero dizer que ela serealiza na vida pública pela afirmação dos princípios políticos de justiçae pelo usufruto das proteções dos direitos e liberdades básicos; erealiza-se também pela participação nas questões públicas dasociedade e em sua autodeterminação coletiva ao longo do tempo.Essa autonomia plena da vida política deve ser distinguida dos valoreséticos da autonomia e da individualidade, que podem aplicar-se à vidacomo um todo, tanto social quanto individual, da forma expressa pelosliberalismos abrangentes de Kant e Mill. A justiça como equidadeenfatiza esse contraste: afirma a autonomia política de todos, mas deixao peso da autonomia ética para ser decidido pelos cidadãosseparadamente, à luz de suas doutrinas abrangentes (LP, ConferênciaII, §6º, p. 123).

Continuando a argumentação, Rawls explicou que a autonomia plena é

modelada, no plano hipotético da posição original, pelas condições razoáveis que são

impostas às partes como racionalmente autônomas. Nessas restrições estão

incluídas172: as condições equitativas sob as quais os representantes de pessoas livres

e iguais devem especificar os termos de cooperação social aplicados à estrutura

básica; as restrições apropriadas ao que as partes devem tomar como boas razões na

deliberação; a busca pela escolha de princípios que possam ser estáveis, tendo em

conta o fato do pluralismo razoável; a busca por princípios que possam ser objeto de

um consenso sobreposto de doutrinas razoáveis.

A posição original, portanto, conforme já explanado, deve ser equitativa. Nisto há

um apelo à “ideia fundamental de igualdade, tal como existente na cultura política

pública de uma sociedade democrática” (LP, Conferência II, §6º, p. 124). Essa

consideração é no sentido de que os cidadãos devem ser iguais em virtude de

possuírem, no grau mínimo necessário, as duas capacidades morais e outras

faculdades que os possibilitam tornarem-se membros cooperativos da sociedade.

Assim, os sujeitos que satisfizerem essa condição, são dignos dos mesmos direitos,

liberdades e oportunidades básicas, bem como da mesma proteção dada aos demais

sujeitos por parte dos princípios de justiça.

Sobre essa noção de igualdade que serve de parâmetro à configuração da

posição original como uma situação equitativa, Rawls assim se manifestou:

172 Cf. LP, Conferência II, § 6º, pp. 123-124.

113

Page 125: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Para moldar essa igualdade na posição original, dizemos que as partes,como representantes daqueles que satisfazem essa condição, estãosimetricamente situadas. Esse requisito é equitativo porque, paraestabelecer os termos equitativos da cooperação social (no caso daestrutura básica), a única característica relevante das pessoas é o fatode possuírem as capacidades morais (no grau mínimo necessário) eterem as capacidades normais para ser um membro cooperativo dasociedade ao longo de toda a vida. As características relativas àposição social, talentos naturais e casualidade histórica, assim como aoconteúdo das concepções específicas que as pessoas têm do bem, sãoirrelevantes, politicamente falando, e, por isso, cobertas pelo véu deignorância (1:4.2-3). É claro que algumas dessas características podemser relevantes numa decisão, julgando-se isso pelos princípios dejustiça, de nossa reivindicação para ocupar este ou aquele cargopúblico, ou para qualificar-nos para essa ou aquela posição de maiorprestígio; e essas características também podem ser relevantes paranossa participação nessa ou naquela associação ou grupo social dentroda sociedade. No entanto, não são relevantes para o status decidadania igual, compartilhada por todos os membros da sociedade. Porconseguinte, se aceitarmos a convicção extremamente genéricaexpressa pelo preceito de que os iguais em aspectos relevantes devemser representados igualmente, segue-se daí que é justo que oscidadãos, vistos como pessoas livres e iguais, quando representadosigualmente na posição original, representem-se equitativamente (LP,Conferência II, §6º, pp. 124-125).

Portanto, a despeito das diferenças de papel e do status social efetivo de cada

pessoa na sociedade, o status de cidadania igual173 se mantém. Então, para consagrar

um igual respeito a todos, cada um deles é representado igualmente na posição

original. E, assim procedendo, todos recebem a mesma proteção dos princípios

públicos de justiça.

Compreendidos os delineamentos da autonomia em O liberalismo político,

convém avançar para outro ponto, referente à criação dos princípios de justiça, que

traduz a maneira de operar as pretensões do procedimentalismo puro: trata-se do

construtivismo. A opção pelo construtivismo veicula a pretensão de se afastar de

posturas que criam ou constroem princípios de maneira incompatível com as

exigências de um procedimentalismo puro. Esse ponto é a matéria do próximo tópico.

3.4 Uma concepção construtivista

Prosseguindo na exposição, e de maneira coerente com a proposta de uma

justiça procedimental pura, Rawls afirmou sua opção por um “construtivismo político em

173 Cf. LP, Conferência II, § 6º, p. 125.

114

Page 126: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

contraste com o construtivismo moral de Kant, de um lado, e, de outro, com o

intuicionismo racional enquanto forma de realismo moral” (LP, Conferência III, p. 134).

Para esse construtivismo político, depois de obtido o equilíbrio reflexivo, os

princípios de justiça política (conteúdo de uma concepção política) podem ser

representados como o resultado de um certo procedimento de construção (estrutura de

uma concepção política). Nesse procedimento, modelado conforme a posição original,

os agentes racionais (partes representantes dos cidadãos) sujeitos a condições

razoáveis, escolhem os princípios públicos de justiça que devem regular a estrutura

básica da sociedade. Tal procedimento, para Rawls, sintetiza todos os requisitos

relevantes da razão prática174, além de mostrar como os princípios resultam da

conjugação desses requisitos com as concepções de sociedade e pessoa, também

ideias da razão prática.

A importância de uma concepção política construtivista está na relação com o

fato do pluralismo razoável e com a necessidade de uma sociedade democrática175

assegurar a possibilidade de um consenso sobreposto em relação aos seus valores

políticos fundamentais. Ela desenvolve os princípios de justiça a partir das ideias

públicas e compartilhadas da sociedade enquanto um sistema equitativo de

cooperação e de cidadãos como livres e iguais, utilizando os princípios de sua razão

prática comum. Seguindo esses princípios de justiça, os cidadãos demonstram ser

autônomos, em termos políticos, e de um modo compatível com suas doutrinas

abrangentes e razoáveis.

Ao optar por uma concepção construtivista de justiça política, Rawls pretendeu

se afastar da adesão a uma doutrina abrangente. Para melhor organizar seu

pensamento, ele examinou, num primeiro momento, o contraste com o realismo moral,

ilustrado pelo intuicionismo racional da forma como encontrado na tradição inglesa de

Clarke e Price, entre outros.

O intuicionismo racional (como uma forma de realismo moral), portanto, para

Rawls, tem as seguintes quatro características176 que o diferenciam do construtivismo

político: I) os princípios e juízos morais primeiros, quando corretos, são afirmações

verdadeiras a respeito de uma ordem independente de valores morais, e essa ordem

de valores não depende de nenhuma atividade da inteligência humana em particular,

nem é explicada por ela; II) os princípios morais primeiros são conhecidos pela razão

174 Cf. LP, Conferência III, p. 134.175 Cf. LP, Conferência III, p. 135.176 Cf. LP, Conferência III, §1º, pp. 136-137.

115

Page 127: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

teórica, pois o conhecimento moral é obtido parcialmente por um tipo de percepção e

intuição; III) não é requerida uma concepção mais completa de pessoa, sendo

suficiente que o agente do conhecimento seja capaz de reconhecer, via percepção e

intuição, a ordem de valores morais que define o conteúdo dos princípios morais; IV) a

verdade é concebida da maneira tradicional, pois se consideram verdadeiros os juízos

morais quando eles, por um lado, dizem respeito à ordem independente de valores

morais e, por outro lado, a descrevem com precisão; caso contrário, havendo falha

quanto a este papel, os juízos são considerados falsos.

No que corresponde aos quatro aspectos acima mencionados, o construtivismo

político apresenta as seguintes177 características: I) os princípios de justiça política

(conteúdo) são apresentados como resultado de um procedimento de construção

(estrutura), no qual os agentes racionais, na condição de representantes dos cidadãos

e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios que vão reger a estrutura

básica da sociedade; II) o procedimento de construção baseia-se,

preponderantemente, na razão prática, que é preocupada com a produção de objetos

de acordo com uma concepção desses objetos (a exemplo da concepção de um

regime constitucional justo considerando o objetivo da atividade política), e não na

razão teórica, que é preocupada com o conhecimento de determinados objetos; III)

utiliza-se, além de uma concepção de sociedade, uma concepção bem complexa de

pessoa, encarada como membro de uma sociedade política equitativa e de cooperação

social, e que ainda é detentora das duas faculdades morais (capacidade de ter senso

de justiça e uma concepção de bem), para dar forma e estrutura à sua construção; IV)

a concepção política prescinde do conceito de verdade, pois o que se pretende

especificar é uma noção do razoabilidade, que é aplicada a vários objetos, como

princípios, juízos, fundamentos, pessoas e instituições, incluindo os critérios que

servem para julgamento dos objetos a avaliar como razoáveis.

Essa ideia do razoável, em si, é definida pelos dois aspectos que caracterizam

as pessoas como razoáveis178: a disposição para propor e agir de acordo com os

termos equitativos de cooperação social entre iguais, bem como o reconhecimento e a

disposição para aceitar as consequências dos limites do juízo. Rawls esclareceu,

adicionalmente, que, para o liberalismo político, é fundamental que “sua concepção

construtivista não contradiga o intuicionismo racional, uma vez que o construtivismo

177 Cf. LP, Conferência III, §1º, pp. 138-139.178 Cf. LP, Conferência III, §1º, p. 139.

116

Page 128: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

procura evitar a oposição a qualquer doutrina abrangente” (LP, Conferência III, §1º, p.

140). Acrescentou, também, que, “tanto o construtivismo quanto o intuicionismo

racional baseiam-se na idéia do equilíbrio reflexivo” (LP, Conferência III, §1º, p. 140).

Portanto, não é nesses dois pontos que reside a diferença crucial entre ambas as

posturas.

Assim, de acordo com Rawls, a diferença substancial entre as duas visões está

na maneira como cada uma delas interpreta as conclusões consideradas inaceitáveis

e, portanto, merecedoras de revisão. Vejam-se as diferentes atitudes dos intuicionistas

e dos construtivistas:

O intuicionista considera correto um procedimento quando, ao segui-locorretamente, em geral leva ao julgamento correto a que se podechegar de forma independente, ao passo que o construtivista políticoconsidera um julgamento correto porque resulta do procedimentorazoável e racional de construção, quando corretamente formulado ecorretamente seguido [...]. Portanto, se o julgamento não for aceitável, ointuicionista diz que seu procedimento reflete uma interpretaçãoequivocada da ordem independente de valores. O construtivista diz quea falha deve estar na maneira pela qual o procedimento modela osprincípios da razão prática conjugados às concepções de sociedade epessoa. Pois a conjectura do construtivista é que o modelo da razãoprática, que, em seu conjunto, é correto, produzirá os princípios dejustiça considerados corretos depois de cuidadosa reflexão (LP,Conferência III, §1º, p. 141).

Uma vez alcançado o equilíbrio reflexivo, as posturas também serão diferentes:

o intuicionista diria que seus julgamentos ponderados agora são verdadeiros no que se

refere a uma ordem independente de valores morais; por sua vez, o construtivista diria

que o procedimento de construção modela corretamente os princípios da razão prática

conjugados às concepções apropriadas de sociedade e de pessoa, de maneira que “tal

procedimento representa a ordem de valores mais apropriada a um regime

democrático” (LP, Conferência III, §1º, p. 141). O construtivista ainda acrescentaria que

a maneira de encontrar o procedimento correto é pela reflexão, usando nossa

capacidade de raciocínio. Todavia, a razão poderia ser descrita erroneamente nos

contornos do procedimento, de maneira que a busca do equilíbrio reflexivo continua

indefinidamente.

Ressalte-se que, sendo pressuposto pela justiça como equidade o fato do

pluralismo razoável, os cidadãos não podem concordar sobre uma autoridade moral

(um texto sagrado ou instituição) ou sobre uma ordem de valores morais, como fatores

legitimadores ou justificadores do acordo. Assim, adota-se uma visão construtivista

117

Page 129: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

para especificar os termos equitativos de cooperação social, em cuja base são

encontradas as ideias fundamentais da cultura política e pública, bem como os

princípios da razão prática compartilhados pelos próprios cidadãos. Por esta

perspectiva, vislumbra-se, segundo Rawls, a compatibilidade do construtivismo com um

regime179 constitucional.

Então, Rawls reiterou alguns pontos já anteriormente expostos, relacionando-os

ao construtivismo, para afirmar que este é o caminho que pode dar esperanças de um

acordo sobre a vivência política compartilhada entre pessoas diferentes entre si:

Assim, é somente endossando uma concepção construtivista —umaconcepção que é política, e não metafísica — que os cidadãos podemter esperanças de encontrar princípios que todos possam aceitar. Isso éalgo que podem fazer sem negar os aspectos mais profundos de suasdoutrinas abrangentes e razoáveis. Dadas as divergências entre eles,os cidadãos não podem realizar de nenhuma outra forma seu desejo,dependente de concepção, de ter uma vida política compartilhada emtermos aceitáveis para outros como pessoas livres e iguais. (LP,Conferência III, §1º, p. 143).

Em acréscimo, atento aos propósitos veiculados pela opção por uma justiça

procedimental pura, Rawls reiterou que a autonomia política almejada e viabilizada pela

justiça como equidade não constitui um valor moral previamente imposto:

Essa ideia de uma vida política compartilhada não envolve a ideia deautonomia de Kant nem a ideia de individualidade de Mill, no sentido devalores morais que fazem parte de uma doutrina abrangente. O apelodiz respeito mais ao valor político de uma vida pública conduzida deacordo com termos que todos os cidadãos razoáveis possam aceitarcomo equitativos. […]. Fazer isso é algo que nos possibilita formular osignificado de uma doutrina política autônoma como uma doutrina querepresenta, ou expressa, os princípios políticos de justiça — os termosequitativos de cooperação social — como princípios aos quais se podechegar pelo uso daqueles da razão prática, conjugados com asconcepções apropriadas das pessoas como livres e iguais e dasociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo dotempo. O argumento que parte da posição original evidencia essa linhade pensamento. A autonomia é uma questão de como a visãoapresenta os valores políticos como ordenados. Pensemos nisso comoautonomia doutrinária. (LP, Conferência III, §1º, p. 143).

Assim, para Rawls, essa postura adotada na justiça como equidade é

autônoma180 porque, em sua ordem representada, os valores políticos da justiça e da

razão pública não são meramente apresentados como exigências morais impostas a

partir de fora. Também não são impostos como uma obrigação de um cidadão em179 Cf. LP, Conferência III, §1º, p. 142.180 Cf. LP, Conferência III, §1º, pp. 143-144.

118

Page 130: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

aceitar as doutrinas de outros. Os cidadãos podem, de maneira não heterônoma,

entender esses valores como fundamentados em sua razão prática, conjugada a

concepções políticas de cidadãos livres e iguais e de sociedade como um sistema de

cooperação equitativa. Deste modo, Rawls concluiu que:

Ao endossar a doutrina política como um todo, nós, enquanto cidadãos,somos autônomos em termos políticos. Portanto, uma concepçãopolítica autônoma proporciona uma base e uma ordenação dos valorespolíticos apropriadas para um regime constitucional caracterizado pelopluralismo razoável. (LP, Conferência III, §1º, p. 144).

Compreendida a distinção entre o construtivismo político e o intuicionismo,

avança-se, agora, para a diferenciação entre o construtivismo político da justiça como

equidade e o construtivismo moral de Kant. Há uma interligação entre as duas

perspectivas, mas o construtivismo político rawlsiano guarda especificidades em

relação ao construtivismo moral kantiano. Rawls sistematizou as distinções em

quatro181 pontos, abaixo explicados.

Em primeiro lugar, a doutrina de Kant é uma visão moral de liberalismo

abrangente, em que o ideal de autonomia desempenha um papel regulador para tudo

na vida. Rawls, por sua vez, não nega que uma tal visão abrangente possa fazer parte

de um consenso sobreposto razoável que endosse uma concepção política, mas

ressalta que uma adesão a esse liberalismo abrangente não seria apropriada para

fornecer uma base pública de justificação.

Em segundo lugar, no liberalismo político, como já exposto antes, a visão política

é doutrinariamente autônoma quando apresenta a ordem dos valores políticos como

uma ordem baseada nos princípios da razão prática, conjugada às concepções

políticas apropriadas de sociedade e pessoa. Diferentemente desta autonomia

meramente política, que é a defendida por Rawls em O liberalismo político, há uma

modalidade mais profunda de autonomia, chamada de autonomia constitutiva, que

prescreve que a ordem dos valores morais e políticos deve fazer-se, ou constituir-se,

pelos princípios e concepções da razão prática. Rawls imputou a Kant a postura

firmada na autonomia constitutiva que sustenta que a ordem independente de valores

não se constitui por si mesma (tal como sustentando pelo intuicionismo racional), mas,

antes, é constituída pela atividade, real ou ideal, da própria razão prática (humana).

Para Rawls, portanto, o construtivismo de Kant é mais profundo e atinge a

própria existência e constituição da ordem de valores. Já a ordem independente de181 Cf. LP, Conferência III, §2º, pp. 144-147.

119

Page 131: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

valores do intuicionista integra o realismo transcendental ao qual Kant opõe seu

idealismo transcendental. Rawls concluiu o ponto afirmando que “não há dúvida de que

o liberalismo político deve rejeitar a autonomia constitutiva de Kant” (LP, Conferência

III, §2º, p. 145), mesmo admitindo que seu construtivismo moral possa endossar o

construtivismo político, até onde vai este último. Afinal, para Rawls, no liberalismo

político, preocupado com a tolerância e com o pluralismo, é importante a aceitação –

para a eleição e para aplicação dos princípios políticos de justiça – do construtivista

moral de feição kantiana tanto quanto182 é importante a aceitação do intuicionista

racional, dentre inúmeras outras posturas filosóficas distintas.

Em terceiro lugar, as concepções básicas de pessoa e sociedade na visão de

Kant tem um fundamento em seu idealismo transcendental. Todavia, na justiça como

equidade, certas ideias fundamentais – que são políticas – são utilizadas como ideias

organizadoras básicas. Assim, o idealismo transcendental e outras doutrinas

metafísicas não desempenham nenhum papel na organização e exposição do

liberalismo político.

Em quarto lugar, o objetivo da justiça como equidade é descobrir uma base

pública de justificação no tocante a questões de justiça política, dado o fato do

pluralismo razoável. Para Rawls, portanto, a justificação do liberalismo político precisa

ser apta a assegurar um acordo estável:

Como a justificação se dirige aos outros, origina-se no que é, ou podeser, defendido em comum; por isso começamos com idéiasfundamentais e compartilhadas, implícitas na cultura política e pública,na esperança de desenvolvê-las a partir de uma concepção política quepossa chegar a um acordo livre e refletido no juízo, sendo esse acordoestável em virtude de conquistar um consenso sobreposto de doutrinasabrangentes e razoáveis. Essas condições são suficientes para umaconcepção política e razoável de justiça (LP, Conferência III, §2, p. 146).

Já o objetivo de Kant seria, segundo Rawls, bem diferente: mostrar a coerência

e a unidade da razão, tanto teórica quanto prática, consigo mesma, bem como apontar

por que devemos entender a razão como o tribunal supremo e último, como o único

que tem competência para resolver todas as questões sobre o alcance e os limites de

sua própria autoridade. A visão kantiana rejeitaria qualquer doutrina que solapasse a

unidade e a coerência da razão teórica e da razão prática.

182 Essa informação, embora muito importante, foi informada por Rawls apenas no rodapé da página 145do LP.

120

Page 132: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Assim, as quatro distinções possuem, para Rawls, alcance suficiente para

patentear a especificidade da justiça como equidade perante o construtivismo moral de

Kant.

Compreendida a distinção entre o construtivismo moral e o construtivismo

político, prossegue-se, agora, para outros esclarecimentos sobre o construtivismo, com

relevância sobre a questão da justiça procedimental pura. Com a adoção do

construtivismo na justiça como equidade, a pretensão é formular uma representação

procedimental na qual, tanto quanto possível183, todos os critérios relevantes para o

raciocínio correto – no caso do construtivismo político, buscando resultados políticos –

sejam incorporados e abertos à visão. Assim, os julgamentos daí resultantes são

razoáveis e válidos quando resultam da aplicação correta do procedimento correto, e

se apoiam unicamente em premissas verdadeiras. O procedimento mostra as

propriedades básicas que constituem os pontos relevantes, de maneira que as

proposições, quando corretamente derivadas do procedimento, sejam adequadas.

Sobre o construtivismo especificamente político, Rawls trouxe três184

considerações. A primeira consideração é que o objeto construído é o conteúdo de

uma concepção política de justiça. Na justiça como equidade, esse conteúdo consiste

nos princípios de justiça selecionados pelas partes na posição original.

A segunda observação é que a posição original, enquanto artifício

procedimental, não é construída, mas simplesmente estipulada185. Parte-se da ideia

fundamental de uma sociedade bem ordenada como um sistema equitativo de

cooperação entre cidadãos racionais, razoáveis, livres e iguais, para, em seguida,

conceber-se um procedimento que evidencie condições razoáveis a serem impostas às

partes nas deliberações voltadas à criação dos princípios que vão reger as interações

sociais. Fazendo isto, o objetivo é expressar nesse procedimento todos os critérios

relevantes de razoabilidade e racionalidade que se aplicam aos princípios e normas da

justiça política. Deste modo, “a concepção política dos cidadãos como membros

183 Neste ponto, Rawls esclareceu, na nota de rodapé número 13 da p. 147 de LP, que usou a expressão“tanto quanto possível” porque nenhuma especificação desses critérios pode ser considerada final, outratada como se o fosse; toda a tradução dos critérios relevantes (a exemplo de um ideal de pessoaracional e razoável) está sempre aberta à verificação da reflexão crítica. Ele também ressaltou que “éassim, mesmo que, no presente, estejamos inteiramente confiantes em nossas formulações dosprincípios e não consigamos ver como poderiam estar seriamente errados”.184 Cf. LP, Conferência III, §3º, pp.148-152.185 Com isto, torna-se plausível afirmar que a posição original é um critério de justiça, sendo umacondição de possibilidade para se proceder à distribuição de justiça. A interpretação da posição originalcomo um critério (algo já estipulado) abre espaço para diversas críticas que apontam haver umaparcialidade já no ponto de partida da justiça como equidade, uma vez que a argumentação a favor dosprincípios de justiça indicados por Rawls também é proveniente da posição original.

121

Page 133: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

cooperativos de uma sociedade bem-ordenada dá forma ao conteúdo da justiça e dos

direitos políticos” (LP, Conferência III, §3º, p. 149).

A terceira observação esclarece o significado de dizer que as concepções de

cidadão e de uma sociedade bem-ordenada estão incrustadas no procedimento ou são

por ele modeladas. Tal postura implica que a forma do procedimento e suas

características mais peculiares são obtidas dessas concepções que lhes servem de

base. A título de exemplo, a faculdade moral de os cidadãos terem uma capacidade

para uma concepção de bem é modelada no procedimento pela racionalidade das

partes artificiais, assim como a faculdade moral de os cidadãos terem um senso de

justiça é modelada pela condição razoável de simetria ou igualdade dos representantes

com informações limitadas pelo véu de ignorância.

Por isso, após apontar as três considerações acima expostas, Rawls concluiu

que há um ponto de partida estipulado em que estão incorporados alguns elementos

cuja articulação recíproca conduz à construção dos princípios:

Concluindo: nem tudo, portanto, é construído; precisamos dispor de ummaterial, por assim dizer, com o qual começar. Num sentido mais literal,somente os princípios substantivos que especificam o conteúdo dajustiça e do direito políticos são construídos. O próprio procedimento ésimplesmente estipulado, usando-se como pontos de partida asconcepções básicas de sociedade e pessoa, os princípios da razãoprática e o papel público de uma concepção política de justiça (LP,Conferência III, §3º, p. 150).

Portanto, com essa conclusão, somadas a todas as considerações anteriores,

nota-se que, em atenção ao procedimentalismo puro, Rawls demonstrou acreditar que

não estão sendo utilizados critérios prévios que definam o conteúdo do justo. Para ele,

a autonomia e a imparcialidade continuaram sendo respeitadas na última versão da

justiça como equidade. Note-se que se trata de explicar, neste momento, como Rawls

encarou os delineamentos de sua teoria, e como compreendeu ter logrado êxito em

suas pretensões.

Todavia, é justamente na assunção rawlsiana de que algumas concepções –

com feições inequivocamente substantivas, do ponto de vista de alguns comentadores

de Rawls – são utilizadas como pontos de partida da justiça como equidade, que

alguns críticos vislumbraram um comprometimento das promessas de autonomia e

imparcialidade. Assim, com a violação dessas promessas, as críticas denunciaram, em

Rawls, uma postura menos próxima de um prometido procedimentalismo puro, e mais

afinada com um procedimentalismo perfeito, que foi declaradamente rejeitado por ele.

122

Page 134: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Convém, agora, avançar para essas críticas, cujas análises trazem repercussões

diretas sobre a questão de ter, ou não, Rawls mantido sua teoria afinada com os

propósitos do procedimentalismo puro. Este estudo das críticas é o objeto do próximo

tópico.

3.5 Críticas ao liberalismo político: o afastamento do procedimentalismo puro

Ante o exposto, restou patente o propósito rawlsiano de manter, em O

liberalismo político, a mesma proposta apresentada em Uma teoria da justiça,

especificamente no que diz respeito à adoção da perspectiva de uma justiça

procedimental pura. Apesar das mudanças operadas entre as duas obras, Rawls

continuou pretendendo resguardar a autonomia e a imparcialidade, tal como

preconizado pelo tipo de procedimentalismo declaradamente adotado.

Todavia, há autores que apontaram, sob uma perspectiva crítica, alguns

elementos da justiça como equidade que repercutem no êxito da proposta rawlsiana, tal

como declarada. A repercussão ocorre devido a possíveis enfraquecimentos, na teoria

rawlsiana, de pontos que seriam essenciais para o devido resguardo da autonomia

e/ou da imparcialidade tão caras ao procedimentalismo puro. Assim, de acordo com as

considerações globais desta perspectiva crítica, seria possível detectar um

enfraquecimento da postura de uma justiça procedimental pura, com uma aproximação

a uma indesejada – por Rawls – proposta de justiça procedimental perfeita.

Vejam-se, então, alguns dos argumentos relevantes para essa compreensão.

Serão analisadas, neste tópico, as críticas apontadas por Brian Barry, David Lyons,

Margarita Cepeda, Stephen Mulhall, Adam Swift, Roberto Alejandro e Jon Mahoney.

Brian Barry apresentou, em sua obra Theories of justice – a treatise on social

justice, um tópico em que questionou se o construtivismo186 é uma forma de

intuicionismo. Sua argumentação pode ser resumida na forma dos pontos a seguir.

Partindo da perspectiva que vê no construtivismo uma alternativa ao intuicionismo, ele

afirmou que é possível vislumbrar três posturas sobre a relação entre os dois: pela

primeira, o construtivismo pode ser um método completamente independente do

intuicionismo; pela segunda, em outro extremo, o construtivismo seria uma mera

variante do intuicionismo; pela terceira, em um ponto de vista mais intermediário, o

186 Cf. BARRY, 1989, § , pp. 271-282.

123

Page 135: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

construtivismo não pode ser totalmente independente do intuicionismo, mas também

não é inteiramente redutível a ele.

Partindo, então, da distinção entre teorias da justiça como vantagem mútua e

teorias da justiça como imparcialidade, ele sustentou que o construtivismo, embora não

seja independente das intuições, não se reduz simplesmente a uma forma de

intuicionismo. Ele afirmou que, em casos de teorias como a da posição original, parece

ser inevitável o apelo a intuições morais. Para ele, mesmo Rawls tendo feito uma

oposição entre seu construtivismo político e o intuicionismo racional, Rawls continuou

apelando, tanto em Uma teoria da justiça, quanto em artigos posteriores, a

“julgamentos ou convicções consideradas”, que são, do ponto de vista de Barry,

verdadeiras intuições.

Assim, a especificação rawlsiana das situações de escolha na posição original

deverão estar justificadas em algumas reivindicações morais substantivas. Mesmo

quando as pessoas estão sujeitas aos limites do razoável, buscando, além dos próprios

interesses – dimensão da racionalidade –, um acordo razoável, a noção de

razoabilidade também envolve uma referência inevitável a intuições. A título de

exemplo, Rawls sustentou que um dos pontos fixos dos julgamentos considerados é o

de que ninguém tem o mérito de ter nascido numa determinada posição social

favorecida no mundo real, ou com determinado talento que lhe seja vantajoso. Para

Barry, esse “ponto fixo” nada mais é que uma intuição ética de um princípio substantivo

mais genérico. E essa intuição, em particular, seria incorporada à posição original por

meio da negação, às partes, do conhecimento das informações sobre suas vantagens

naturais e sociais.

Deste modo, uma vez que se admite que intuições substantivas ingressam nas

especificações da posição original, a afirmação rawlsiana de que o construtivismo é

algo diferente do intuicionismo, torna-se mais frágil. Então, trazendo essas

considerações para o âmbito do procedimentalismo, ele concluiu que:

Muito claramente a noção de justiça procedimental pura passa doslimites aqui. A justificativa da posição original é que ela produz asrespostas certas. Isto significa, nos termos de Rawls, justiçaprocedimental perfeita, em vez de justiça procedimental pura. ComoDavid Lyons pôs este ponto: "Se houver fundamentos externos aoargumento contratual para julgar a justiça dos arranjos sociais, então anoção ralwsiana da "justiça como equidade" parece estar desacreditada... Mas, se a noção de justiça procedimental pura é voltada a realizarseu trabalho de validar o argumento contratual, então Rawls não podeconsiderar o argumento da coerência como outra coisa que não seja

124

Page 136: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

uma justificativa ou defesa de princípios morais" [...] No sentido amplode "intuicionismo" que estou empregando, é evidente que a construçãode princípios que contenham dadas intuições particulares constitui-seem uma atividade completamente intuicionista (BARRY, 1989, p. 278,tradução minha187).

Ainda do ponto de vista de Brian Barry, a posição original é, por si só, uma

representação insatisfatória das circunstâncias de imparcialidade. Circunstâncias e

restrições apenas de índole formal não especificam elementos suficientes cuja

articulação viabilize a produção de regras de justiça com conteúdo. Então, na medida

em que os requerimentos caracteristicamente formais de uma situação de escolha

equitativa são insuficientes para gerar conteúdos de princípios de justiça, Rawls se viu

obrigado a acrescentar premissas éticas substantivas de ordem mais elevada, que

tomam a forma de princípios ou até de meta-princípios. Isto, por um lado, deixa a

construção com um certo grau de autonomia, mas, por outro lado, do ponto de vista de

Brian Barry, torna o construtivismo rawlsiano dependente188 do intuicionismo, mas não

simplesmente redutível a ele.

Ressalte-se que a crítica acima formulada por Brian Barry refere-se,

basicamente, a Uma teoria da justiça e a alguns escritos posteriores, tais como O

construtivismo kantiano na teoria moral. Com isso, a análise ainda não tinha recaído

sobre O liberalismo político, que somente foi lançado alguns anos após a crítica

exposta. Todavia, mesmo que a crítica não tenha explicitamente atingido a última obra,

a sua análise termina sendo extensível a ela.

Essa extensão da crítica de Brian Barry se explica porque, ainda que a

discussão exposta em O liberalismo político tenha sido restrita ao âmbito do político – e

não mais ao amplo domínio moral –, Rawls mencionou expressamente – em diversos

pontos que destaquei na exposição anterior – que se utilizaria de ideias e concepções

implícitas na cultura pública dos regimes democráticos. Como tais elementos

ingressam nas restrições da posição original, a acusação de intuicionismo seria

plenamente extensível ao construtivismo político.

187 Cf. original: “Pretty clearly the notion of pure procedural justice goes by the board here. Thejustification of the original position is that it produces the right answers. This is, in Rawls's terms, perfectprocedural justice rather than pure procedural justice. As David Lyons put he point: “If there are groundsexternal to the contract argument for judging the justice of social arrangements, then Rawls' 'justice asfairness' notion would seem to be discredited... But if the notion of pure procedural justice is to do its jobof validating the contract argument, then Rawls can not regard the coherence argument as anything likea justification or defense of moral principles” […] In the broad sense of “intuitionism” that I am employing,it is plain that constructing principles to fit given particular intuitions is a thoroughly intuitionisticenterprise”.188 Cf. BARRY, 1989, pp. 280 e 282.

125

Page 137: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, para Brian Barry, o construtivismo político rawlsiano é, em alguma

medida, dependente do intuicionismo como justificação. Esta crítica significa, no âmbito

do procedimentalismo, um afastamento da modalidade pura e uma aproximação da

modalidade perfeita, com a utilização de critérios anteriores que são decisivos na

produção de resultados.

David Lyons, em seu Nature and soundness of contract and coherence

arguments (1989), sustentou, referindo-se a Uma teoria da justiça, que, caso alguém

entenda que a argumentação coerentista favorece a proposta rawlsiana, está

cometendo um equívoco189, pois a justiça como equidade é, para ele, “um apelo direto

à intuição moral, e não um argumento pelos princípios, no fim das contas” (LYONS,

1989, p. 149).

Para David Lyons, um argumento de feição coerentista para justificação de

princípios morais envolve: I) mostrar que eles combinam com nossos julgamentos

intuitivos – de nível mais baixo – sobre casos específicos, servindo de suporte para

esses julgamentos e para a extensão deles a outros casos, em um caminho aceitável;

II) ressalvar que nem todos os julgamentos que fazemos devem ser usados, mas

apenas aqueles que, razoavelmente, parecem expressar nossas convicções morais

básicas, sem hesitações, merecendo, após reflexão, serem firmemente reafirmados; III)

defender que considerações alternativas de tais julgamentos já reafirmados não

constituem a escolha mais condizente com os dados morais disponibilizados.

Baseado neste delineamento, ele compreendeu que Rawls sugeriu, em Uma

teoria de justiça, uma argumentação coerentista190 pelos princípios de justiça. Isso

equivale a dizer que há justificação daqueles princípios rawlsianos quando os dados

morais (os julgamentos morais considerados contra os quais os princípios propostos

devem ser confrontados) são sustentados por um número de indivíduos em comum.

Com essas considerações, ele apontou duas críticas à tentativa rawlsiana de

justificação coerentista dos princípios de justiça propostos naquela obra.

Uma primeira crítica é no sentido de que um argumento coerentista não pode

ser conclusivo, porque “nenhum de nossos julgamentos morais – nem mesmo aqueles

'pontos fixos' que estamos preparados para confirmar – podem ser considerados

incorrigíveis” (LYONS, 1989, p. 146). Aliás, qualquer quadro de julgamentos

considerados vai ter, pelo menos, alguma implicação com um “grupo de princípios

189 Cf. LYONS, 1989, pp. 141-167.190 Cf. LYONS, 1989, pp. 145-146.

126

Page 138: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

inicialmente propostos, intuitivamente atrativos e iluminadores, que parecem

fundamentá-los e para a eles se estenderem em uma caminho aceitável” (LYONS,

1989, p. 146). Com isso, ele não aceitou a ideia de que Rawls tenha eliminado todas as

alternativas viáveis:

para alcançar um ajuste satisfatório entre julgamentos e princípios,alguns julgamentos devem ser descartados, ou os princípios iniciaisdevem ser modificados, ou ambos. E mais mudanças podem resultar doconfronto entre concepções alternativas. Como conseqüência, e porqueos nossos juízos ponderados compartilhados cobrem apenas uma gamalimitada de casos, explicações alternativas são sempre possíveis, e semregras claras que possam nos dizer qual é a melhor. Assim, Rawls nãofaz e não pode alegar que os seus princípios combinam perfeitamentecom nossos juízos ponderados ou que o utilitarismo estáconclusivamente descartado (LYONS, 1989, p. 146, tradução minha191 ).

A segunda crítica é, para Lyons, ainda mais comprometedora da força

justificativa da argumentação coerentista. Ele trouxe a seguinte suposição: alguém

assume que os princípios de justiça são válidos e satisfatoriamente justificados, e que

uma argumentação coerentista explica o nosso senso compartilhado de justiça, por dar

expressão precisa às nossas convicções morais básicas. Mesmo diante desta

suposição, alguém ainda poderia duvidar que um argumento coerentista diga algo

relevante sobre a validade de tais princípios. Essa dúvida é plausível

porque argumentos de coerência puros parecem nos mover em círculo,entre as nossas atitudes atuais e os princípios que elas supostamentemanifestam. Parece que estamos 'testando' princípios, ao compará-loscom as informações 'dadas'. Porque os últimos (nossos julgamentosmorais considerados e compartilhados) são imparciais, confiavelmenteelaborados, e assim por diante, nós podemos, de fato, considerá-loscomo um reflexo confiável de nossas convicções morais básicas. Masainda podemos perguntar se elas expressam mais do quecompromissos arbitrários ou sentimentos que agora estamos aceitandocompartilhar. Considerar um tal argumento como justificativa dosprincípios morais, parece, assim, assumir um convencionalismo moralcomplacente ou, ainda, um "intuicionismo" misterioso sobre os 'dados'morais básicos (LYONS, 1989, pp. 146-147, tradução minha192 ).

191 Cf. original: “ to achieve a satisfactory fit between judgments and principles, some judgments must bediscounted, initial principles must be modified, or both. And further changes may result from entertainingalternative conceptions. As a consequence, and because our shared, considered judgments cover but alimited range of cases, alternative explications are always possible, and no clear rules can tell us which isbest. Thus Rawls does not and can not claim that his principles match our considered judgments perfectlyor that utilitarianism is ruled out conclusively”.192 Cf. original: “ for pure coherence arguments seem to move us in a circle, between our current attitudesand the principles they supposedly manifest. We seem to be 'testing' principles by comparing them withgiven 'data'. Because the latter (our shared, considered moral judgments) are impartial, confidently made,and so on, we can, indeed, regard them as reliably reflecting our basic moral convictions. But we can stillwonder whether they express any more than arbitrary commitments or sentiments that we happen now to

127

Page 139: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Assim, para David Lyons, a opção pelo coerentismo como meio de

argumentação não traz uma justificação satisfatória dos princípios. Afinal, o resultado

daí obtido não passa de um comprometimento arbitrário com algumas convicções

reputadas “básicas”, mas sem que possam ser verificadas em sua própria validade.

Por outro lado, caso Rawls quisesse se subtrair a uma argumentação de feição

coerentista (para evitar a incidência das duas críticas ora direcionadas à justiça como

equidade), ele não poderia fazer isso sem entrar em contradição, pois, ao ter adotado,

explicitamente, a “noção de justiça procedimental pura, não é possível assumir uma

forma alternativa de argumentação pelos princípios morais” (LYONS, 1989, p. 158).

Afinal, caso se adotasse uma argumentação distinta da coerentista, haveria o “emprego

de premissas para além daquelas presentes na totalidade da argumentação

contratualista, o que seria, com efeito, um critério independente de justiça social”

(LYONS, 1989, p. 158). Todavia, a utilização desse critério independente de justiça, é

contrária às condições do procedimentalismo puro declarado. Logo, “se houver

fundamentos externos ao argumento contratual para julgar a justiça dos arranjos

sociais, então a noção de justiça como equidade de Rawls estaria desacreditada”

(LYONS, 1989, p. 158).

Com isto, nota-se que a crítica de David Lyons apontou como a argumentação

coerentista de Rawls não é apta a elidir a arbitrariedade dos julgamentos básicos

considerados como parâmetros de confrontos argumentativos. E, justamente, por não

fornecer um exame válido dos princípios considerados justificados, incorre em uma

espécie de intuicionismo. Assim, a crítica é diretamente relacionada com a

inconsistência do pretenso procedimentalismo puro rawlsiano. Para ele, a justiça como

equidade é, de fato, um procedimentalismo perfeito.

Margarita Cepeda, por sua vez, obteve conclusões parecidas com as de Brian

Barry, mas analisando a justiça como equidade da perspectiva de uma tensão entre

contextualismo e universalismo. Em seu artigo Rawls: entre universalismo y

contextualismo, ela apresentou o liberalismo histórico193 rawlsiano como a base de uma

teoria pretensamente universal de justiça que, ao final, é contingente. Eis a síntese de

seus argumentos.

share. To regard such an argument as justifying moral principles thus seems to assume either acomplacent moral conventionalism or else a mysterious 'intuitionism' about the basic moral 'data'.”193 Cf. CEPEDA, 2005, pp. 93-106.

128

Page 140: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Referindo-se, inicialmente, a Uma teoria da justiça, ela explicou que o problema

da justificação dos princípios remete ao problema da justificação194 das condições

presentes na posição original. Assim, para que se concorde com os princípios de

justiça resultantes da deliberação hipotética, deve-se concordar, primeiro, com um

certo tipo de convicções amplamente compartilhadas, incluídas nas delimitações da

posição original. Neste ponto, então, estaria o aspecto complicado da justificação:

Assim, a teoria de Rawls está enraizada, desde o início, em convicçõesmorais ou, mais precisamente, no sentido da justiça, o qual dá, à teoria,um caráter contingente, pois, como sabe o próprio Rawls, "o acordonas convicções constantemente muda, e ainda varia entre umasociedade, ou parte dela, e outras" (Rawls, 1979:641). Surge,imediatamente, a questão de como uma teoria que se apoia emconvicções dependentes de contextos sociais e históricos específicos,possa ser, por sua vez, universal. É assim que chegamos ao cerne doproblema que nos ocupa, ou seja, a tensão entre universalismo econtextualismo na teoria de Rawls (CEPEDA, 2005, pp. 94-95, traduçãominha195).

Como a posição original propicia o conhecimento da mesma informação

igualmente disponível a todos, ao passo em que, por meio do véu da ignorância,

eliminam-se as informações que tornam diferentes as partes, torna-se “indiferente a

consideração de quem adota o ponto de vista da posição original, pois o raciocínio é o

mesmo para todos, e, portanto, a eleição dos princípios também” (CEPEDA, 2005, p.

96). Deste modo, a posição original é encarada como uma perspectiva que qualquer

pessoa pode adotar a qualquer momento: bastaria raciocinar buscando o benefício

próprio dentro dos limites de informação impostos pelo véu. Ao se abstrair de todas as

contingências, a posição original torna-se o ponto de vista moral a partir do qual se

julga a validez incondicional e universal dos princípios de justiça.

Então, Rawls entendeu que a justificação de seus princípios é uma questão que

mostra como a sua teoria ajusta e organiza nossas convicções morais em equilíbrio

reflexivo. Todavia, mesmo que Rawls entenda que a teoria se justifica pela congruência

entre os princípios propostos e nossas convicções, surge a objeção de que a

“justificação apela a convicções amplamente compartilhadas, seja em relação às

194 Cf. CEPEDA, 2005, pp. 93-94.195 Cf. original: “Así, pues, la teoría de Rawls está arraigada desde el comienzo en convicciones moraleso, más precisamente, en el sentido de la justicia, lo cual le da a la teoría un carácter contingente, pues,como lo sabe el mismo Rawls, "el acuerdo en las convicciones cambia constantemente y varía entre unasociedad, o parte de ella, y otra" (Rawls, 1979:641). Surge inmediatamente la pregunta de cómo unateoría que se apoya en convicciones dependientes de contextos sociales e históricos específicos puedaser a la vez universal. Es así como llegamos al núcleo del problema que nos ocupará, a saber, el de latensión entre universalismo y contextualismo en la teoría de Rawls.”

129

Page 141: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

condições justas de eleição, seja em relação aos próprios conteúdos do justo e do

injusto” (CEPEDA, 2005, p. 97). Assim, há uma crítica que reprova a arbitrariedade de

todo o acordo obtido, considerado por Rawls como uma coerência em torno destes

diversos elementos – contidos nas convicções – que servem de apoio mútuo. A crítica

se baseia no fato de as convicções variarem de contexto a contexto. Rawls pretendeu

se esquivar dessa crítica sustentando que uma teoria não pode sair do nada, e,

portanto, deve adotar pressupostos que sejam os menos controvertidos possíveis, para

serem menos arbitrários e, portanto, mais amplamente compartilhados. Todavia, esta

postura descrita implica que “Rawls não propôs uma justificação última e universal,

mas uma de caráter mais modesto, sujeita a limitações contextuais dos próprios

pressupostos” (CEPEDA, 2005, p. 98). Aqui haveria um conflito196 entre a pretensão de

validez universal e incondicional anteriormente mencionada, e a modesta concepção

de justificação limitada às convicções do contexto. E tal conflito, para ela, não foi

adequadamente trabalhado pelo próprio Rawls.

Avançando na argumentação, Margarida Cepeda continuou a análise para a

versão posterior da justiça como equidade, apresentada em O liberalismo político. Na

obra anterior, o foco estava na defesa da posição original, assim como no raciocínio

conduzido por suas condições equitativas, bem como no conteúdo dos princípios daí

resultantes. Na obra posterior, esses pontos passam para o segundo plano, pois Rawls

passou a se preocupar mais enfaticamente com a viabilidade do liberalismo político

para as democracias constitucionais desenvolvidas. Em meio a este propósito, ele

buscou descobrir as condições de uma base de justificação das questões políticas

fundamentais, julgando tê-las encontrado na cultura política pública das democracias

ocidentais.

Assim, esta cultura política pública é o pano de fundo compartilhado de

convicções diversas, como a tolerância religiosa e a rejeição à escravidão, que estão

corporificadas nas instituições, e nas quais estão implícitas certos ideais como o de

cidadãos livres e iguais e o de sociedade bem ordenada, ambas consagradas em um

ideal mais amplo de sociedade como um sistema justo de cooperação social. Não há

como negar, portanto, que “estes ideais políticos servem de cimento para a construção

de uma concepção política publicamente aceitável em condições de pluralidade”

(CEPEDA, 2005, p. 100). A posição original, nesta perspectiva, ainda desempenha o

196 Cf. CEPEDA, 2005, p. 99.

130

Page 142: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

importante papel de ser um recurso de representação, mas, desta vez, reportando-se

aos ideais políticos presentes na cultura democrática.

Então, surge aí o outro questionamento: “como pode uma concepção que está

arraigada em uma determinada tradição política ser o ponto de encontro das diferentes

visões de mundo?” (CEPEDA, 2005, p. 101). Ou, para ser mais preciso, como pode a

tradição liberal constituir-se em ponto de encontro das diferentes tradições? E,

adicionalmente a esta indagação, é possível formular outra pergunta no âmbito desta

tensão entre universalismo e contextualismo. O questionamento seria este: se o

liberalismo político seria pretensamente tolerante com uma ampla gama de tradições,

apto a obter um consentimento de todos, por que teria “que limitar seu alcance a uma

sociedade determinada, ao invés de estendê-lo mundialmente como uma proposta que

possa fazer justiça à pluralidade mundial, sem constituir-se como uma imposição

arbitrária?” (CEPEDA, 2005, p. 102). Veja-se como ela formulou respostas a estas

indagações, de maneira a concluir no sentido de a teoria rawlsiana não ser tão

imparcial como pretensamente declarada:

É a teoria assim exposta mais do que uma defesa do liberalismo e dademocracia, como pensa Ackerman (1994), ou, ainda pior, uma merasistematização de valores tipicamente americanos, como pensa Rorty(1991)? Ou, ainda melhor, o fato de que a teoria encontra um assentoem uma tradição política específica faz com que ela simplesmenteganhe força de convicção política, sem implicar necessariamente umtoque puramente contextual e anti-universalista, como pensa Habermas(1992) ? [...] Parece que a concepção de justiça proposta por Rawlscomo uma forma de liberalismo político, entre outras, deveria limitar seuescopo às sociedades ocidentais democráticas desenvolvidas, uma vezque o consenso sobreposto de múltiplas perspectivas do bem encontraseu limite no acordo prévio da cultura política característica dessassociedades. Em outras palavras, se trata de um consenso entreconcepções do bem liberais ou suficientemente liberalizadas, o queevidencia fortemente o suposto caráter antagônico e incomensurável dapluralidade que a teoria buscava regular pacificamente (CEPEDA, 2005,pp. 102-103, tradução minha197).

197 Cf. original: “¿Es la teoría así expuesta algo más que una apología del liberalismo y de la democracia,como piensa Ackerman (1994), o, peor aún, una mera sistematización de valores típicamentenorteamericanos, como piensa Rorty (1991)? ¿O más bien el hecho de que la teoría propuestaencuentre asiento en una tradición política específica la hace ganar simplemente fuerza de convicciónpolítica, sin que ello implique necesariamente un giro meramente contextúa! y antiuniversalista, comopiensa Habermas (1992)? […] Parecería que la concepción de justicia propuesta por Rawls como unaforma de liberalismo político entre otras debería limitar su ámbito de aplicación a sociedadesdemocráticas occidentales desarrolladas, ya que el consenso entrecruzado de múltiples perspectivas delbien encuentra su límite en el acuerdo previo de la cultura política característico de esas sociedades. Enotras palabras, se trata de un consenso entre concepciones del bien liberales o suficientementeliberalizadas, lo que matiza en gran medida el supuesto carácter antagónico e inconmensurable de lapluralidad que la teoría buscaba regular pacíficamente.”

131

Page 143: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Ela ainda prolongou a análise para as pretensões rawlsianas em O direito dos

povos, obra de Rawls posterior a O liberalismo político, cujo objetivo era estabelecer o

conjunto de conceitos políticos acompanhados de princípios de justiça, de direito e de

bem comum, que determinam o conteúdo liberal do conceito de justiça estabelecido

para ser aplicado ao direito internacional. Para ela, essa pretensão da última obra, não

passa de uma tentativa de ampliar um pacto liberal imposto unilateralmente aos outros

povos, de maneira que “a reflexão está viciada de etnocentrismo” (CEPEDA, 2005, p.

105).

E, por último, veja-se a conclusão dela a partir da análise da tensão rawlsiana

entre contextualismo e universalismo, em razão das oscilações de Rawls quanto aos

objetivos de suas diversas obras, daí extraindo um reforço para a acusação de

parcialidade:

Rawls, assim, se divide entre a modéstia de querer fazer conscientes ospróprios pressupostos e a incapacidade de assumir plenamente asconsequências deles, a saber, o fato de que o liberalismo é umatradição entre outras, com importantes vislumbres, é claro, mas tambémcom limites que só logrará reconhecer diminuindo-se as pretensões dasuposta perspectiva privilegiada da imparcialidade, para ir ao encontroreal e em pé de igualdade com outras tradições (CEPEDA, 2005, p.106, tradução minha198).

Portanto, da perspectiva de Margarita Cepeda, a justiça como equidade é

adequada ao contexto do liberalismo delineado pelo próprio Rawls. Não se pode,

segundo ela, enxergar no projeto rawlsiano – específico para um contexto – um projeto

digno de universalidade ou mesmo de um status privilegiado de imparcialidade. Assim,

trazendo-se as suas conclusões para a questão do procedimentalismo, Rawls também

estaria se afastando de um procedimentalismo puro para se aproximar de um perfeito.

Stephen Mullhal e Adam Swift, no artigo Rawls and communitarianism, chegam

a conclusões similares às de Margarita Cepeda na diferenciação entre o escopo

universalista da primeira obra e o escopo mais contextualizado da segunda obra 199. A

comparação é feita em paralelo com a crítica comunitarista à postura da primeira obra,

acusada de produzir o afastamento dos sujeitos envolvidos com a deliberação dos seus

contextos sociais particulares. Assim, em:

198 Cf. original: “Rawls se debate así entre la modestia del querer hacer conscienres los própriospresupuestos, y la incapacidad de asumir cabalmente las consecuencias de ellos, a saber, el hecho deque el liberalismo es una tradición entre otras, con importantes atisbos, claro está, pero también conlímites que sólo logrará reconocer bajándose de la supuesta perspectiva privilegiada de la imparcialidad,para ir al encuentro real y en pie de igualdad con otras tradiciones.”199 Cf. MULHALL & SWIFT, 2003, pp. 469-482.

132

Page 144: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Uma teoria da justiça [...], o último parágrafo do livro afirmava que ver onosso lugar na sociedade a partir da perspectiva da posição original eravê-lo sub specie aeternitatis (TJ, p. 587/514 rev.), o que, junto com aafirmação anterior (TJ, p. 16/15 rev.) de que a justiça como equidadeera parte de uma teoria da escolha racional, implicam exatamente o tipode concepção a-histórica da racionalidade humana e da naturezahumana a que objetou Walzer. De acordo com O liberalismo político,porém, a justiça como equidade é a expressão intelectual da culturapolítica pública das democracias constitucionais, e é aplicável somenteà esfera política dessas democracias; a teoria é apresentada comoculturalmente específica e para uma esfera específica, da maneiracomo Walzer desejou (embora, como será discutido mais tarde, porrazões bem diferentes). Longe de representar uma tentativa detranscender a particularidade cultural, a posição original é umdispositivo para a representação de um entendimento compartilhadoexplicitamente cultural-específico. (MULHALL & SWIFT, 2003, p. 470,tradução minha200).

Além disso, complementando a conclusão pela especificidade cultural, eles

sustentaram que, quando Rawls introduziu, em O liberalismo político, a noção de

“razoável”, ele especificou seus aspectos básicos como caracterizando uma virtude das

pessoas. Deste modo, no que se refere à “compreensão rawlsiana do termo [razoável],

então, ninguém pode ser razoável a menos que aceite a concepção de pessoa e de

sociedade que constituem o núcleo irredutível do liberalismo político” (MULHALL &

SWIFT, 2003, p. 482).

Portanto, para Stephen Mulhall e Adam Swift, a versão posterior da justiça como

equidade, diferentemente da versão anterior e universalista, é culturalmente específica

e contextualizada. Assim, embora Rawls tenha conseguido se firmar perante as

acusações de universalismo, formuladas pelos comunitaristas contra Uma teoria da

justiça, ele se comprometeu, ao efetuar as reformulações de O liberalismo político, com

um ponto de vista específico, que exige a adesão a concepções de pessoa e sociedade

também especificadas. Com isso, pode-se, novamente, vislumbrar mais uma crítica no

sentido de que o pretenso procedimentalismo puro rawlsiano vai cedendo espaço para

um procedimentalismo perfeito.

200 Cf. original: “A Theory of Justice [...], the book’s final paragraph claimed that to see our place in societyfrom the perspective of the original position was to see it sub specie aeternitatis (TJ, p. 587/514 rev.), andits early claim (TJ, p. 16/15 rev.) that justice as fairness was part of a theory of rational choice impliesexactly the kind of ahistorical conception of human rationality and human nature to which Walzer objects.According to Political Liberalism, however, justice as fairness is the intellectual expression of the publicpolitical culture of constitutional democracies and is applicable only to the political sphere of suchdemocracies; the theory is presented as culture and sphere-specific in just the way Walzer desires (albeit,as will be argued later, for quite different reasons). Far from representing an attempt to transcend culturalparticularity, the original position is a device for representing an explicitly culture-specific sharedunderstanding.”

133

Page 145: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Roberto Alejandro, por sua vez, em sua obra The limits of rawlsian justice,

defendeu, em um tópico denominado Political liberalism as a comprehensive doctrine,

que a justiça como equidade é uma doutrina abrangente201, embora isso seja contrário

às pretensões declaradas por Rawls em O liberalismo político. Eis como ele formulou o

raciocínio. Ele iniciou declarando que “minha hipótese é que, embora Rawls distinga o

seu liberalismo político [...] de doutrinas abrangentes, […] ele cria um paradigma que,

pelos seus próprios parâmetros, é similar a uma doutrina abrangente” (ALEJANDRO,

1998, p. 127).

Ele deu um exemplo202 de como, na prática, um cidadão membro de uma

sociedade regida pela concepção política de justiça sustentada por Rawls, pode ter que

seguir uma concepção de bem que não faz parte de sua vida. Embora o Estado não

deva, segundo Rawls, impor uma concepção de bem às crianças adeptas de uma dada

religião na comunidade, Rawls aceitaria que elas devessem ser educadas para serem

membros cooperadores daquela sociedade tal como preconizado pelos ideais

rawlsianos de pessoa e sociedade. Assim, mesmo os membros de grupos religiosos

que rejeitam os valores rawlsianos devem seguir os princípios de justiça e ser membros

completamente cooperativos daquela sociedade. Essa cooperação pode ser

compreendida como mais do que uma mera concordância com aqueles princípios, pois

envolve um comprometimento, por parte dos membros, com a aceitação dos planos

sociais e dos objetivos daquela sociedade. Além disso, aquelas crianças do exemplo

devem ser educadas conforme os princípios constitucionais daquela sociedade, mesmo

que sejam adeptas daquela religião que rejeita os ideais rawlsianos, e mesmo que

aquela tradição religiosa não esteja desprovida de razoabilidade.

Para ele, embora Rawls tenha sustentando que seu liberalismo é político,

visando o afastamento de outras propostas liberais que ele classificou como

abrangentes – porque impõem uma concepção de bem aos cidadãos –, “há dois

problemas com a formulação rawlsiana” (ALEJANDRO, 1998, p. 128).

O primeiro problema é que a teoria rawlsiana pressupõe um consenso, em uma

cultura democrática, sobre os ideais de pessoa e de sociedade. Todavia, um tal

consenso dificilmente ocorre. Alguém poderia, simplesmente, endossar uma concepção

de comunidade nos moldes delimitados por Alasdair MacIntyre, que não só questiona a

201 Cf. ALEJANDRO, 1998, pp. 127-133.202 Cf. ALEJANDRO, 1998, p. 128.

134

Page 146: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

validade dos ideais liberais de indivíduo e de sociedade, como também tenta trazer um

modelo alternativo para esses dois ideais.

O segundo problema é que não fica clara, na teoria rawlsiana, qual a diferença

entre, de um lado, o cultivo dos valores de autonomia e da individualidade (que Rawls

não subscreve em seu liberalismo político) e, de outro lado, o reconhecimento e

apreciação dos princípios da concepção política de justiça e seus ideais correlatos de

pessoa e sociedade (que são admitidos pelo liberalismo político).

Para explicar melhor esse segundo problema, o autor destacou os critérios que

o próprio Rawls usou para distinguir seu liberalismo político dos liberalismos por ele

considerados abrangentes (como os de Kant e Mill): eles são gerais porque se aplicam

a um amplo espectro de assuntos, e são abrangentes porque incluem concepções do

que é valoroso na vida humana, bem como incluem ideais de virtude pessoal e de

personalidade que informam o nosso pensamento e o orientam como um todo. Como

esses são os critérios que, segundo Rawls, se fazem presentes em uma doutrina

abrangente, “as razões que ele oferece para rejeitar as doutrinas abrangentes podem

ser usadas como parâmetros de julgamento de sua própria teoria” (ALEJANDRO, 1998,

p. 129).

Então, utilizando-se esses parâmetros para avaliar a própria justiça como

equidade, encontram-se, segundo Alejandro, exatamente os seguintes elementos203: I)

a indicação do que é valioso na vida humana, que abrange a busca do interesse de

ordem mais elevada – a justiça –, a construção e persecução de um plano racional, a

possibilidade de revisá-lo, e a posse de uma pluralidade de objetivos (concepções de

bem) finais; II) os ideais de virtude e caráter pessoal, que são o respeito aos direitos, a

tolerância, a afirmação de um senso de justiça, a condição de membro completamente

cooperador durante a vida em uma sociedade; III) o interesse de ordem mais elevada

pela justiça, sendo este o desejo efetivamente regulador da deliberação e da ação dos

indivíduos, pressupondo que os princípios de justiça informam nosso pensamento e

ação como um todo.

Portanto, do ponto de vista de Alejandro, a concepção política da justiça como

equidade contém: uma concepção de sociedade e de pessoa, uma noção de virtudes

cooperativas, bem como princípios de justiça que são incorporados no caráter humano

e na vida pública. Assim, para Alejandro, Rawls inseriu, na sua própria teoria,

elementos que ele mesmo considerou como caracterizadores de uma doutrina

203 Cf. ALEJANDRO, 1998, pp. 129-130.

135

Page 147: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

abrangente. Por isso, “eu sugiro que a sua concepção política de justiça inclui os

mesmos critérios – ou pelo menos uma parte substancial dos mesmos princípios –

subjacentes aos liberalismos de Kant e Mill” (ALEJANDRO, 1998, p. 130).

Além desta crítica, Alejandro apresentou outros pontos que denominou como

“paradoxos”204 na justiça como equidade. Mesmo que o liberalismo político possa ser

visto como neutro no procedimento e no objetivo, ele pode, ainda assim, afirmar a

superioridade de certas formas de caráter moral, encorajando certas posturas morais.

Nesse sentido, “o liberalismo político rawlsiano está comprometido com, pelo menos,

uma forma minimalista de perfeccionismo em que certas formas de caráter moral e de

virtudes morais são encorajadas e defendidas (ALEJANDRO, 1998, p. 131).

Outro “paradoxo”, envolvendo também essa consideração, pode ser manifestado

no caráter deontológico do liberalismo rawlsiano, que sustenta a prioridade do justo

sobre o bem, diferentemente de uma doutrina teleológica. Contudo, apesar de a justiça

como equidade defender que o justo é prioritário sobre o bem, Alejandro compreendeu

que a teoria efetivou uma inversão205 dessa prioridade. Em Uma teoria da justiça, os

princípios de justiça perseguem uma visão minimalista de bem para a estrutura pública

expressa em valores de cooperação e estabilidade, bem como um bem individual

expresso em bens primários, auto-estima e vantagens mútuas. Contudo, em O

liberalismo político, esse “status de prioridade do justo sobre o bem parece

substancialmente modificado, senão completamente abandonado” (ALEJANDRO,

1998, p. 132). Isso porque, nesta última obra, a justiça é tratada de maneira ainda mais

instrumental, pois é apresentada como meio para viabilizar o bem de uma pluralidade

de pessoas. Aqui, a justiça garante a estabilidade da cooperação social, e essa

estabilidade, por sua vez, garante aos indivíduos avançarem em suas concepções de

bem determinadas. Afinal, se o objetivo e a justificação da justiça são apenas viabilizar

a persecução individual dos bens eleitos por cada indivíduo, “então o justo não é

derivado independentemente do bem. Pelo contrário, o bom é que justifica o justo, e o

justo é derivado de um objetivo mirado em nosso bem” (ALEJANDRO, 1998, p. 133).

Assim, pela crítica de Roberto Alejandro, Rawls não conseguiu evitar que a

justiça como equidade fosse uma doutrina pelo menos parcialmente abrangente. Além

disso, nem mesmo a declarada prioridade do justo sobre o bem foi apta a evitar que a

justiça como equidade articulasse o justo como algo meramente instrumental a uma

204 Cf. ALEJANDRO, 1998, pp. 131-133.205 Cf. ALEJANDRO, 1998, pp. 131-132.

136

Page 148: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

noção de bem individual particular e eleito pelo liberalismo. Portanto, por essa crítica, o

respeito à autonomia e à imparcialidade também estão enfraquecidas no projeto

rawlsiano. Logo, a compreensão, aqui, foi no sentido de que o procedimentalismo puro

cedeu espaço para o procedimentalismo perfeito.

Jon Mahoney, em seu trabalho denominado Public reason and the moral

foundation of liberalism, argumentou206 que há algumas críticas aos pontos de vista que

encaram o liberalismo político como autônomo (“freestanding political liberalism”).

Ressalta-se que Mahoney caracterizou como autônoma “a concepção que se

compatibiliza com o fato do pluralismo” (MAHONEY, 2005, p. 92). Dentre essas

diversas críticas, a que ele considerou mais plausível foi a que argumenta que “os

princípios admissíveis ao liberalismo político só podem ser encarados como justificados

se sua solidez puder ser estabelecida de um ponto de vista imparcial e compartilhado

de razão prática” (MAHONEY, 2005, p. 85). Eis, em síntese, como ele argumentou.

Ele iniciou afirmando que “princípios autônomos de justiça tornam-se parte de

uma visão compartilhada de vida política apenas depois de os cidadãos ratificarem tais

princípios” (MAHONEY, 2005, p. 87). Mas, a menos que haja um ponto de vista que

possa ser construído como independente de todas as doutrinas abrangentes, os meios

de identificar uma doutrina como razoável são misteriosos207. Em outras palavras,

quando Rawls defendeu a busca de princípios razoáveis, os parâmetros que interferem

na qualificação das pessoas, doutrinas e princípios como razoáveis, devem pressupor

um ponto de vista moral compartilhado.

Visando mostrar que há algum ponto de vista moral que integra a construção

dos princípios rawlsianos de justiça, ele destacou diversos pontos em que há opções

morais embutidas na argumentação. Eis alguns deles, presentes no liberalismo político:

I) a noção de razão pública impõe restrições sobre como os cidadãos vão firmar seus

julgamentos e sobre como devem se conduzir, de maneira que, no meio de um conflito

entre diversas motivações conflitantes aceitáveis, a aceitação de uma motivação vai

depender de ela não violar os compromissos morais do liberalismo208 com a igualdade

e com os direitos; II) a concepção de cidadãos como livres e iguais, além de detentores

das capacidades morais de ter um senso de justiça e uma concepção de bem,

constituem uma parte crucial da fundação moral209 da doutrina rawlsiana, ignorando

206 Cf. MAHONEY, 2005, pp. 85-106.207 Cf. MAHONEY, 2005, p. 87.208Cf. MAHONEY, 2005, pp. 87-89.209 Cf. MAHONEY, 2005, pp. 89-91.

137

Page 149: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

que as pessoas naturais, normalmente, não possuem tais faculdades tais como

pressupostas. Assim, não há, para ele, como negar que “há alguma fundação moral no

liberalismo, referente à concepção de cidadão, de suas capacidades e do critério de

rejeição razoável a adotar” (MAHONEY, 2005, p. 91). Logo, já se parte, na construção

da teoria, de um substrato moral básico.

Contudo, essa sustentação da fundação moral pode ser justificada, pelos

liberais, por diversos caminhos. Um desses caminhos é defender as fundações morais

como uma concepção que alguém deve sustentar como uma pressuposição para o

liberalismo político. Todavia, esse caminho conduz ao que ele denominou “liberalismo

dogmático, porque sustenta uma fundação moral para a qual nenhuma justificação é

proporcionada” (MAHONEY, 2005, pp. 91-92). Referindo-se às complicações teóricas

desta perspectiva, ele afirmou que:

O problema [...] é que não há nenhuma maneira para que essaconcepção forneça uma justificativa para o fundamento moral doliberalismo; seu conteúdo moral é um pressuposto que é usado paraemitir uma declaração injustificada dos conceitos e princípios que oscidadãos devem endossar como uma condição prévia para endossarum consenso sobreposto. O dogmatismo é uma caracterizaçãoapropriada para um liberalismo político que se refere à sua base moralcomo uma fonte legítima de reivindicações, e ainda se recusa a forneceruma justificativa para esta fundação (MAHONEY, 2005, p. 95, traduçãominha210).

Deste modo, esta primeira postura oferece uma declaração, ao invés de uma

justificação, de sua fundação moral. Assim, ao invocar uma justificação não-moral para

a aceitação de motivações e concepções que são morais, a doutrina resultante não

pode ser considerada autônoma. A justificação, por exemplo, da prioridade do razoável

sobre o racional, “requer uma concepção moral de pessoa e de suas capacidades, e

essa concepção moral deve ser defendida como parte de uma doutrina moral, e não

como uma doutrina autônoma” (MAHONEY, 2005, p. 96).

Assim, diante da inviabilidade de sustentar o liberalismo político por esse

primeiro caminho – defesa da fundação moral por uma concepção pressuposta –,

Mahoney indicou uma outra postura que julgou mais plausível211: a de defender a

fundação moral do liberalismo como verdades filosóficas sobre razão prática e sobre

210 Cf. original: “The problem [...] is that there is no way for this conception to provide a justification for themoral foundation of liberalism; its moral content is a presupposition that is used to issue an unjustifieddeclaration of the concepts and principles that citizens must endorse as a precondition for endorsing anoverlapping consensus. Dogmatism is an apt characterization for a political liberalism that regards itsmoral foundation as a legitimate source of claims yet refuses to provide a justification for this foundation”211 Cf. MAHONEY, 2005, p. 99.

138

Page 150: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

pessoas. Desse ponto de vista, os critérios de rejeição razoável e as capacidades dos

cidadãos são parte de uma doutrina moral parcialmente abrangente. Trata-se, assim,

de um liberalismo parcialmente abrangente porque vai defender uma teoria que não

envolve todos os valores, mas envolve alguns valores que devem ser expressos

conforme àquilo que Rawls denominou estrutura básica da sociedade. O liberalismo

político, então, não vai requerer um compromisso com um ponto de vista moral que se

estenda para além do escopo limitado e prático da filosofia política.

Nesta postura, há uma defesa da prioridade do razoável sobre o racional, cuja

justificação, ao final, “repousa em uma concepção de cidadãos, de critérios de rejeição

razoável, e de razão prática” (MAHONEY, 2005, p. 99). Como a postura anterior (a

primeira postura já analisada) falhou em justificar satisfatoriamente as fundações

morais liberais, a melhor estratégia se torna, para Mahoney, defender uma posição

moral que possa fornecer uma justificação para a adoção de critérios de rejeição

razoável como critérios de justificação moral. Ao fornecer uma tal caracterização desse

critérios como parte da justificação das fundações morais do liberalismo, a

caracterização rawlsiana das capacidades dos cidadãos torna-se um bom ponto de

partida. Isso se explica porque as delimitações rawlsianas que fazem o razoável

prevalecer sobre o racional veiculam um quadro de delimitação e articulação dos

elementos e dos contornos da razoabilidade, cujo ponto de vista servirá para a

afirmação legítima, por parte dos cidadãos razoáveis, dos princípios liberais de justiça.

Desse modo, o que Rawls caracterizou como razoável não seria, ao final,

distinto do que seria moralmente bom. Sobre essa postura de defesa da fundação

moral do liberalismo, Mahoney comentou, em contraste com a postura anterior, que:

Rawls, claro, afirma que o liberalismo político pode ser entendido comorepousando em um ponto de vista compartilhado até agora compessoas razoáveis podendo afirmar os mesmos princípios de justiça e,assim, participando de um consenso sobreposto. No entanto, [dada ainaceitabilidade da primeira postura], esse ponto de vista compartilhadonão pode ser entendido como parte de uma concepção autônoma dejustiça. Em vez disso, o ponto de vista compartilhado do raciocínioprático dos agentes deve ser entendido como uma pré-condição paraum acordo moral entre as pessoas razoáveis. Além disso, as restriçõesmorais impostas por este ponto de vista devem ser afirmadas demaneira não dogmática; elas devem ser justificadas, em vez demeramente declaradas.Combinados, o critério da rejeição razoável e a caracterização doscidadãos e das suas capacidades devem ser apresentados como umavia para defender a condição especial das pessoas. Para os liberaisparcialmente abrangentes, a rejeição razoável é um princípio

139

Page 151: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

contratualista de justificação que satisfaz – melhor do que fariamprincípios alternativos – o compromisso de "respeito pelas pessoas", umideal de longa data do liberalismo. [Esta postura] trata a concepção dapessoa como parte de uma defesa do critério de rejeição razoável paraa justificação moral. E a defesa desse critério apela para consideraçõesque devem ser debatidas em um terreno político filosófico , ao invés deum terreno político autônomo/independente (MAHONEY, 2005, pp. 101-102, tradução minha212, itálicos meus).

Por tudo isso, o autor concluiu que a contribuição de Rawls à “filosofia política

liberal contemporânea é tanto substantiva quanto metodológica” (MAHONEY, 2005, p.

102). De um lado, a concepção rawlsiana de justiça define o quadro corrente do

pensamento do liberalismo igualitário. De outro lado, o liberalismo político apresenta

uma nova visão sobre como princípios liberais devem ser defendidos em sociedades

modernas e pluralistas. E, no que diz respeito aos argumentos acima apontados, ele

afirmou que:

Se o argumento apresentado neste capítulo está correto, então ofundamento moral para o liberalismo não pode ser defendido comoparte de uma doutrina política autônoma. Isso não quer dizer que oliberalismo deve ser defendido como uma doutrina abrangente completaou exaustivamente plena, que aspira a definir valores para a vidahumana como tal. O liberalismo é uma doutrina política, no sentido deque define os valores que fundamentam as instituições públicas e osideais de cidadania. Esses valores políticos, no entanto, exigem umajustificação moral que não é fornecida por uma metodologia que trata osconceitos morais básicos do liberalismo como autônomos. O liberalismoé uma doutrina moral entre outras, e deve ser aceito ou rejeitado, à luzdos critérios tradicionais de justificação moral (MAHONEY, 2005, p. 102,tradução minha213).

212 Cf. original: “Rawls of course claims that political liberalism can be understood to rest on a shared pointof view so far as reasonable persons can affirm the same principles of justice and thus participate in anoverlapping consensus. However, [...since options 1 and 2 yeld unacceptable results], this shared point ofview cannot be understood as part of a freestanding conception of justice. Rather, the shared point ofview of practically reasoning agents must be understood as a precondition for a moral agreement amongreasonable persons. Furthermore, the moral constraints imposed by this point of view should be affirmednondogmatically; they should be justified rather than merely declared. Combined, the reasonablerejectability criterion and the characterization of citizens and their capacities should be presented as away to defend the special status of persons. For partially comprehensive liberals, reasonable rejectabilityis a contractarian principle of justification that satisfies—better than alternative principles—a commitmentto "respect for persons," a longstanding ideal of liberalism. [Option 3] treats the conception of the personas part of a defense of the reasonable rejectability criterion for moral justification. And the defense of thiscriterion appeals to considerations that must be argued for on philosophical, rather than freestandingpolitical grounds.”. Providenciei uma adaptação ao que o autor numera como opções 1, 2 e 3 paraadequar à exposição sintética de suas ideias, tal como estou formulando. O que ele chamou de opção 3é a última postura de defesa da fundação moral do liberalismo, que ele julga mais plausível que a opção2, que foi a anteriormente comentada, em páginas anteriores, além de superior a concepção 1 (que, pornão interessar ao presente estudo, não foi abordada).213 Cf. original: “If the argument presented in this chapter is sound, then the moral foundation for liberalismcannot be defended as part of a freestanding political doctrine. This does not mean that liberalism shouldbe defended as a complete or full-blown comprehensive doctrine that aspires to define values for humanlife as such. Liberalism is a political doctrine in the sense that it defines the values that underlie public

140

Page 152: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Portanto, a partir da crítica formulada por Mahoney, a justiça como equidade não

consegue ser apresentada como uma teoria autônoma e independente da moral, pois

isso implicaria um liberalismo dogmático, de imposição e declaração de princípios, sem

nenhuma justificação. Para ele, a justiça como equidade é mais adequadamente

encarada como uma teoria que, ao invés de autônoma e independente, é

fundamentada em algumas concepções caracteristicamente morais de pessoa e de

razão prática, cuja articulação é compromissada com o respeito às pessoas, um ideal

dos mais importantes para o liberalismo.

Assim, pela crítica de Jon Mahoney, uma vez que a justiça como equidade não

pode ser apresentada como independente e autônoma em relação à moral, não há

plausibilidade no enquadramento da proposta rawlsiana como uma espécie de

procedimentalismo puro, atento à imparcialidade e à autonomia. A justiça rawlsiana

seria mais plausível como a defesa de algumas concepções morais de pessoa e de

razão prática, bem como de critérios morais de definição dos panoramas de

razoabilidade. Com esta consideração, o que se enxerga no projeto rawlsiano é algo

mais distanciado de um procedimentalismo puro, e mais aproximado de um

procedimentalismo perfeito.

Juntando-se todas essas críticas, pode-se chegar às conclusões sobre a efetiva

adoção, por parte de Rawls, de uma postura mais próxima de um procedimentalismo

perfeito, distanciada do pretenso procedimentalismo puro. Todavia, para um último

aprofundamento do debate, convém atentar para as manifestações de Rawls após

essas críticas direcionadas ao liberalismo político. A resposta rawlsiana pode reforçar

ou diminuir a força das críticas. Esse é o objeto do próximo tópico.

3.6 A resposta rawlsiana às críticas direcionadas ao liberalismo político

Quanto às críticas direcionadas a O liberalismo político, compreende-se que elas

também são válidas para a obra posterior Justiça como equidade: uma reformulação.

Os motivos pelos quais é plausível estender às críticas à última obra é a profunda

semelhança entre as duas obras. Abaixo serão expostos argumentos que mostram

como os contornos das duas obras são bastante similares. Todavia, são destacados

institutions and the ideals of citizenship. These political values, however, require a moral justification thatis not provided by a methodology that treats the basic moral concepts of liberalism as freestanding.Liberalism is one moral doctrine among others and must be accepted or rejected in light of traditionalcriteria of moral justification.”

141

Page 153: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

alguns pontos em que há uma leve divergência, e nesses pontos, conforme será

mostrado, a plausibilidade das críticas torna-se ainda mais forte, pois já há,

praticamente, algumas concessões argumentativas por parte de Rawls.

Relevante, apresentar, neste ponto, algumas considerações sobre a justiça

como equidade tal como apresentada na obra Justiça como equidade: uma

reformulação214. Essa obra foi publicada em 2002, e objetivava apresentar as

mudanças apresentadas entre as duas primeiras obras. Tendo em vista que nela Rawls

considerou que Uma teoria da justiça contém vários erros215, conclui-se que ela é uma

confirmação da versão da justiça como equidade tal como apresentada em O

liberalismo político. Outros trechos da obra confirmam a reiteração dos argumentos tal

como delineados nesta última obra. Alguns pontos serão destacados adiante,

confirmando que houve, nesta obra, a confirmação dos contornos tal como efetuada

em O liberalismo político.

Rawls afirmou ali, referindo-se à especificidade política e à rejeição da postura

de uma doutrina abrangente, que:

A justiça como equidade não é uma doutrina religiosa, filosófica oumoral abrangente – que se aplique a todos os temas e abarque todos osvalores. Tampouco deve ser entendida como a aplicação de umadoutrina desse tipo à estrutura básica da sociedade, como se essaestrutura não passasse de mais um tema a ser tratado por essa teoriaabrangente […] A teoria da justiça como equidade é uma concepçãopolítica de justiça para o caso especial da estrutura básica de umasociedade democrática contemporânea. Nesse sentido, tem um alcancemuito mais restrito que doutrinas morais filosóficas abrangentes como outilitarismo, o perfeccionismo e o intuicionismo entre outras. Aquela serestringe ao político (sob a forma da estrutura básica), que é apenasuma parte do campo da moral (JE, §5º, item 5.2, p. 19).

Em seguida, Rawls se referiu às seguintes ideias fundamentais na construção

da teoria: a sociedade como um sistema equitativo de cooperação, a estrutura básica

da sociedade, a posição original, a concepção de cidadãos cooperantes, livres e iguais.

A articulação combinada destas ideias vai conduzindo à construção dos princípios.

Nesse sentido, referindo-se à maneira coerentista de articular esses diversos

elementos integrantes da teoria, sugerindo o distanciamento de uma argumentação

fundacionista, Rawls afirmou que:

Esse detalhamento da ideia organizadora central de cooperação socialnão é um argumento dedutivo. Não se diz que os passos que partem

214 Essa obra, doravante, será referenciada como JE.215 Cf. JE, Prefácio, pp. XV-XIX.

142

Page 154: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

dessa ideia e prosseguem para a próxima decorrem ou derivam dela.Especificamos a ideia organizadora e a tornamos mais determinada aovinculá-la às outras ideias. […] A questão é que, seja qual for a ideiaque escolhamos como ideia organizadora central, ela não pode serplenamente justificada por sua razoabilidade intrínseca, pois esta não ésuficiente para isso. Tal ideia só pode justificar-se plenamente (caso sejustifique) pela concepção de justiça política a que por fim conduza aoser desenvolvida, e por como essa concepção se coaduna com nossasconvicções ponderadas de justiça política em todos os níveis degeneralidade, naquilo que poderíamos chamar de equilíbrio reflexivoamplo (JE, §8º, item 8.2, pp. 35-36).

Referindo-se à razoabilidade intrínseca mencionada nesse fragmento, Rawls

sustentou que “ela significa que um juízo ou convicção nos parece razoável, ou

aceitável, sem que a derivemos de outros juízos, ou nos baseemos neles. […] A

convicção tem certa razoabilidade, ou aceitabilidade, em si mesma” (JE, §8º, p. 36,

nota de rodapé n. 21). Rawls quis, portanto, claramente se afastar da justificação de

uma ideia pelo valor que ela possua em si mesma.

Prosseguindo, a concepção política de justiça foi apresentada, novamente, como

“nem aceitando, nem rejeitando, nenhuma doutrina abrangente, moral ou religiosa” (JE,

§9º, p. 40). A justiça como equidade põe de lado as antigas controvérsias religiosas e

filosóficas, buscando não se apoiar em nenhuma doutrina abrangente. Buscando

moderar os conflitos políticos irreconciliáveis, para determinar as condições para uma

cooperação social equitativa entre os cidadãos, veja-se como ela tenta atingir os seus

objetivos:

Para realizar esse objetivo, tentamos elaborar, a partir das idéiasfundamentais implícitas na cultura política, uma base pública dejustificação que todos os cidadãos possam, considerados razoáveis eracionais, possam endossar a partir de suas próprias doutrinasabrangentes. Caso isso se concretize, temos um consenso sobrepostode doutrinas razoáveis, e, com ele, a concepção política asseverada emequilíbrio reflexivo. (JE, §9º, item 9.4, p. 40).

O equilíbrio reflexivo, então, continua desempenhando o papel de tornar os

nossos juízos refletidos de justiça mais coerentes para todos os envolvidos na

deliberação, sem que ocorra o apelo a uma autoridade política externa. Considera-se,

na argumentação, que todos os nossos juízos, seja qual for o nível de generalidade,

são passíveis de terem, para nós, enquanto seres racionais e razoáveis, certa

razoabilidade intrínseca. Considera-se, também216, que as pessoas são diferentes entre

si, o que faz com que os juízos de umas sejam conflitantes com os de outras, o que216 Cf. JE, §10, pp. 40-44.

143

Page 155: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

obriga à necessidade de proceder à revisão, suspensão ou retratação de alguns

desses juízos, para que se possa atingir o objetivo prático de obter um acordo razoável

sobre a justiça política. Então, manifestando-se sobre a justificação, rejeitando

expressamente a postura fundacionista, Rawls afirmou que:

Com base no que foi discutido acima, pode-se dizer que a noção dejustificação, de par com o equilíbrio reflexivo pleno, é não-fundacionalista no seguinte sentido: não se pensa que algum tipoespecífico de juízo refletido de justiça política ou nível particular degeneralidade possa carregar consigo todo o peso da justificaçãopública. Juízos refletidos de todos os tipos e níveis podem ter umarazoabilidade intrínseca, ou aceitabilidade, para pessoas razoáveis quepersiste depois da devida reflexão. A concepção política mais razoávelpara nós é aquela que melhor se ajusta a todas as nossas convicçõesrefletidas e as organiza numa visão coerente. Em qualquer momentodado, é isso o melhor que podemos fazer. O equilíbrio reflexivo pleno[…] satisfaz, assim, a necessidade de uma base para a justificaçãopública em questões de justiça política; pois tudo o que se exige para oobjetivo prático de alcançar um acordo razoável em matéria de justiçapolítica é coerência entre convicções refletidas em todos os níveis degeneralidade e em equilíbrio reflexivo amplo e geral (JE, §10, item 10.4,p. 44).

Um outro tópico correlato à busca de uma justificação não fundacionista é o

caráter prioritário do justo sobre o bem. Ao tratar desta prioridade Rawls afirmou que “o

justo e o bem são complementares; qualquer concepção de justiça, inclusive uma

concepção política, precisa de ambos, e a prioridade do justo não nega isso” (JE, §43,

p. 199). Neste ponto, ao admitir a complementariedade do bem e do justo, Rawls

pareceu estar numa pretensão mais modesta, abrindo espaço para algumas das

críticas já expostas contra O liberalismo político. Veja-se como ele se manifestou sobre

isso:

Em suma, o justo estabelece os limites, o bem indica a finalidade. Najustiça como equidade, portanto, o sentido geral da prioridade do justosobre o bem é que ideias admissíveis do bem têm de caber dentro desua estrutura enquanto concepção política. Dado o fato do pluralismo,temos de ser capazes de aceitar: I – que as ideias usadas são, oupoderiam ser, compartilhadas por cidadãos considerados de forma gerallivres e iguais; e II – que elas não pressupõem nenhuma doutrina plena(ou parcialmente) abrangente (JE, §43, p. 199).

Então, ainda sobre esse aspecto, nota-se que Rawls imprimiu uma certa

importância adicional à relevância do bem diante do justo. Em outro ponto, ele pareceu

admitir que, dados os contornos finais da justiça como equidade, as noções

permissíveis de bem em sua teoria (para os cidadãos) são bem menos numerosas do

144

Page 156: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

que poderiam parecer querer haver anteriormente: “concepções permissíveis

(completas) de bem são aquelas cuja busca é compatível com aqueles princípios” (JE,

§43, p. 201). Nota-se, aqui, um estreitamento prévio do elenco de possíveis

concepções de bem a serem escolhidas pelos cidadãos, pois há concepções de bem

que não são desprovidas de razoabilidade, e que, simplesmente, não são compatíveis

com os delineamentos rawlsianos. Assim, seria legítimo compreender essa restrição

como não arbitrária? Nesse ponto, as críticas dirigidas a O liberalismo político ganham

ainda mais força e plausibilidade.

Por último, relevante abordar um ponto mais diretamente ligado às discussões

sobre a imparcialidade, em que Rawls apresentou um contraste entre o liberalismo

político e o liberalismo abrangente. Ele demonstrou conhecer a famosa objeção ao

liberalismo no sentido de que ele é hostil a certos modos de vida e favorável a outros,

bem como no sentido de que favorece os valores de autonomia e individualidade e se

opõe aos da comunidade ou da fidelidade associativa. Diante disso, num ponto em que

se compreende já haver um certo reconhecimento das críticas que lhe foram

direcionadas, ele admitiu que, até mesmo os princípios de qualquer concepção política

razoável “têm de impor restrições a visões abrangentes permissíveis, e as instituições

básicas que esses princípios exigem inevitavelmente estimulam alguns modos de vida

e desestimulam outros, ou até os excluem por completo” (JE, §47, p. 217).

Então, Rawls efetuou uma distinção217 entre, de um lado, neutralidade de

objetivos das instituições básicas – assim compreendida a neutralidade das instituições

e políticas que podem ser endossadas pelos cidadãos em geral no contexto de uma

concepção política pública –, e, de outro lado, a neutralidade procedimental – assim

compreendido o procedimento que pode ser legitimado ou justificado sem que se

recorra a valores morais, mas no máximo a valores neutros como a imparcialidade, a

coerência e outros valores afins. Considerando que as duas “neutralidades” apontadas

são distintas entre si, ele afirmou que:

Pode-se dizer que os objetivos das instituições básicas e da políticapública de justiça como equidade são neutros com respeito às doutrinasabrangentes e as concepções de bem a elas associadas. […] Aneutralidade de objetivo contrasta com a neutralidade procedimental.[…] A justiça como equidade não é procedimentalmente neutra. Éevidente que seus princípios de justiça são concretos e expressam bemmais que valores procedimentais, tal como acontece com suas

217 Cf. JE, §47, pp. 216-217.

145

Page 157: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

concepções políticas de sociedade e de pessoa, representadas naposição original (JE, §47, p. 217, nota de rodapé n. 27).

Prosseguindo no ponto da falta de neutralidade, ele explicou que há duas

maneiras218 pelas quais as doutrinas abrangentes podem ser desencorajas: I – quando

tais doutrinas e os modos de vida a ela associados, sendo desprovidas de

razoabilidade, podem entrar em conflito direto com os princípios de justiça, a exemplo

de concepções de bem que imponham segregações inaceitáveis de pessoas por

motivos amparados em critérios raciais ou étnicos (escravidão); II – quando as

doutrinas até são admissíveis, mas não conseguem ter seguidores nas condições

políticas e sociais de um regime constitucional justo tal como preconizado pela justiça

como equidade, a exemplo de algumas concepções de religião que se opõem aos

valores do mundo moderno e gostariam que seus adeptos levassem uma vida comum

longe de influências externas.

Quanto às duas maneiras acima mencionadas, pelas quais Rawls admitiu que a

justiça como equidade desencoraja as doutrinas abrangentes, deve-se tecer algumas

considerações. A primeira maneira, que é o desencorajamento de doutrinas não

razoáveis, não traz problemas maiores, pois a busca de razoabilidade é um elemento

da própria justiça como equidade. Assim, não há uma incoerência interna em uma

proposta preocupada com a razoabilidade rejeitar doutrinas não razoáveis. Contudo, a

segunda maneira traz problemas: se uma concepção política de justiça, preocupada

com razoabilidade, desencoraja doutrinas que também são razoáveis, pelo simples fato

de haver incompatibilidade entre os contornos de ambas, há uma incoerência interna.

Esse problema se torna ainda mais grave quando se considera que a proposta

rawlsiana é uma espécie de liberalismo deontológico, que busca permitir, a cada

cidadão, a eleição de sua própria concepção de bem, desde que não viole os preceitos

da razoabilidade. Tal situação configura uma mitigação da tolerância e do respeito ao

pluralismo razoável, que são preocupações presentes na concepção rawlsiana de

justiça. E a mitigação ocorre numa intensidade tal, que ao se voltar o olhar para

aqueles que sejam adeptos dessas doutrinas abrangentes razoáveis desencorajadas

(ou, talvez, até eliminadas em face dos contornos da concepção política de justiça),

não há como negar haver uma arbitrariedade inaceitável.

Aplique-se, agora, esse mesmo olhar para a objeção (apontada no tópico

anterior) de que o liberalismo político impõe que as crianças adeptas de religiões

218 Cf. JE, §47, pp. 218-221.

146

Page 158: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

incompatíveis com o liberalismo rawlsiano sejam obrigadas a serem educadas, desde a

infância, conforme aqueles valores, em confronto direto com suas crenças religiosas

essenciais. A crítica parece ser tão plausível, que Rawls, ao tentar respondê-la, acabou

admitindo essa incoerência interna:

Haverá quem objete que exigir que as crianças entendam a concepçãopolítica dessa maneira é, com efeito, embora não seja esta a intenção,educá-las numa concepção liberal abrangente. […] Deve-se concordarque isso pode, de fato, acontecer em alguns casos. E há decertosemelhanças entre os valores do liberalismo político e os valores dosliberalismos abrangentes de Kant e Mill. Mas a única resposta possívela essa objeção é evidenciar as grandes diferenças de alcance egeneralidade entre o liberalismo político e o liberalismo abrangente talcomo os defini. As inevitáveis consequências das exigências razoáveisem relação à educação das crianças têm de ser aceitas, muitas vezescom pesar. Espero, contudo, que a descrição do liberalismo políticoforneça uma resposta suficiente para a objeção (JE, §47, p. 222).

Concluindo a exposição, Rawls tentou justificar essa incoerência interna

afirmando que é inevitável que ocorra, no mundo social, a exclusão de algumas

concepções de bem. Ele compreendeu, portanto, que “essas exclusões inevitáveis não

devem ser confundidas com vieses arbitrários de justiça” (JE, §47, p. 219). Nota-se,

pelo menos, que ele admitiu a falha em sua teoria. Vejam-se suas próprias palavras:

Se, num regime constitucional justo, algumas concepções morrem eoutras apenas sobrevivem precariamente, será que isto por si sósignifica que a concepção política de justiça desse regime deixa de serneutra entre elas? Dadas as conotações de “neutro” talvez isso de fatoaconteça […]. É impossível evitar a existência de influências sociais quefavoreçam algumas doutrinas em detrimento de outras sob qualquerconcepção política de justiça. Nenhuma sociedade pode incluir em sitodos os modos de vida […]. Como Isaiah Berlin asseverou por tantotempo (era um de seus temas fundamentais), não existe mundo socialsem perdas: ou seja, não existe mundo social que não exclua algunsmodos de vida que realizam de maneira singular certos valoresfundamentais. A natureza de sua cultura é por demais incompatível comtais modos de vida. (JE, §47, pp. 218-219).

Portanto, Rawls claramente admitiu, na última obra, como sua teoria efetua não

só um desencorajamento, como também a eliminação prévia de algumas concepções

de bem que podem ser razoáveis, pelo simples fato de os contornos de sua concepção

política de justiça serem incompatíveis ou excludentes dos contornos contidos no

interior dessas doutrinas abrangentes. Apesar de ele considerar que isso não é

arbitrário, compreendo que, do ponto de vista de sua própria proposta de justiça, é uma

falha interna. Ao assim proceder, ele permite reforçar todas as críticas no sentido de

147

Page 159: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

que sua teoria efetivamente carrega falhas consideráveis no respeito à imparcialidade e

à autonomia. Com tais falhas, a conclusão é a mesma já apontada quando se

analisava O liberalismo político: há um afastamento do procedimentalismo puro e uma

aproximação do procedimentalismo perfeito.

Assim, restou compreendida como as críticas direcionadas a O liberalismo

político são extensíveis a Justiça como equidade: uma reformulação. Como visto, nem

mesmo as respostas de Rawls às críticas direcionadas ao liberalismo político foram

suficientes para evitar a acusação de que sua teoria falha em buscar a imparcialidade

reclamada por um procedimentalismo puro.

Deste modo, conforme se pôde notar das várias críticas acima expostas, há

quem tenha sustentado que Rawls, embora pretendesse seguir um procedimentalismo

puro, acabou se afastando de suas próprias pretensões declaradas, aproximando-se

de um procedimentalismo perfeito, por inserir elementos que não preservam a

autonomia e a imparcialidade tal como requeridos por um procedimentalismo puro.

Portanto, evidencia-se, com a exposição, que é controversa a viabilidade de

cumprimento, por parte da justiça como equidade – seja na versão de Uma teoria da

justiça, seja na versão de O liberalismo político –, das premissas necessárias à

configuração do procedimentalismo puro. Assim, a controvérsia se resume em duas

posturas principais: de um lado, os que acreditam, como Rawls, que a justiça como

equidade efetivamente segue um procedimentalismo puro, nos termos em que

declarada a pretensão; de outro lado, críticos que apontam elementos da justiça como

equidade que a fazem se afastar das condições necessárias ao procedimentalismo

puro, com fortes indicações de que Rawls, efetivamente, trouxe um projeto de justiça

que mais se aproxima de um procedimentalismo perfeito.

148

Page 160: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

CONCLUSÃO

Expostos esses pontos, constata-se que, em Uma teoria da justiça, por meio de

um contrato hipotético equitativo, obtido na posição original, produto de um consenso

sobreposto razoável entre as partes, os sujeitos racionais escolherão, mediante um

procedimento afinado com a imparcialidade, os princípios mais importantes de justiça

que deverão regulamentar a estrutura básica da sociedade, sem que seja inviabilizada

a possibilidade de cada pessoa, individualmente considerada, poder adotar para si a

concepção que desejar de vida, de bem, de felicidade. Acrescente-se a isso, a opção

por uma justiça procedimental pura, como decorrência da atenção à autonomia e à

imparcialidade teórica, numa explícita rejeição ao procedimentalismo perfeito, que

admitiria a existência de um critério anterior e independente para a própria

conformação do conteúdo dos princípios de justiça. Essa preocupação com o

procedimentalismo puro, autonomia individual e a imparcialidade, expressamente

declarada em Uma teoria da justiça, estaria mantida, implicitamente, nas obras

posteriores, O liberalismo Político e Justiça como equidade: uma reformulação.

Ora, partindo-se dessas observações ralwsianas, nota-se que o contratualismo

de Uma teoria da justiça, em cotejo com o procedimentalismo puro alvejado, culmina

na pretensão teórica que veicula as seguintes promessas: a) as partes, na posição

original, sob o véu da ignorância, vão, mediante consenso sobreposto, em uma

situação de imparcialidade, eleger os princípios de justiça que vão reger a estrutura

básica da sociedade; b) o ápice dessa deliberação será um contrato hipotético de

criação dos princípios de justiça, ou, em outras palavras, as partes terão autonomia

para elegerem o melhor resultado possível e desejável; c) o resultado desse

procedimento – o contrato obtido e os princípios eleitos – seria, para Rawls,

necessariamente justo porque o procedimento em si é justo e equitativo; d) há uma

preocupação constante – por se tratar de uma exigência do liberalismo deontológico –

em respeitar a autonomia individual, com o intuito de assegurar a imparcialidade, sem

nenhuma imposição de uma concepção de bem previamente dada, e, implicitamente,

nenhuma exclusão prévia de uma concepção razoável, embora discordante do

pensamento filosófico rawlsiano.

149

Page 161: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Diante dessas promessas, surgiram críticas como as de Sandel, MacIntyre,

Taylor e Walzer, que apontaram possíveis falhas ou inconsistências de Uma teoria da

justiça, que revelam a perspectiva comunitarista de fracasso da pretensão do

liberalismo. Para eles, as condições do debate na posição original são fixadas de tal

maneira que são excluídas, de maneira arbitrária, concepções de bem que não violam

os preceitos de razoabilidade. Isso implica considerável redução de sua pretensão de

imparcialidade, repercutindo, inegavelmente, na própria esfera de autonomia do

indivíduo, que fica previa e definitivamente privado da possibilidade de optar por

determinadas doutrinas abrangentes, ou de seguir determinadas concepções de bem,

de pessoa, e até de comunidade, que não podem ser julgadas como arbitrárias ou

despidas de razoabilidade.

Ora, se o procedimentalismo puro se funda numa preocupação ralwsiana com a

autonomia individual (a escolha, por parte de cada cidadão, de sua própria concepção

de bem), a exclusão antecipada de concepções de feição comunitarista acabaria por

reduzir a própria autonomia individual, mitigando a própria imparcialidade da justiça

como equidade. Assim, as partes já estariam previamente obrigadas a não acolherem,

e nem levarem ao debate da posição original, determinadas concepções de bem que

possam ser razoáveis, pelo simples fato de serem incompatíveis com os contornos

dados, senão impostos, às deliberações da posição original. Logo, o repto

comunitarista apontou a frustração do objetivo do procedimentalismo puro de Uma

teoria da justiça: isso ocorre porque não há o respeito à autonomia individual e à

imparcialidade teórica tal como prometido. Assim, a crítica atacou decisivamente

algumas promessas da justiça como equidade, com repercussões específicas na

questão do procedimentalismo.

Ressalte-se, contudo, que, posteriormente a Uma teoria da justiça, e ainda antes

do advento do O liberalismo Político, Rawls passou a sustentar que o seu

construtivismo era, em verdade, político e não moral. Tal recorte e tentativa de

aperfeiçoamento rawlsiano, consolidado nas obras seguintes, trouxe algumas

consequências sobre o próprio procedimentalismo inicialmente almejado, visando a

servir, inclusive, de réplica satisfatória a algumas críticas pontuais, dentre as quais

foram apontadas, nesta dissertação, as de Sandel, Taylor, MacIntyre e Walzer,

focadas, essencialmente, na obra primeira, Uma teoria da justiça, com pretensões

nitidamente mais ousadas, amplas, racionais e universalistas que o projeto mais

delimitado de O liberalismo político.

150

Page 162: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

Essa análise revela como a pretensão rawlsiana de imparcialidade e de respeito

à autonomia, foi contrabalançada, ao longo de suas obras, com o acolhimento à

coexistência das mais variadas concepções de bem numa sociedade plural. A

mudança que Rawls realizou até o advento de O liberalismo político conduziu a

algumas modificações do procedimentalismo inicialmente declarado e perseguido,

sugerindo que houve o distanciamento do pretendido procedimentalismo puro e a

aproximação a um procedimentalismo perfeito que Rawls preferia evitar.

Relembre-se que, tratando-se de uma justiça procedimental pura, o

procedimento terá como resultado algo justo porque219 ele será equitativo e

deontológico. Um dos pontos fundamentais à caracterização do procedimentalismo

puro é, exatamente, a ausência de um critério prévio de justiça, que já defina, de

antemão, qual será o resultado do procedimento estipulado em busca dos princípios de

justiça. Assim, esses procedimentos extrapolam a mera legitimação subsidiária, pois a

justiça é ínsita220 ao próprio procedimento.

Contudo, embora Rawls engendre sua teoria mantendo o recurso ao

procedimentalismo puro, no decorrer das obras seguintes, ocorreram mudanças e

revisões em relação ao conteúdo e à construção da justiça como equidade. As obras

posteriores carregaram essa mudança gradual da interpretação da justiça

procedimental pura, conforme se nota em O liberalismo Político e em Justiça como

Equidade: uma reformulação. Dentre essas mudanças, pode-se destacar a concepção

de sujeito na posição original, inicialmente com traços fortemente kantianos

(configurando uma concepção metafísica da liberdade, em Uma teoria da justiça) e,

posteriormente, em uma perspectiva normativa (configurando uma concepção de

índole apenas política, tal como formulado em O liberalismo político) alterando

configurações do próprio procedimento221.

Desse modo, em O liberalismo político, diferentemente de Uma teoria da justiça,

Rawls, além de ter se preocupado com a reformulação do sujeito, passou a entender

que

a exposição da justiça como equidade não deveria ser tomada comouma concepção filosófica [...] e sim em sua especificidade política,partindo não mais da perspectiva da posição original, mas daperspectiva da cultura política pública, onde se opera o consensosobreposto [...], dado o fato do pluralismo razoável [...] o que se observa

219 Cf. GONDIM, 2011, pp. 170-172.220 Cf. HÖFFE, 2003, p. 54.221 Cf. GONDIM, 2011, pp. 178-180.

151

Page 163: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

é uma inversão na ordem da exposição da justiça como eqüidade, namedida em que se parte da concepção normativa de pessoa em direçãoà sociedade bem-ordenada e à posição original para a aplicação dosprincípios de justiça através de reformas constitucionais, plebiscitos,assembléia legislativa e revisão judicial. (OLIVEIRA, 1998, p. 23).

Com essas reformulações o projeto ralwsiano de O liberalismo político

apresentou algumas diferenças que nitidamente pretendiam rebater as críticas de

índole comunitarista. Essas mudanças também modificam aspectos referentes à

autonomia individual dos sujeitos da posição original, bem como à questão da

imparcialidade, o que repercute, inegavelmente, na formulação do procedimentalismo.

Desta mudança, surgiu a indagação sobre a resposta de Rawls ao

comunitaristas ter sido ou não satisfatória, bem como se houve ou não uma efetiva

ruptura do Rawls de O liberalismo político com o Rawls de Uma teoria da justiça.

Contudo, todos esses pontos são controversos, de maneira a dividir os autores. De um

lado, veja-se a opinião de Elnora Gondim:

Agindo dessa forma, Rawls rebate as críticas que fazem à TJ; umadelas afirma que ela se apoia em uma concepção abstrata de pessoa,com uma ideia atomista da natureza humana, no entanto isso advém deo fato dos críticos de tal conceito não interpretarem a posição originalcomo um método de representação. Nesse sentido, não constatam queas partes são representantes artificiais e que elas não são pessoasreais de uma sociedade. Dessa forma, isso significa um artifício derepresentação que tem como objetivo fazer com que o homem observeo seu papel e a maneira que ele pode se representar numa possívelposição original. Portanto, esse artifício é um esquema de conceitos eprincípios para expressar certa concepção política de pessoa. Por issoque a concepção de pessoa é considerada parte integrante de umaconcepção de justiça política e social. (GONDIM, 2011, p. 179)

Contudo, há também quem tenha entendido que a reformulação rawlsiana,

presente em O liberalismo político, não trouxe respostas satisfatórias às críticas

comunitaristas, especialmente sobre a questão da pretensa imparcialidade teórica.

Bonella argumentou que, quando Rawls passou a interpretar o equilíbrio reflexivo em

termos políticos, “tornou-o demasiado dependente do consenso de fundo já partilhado

numa certa cultura política” (2000, p. 146). Quanto a este ponto, ele argumentou que

também há três acusações ao equilíbrio reflexivo: um intuicionismo disfarçado, um

subjetivismo e um relativismo. Veja-se como ele concluiu a análise:

Hare apontou que Rawls dependeria do consenso de base dos agentessociais para poder justificar sua teoria para estes mesmos agentes, oque sugere claramente um tipo de subjetivismo e de relativismo. MasRawls aceitava de bom grado este tipo de relatividade. [...] Este tipo de

152

Page 164: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

subjetivismo está presente na filosofia política do liberalismo rawlsiano.As ideias intuitivas seriam parte da cultura política pública dasdemocracias constitucionais, inscritas, por exemplo, nos textos legaismais importantes e na sua interpretação. Para conseguirmos umaconcepção de justiça política independente de controvérsias doutrinaisapela-se para a congruência desta concepção com as ideias intuitivas“inscritas” na cultura política consolidada. Com tal consenso de basepoder-se-ia formular uma concepção aceitável para todos os grupos quedivergem, e tal concepção seria então um tipo de aplicação do princípioda tolerância à própria filosofia. Com tal cultura política partilhada, pode-se falar de bases públicas de justificação. Isto é uma manutenção dotipo de intuicionismo como o que Brandt e Hare definiram, agora,porém, numa versão política (BONELLA, 2000, pp. 156-157).

Assim, nota-se a controvérsia sobre ter, ou não, Rawls respondido, de maneira

satisfatória, em O liberalismo político, às críticas comunitaristas já mencionadas, que

foram direcionadas a Uma teoria da justiça.

Além disso, em O liberalismo político Rawls continuou pretendendo efetivar uma

proposta de justiça procedimental pura, afastando-se da justiça procedimental perfeita.

Com esse intuito, ele delimitou o âmbito de discussão e aplicação dos princípios de

justiça ao domínio político, que é pretensamente independente de uma fundamentação

moral, metafísica, religiosa. Em atenção ao pluralismo, ele quis se preocupar em obter

um consenso entre as partes pactuantes que não exigisse o compromisso prévio com

nenhuma doutrina abrangente. Utilizou-se do construtivismo político para efetuar uma

construção pretensamente autônoma e imparcial dos princípios de justiça. Recorreu,

também, ao equilíbrio reflexivo como maneira de justificar os princípios de justiça aptos

a serem adotados, por terem sido mantidos após os debates.

Todavia, mesmo com todas esse manejo desses elementos da justiça como

equidade, na versão de O liberalismo político, algumas críticas indicaram que Rawls,

efetivamente, não conseguiu evitar o apelo, em algum grau, ao intuicionismo moral

para justificação dos princípios propostos. Para esses críticos, os contornos que Rawls

imprimiu à justiça como equidade, mesmo na versão mais modesta e delimitada de O

liberalismo político, significaram, na prática, a imposição de um ponto de partida já

especificado e contextualizado, afinado com as democracias constitucionais ocidentais

dos últimos séculos. Deste modo, já haveria, na deliberação a conduzir na posição

original, bem como na busca do equilíbrio reflexivo, um compromisso prévio com

alguns traços morais afinados com uma doutrina específica de liberalismo: há uma

concepção liberal de pessoa e de sociedade bem ordenada. Com isso, haveria,

também no projeto do liberalismo político, uma eliminação prévia de determinadas

153

Page 165: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

concepções de pessoa, de bem e de sociedade, que, a despeito de não poderem ser

caracterizadas como desprovidas de razoabilidade, não podem ser levantadas e

propostas pelas partes hipotéticas da posição original, pelo simples fato de os

contornos desta situação hipotética serem incompatíveis com essas posturas distintas.

Portanto, ao se tratar do êxito global do projeto rawlsiano, confrontando as duas

maneiras pelas quais foi apresentada a justiça como equidade, as minhas conclusões

são diferenciadas para cada obra.

Em Uma teoria da justiça, Rawls pretendeu propor uma concepção universal de

justiça, a ser aceita pela eternidade, bastando que qualquer agente se pusesse,

hipoteticamente, na posição original para ali pensar da mesma maneira como Rawls

teria proposto, o que a levaria a concluir, em tese, pela aceitação dos princípios de

justiça ali propostos como os melhores para reger a estrutura básica da sociedade. Tal

postura universalista, evidentemente, traz muitas complicações, pois simplesmente

desconsidera outras maneiras de se compreender e organizar a sociedade.

Por sua vez, em O liberalismo político, Rawls adotou pretensões bem mais

modestas, uma vez que passou a compreender que a versão anterior da justiça como

equidade estava, de certa forma, comprometida com uma doutrina moral abrangente.

Ao especificar a discussão sobre os princípios de justiça para o âmbito especificamente

político, Rawls pretendeu respeitar o pluralismo normalmente existente em uma

sociedade em que cada cidadão pode escolher sua própria concepção de bem, de

vida, de crença religiosa, de convicção filosófica. Assim, suas pretensões diminuíram,

pois já tomou como ponto de partida uma sociedade democrática como a norte-

americana, mas ele conseguiu ser mais bem-sucedido em propor princípios aceitáveis

para o contexto específico em que foi proposto.

Já no que diz respeito, especificamente, ao procedimentalismo da justiça como

equidade, compreendo que a conclusão também deve ser diferenciada para cada obra.

A opção rawlsiana pelo procedimentalismo puro, que é paralela à rejeição do

procedimentalismo perfeito, era justificada pela preocupação em respeitar a autonomia

e a imparcialidade. Todavia, as duas obras são bem distintas entre si.

Em Uma teoria da justiça, o procedimentalismo puro é mais compatível com uma

proposta de justiça expansionista, que visa uma aceitação universalizável. Ao se

pretender propor princípios universais de justiça, torna-se mais razoável defender a

ausência de um critério prévio que defina o conteúdo do justo e do bem. Do contrário,

caso se utilizasse um critério prévio que fosse delimitador, senão determinante (postura

154

Page 166: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

do procedimentalismo perfeito), do resultado do procedimento de busca dos princípios

de justiça, haveria, de antemão, uma rejeição do pluralismo.

Já em O liberalismo político, como Rawls especificou um ponto de partida

contextualizado para a busca de princípios de justiça de uma sociedade

especificamente democrática, já havendo, previamente ao debate, a aceitação de

entendimentos compartilhados por uma tradição liberal ocidental dos últimos séculos.

Assim, como há elementos já tomados como pontos de partida, os princípios daí

resultantes, coerentes com os valores implicitamente compartilhados já aceitos pela

teoria, são também de feição liberal, guardando uma compatibilidade que parece, em

alguns momentos, ser mera repetição dos próprios pontos de partida. Logo, mesmo

havendo Rawls sustentado, nesta obra, ter mantido a pretensão de seguir o

procedimentalismo puro, ele acabou se distanciando da imparcialidade e da autonomia

reclamadas por tal postura. Deste modo, pelas críticas, afigura-se mais aceitável

compreender que o liberalismo político é mais próximo de um procedimentalismo

perfeito, e mais afastado do procedimentalismo puro declarado.

155

Page 167: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I - Obras de Rawls

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. O construtivismo kantiano na teoria moral (1980). In: RAWLS, John. Justiça edemocracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 43-144.

______. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: MartinsFontes, 2011.

______. Collected Papers, Editado por Samuel Freeman. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1999.

______. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,2003.

______. O Direito dos Povos. Tradução de Luís Carlos Borges; revisão técnica SérgioSérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. História da filosofia moral. Organizado por Barbara Herman. Tradução deAna Aguiar Cotrim. Revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: MartinsFontes, 2005.

______. Political liberalism: reply to Habermas. In: The Journal of Philosophy, vol. 92,N. 3, março/1995, pp. 132-180.

II - Demais obras

ALEJANDRO, Roberto. The Limits of Rawlsian Justice. Baltimore and London: TheJohn Hopkins University Press, 1998.

AUDARD, Catherine. John Rawls. Philosophy Now Series. Acumen Publishing Limited:Stocksfield, 2007.

BARRY, Brian. Theories of justice – a treatise on social justice, v. I. Los Angeles:California University Press, 1989.

______. Justice as impartiality. Oxford: Clarendon Press, 1995.

156

Page 168: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

______. Teorías de la justicia. Tradução de Cecilia Hidalgo e Clara Lourido.Barcelona: Gradisa Editorial, 2001.

BELLO, Eduardo. Kant ante el espejo de la teoria de John Rawls in: RevistaDaimon, Murcia: Universidade de Murcia, v.33, 2004, pp. 103-118).

BONELLA, Alcino Eduardo. Justiça como imparcialidade e contratualismo. Tese dedoutorado na Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: [s. n.], 2000.

BOTERO, Juan José (editor). Con Rawls y contra Rawls – una aproximación a lafilosofía política contemporánea. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2005.

BROOKS, Thom & FREYENHAGEN, Fabian (editores). The Legacy of John Rawls.Continuum Studies in American Philosophy. London: Continuum, 2007.

CEPEDA, Margarita. Rawls: entre universalismo y contextualismo, o el liberalismohistórico como base de una teoría universal de justícia. In: BOTERO, Juan Jose(editor). Con Rawls y contra Rawls – una aproximación a la filosofía políticacontemporánea. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2005.

CRISTIANO, Thomas & CHRISTMAN, John (editores). Contemporary Debates inPolitical Philosophy. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.

DANIELS, Norman. Reading Rawls – Critical Studies on Rawls’ ‘A Theory ofJustice’. Stanford Series In Philosophy. California: Stanford University Press, 1989(republicação da edição de 1975 da Basic Books).

______. Justice and Justification – reflective equilibrium in theory and practice.Cambridge Studies in Philosophy and Public Policy. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1996.

______. Wide reflective equilibrium and theory acceptance in ethics. In: Justice andJustification – reflective equilibrium in theory and practice. Cambridge Studies inPhilosophy and Public Policy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 21-46.

______. Reflective equilibrium and justice as political. In: Justice and Justification –reflective equilibrium in theory and practice. Cambridge Studies in Philosophy andPublic Policy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 144-178.

FORST, Rainer. Contextos da justiça – filosofia política para além de liberalismo ecomunitarismo. Tradução de Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010.

FREEMAN, Samuel. The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2003.

______. Rawls. Routledge Philosophers Series. New York: Routledge Taylor e FrancisGroup, 2007.

157

Page 169: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

GONDIM, Elnora & GONDIM, Osvaldino. Posição Original: um recurso procedimentalpuro. In: Revista Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n.1, jan./abr. 2011.

GRAHAM, Paul. Rawls. Oneworld Thinkers Series. Oxford: Oneworld Publications,2007.

HABERMAS, Jurgen. The inclusion of the other – Studies in Political Theory.Tradução de Ciaran Cronin e Pablo de Greiff. Cambridge: The MIT Press, 1998.

HÖFFE, Otfried. O que é Justiça? Porto Alegre: Edipucrs, 2003.

HUME, David. An inquiry concerning the principles of morals. In: Essays and Treatiseson several subjects, vol. II, de David HUME. Edinburgh: impresso por James Clarke,1809.

KANT, Immanuel. Groundwork of the metaphysics of morals. Traduzido por MaryGregor. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

______. Political Writings. H. Reiss (ed.). Cambridge texts in the history of politicalthought. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

LAFOLLETTE, Hugh. The Blackwell Guide to Ethical Theory. Oxford: BlackwellPublishers, 2000, pp. 247–267.

LARMORE, Charles. Public Reason. In: FREEMAN, Samuel (editor). The CambridgeCompanion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 368-393.

LYONS, David. Nature and soudness of the contract and coherence arguments. In:Reading Rawls – Critical Studies on Rawls’ ‘A Theory of Justice’. Stanford SeriesIn Philosophy. California: Stanford University Press, 1989, pp. 141-167.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude – um estudo em teoria moral. Tradução deJussara Simões; revisão técnica de Helder Buenos Aires de Carvalho. Bauru, SP:EDUSC, 2001.

MAHONEY, Jon. Public reason and the moral foundation of liberalism.In: BROOKS,Thom & FREYENHAGEN, Fabian (editores). The Legacy of John Rawls. ContinuumStudies in American Philosophy. London: Continuum, 2007, pp. 85-106.

MULHALL, Stephen & SWIFT, Adam. Liberals and Communitarians. 2nd. ed. Oxford:Blackwell Publishers, 1996.

______. Rawls and communitarianism. In: FREEMAN, Samuel (editor). TheCambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp.460-487.

OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Kant e Rawls: fundamentação de uma teoria dajustiça. In: FELIPE, Sônia (Org.). Justiça como eqüidade. Florianópolis: Insular, 1998.p. 105-124.

158

Page 170: A TEORIA DE JUSTIÇA PROCEDIMENTAL DE JOHN RAWLS: … · examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade

______. Rawls. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

PETTIT, Philip e KUKATAS, Chandran. Rawls: A theory of justice and its critics.California: Stanford University Press, 1990.

______. Rawls: Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos. Portugal: Gradiva. 2005.

PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Editora Martin Claret,2007.

RORTY, Richard. Objectivity, relativism and truth. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1991.

ROSS, W. D. The Right and the Good. Indianapolis: Hackett, 1988.

SANDEL, Michael. El liberalismo y los limites de la justicia. Tradução: María LuzMelon. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000.

SAYRE-MCCORD, Geoffrey. “Contractarianism.” In: LAFOLLETTE, Hugh (editor). TheBlackwell Guide to Ethical Theory. Oxford: Blackwell Publishers, 2000, pp. 247–267.

TAYLOR, Charles. Atomism. In: Philosophical Papers vol. II – Philosophy and TheHuman Sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, pp. 187-210.

______. Philosophical Papers vol. II – Philosophy and The Human Sciences.Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

WALZER, Michael. Philosophy and Democracy. In: Political Theory, Vol. 9, No. 3(Aug., 1981), Sage Publications, pp. 379-399. Disponível eletronicamente no endereçode url: [http://www.jstor.org/stable/191096], acessado em 02/11/2008 às 8:07. ______. Spheres of Justice. Basic Books, 1983.

WHITE, Stephen K. Reason and the Ethos of a late-modern citizen. In: ContemporaryDebates in Political Philosophy (Editado por Thomas Cristiano e John Christman).Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.

159