a teoria ator-rede como framework teórico para o estudo ... · a teoria ator-rede como framework...

15

Click here to load reader

Upload: vuongdiep

Post on 01-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

1

A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por Tecnologia da Informação no Brasil

Autoria: Paulo Roberto de Mello Miranda

Resumo Este artigo analisa a aplicação da Teoria Ator-Rede (ANT) como framework teórico para o estudo dos processos de participação democrática apoiados pelas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Espaços virtuais são novas formas de relacionamento entre o governo e os cidadãos, facilitadas pelas novas tecnologias na Internet, que permitem a comunicação e diversas formas de interação e colaboração independentemente das distâncias geográficas. Os espaços virtuais de participação democrática são tipicamente formados por redes heterogêneas de atores humanos e não humanos. Desta forma, buscamos analisar em que extensão a ANT é um framework adequado para o seu estudo. O foco da ANT está em compreender como atores-chave interagem para construir redes heterogêneas de atores humanos e não-humanos. Apesar de a ANT ser utilizada como arcabouço teórico para o estudo de diversos fenômenos na área de TIC, quando o objeto de estudo são as práticas democráticas facilitadas por essas tecnologias, o ferramental que ela oferece não é suficiente para o tratamento e a compreensão da complexidade do contexto sócio-político envolvido. Ante os desafios apresentados pela multiplicidade de elementos desses processos e da sua complexidade, nossa proposição é que as pesquisas envolvendo o campo dos espaços criados pelos governos para a participação democrática da sociedade, apoiados pelas tecnologias da Internet, adotem como framework teórico a composição da Teoria Ator-Rede (ANT) com outras teorias da área da organização social ou das ciências políticas, tais como a Teoria da Estruturação, ou a Teoria Crítica (CST - Critical Social Theory), com uma abordagem mais ampla dos aspectos contextuais do fenômeno. 1 Introdução Este artigo analisa a aplicação da Teoria Ator-Rede (ANT – Actor-Network Theory) como framework teórico para o estudo dos processos de participação democrática apoiados pelas tecnologias da informação e comunicação (TIC). A participação democrática significa influenciar ou tomar parte dos processos decisórios do governo, em assuntos do interesse de um grupo ou de toda a comunidade. Esses espaços virtuais de participação são novas formas de relacionamento entre o governo e os cidadãosi e sua organização típica são as redes de participação voluntária. Sua criação e funcionamento são facilitados pelo desenvolvimento de novas tecnologias na Internet que permitem comunicação multidirecional fácil e instantânea, assim como diversas formas de interação e colaboração independentemente das distâncias geográficas. De uma perspectiva teórica, este trabalho se justifica por debruçar-se sobre um tema que é novo e que tem gerado diversas abordagens teóricas, sendo objeto de pesquisa nas áreas das ciências sociais e políticas. Essas novas abordagens teóricas representam um esforço para preencher as lagunas deixadas pela abordagem funcionalista ao analisar os fenômenos decorrentes do uso das TIC e os seus impactos sobre os indivíduos e as organizações, em diferentes contextos sociais e políticos (BARBOSA, 2008). Ao mesmo tempo, o tema da democracia eletrônica tem provocado discussões e posicionamentos antagônicos entre os que o enxergam com olhos otimistas e projetam uma evolução do processo democrático com redução das diferenças sociais e dos privilégios,

Page 2: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

2

produzindo benefícios para uma ampla maioria da população e, no outro extremo, aqueles que têm uma visão pessimista desse processo e o vêem controlado pelos mesmos grupos de poder e interesses, servindo de instrumento para consolidar e aprofundar as diferenças entre os que têm muito e aqueles que estão alijados dos benefícios do progresso econômico e social. No mundo todo, inclusive em nosso país, existem projetos e experiências em curso que buscam criar esses espaços virtuais de participação democrática, em diversas áreas. Essas iniciativas merecem especial atenção no Brasil, uma democracia jovem, em processo de consolidação, onde as formas de organização e de resistência democráticas, muitas vezes, são ainda frágeis, ou mesmo, incipientes. Essas experiências representam o campo de interesse para a investigação empírica. Ao mesmo tempo, esses estudos são úteis, do ponto de vista prático, para as administrações e os grupos de cidadãos que estão vivenciando essas experiências no campo e, certamente, poderão beneficiar-se dos resultados deste trabalho e de seus desdobramentos futuros. Neste contexto, buscamos nossas referências bibliográficas principalmente entre os autores brasileiros, que têm oferecido significativa produção científica sobre o tema. Nosso objetivo é verificar a inserção da Teoria Ator-Rede no estudo dos processos de participação no Governo apoiados por Tecnologia da Informação. Sendo esses espaços de participação democrática, tipicamente formados por redes heterogêneas de atores humanos e não humanos, queremos analisar em que extensão a ANT é um framework adequado para o estudo desse fenômeno. A partir da revisão bibliográfica, identificamos algumas das principais características dos processos de participação e do framework teórico para observar esse fenômeno, com foco na ANT e desenvolvemos algumas reflexões sobre a sua adequação. 2 Participação e e-democracia 2.1 Espaços virtuais de participação Nas democracias representativas, a participação dos cidadãos se dá, regra geral, por meio do voto nos agentes políticos que vão atuar nas esferas do legislativo e do executivo. Entretanto, eleger governantes e legisladores não assegura a efetiva representação dos interesses dos cidadãos. As decisões de governo obedecem a uma extensa rede de interesses que opera, não somente através das representações formais, mas por inúmeros canais informais de comunicação, que ligam os diversos grupos de interesses às instâncias de poder da administração pública, aos quais o cidadão não tem acesso. A busca do aperfeiçoamento da democracia formal tem acontecido pela criação de canais que propiciem uma maior participação do cidadão nos processos decisórios de governo e permitam um efetivo controle social sobre a execução dessas decisões. Existem diversas experiências dessas formas alternativas, mais democráticas e participativas, de organização e de relacionamento entre o governo e a sociedade, em geral baseadas em redes de participação voluntária. As redes possibilitam relações mais horizontais no processo de coordenação facilitando a articulação de diferentes atores organizacionais. As redes podem ser compreendidas como uma forma organizacional onde o poder se realiza através da comunicação (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). Para Williams (2007) parece que o modo mais eficiente e desejável de governança seria representado pelas redes. As características de comunicação transparente, imediata, com largo acesso e baixo custo e a primazia das interações locais, frequentemente protegidas de interações e controles mais

Page 3: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

3

amplos, significam uma responsabilidade coletiva, mais do que controle e hierarquia ou dogma (religioso ou secular), com base em uma ética compartilhada. Essa forma de organização possibilita a integração de múltiplos atores na ordenação de uma ação coletiva com um fim comum. No caso particular do Brasil , este modelo é coerente com os pressupostos da descentralização e da participação social presentes na Constituição Federal de 1988 – “A rede como representação de conectividade, de ligação, de simultaneidade e de interdependência torna-se um atrativo para compreender a dinâmica e a complexidade de uma gestão que deve associar atores – estatais e não-estatais – na resolução de problemas comuns dentro do espaço público” (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). Claramente essas redes representam algo de novo no horizonte para a comunicação, desenvolvimento e compartilhamento de conhecimento. Essa forma de organização, entretanto, requer uma nova visão de gerenciamento das organizações (no nosso caso, do Estado) onde os modelos gerenciais são ainda frequentemente focados em controles centralizados e lentas mudanças lineares, incrementais e hierárquicas (WILLIAMS, 2007). Ainda de acordo com o autor, sendo formados por uma rede complexa de atores, esses espaços de participação da sociedade poderão se desenvolver plenamente se contarem com:

− Interação ampla e de baixo custo; − Comunicação eficiente e barata; − Transparência e instantaneidade; − Bons recursos para as pessoas criarem, revisarem e disseminarem uma ampla gama de

textos e artefatos de mídia – a ênfase em ‘escrever’ mais do que em ‘ler’ (produzir mais do que consumir) textos.

Essas características são oferecidas pelas novas ferramentas disponíveis na Internet. Esse novo ‘ambiente digital global’ disponibiliza a infra-estrutura básica para a complexidade dessas redes (WILLIAMS, 2007). Esta é uma abordagem do tipo ator-rede que possibilita o desenvolvimento de relações entre Governo e cidadão em um processo dinâmico, onde a ordem é sempre contextual, como nas redes propostas por Amantino-de-Andrade (2005) para a formação de políticas públicas baseadas na descentralização e na participação social. Na proposta da autora, esse contexto “exige padrões de flexibilidade facilitadores de novas relações sociais e políticas de maneira a renovar a capacidade de governança, pela capilarização da sociedade, não apenas pelo seu controle sobre a ação estatal, mas, também, pela sua própria ação estratégica e decisória dentro do espaço público”. O desenvolvimento acelerado das tecnologias da informação (TI) cria novos canais, dos quais a sociedade em geral tem se utilizado, de forma inovadora, para o desenvolvimento de atividades sociais e econômicas. Não surpreende que um desenvolvimento significativo como a Internet tenha implicações sobre o nosso entendimento das relações entre comunicação e poder e de como o poder e a resistência são exercidos através desse meio (AINSWORTH, 2005). A pesquisa no uso e nas implicações sociais das tecnologias da informação tem ganho espaço também na academia, assim como o exercício de novas abordagens metodológicas para esse estudo. Dentre as diversas áreas de aplicação da TI nas práticas governamentais, têm emergido, com grande destaque e visibilidade os processos de participação democrática apoiados por tecnologia, também nominados por e-democracia (MAIA, 2001; AGRE, 2002; AKUTSU, 2002; BELLINI, 2002; LIM, 2002; WITSCHGE, 2002; EISENBERG, 2003; RUEDIGER, 2003; CUNHA, 2005; OVEN, 2005; KRUEGER, 2005; MARQUES, 2006; PINHO, 2006).

Page 4: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

4

Apenas iniciamos o uso das novas ferramentas disponíveis na Internet, a chamada “Web 2.0”, que facilitam processos de comunicação, interação e colaboração (blogs, wiki, podcasting, ferramentas de compartilhamento, espaços virtuais como o Second Life, redes sociais, micro-blogging, etc.), e as experiências iniciais demonstram que é necessário avançar em sua aplicação nas instituições públicas. A ampliação do emprego dessas tecnologias na criação de modelos inovadores de relacionamento governo-sociedade exige uma reflexão mais profunda acerca da implicação democrática, das metas de transparência e da participação cidadã, viabilizadas e facilitadas pela Internet, prioritariamente ao foco na disponibilização de serviços públicos que caracterizaram as iniciativas de governo eletrônico nos últimos anos (FREY, 2004). O e-Governo priorizou a migração de serviços públicos para a web, enquanto que o estabelecimento de ambientes virtuais de participação da população e da sociedade organizada em áreas relevantes da administração pública, na forma de redes de participação voluntária na Internet prioriza a relação governo-cidadão concentrando o foco neste último (CUNHA, 2005). A democracia eletrônica se caracteriza por utilizar-se do potencial de comunicação, interatividade e fácil acesso oferecido pela Internet e pelos novos conceitos e ferramentas que, a cada dia, criam novas facilidades no processo democrático (AKUTSU, 2002). Devemos evitar uma visão essencialmente instrumental, de prestação de serviços, estendendo a abordagem para o campo político e do pleno exercício da cidadania. Mais do que a utilização de canais de comunicação entre governo e sociedade e vice-versa, trata da criação de espaços de participação dos diversos atores do processo político, da efetiva participação do cidadão na formulação, discussão e controle de políticas públicas, na sua execução e seus resultados, envolve transparência e responsabilidades (CUNHA, 2005). E-democracia é valer-se desses instrumentos para ampliar a prática democrática (CRUZ, 1999). O uso da Internet como um canal de comunicação dos governos com a sociedade evoluiu rapidamente, de um simples painel de divulgação de informações, para tornar-se um instrumento de melhoria da gestão do Estado (e-administração pública), envolvendo a articulação interna e com outras instâncias e poderes e a obtenção de eficiência interna de processos, e de prestação de serviços ao cidadão (e-serviços públicos), envolvendo a criação de portais governamentais e de outros meios eletrônicos para a prestação de serviços. Além de melhorar a quantidade e a qualidade e facilitar o acesso do cidadão aos serviços, os governos têm obtido significativa redução de custos com essas iniciativas. Cunha (2008) observa que essas iniciativas, com características gerencialistas, têm concentrado os esforços dos governos, desperdiçando as possibilidades de ampliação dos espaços democráticos oferecidas pelas tecnologias da Internet. O ideal democrático de participação, no qual todos os cidadãos interessados reuniam-se para opinar e decidir sobre determinado assunto, com iguais oportunidades e poderes, esbarrou em dificuldades práticas, na medida em que os grupos sociais foram crescendo em tamanho e complexidade (diversidade de interesses, distribuição territorial, etc.) e foi substituído, ao longo da história, por outras formas de democracia, como a representativa. Agora, o uso intensivo da TI para apoiar os processos de participação democrática reinventa a Ágora Grega (LÉVY, 1998). Não se pretende que a emergência desses espaços de participação apoiados por TI venha a substituir ou até suprimir as demais formas de organização democráticas. Entretanto, cria novas possibilidades, novos espaços de relacionamento entre o Governo e os cidadãos. O uso da TI para a criação de novos espaços de participação da sociedade, a elaboração de modelos inovadores de relacionamento governo-sociedade baseados nas novas tecnologias, o estabelecimento de ambientes virtuais de participação da população e da sociedade organizada

Page 5: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

5

em áreas relevantes da governança, muitas vezes na forma de redes de participação voluntária na Internet e outros mecanismos de interação mediada que a Internet possibilita têm (e podem vir a ter) um impacto mais profundo sobre a política porque possibilitam a ampliação dos fóruns a públicos de debate e discussão, no sentido habermasiano da discussão da ampliação da esfera pública (EINSENBERG, 2003). O potencial da internet para expandir os fóruns conversacionais implica inevitavelmente na garantia de amplo acesso. Na visão de Maia (2001) – “a aproximação das condições de universalidade do discurso significa, em primeiro lugar, que não pode haver barreiras excluindo certas pessoas ou grupos do debate. Supõe idealmente a inclusão de todos aqueles potencialmente concernidos ou afetados”. Um projeto político pode enriquecer seus processos decisórios através de uma participação democrática mais ampla, incorporando esses espaços virtuais a sua estratégia e ajustando sua aplicação aos objetivos de cada ação. Esses mecanismos facilitam o acesso e podem atrair um número maior de segmentos interessados (cidadãos, empresas, organizações governamentais e da sociedade) para o desenvolvimento de um amplo leque de ações participativas, como em licitações, para consultas públicas com fornecedores; em enquetes junto população ou setores da sociedade; para recebimento de propostas de solução de problemas de uma região - ambiental, de saúde, segurança, etc.; para discutir ou validar propostas de políticas públicas; ou como um canal permanente aberto para recebimento de demandas e propostas da população (CUNHA, 2008). Os movimentos sociais e as associações voluntárias, atuando nas esferas sociais em apoio às comunidades na solução de seus problemas, ajudam a constituir espaços democráticos (MAIA, 2001). Os espaços virtuais de participação, em geral, têm o caráter de estimular e apoiar a participação voluntária da comunidade representada por essas organizações, pelos cidadãos e pelas empresas, por meio da formação de redes (CUNHA, 2005). Um aspecto importante desses modelos é permitir a execução de todo o ciclo da participação, desde a entrada do cidadão na rede, até o encerramento do processo, envolvendo, entre outras, a comunicação multidirecional (cidadão-governo, governo-cidadão, governo-governo, cidadão-cidadão, cidadão-rede, etc.), as bases de dados, os processos de mediação e consenso e as interfaces com outros sistemas. Ao mesmo tempo, a criação desses novos espaços de relacionamento com a sociedade exige o desenvolvimento de novas formas de gestão na administração pública, envolvendo os processos de tomada de decisão, de execução, coordenação e controle de projetos e das atividades relacionadas aos processos desenvolvidos nesses espaços (FREY, 2004). Entretanto, a e-democracia requer mais do que viabilidade técnica para adoção – requer fatores como a habilidade para manusear os interesses políticos nos sistemas atuais, a criação de uma educação cívica que torne os cidadãos aptos e motivados a usar as ferramentas da e-democracia, e a institucionalização de processos que contrabalancem e compensem os perigos inerentes à tomada de decisão feita por referenda em massa (AGRE, 2002; CUNHA, 2005). A tecnologia da informação é um instrumento pelo qual as ações políticas podem ser tomadas. 2.2 A democracia e as tecnologias da informação e comunicação A disponibilidade de uma infra-estrutura que possibilite a participação e a colaboração entre o governo e a sociedade não é suficiente para que se instalem efetivamente espaços democráticos de participação. Como observado por Cunha (2005), a tecnologia permite mais comunicação e interação horizontal, mas não há um mecanismo automático levando à democratização da vida pública. A autora também registra que a participação democrática é

Page 6: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

6

apenas um dos cenários possíveis. Para que isto aconteça, é imprescindível que as agendas públicas nacionais e multilaterais passem a incluir a questão das políticas que visem à democratização do acesso aos mecanismos do Estado, pela TI, como um patamar de ação pública efetiva para a ampliação da participação cívica na agenda do Estado (RUEDIGER, 2003). Esta visão já havia sido destacada por Agre (2002) ao afirmar que a maior ou menor amplitude democrática será determinada pela cultura política, pois na esfera pública, novas tecnologias também podem servir como instrumentos de vigilância, ou de propaganda, todos capazes de negar, na prática os princípios da democracia. A pesquisa sobre o papel da Internet na política, em particular na democracia, tem lutado para escapar do determinismo tecnológico – a tecnologia simplesmente impõe a sua lógica às relações sociais. Abordagens alternativas observam os múltiplos caminhos pelos quais os membros de uma organização se apropriam da tecnologia para atender objetivos, necessidades, estratégias e relações pré-existentes na instituição (AGRE, 2002). Existem divergências consistentes entre os pesquisadores do tema sobre se o Estado vai utilizar as novas TI para aprofundar a democracia ou para ampliar seu controle sobre a sociedade e a desigualdade social (AKUTSU, 2002). As instituições não mudam porque são tomadas por uma tecnologia como a Internet que as transforma à sua imagem. As instituições frequentemente mudam em consequência das oportunidades que as novas tecnologias tornam disponíveis, mas é somente no funcionamento da instituição que pode ser percebida a dinâmica da mudança (AGRE, 2002). De acordo com Maia (2001) “se as novas tecnologias podem proporcionar um ideal para a comunicação democrática, oferecendo novas possibilidades para a participação descentralizada, elas podem, também, sustentar formas extremas de centralização de poder”. A Internet amplifica as centenas, se não milhares de forças existentes no ambiente institucional (cada qual com sua lógica e recursos próprios) e muitas dessas forças são conflitantes (AGRE, 2002). Desde o fim da década de 80, autores como Winner (1986) alertavam que os desenvolvimentos da Era da Informação podiam levar a um aumento de poder daqueles que já o detinham, mas que, apesar dos escassos espaços para debate, este rumo poderia ser alterado e a tecnologia, refletir melhor as necessidades humanas e trazer melhoria à qualidade de vida. A polêmica estende-se ao uso da tecnologia da informação no setor público e o impacto no sistema político. De um lado, há os entusiastas do potencial da tecnologia como Negroponte (1995) e Dertouzos (1997), que acreditam numa Sociedade da Informação onde “as novas tecnologias promoverão a harmonia no sistema político, em decorrência da maior consciência do cidadão, derivada do maior acesso à informação e da quebra de estruturas de poder atualmente vigentes, centradas no monopólio das informações sensíveis” (AKUTSU, 2002). Do outro, vozes mais céticas defendem “que os governos utilizarão as novas tecnologias para aumentar o seu controle sobre a sociedade. As informações serão disponibilizadas em maior quantidade e rapidez, porém os grandes grupos econômicos e os detentores do poder político somente divulgarão as informações que lhes interessam” (AKUTSU, 2002). Mesmo considerando que os cidadãos com acesso ao computador em rede podem se reunir livremente para discutir qualquer tema e fazer quaisquer proposições sem constrangimentos, a efetividade deste tipo de ação seria, na maioria das ocasiões, de pequeno alcance (MARQUES, 2006). Além desses pontos, Einsenberg (2003) levanta questionamentos em relação aos efetivos impactos da Internet sobre a vida política das sociedades contemporâneas: “Como ela afetará a organização do Estado e da sociedade civil, e as atividades de representação e participação cívica associadas a estes espaços políticos?”. O autor alerta que é preciso pensar a Internet

Page 7: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

7

como parte de um projeto mais amplo de modernidade, para que ela possa produzir efeitos positivos. Um dos riscos potenciais da Internet é a “guetização” (fragmentação) social, decorrente de uma excessiva individualização dos mecanismos de filtragem de informações, argumentos e encontros (EINSENBERG, 2003). Para ele, esta fragmentação social é acompanhada de uma diminuição do estoque de debates políticos que são travados em termos de bens públicos e de uma diminuição das liberdades cívicas, já que ser livre não é somente a possibilidade de formar e satisfazer preferências sem interferência, mas de formá-las e satisfazê-las depois de uma exposição pública satisfatória à informação e aos argumentos relevantes a tais escolhas. Também é verdade que as atividades políticas na Internet são parte de processos sociais mais amplos, e que a própria Internet é apenas um elemento de uma “ecologia de mídias” (AGRE, 2002). Ao analisar os diversos aspectos relacionados ao papel da Internet nos processos políticos, Agre observa que ela não cria uma nova ordem política, ao contrário, se conseguirmos compreender muito mais sobre os processos sociais envolvidos, evitando fatores isolados e generalizações unilaterais, o que emerge é um mundo de tensões entre centralização e descentralização, intimidade e impessoalidade, política e profissionalismo. Entender o seu papel requer uma compreensão muito mais ampla dos processos sociais que a cercam (AGRE, 2002). Não pretendemos aprofundar essa discussão neste artigo. Interessa-nos aqui que, mesmo com visões e expectativas opostas, há razoável consenso em relação ao potencial de melhoria do processo democrático representado pela Internet (AKUTSU, 2002) e que existem fatores ambientais e contextuais político-ideológicos determinantes da criação ou não desses espaços virtuais de participação democrática e da extensão e profundidade dos resultados que serão produzidos pela sua prática. Espaços virtuais de participação democrática constituem-se, então, de uma rede heterogênea de atores (cidadãos, organizações da sociedade, órgãos de governo, funcionários públicos, marcos legais e regulatórios, software, hardware, etc.). Entretanto, como analisamos neste capítulo, além dessas características, uma série de outros aspectos políticos e éticos estão presentes. Assim, interessa-nos investigar se a Teoria Ator-Rede fornece o framework teórico para o estudo dos fenômenos associados a esses espaços. 3 Teoria Ator-Rede 3.1 A teoria Ator-Rede e os ambientes sócio-técnicos A expansão do uso das tecnologias da informação em todos os campos da atividade humana ampliou a importância desses aparatos técnicos que passaram a ter participação ativa no desenvolvimento das tarefas relacionadas. Isto levou à necessidade de novos instrumentos para o estudo e a compreensão desses fenômenos. A Teoria Ator-Rede (ANT) é um instrumento intelectual da área da sociologia para auxiliar na compreensão das redes de interesses, onde os atores individuais formam alianças, agregam outros atores e recorrem a artefatos para reforçar essas alianças e satisfazer os seus interesses. Desenvolvida nos anos 80 por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, oferece uma abordagem sócio-técnica para a compreensão das redes de interesses alinhados (YORK. 2008, SANTOS, 2006). Originou-se no campo da sociologia da ciência na École des Mines de Paris. Mais tarde, em 1996, Latour desenvolveu o foco em tecnologia e tecnologia da informação constituindo-se em um ramo da ampla escola de pensamento da tecnologia como construção social (WALSHAM, 1997).

Page 8: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

8

O uso das tecnologias da informação, em particular da Internet, para oportunizar novos espaços de participação democrática (e-Democracia) é materializado pelo envolvimento de cidadãos, individualmente ou em grupos. As redes assim formadas, compreendendo elementos da Administração, cidadãos, organizações da sociedade e toda a ordem de objetos e aparatos tecnológicos que apóiam o seu funcionamento, são redes sociotécnicas (LATOUR, 1997). A ANT objetiva conhecer os processos que conduzem à construção e transformação de redes sociotécnicas. Como descrito por Santos (2006) “o foco está em compreender como atores-chave interagem para construir redes heterogêneas de atores humanos e não-humanos, o que na área de tecnologia da informação significa pessoas, organizações, software, computadores e comunicações, hardware e padrões de infra-estrutura (WALSHAM, 1997), “cada qual com suas competências e resistências” (CHRISTOPOULOS, 2008), “formando alianças e mobilizando recursos, na medida em que se dedicam a transformar uma idéia em realidade” (SANTOS, 2006). Utilizando a descrição elaborada por Christopoulos para as Comunidades Virtuais de Aprendizagem e de Prática, as redes que se desenvolvem nos espaços virtuais de participação democrática “podem ser definidas como redes que incorporam características técnicas e sócio-políticas, com componentes de tecnologia (portais compostos por softwares, hardwares, processos), que interagem de forma recíproca com indivíduos e organizações dentro de um contexto social, formado por elementos díspares e heterogêneos” (CHRISTOPOULOS, 2008). Para a ANT, todos os atores, quer sejam pessoas, objetos, ou organizações, são igualmente importantes para uma rede social. A teoria também faz uma ligação específica entre as pessoas e o seu ambiente (WILLIAMS, 2007). As pessoas não são seres isolados, estão relacionados com uma rede heterogênea de recursos e agentes. Esta rede vai defini-las em função das suas relações e em relação ao contexto no qual estão inseridas (CHRISTOPOULOS, 2008). A ANT aborda o social e o técnico como coisas inseparáveis. Mais, analisa pessoas e artefatos utilizando o mesmo aparato conceitual (WALSHAM, 1997). Desta forma, a ordem social é criada por uma rede de atores funcionando normalmente e será afetada se determinados atores forem retirados da rede. O exemplo apresentado no site “Theories Used in IS Research” da York University para ilustrar esta característica é: “[…] a remoção de telefones, bancos ou do presidente podem significar a mesma ruptura na ordem social”. Esses componentes são coletivamente designados atores (actors) ou, algumas vezes “atuantes” (actants) (YORK, 2008). A seguir, alguns dos conceitos básicos relacionados à teoria:

− ATOR (actor ou actant)– Qualquer elemento que intervém na rede, criando relacionamentos de dependência com os outros elementos e traduzindo os seus desejos numa linguagem própria. Um ator pode ser humano ou não humano como artefatos tecnológicos (WALSHAM, 1997). Os não humanos não carregam simplesmente uma projeção simbólica, são atores. Empregar causalidade simbólica ou naturalista na narrativa não é abordagem ANT (SANTOS, 2006).

− REDE DE ATORES – Rede heterogênea de interesses alinhados, interligando os vários atores (humanos e não humanos). São um processo de ordenação onde o jogo de interesses é negociado por diferentes atores para a coordenação de projetos (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). Do ponto de vista topológico, uma rede é uma lógica de conexões, e não de superfícies, definidas por seus agenciamentos internos e não por seus limites externos (FREIRE, 2006).

− INSCRIÇÃO – As inscrições são todos os tipos de transformações que materializam uma entidade em um signo, um arquivo, um documento, um pedaço de papel, um traço, permitindo novas translações e articulações ao mesmo tempo em que mantêm

Page 9: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

9

intactas algumas formas de relação (FREIRE, 2006). Forma como se incorporam padrões de utilização nos artefatos técnicos. Não pressupõe sentido determinístico, pois não há garantia de que padrões incorporados venham a ser interpretados e apropriados pelos utilizadores. Um exemplo é uma aplicação de software considerada como “discurso congelado” (WALSHAM, 1997).

− CAIXA PRETA (Black Box) – Elemento congelado da rede, geralmente com propriedades de irreversibilidade (WALSHAM, 1997).

− MÓVEL IMUTÁVEL – Elemento da rede com propriedades de irreversibilidade robustas e efeitos que transcendem tempo e espaço, como, por exemplo, os padrões de software (WALSHAM, 1997).

TRANSLAÇÃO: A translação ou “tradução” é o conceito chave da Teoria Ator-Rede e significa “deslocar os aliados para a posição desejada; expressar na linguagem de um, o que outros dizem e desejam, assim como os motivos que os levam a agir, e como se associam a outros” (CHRISTOPOULOS, 2008). Assim, a translação é o processo de reinterpretação, representação ou apropriação dos interesses alheios, que passam a ser seguidos e alinhados com a rede, criando um grupo de aliados, humanos e não humanos (WALSHAM, 1997); pressupõe existência de meio ou “material” onde inscrever. Traduzir (ou transladar) significa deslocar objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica desvio de rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira modifica os elementos imbricados. Pela translação os atores alistam-se uns aos outros, sendo ela uma relação mediadora que torna associações fracas em fortes (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). As cadeias de tradução referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e transladam os seus vários e contraditórios interesses (FREIRE, 2006). No processo de translação ou após, atores podem representar outros, formando sub-redes. Este processo pode simplificar a complexidade das redes, mas também representa mudanças nas composições de interesses representados (CHRISTOPOULOS, 2008). A ANT é, assim, um dispositivo metodológico e teórico que oferece os meios para investigar esses híbridos de pessoas e tecnologia da informação, com limites cada vez mais difusos entre eles, presentes hoje em um amplo espectro de atividades humanas de trabalho e lazer (WALSHAM, 1997). Ainda de acordo com WALSHAM (1997) esta combinação de teoria e metodologia, não apenas fornece conceitos teóricos para orientar nosso olhar sobre os elementos do mundo real, como também aponta quais elementos devem ser investigados no trabalho empírico. Fornece um arcabouço possível para lidar com incerteza e complexidade (WILLIAMS, 2007). A ANT é uma troca de metáforas para descrever essências – no lugar de superfícies, têm-se filamentos (ou rizomas). Mais precisamente, é uma mudança de topologia – no lugar de pensar em termos de superfícies (2 dimensões), ou esferas (3 dimensões), deve-se pensar em termos de nodos – possuem tantas dimensões quantas são suas conexões (LATOUR, 1997). Um importante foco empírico da teoria, quando aplicada a contextos particulares, é tentar traçar e explicar os processos nos quais redes de interesses alinhados, relativamente estáveis são criadas e mantidas, ou, alternativamente, examinar porque essas redes falham ao se estabelecer (WALSHAM, 1997). Uma rede de interesses alinhados é criada pelo envolvimento de um grupo suficiente de aliados e pela translação dos seus interesses de forma que eles se engajem na rede, pensando e agindo de acordo com suas características individuais e mantendo a rede viva. As redes constituem-se em um processo de ordenação, no qual há uma constante negociação de interesses dos diferentes atores para que os objetivos comuns sejam alcançados. Nelas, o poder é efeito e não causa à medida que ele não se constitui pela

Page 10: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

10

vontade imposta aos demais, mas em como as vontades podem ser traduzidas numa vontade parcialmente estabilizada (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). As redes que se formam nos processos de participação da sociedade, como pressupõem a adesão voluntária dos cidadãos, representam uma combinação de diversos interesses alinhados em torno de pontos comuns, caracterizando-se como “redes adaptativas complexas”, como descritas por WILLIAMS (2007). A complexidade aumenta se esses processos de participação são desenvolvidos através de redes mediadas por sistemas de informação. A ANT oferece instrumentos para tratar essa complexidade (SANTOS, 2006). Ainda permite estudar as relações de poder existentes na interação entre indivíduos e organização, e como isso afeta a constituição e o funcionamento da rede (como a definição de estratégias, geração de controvérsias, alteração de padrões e desenvolvimento de inovações) (CHRISTOPOULOS, 2008). As redes de atores caracterizam espaços relacionais nos quais a construção de estratégias acontece no próprio processo de mediação e negociação de interesses e são ordenadas pelo discurso em ação de forma a tornar possível a construção das ligações entre porções e peças do social, do técnico, do conceitual e do textual traduzindo-as em materialidades heterogêneas que moldam umas às outras para produzir ordenações, transformando recursos esparsos numa teia (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). A Teoria Ator-Rede redefine conceito de "social". Social não é homogêneo, é um caminho de associações entre elementos heterogêneos. Social não é domínio da realidade ou algum item particular; é o nome de um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma translação, um envolvimento. É associação entre entidades que não são reconhecíveis como sociais de uma forma convencional, exceto durante o breve momento quando são agrupadas (SANTOS, 2006). Nela as redes são caracterizadas como híbridos móveis; uma associação de elementos onde as tramas do cotidiano podem ser mediadas (AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005). Ainda de acordo com a autora, ela se ocupa mais dos processos de ordenação do que com o estabelecimento de uma ordem, por ser uma abordagem relacional que oferece uma compreensão plausível de como essa ordem se produz através de um constante processo de ordenação e de negociação dos interesses. A Teoria Ator-Rede não surgiu aleatoriamente por um insight de Latour e seus colegas, ao contrário, representa uma tentativa de estudar e entender o nosso complexo mundo sócio-técnico (WALSHAM, 1997). Este autor, em seu importante artigo apresentado na “Conferência Internacional em Sistemas de Informação e Pesquisa Qualitativa” promovida pelo IFIPii, analisou o uso desta teoria em pesquisas no campo de Sistemas de Informação, observando que ela oferece novos conceitos e idéias para a compreensão da natureza sócio-técnica dos SI, ao mesmo tempo em que é alvo de diversas críticas, o que pode ser consequência das atenções que tem recebido como nova e importante teoria social. Walsham (1997) alerta os pesquisadores de SI para darem atenção a essas críticas e assim, poderem gerar uma visão informada da utilidade e das limitações da teoria em seu trabalho. 3.2 As críticas à ANT Walsham identifica quatro ‘veios’ principais de críticas. O primeiro deles diz respeito a uma análise limitada das estruturas sociais – a ANT trabalha com o local e o contingente, sem dar atenção às estruturas sociais mais amplas que moldam o local. Na mesma linha, Williams (2007) critica que a ANT mantém o foco dos pesquisadores muito próximo dos eventos, deixando um pouco de lado as relações de poder e organização social e as comunidades que as mantém (ou contestam). Walsham recomenda então que os pesquisadores de SI busquem

Page 11: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

11

complementar a abordagem metodológica e os conceitos da ANT com insights e análises das teorias da estrutura social. A segunda área de críticas, apontada por Walsham (1997), que atinge o construtivismo social em geral e a ANT em particular, é relacionada à sua postura nas questões morais e políticas; uma ‘amoralidade’ que se manifesta na quase total despreocupação com as consequências sociais das escolhas tecnológicas. De acordo com esta crítica, a ANT não levaria em conta que determinadas escolhas tecnológicas podem ser direcionadas para beneficiar os detentores do poder. O autor afirma que a ANT não oferece suporte efetivo aos pesquisadores de SI que desejam examinar implicações éticas e morais. Entretanto, cita Latour, ao recomendar o uso da teoria para descrever as redes e, a partir daí, debater as questões éticas e morais a partir de uma sólida base empírica. A terceira zona de controvérsias está relacionada à simetria entre humanos e não humanos. Para Walsham, faz sentido pensar nos objetos como “atuantes” (actants) e considerar que interesses eles inscrevem, representam e defendem. Isto não é o mesmo que aceitar a simetria entre pessoas e coisas, mas trata-se de um valioso dispositivo analítico em uma era de fronteiras híbridas, nebulosas e negociáveis. Williams (2007) ainda observa que a “[...] concepção de ator na ANT é um pouco restritiva e, algumas vezes parece um pouco reducionista, um pouco materialista demais. Existe pouco espaço óbvio nos relatos ANT para as múltiplas atividades imaginativas e cognitivas que uma pessoa pode desempenhar, em seu processo de criação de uma rede de atores para satisfazer (ou contestar) as demandas de mais de um ‘discurso’”. Para ele, Latour quis fugir do dualismo entre as ações e as mentes dos atores, mas isto pode levar a abordagens complicadas, dificultando o estudo adequado da criação e gerenciamento de aprendizagem e conhecimento (WILLIAMS, 2007). A quarta categoria de críticas refere-se ao volume das descrições geradas em um trabalho elaborado de acordo com a metodologia prescrita pela ANT, em decorrência do detalhamento das variadas relações entre os diversos atores humanos e não humanos em uma rede – segundo o mesmo artigo, este problema é comum a qualquer estudo de profundidade na área de SI. Para Walsham, este é um problema menor, e pode ser contornado buscando-se novas formas de relatar esses estudos. O autor afirma que nenhuma dessas críticas impede o uso da ANT no campo de Sistemas de Informação, entretanto, indica a necessidade de cautela ou qualificações para o pesquisador na área, principalmente ao abordar questões éticas e morais. Além dessas críticas, em seu artigo, Williams (2007) considera a ANT inadequada para analisar o processo de ‘comoditização’ e de produção de conhecimento formal e sua capitalização na ciência e nos sistemas de informação – “parcela crescente do valor embutido nos sistemas e artefatos produtivos e regulatórios, que incluem as políticas e procedimentos nas burocracias e democracias liberais”. 4 Análise do Contexto Um exame das práticas sociais mediadas pela tecnologia contribui para desvendar as estruturas de suporte que facilitam ou inibem os atores em seu engajamento democrático. A análise dos espaços virtuais de participação democrática revelou que eles possuem as características básicas de redes heterogêneas formadas por atores humanos e não humanos. Essas redes irão se formar, em geral, pela adesão voluntária de cidadãos e ou entidades da sociedade, com interesses muitas vezes divergentes e até conflitantes, que serão negociados no interior desses espaços. Da mesma forma, as relações de poder se desenvolvem e são

Page 12: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

12

negociadas no processo participativo e de acordo com a temática e as características de funcionamento de cada um desses espaços. Várias iniciativas neste campo estão tomando forma no Brasil através, principalmente, de projetos de governos estaduais (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul) e municipais (Porto Alegre, Belo Horizonte), criando um campo interessante para a investigação dos aspectos relacionados à sua efetividade, aos elementos facilitadores/inibidores da participação cidadã, às relações de poder que se estabelecem nesses espaços, aos processos de mediação e de concenso, dentre outros. A revisão bibliográfica e a análise que realizamos sobre a ANT revelam a sua adequação plena às características descritas acima e não é por outro motivo que ela tem sido adotada por diversos pesquisadores como framework teórico para o estudo de diversos fenômenos neste campo. Um caso prático, no Brasil, foi o seu emprego no estudo dos processos de governança e gerenciamento da Rede de Telecentros da cidade de São Paulo. Nesse trabalho, a ANT mostrou-se extremamente útil para a análise do permanente processo de translação vivido pela Rede (REINHARD, 2006). Entretanto, quando o objeto de estudo são as práticas democráticas facilitadas pelas TIC (a democracia eletrônica), o ferramental oferecido pela ANT não é suficiente para o tratamento e a compreensão dos contextos político-ideológicos que envolvem e são determinantes da constituição desses espaços de participação democrática e, também, da efetividade de seu funcionamento e da extensão e profundidade de seus resultados. A ANT atribui pouca relevância às questões morais e políticas. Esta fragilidade está associada às duas primeiras críticas relatadas por Walsham (1997): A análise limitada das estruturas sociais e a ausência de um posicionamento nas questões morais e políticas. Nossa proposição é que as pesquisas envolvendo o campo dos espaços criados pelos governos para a participação democrática da sociedade, apoiados pelas tecnologias da Internet, adotem como framework teórico a composição da Teoria Ator-Rede (ANT) com outras teorias da área da organização social ou das ciências políticas. Ferramentais teóricos como os da Teoria da Estruturação, aplicada por Barbosa (2008), ou da Teoria Crítica (CST - Critical Social Theory), oferecem esta complementação. Para a CST a realidade social é construída no processo histórico e é produzida e reproduzida por pessoas. Entretanto, as diversas formas de dominação política, social e cultural limitam e muitas vezes impedem que os cidadãos exerçam a sua capacidade de agir sobre suas circunstâncias sociais e econômicas para modificá-las para melhor. Assim, a pesquisa crítica utiliza a crítica social para estudar as contradições e os conflitos presentes na sociedade e revelar as condições alienantes e restritivas existentes para, a partir daí, agir sobre as causas da dominação. Estes aspectos são especialmente relevantes em uma democracia jovem como a brasileira, onde as formas de organização e de resistência democráticas, muitas vezes, são ainda frágeis, ou mesmo, incipientes. Neste cenário, frequentemente, as iniciativas de criação de espaços virtuais de participação da sociedade têm como motivação a preservação das estruturas de poder e dominação existentes. Sugerimos, como continuidade desse trabalho, que o framework resultante da combinação dessas duas teorias seja estudado e experimentado e, confirmada a sua complementariedade e utilidade, seja disponibilizada como uma abordagem que permitirá avanços na pesquisa. Como já foi mencionado, este é um campo novo, mas que potencialmente tem grande relevância para o desenvolvimento das relações democráticas nas sociedades.

Page 13: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

13

5 Conclusão Desenvolvemos este artigo com o objetivo de investigar a adequação da Teoria Ator-Rede como framework teórico para o estudo dos processos de participação democrática apoiados pelas tecnologias da informação. Entendemos que este esforço é relevante, tanto do ponto de vista teórico, para os pesquisadores que têm se dedicado ou vão dedicar-se no futuro ao estudo desse fenômeno e lidam com a dificuldade de dispor de um arcabouço teórico que permita investigar o fenômeno em toda a sua complexidade, quanto na perspectiva prática dos agentes que, no campo, operam esses espaços e se defrontam com as limitações impostas por fatores externos à rede de atores que compõem o ambiente político-social. A principal limitação deste artigo está no fato da investigação não ter avançado além da ANT, percorrendo uma ou mais das teorias da estrutura social (como as citadas Teorias da Estruturação e Crítica). Apresentamos como proposição para a continuidade e complementação deste trabalho a investigação da CST e de outras teorias como abordagens complementares à ANT no estudo dos fenômenos relacionados aos espaços virtuais de participação democrática no Brasil. REFERÊNCIAS AGRE, Philip. Real-Time Politics: The Internet and the Political Process. In: The

Information Society, 18:311–331, Taylor & Francis. 2002. AINSWORTH, Susan; HARDY, Cynthia; HARLEY, Bill. Online consultation: E-

Democracy and E-Resistance in the Case of the Development Gateway. Management Communication Quarterly : McQ; Aug 2005; 19, 1; ABI/INFORM Global. pg. 120.

AKUTSU, L; PINHO, J. A. G. Sociedade da Informação, accountability e democracia delegativa: investigação em portais de governo no Brasil. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002.

AMANTINO-DE-ANDRADE, Jackeline. Redes de Atores: Uma Nova Forma de Gestão das Políticas Públicas no Brasil?. In: XXIX ENANPAD. Anais em CD. Brasília: Anpad. 2005.

AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e uso na América Latina. In: Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 47, n. 4, 2004, p 703 a 728.

BARBOSA, Alexandre. Governo Eletrônico: Dimensões da avaliação de desempenho na perspectiva do cidadão. São Paulo, 2008. Tese de doutorado – EAESP/FGV.

BELLINI, Carlo G.; VARGAS, Lilia M. Comunidades Mediadas pela Internet: Por Uma Base Conceitual. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002. (a)

________, Carlo G.; VARGAS, Lilia M. Critérios de Projeto para Web Sites de Comunidades Mediadas pela Internet. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002. (b).

CHRISTOPOULOS, Tania P. A sustentação das comunidades virtuais de aprendizagem e de prática. São Paulo, 2008. Tese de doutorado - EAESP/FGV.

CRUZ, Maurício S. Tecnologia de Informação no espaço público : o caso Telecidadão no Paraná. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado) – EAESP/FGV.

CUNHA, Maria A. et al. O Uso de Meios Eletrônicos no Relacionamento do Parlamentar com o Cidadão e com o Poder Executivo nos Grandes Municípios Brasileiros. In: XXIX ENANPAD. Anais em CD. Brasília: Anpad. 2005.

_______, Maria A. ANNENBERG, Daniel; AGUNE, Roberto M. Prestação de Serviços Públicos Eletrônicos ao Cidadão. In: KNIGHT, P.; FERNANDES, C.; CUNHA, M.A.

Page 14: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

14

E-Desenvolvimento no Brasil e no Mundo – Subsídios e Programa e-Brasil. Yendis – São Caetano do Sul/SP. 2007.

_______, Maria A.; MIRANDA, Paulo R. A Pesquisa no Uso e Implicações Sociais das Tecnologias da Informação e Comunicação pelos Governos no Brasil: uma Proposta de Agenda a Partir de Reflexões da Prática e da Produção Acadêmica Nacional. In XXXII ENANPAD. Anais em CD. Rio de Janeiro: Anpad. 2008.

DERTOUZOS, Michael. What Will Be: How the New Information Marketplace will Change Our Lives. San Francisco: Harper, 1997.

EINSENBERG, José. Internet, Democracia e República. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, nº 3, pp. 491 a 511. 2003.

FREIRE, Letícia. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. In: Revista Comum. Rio de Janeiro. v.11, nº 26. p. 46 a 65. Janeiro/junho 2006.

FREY, Klaus. Governança Urbana e Participação Pública. In: XXVIII ENANPAD. Anais em CD. Curitiba: Anpad. 2004.

IIZUKA, Edson S. A Exclusão Digital e as Organizações Sem Fins Lucrativos da cidade de São Paulo: Um Estudo Exploratório. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002.

KRUEGER, Brian S. Government Surveillance and Political Participation on the Internet. In: Social Science Computer Review. 23. 439. DOI: 10.1177/0894439305278871. 2005. Disponível em: http://ssc.sagepub.com/cgi/content/abstract/23/4/439

LATOUR, Bruno. A few clarifications on actor-network theory. Centre for Social Theory and Technology (CSTT), Keele University, UK. 1997.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva – Por uma antropologia do ciberespaço. Rouanet, Luiz P. (Trad.). São Paulo: Loyola. 1998.

LIM, Merlyna. Cyber-civic space in Indonésia - From panopticon to pandemonium?. International Development Planing Review – IDPR. v. 24. nº 4. Departments of Civic Design and Geography in the University of Liverpool, and the Department of Geography at Royal Holloway, University of London. 2002.

MAIA, Rousiley C. Democracia e a internet como esfera pública virtual: aproximando as condições do discurso e da deliberação. Grupo de Trabalho Comunicação e Política da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS). 2001. Disponível em: http://www.unb.br/fac/comunicacaoepolitica/Rousiley2001.pdf

MADON, S.; REINHARD, N.; ROODE, D.; WALSHAM, G. Digital Inclusion Projects in Developing Countries: Processes of Institutionalisation. In: IFIP – International Federation for Information Processing, vol. 208. Social Inclusion: Societal and Organizational Implications of Information Systems. Trauth, E.; Howcroft, D.; Butler, T.; Fitzgerald, B.; DeGross, J. (eds.). Boston: Springer. 2006. p 67-70.

MARQUES, Francisco P. Debates políticos na internet: a perspectiva da conversação civil. In: Opinião Pública. Campinas, vol. 12, nº 1. Abril/Maio, 2006. p. 164-187

NEGROPONTE, Nicholas. Being Digital. Knopf: New York. 1995. PINHO, José A.; IGLESIAS, Diego M.; SOUZA, Ana C. Portais de Governo Eletrônico de

Estados no Brasil: muita tecnologia e pouca democracia. In: XXX ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. 2006.

PIRES, Roberto R. Intersetorialidade, Descentralização e Participação: novas estruturas para um Estado mais próximo do cidadão. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002.

PORRAS, José I. De la democracia procedimental a la democracia como ideal. La contribución de Internet para estrechar la brecha. In: Porras, J.I.; Araya, R.(ed) e-democracia: retos e oportunidades para el fortalecimento de la participación ciudadana y

Page 15: A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo ... · A Teoria Ator-Rede como Framework Teórico para o Estudo dos Processos de Participação Democrática Apoiados por

15

la Democracia em la Sociedad de la Information. Santiago: Editorial Universidad Bolivariana. 2003. p.357.

REINHARD, Nicolau; MACADAR, Marie Anne. Governance and Management in São Paulo Public Telecenter Network – View from practice. In: Information Technology for Development, vol 12, nº 3. Publicado online em Wiley InterScience (www.interscience.wiley.com). 2006. p. 241-246.

RUEDIGER, Marco A. Governo Eletrônico e Democracia – Uma Análise Preliminar dos Impactos e Potencialidades na Gestão Pública. In: XXVI ENANPAD. Anais em CD. Salvador: Anpad. Set. 2002.

TAKAHASHI, Tadao (Org). Sociedade da Informação no Brasil – Livro Verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. Disponível em www.mct.gov.br/index.php/content/view/18878.html. Acesso em 12 mar.2007.

SANTOS, Heloisa M. - Coleta e Análise de Dados em Pesquisas no Campo de Sistemas de Informação que adotam a Perspectiva da Teoria Ator-Rede. Salvador: EnANPAD. 2006.

VAREY, R.J.; WOOD-HARPER, T.; WOOD B. A theoretical review of management and information systems using a critical communications theory . Journal of Information Technology, Volume 17, Number 4, 1 December 2002 , pp. 229-239(11). Publisher: Routledge, part of the Taylor & Francis Group.

WALSHAM, Geoff. Actor-Network Theory and IS Research: Current Status and Future Prospects. In: Information Systems and Qualitative Research - Proceedings of the IFIP TC8 WG 8.2 International Conference on Information Systems and Qualitative Research. LEE, A.; LIEBENAU, J.; DEGROSS, J. (editors). Philadelphia, Pennsylvania, USA. 1997.

WILLIAMS, Roy. Managing Complex Adaptive Networks. Paper for the International Conference on Intellectual Capital and Knowledge Management, Cape Town Oct 2007.

WINNER, L. Myth informatio: romantic politics in the information age. In: Mitcham, C.; Huning, Alois (ed.). Philosophy and technology II: Information technology and computers in theory and practice. Holanda: D. Reidel Publishing Company. 1986.

WITSCHGE, Tamara. Online Deliberation: Possibilities of the Internet for Deliberative Democracy. Paper submitted to Euricom Colloquium. Electronic Networks & Democratic Engagement. Carnegie Mellon University, Pittsburgh October 2002.

YORK University. Theories in IS Research – Actor-Network Theory. Disponível em http://www.fsc.yorku.ca/york/istheory/wiki/index.php/Actor_network_theory. Acesso em 02/08/2008.

i O termo “cidadão” é empregado neste artigo, significando não apenas as pessoas, mas também os diversos tipos de organizações da sociedade civil e as empresas. ii IFIP - International Federation for Information Processing – Fundada em 1960 sob os auspícios da UNESCO, possui dois focos principais: apoiar as atividades e a pesquisa no campo da Tecnologia da Informação nos países-membros e encorajar a transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento.