a taberna 31 05 2011 t a b e r n a d o s d o i s t o s t õ e s 13 fora maigret quem, três meses...

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Tradução de CELINA PORTOCARRERO ~ A taberna dos dois tostoes www.lpm.com.br L&PM POCKET Georges Simenon

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Tradução de Celina PortoCarrero

~A taberna dos dois

tostoes

www.lpm.com.br

l&pm PoCKEt

Georges Simenon

C A P í T U L O I

O sábadO dO sr. bassO

um Final de tarde esPlendoroso. Um sol quase pastoso nas ruas tranquilas da Rive Gauche. E por toda parte, nos rostos, nos milhares de ruídos familiares da rua, a alegria de viver.

Há dias assim, em que a existência é menos cotidia-na e em que as pessoas, nas calçadas, nos bondes e nos carros, parecem representar seu papel num musical.

Era o dia 27 de junho. Quando Maigret chegou à porta levadiça da Santé, o sentinela enternecido obser-vava um gatinho branco que brincava com o cachorro da leiteria ao lado.

Deve haver dias, também, em que os paralelepípe-dos são mais sonoros. Os passos de Maigret ressoaram pelo enorme pátio. No final de um corredor, ele inter-pelou um guarda:

– Ele já sabe?...– Ainda não.Um girar de chave. Uma tranca. Uma cela muito

alta, muito limpa, e um homem que se levantava en-quanto seu rosto parecia buscar uma expressão.

– Tudo bem, Lenoir? – perguntou o comissário.

12 S i m e n o n

O homem quase sorriu. Mas um pensamento endureceu-lhe de repente as feições. Suas sobrancelhas se aproximaram, desconfiadas. Por alguns segundos, ele esboçou uma careta irritada, depois deu de ombros, estendeu a mão.

– Entendi! – exclamou.– Entendeu o quê?Um sorriso desencantado.– Não me venha com essa. Se o senhor está aqui...– É que saio amanhã pela manhã de férias e...O prisioneiro riu, um riso seco. Era um rapaz

alto, de cabelos castanhos jogados para trás. Traços regulares. Belos olhos castanhos. Bigode fino que fazia ressaltar a brancura dos dentes pontiagudos como os dos roedores.

– O senhor é gentil, comissário...Espreguiçou-se, bocejou, baixou a tampa do vaso

sanitário que, num canto da cela, ficara aberto.– Não repare na bagunça...E de repente, olhando Maigret nos olhos:– O recurso foi negado, não é?Era inútil mentir. Ele já compreendera. Andava de

um lado para outro.– Eu não tinha ilusões!... Então?... Amanhã?...Mesmo assim, na última palavra, a voz embargou,

e os olhos colheram a claridade do dia filtrada por uma janela estreita, muito alta.

Na mesma hora, os jornais da tarde vendidos nas varandas dos cafés publicavam:

O presidente da República recusou o recurso de Jean Lenoir, o jovem chefe do bando de Belleville. A exe-cução acontecerá amanhã ao nascer do dia.

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Fora Maigret quem, três meses antes, pusera as mãos em Lenoir, num hotel da Rue Saint-Antoine. Mais um segundo e a bala que o assassino atirara em sua direção o atingiria em pleno peito em vez de se perder no teto.

O que não impediu que o comissário se interessasse por ele, sem rancor. Primeiro, talvez, porque Lenoir era moço. Um rapaz de 24 anos que, desde os quinze, acumulava condenações.

E depois, porque era corajoso. Tinha cúmplices. Dois foram presos no mesmo dia. Eram também cul-pados e, no último trabalho, assalto à mão armada de um caixa de banco, tiveram uma participação maior do que o chefe.

Entretanto, Lenoir não os acusava, assumia toda a culpa, recusava-se a delatar alguém.

Não fazia pose, não contava vantagens. Não acu-sava a sociedade por seus fracassos.

– Perdi!... – contentava-se em dizer.Estava tudo acabado. Ou melhor, quando o sol que

se via dourar um pedaço da parede da cela se levantasse mais uma vez, estaria tudo acabado.

Lenoir fez, mesmo sem perceber, um gesto sinistro. Enquanto andava, passou a mão na nuca, estremeceu, empalideceu, sentiu necessidade de ironizar:

– De qualquer maneira, a sensação é muito es-tranha...

E de repente, com uma onda de rancor nos lábios:– Se pelo menos a gente fosse para lá junto com

todos os que merecem!Observou Maigret, hesitou, deu mais uma vez a

volta na cela estreita, resmungou:

14 S i m e n o n

– Não vai ser hoje que eu vou começar a dedurar alguém... Mas, de qualquer maneira...

O comissário evitava olhar para ele. Sentia a con-fissão chegar. E sabia que o outro era tão arisco que um simples sobressalto, ou um interesse demasiado evidente, seria o suficiente para lhe fechar a boca.

– Naturalmente, o senhor não conhece a taberna dos dois tostões... Pois bem! Se for dar uma volta por lá, saiba que há um sujeito entre os frequentadores habituais que ficaria melhor do que eu no lugar onde vou estar amanhã...

Continuava a andar. Não conseguia ficar parado. Aquilo começava a ser exasperante. Só nisso traía seu desespero.

– Mas o senhor não vai pegá-lo... Veja, sem “en-tregar o ouro”, posso muito bem lhe contar... Não sei por que isso me veio à cabeça, hoje... Talvez por ser uma história de garoto... Eu devia ter uns dezesseis anos... Nós dois frequentávamos os bailes populares, batendo carteiras... O outro, a esta altura, deve estar num hospital... Ele já tossia...

Será que, agora, ele só falava para se dar a ilusão da vida, para provar a si mesmo que era ainda um homem?

– Uma noite... Eram umas três da manhã... An-dávamos pela rua... Não! Não lhe direi o nome da rua... Uma rua qualquer. Vimos de longe uma porta se abrir... Havia um carro estacionado... Sai um sujeito, empurrando outro... Não! Empurrando não... Imagine um manequim que a gente quisesse fazer andar junto, como se fosse um amigo!... Ele o bota lá dentro, senta ao volante... Meu amigo me lança um olhar e num

15A t A b e r n A d o S d o i S t o S t õ e S

instante estávamos os dois no para-choques traseiro... Naquela época, me chamavam de Gato... Não preciso dizer mais nada!... Passamos por um monte de ruas... O fulano que dirigia parecia procurar alguma coisa, parecia ter se enganado... No fim, compreendemos o que ele procurava, porque ele chegou no Canal Saint-Martin... Já adivinhou, não é?... Foi tempo de abrir e fechar a porta, pronto, estava feito... Havia um corpo na água...

“Certo como dois e dois são quatro! O camarada do carro deve ter posto antes umas coisas pesadas nos bolsos do morto, porque ele não boiou nem por um segundo...

“Nós dois ficamos na nossa... Outra olhada... Vol-tamos para o nosso lugar... Para ter certeza do endereço do cliente... Na Place de la République, ele parou para tomar uma dose de rum no único bar ainda aberto... Depois levou o carro para a garagem e voltou para casa... Nós o víamos pela silhueta, atrás das cortinas, tirando a roupa...

“Durante dois anos, chantageamos o cara... Éra-mos novatos... Tínhamos medo de pedir demais... Cem francos cada vez...

“Aí, um dia, o fulano se mudou e não o encon-tramos... Há menos de três meses eu o vi por acaso na taberna dos dois tostões, e ele nem me reconheceu...”

Lenoir cuspiu no chão, procurou mecanicamente os cigarros, resmungou:

– Quando o cara chega aonde eu cheguei, deveriam pelo menos deixar a gente fumar...

O raio de sol tinha se apagado, lá em cima. Ou-viam-se passos no corredor.

16 S i m e n o n

– Não é que eu seja pior do que ninguém, mas é preciso admitir que o sujeitinho de que estou falando ficaria bem, amanhã de manhã, comigo, lá onde...

Aquilo saiu de repente. Gotas de suor brotavam da testa. E, ao mesmo tempo, as pernas amoleciam. Lenoir sentou-se à beira do catre.

– Está na hora de o senhor me deixar... – suspirou ele. – Ou talvez não... Não!... Não me deixem sozinho hoje... Ainda é melhor falar... Ouça! Quer que eu lhe conte a história de Marcelle, a mulher que...

Abriram a porta. O advogado do condenado he-sitou, ao ver Maigret. Ensaiou um sorriso formal, para não deixar que seu cliente adivinhasse que o recurso fora recusado.

– As notícias são boas... – começou ele.– Tá bom!E, para Maigret:– Não lhe digo até mais, senhor comissário... A

cada um seu ofício... Além do mais, o senhor sabe, não vale a pena ir à taberna... O sujeito é tão esperto quanto o senhor...

Maigret estendeu a mão. Viu as narinas vibrarem, o pequeno bigode castanho se umedecer, os caninos que se enterravam no lábio inferior.

– É isto ou o tifo... – brincou Lenoir com um sorriso forçado.

Maigret não estava saindo de férias, mas tinha um caso de títulos falsos que lhe tomava quase todo o tempo. Nunca ouvira falar da taberna dos dois tostões. Informou-se com os colegas:

17A t A b e r n A d o S d o i S t o S t õ e S

– Não conheço! De que lado fica? À beira do Mar-ne? Do Sena?

Lenoir tinha dezesseis anos por ocasião da história que lhe tinha contado. Portanto, tudo acontecera há oito. E uma noite Maigret abriu os dossiês dos casos arquivados daquele ano.

Mas não havia casos sensacionais. Desaparecimen-tos, como sempre. Uma mulher cortada em pedaços, cuja cabeça nunca fora encontrada. Quanto ao Canal Saint-Martin, rendera nada menos do que sete cadáveres.

E a história dos títulos falsos se complicava, exigia inúmeras providências. Além disso, ele precisou levar a sra. Maigret à Alsácia, à casa da irmã, onde, como todos os anos, ela passava um mês.

Paris se esvaziava. O asfalto ficava mole sob os passos. Os pedestres buscavam as calçadas na sombra e todos os lugares das varandas estavam ocupados.

Esperamos você no domingo, sem falta. Beijos de todos.

A sra. Maigret reclamava, porque há quinze dias o marido não ia vê-la. Era sábado, 23 de julho. Ele botou os dossiês em ordem, avisou Jean, o auxiliar de escritório do Quai des Orfèvres, de que com certeza não voltaria antes de segunda à noite.

Na hora de sair, seu olhar caiu sobre a aba do chapéu-coco, quebrada há semanas. Várias vezes a sra. Maigret lhe dissera para comprar outro.

– Vão acabar lhe dando esmolas na rua!...No Boulevard Saint-Michel, viu uma chapelaria,

começou a experimentar chapéus, e todos eram peque-nos demais para o seu crânio.

18 S i m e n o n

– Eu lhe garanto que este aqui... – teimava em repetir um palerma de um vendedor.

Nunca Maigret ficava mais infeliz do que quando experimentava alguma coisa. No espelho em que se olhava, avistou umas costas, uma cabeça e, sobre a cabeça, uma cartola.

Como o cliente estava vestido com um terno espor-te cinza, o conjunto era bem engraçado. Ele falava.

– Não!... Eu queria um modelo ainda mais antigo... Não é para usar...

Maigret esperava uma nova leva de chapéus que tinham ido buscar nos fundos da loja.

– Entenda, é para uma brincadeira. Um falso casamento, que organizamos com alguns amigos, na taberna dos dois tostões!... Haverá noiva, sogra, padrinhos, tudo!... Como num casamento da roça!... O senhor entende agora o que preciso?... Eu serei o prefeito da aldeia...

O cliente dizia aquilo tudo rindo muito. Era um homem de uns 35 anos, rechonchudo, com bochechas rosadas, que dava a impressão de ser um próspero comerciante.

– Se tiver, por exemplo, com a borda reta...– Espere! Acho que na oficina tenho exatamente

o que quer. É uma consignação...Trouxeram para Maigret uma nova pilha de cha-

péus-coco. O primeiro que experimentou ficou bom. Mas ele ficou por ali, só saiu poucos instantes antes do homem da cartola e parou um táxi ao acaso.

Fez bem. O outro, saindo, entrou num carro esta-cionado à beira da calçada, pôs-se ao volante e dirigiu-se para a Rue Vieille-du-Temple.

19A t A b e r n A d o S d o i S t o S t õ e S

Lá, passou meia hora num brechó e saiu carregan-do uma caixa comprida de papelão que devia conter o traje para combinar com a cartola.

Depois foram os Champs-Elysées, a Avenue de Wagram. Um barzinho, numa esquina. Ele só ficou uns cinco minutos, saiu na companhia de uma mulher de uns trinta anos, roliça e alegre.

Duas vezes Maigret viu as horas no relógio de pulso. Seu primeiro trem já partira. O segundo partiria em quinze minutos. Deu de ombros, disse ao motorista do táxi:

– Continue seguindo!Já esperava: o carro parou diante de um hotel de

encontros da Avenue Niel. O casal correu para a entra-da. Maigret esperou quinze minutos, entrou, não sem antes ler numa placa de cobre:

Quartos por mês e por dia

Numa recepção que cheirava a adultério, elegante, encontrou uma gerente perfumada.

– Polícia Judiciária!... O casal que acaba de entrar...– Que casal?Ela não disfarçou por muito tempo.– Pessoas muito distintas, os dois casados, vêm

duas vezes por semana...Ao sair, o comissário deu uma olhada no cartão de

identificação do carro, pelo vidro da frente:

Marcel Basso32, Quai d’Austerlitz, Paris

Nem uma brisa. Um ar morno. E todos os bondes, todos os ônibus dirigiam-se para as estações, lotados.

20 S i m e n o n

Os táxis estavam carregados de espreguiçadeiras, varas de pescar, redes para camarões e malas.

O asfalto azul de tanto ser polido e o som de copos e pires em todas as varandas.

– É verdade! Há três semanas Lenoir foi...Falara-se muito a respeito. Era um caso banal,

um assassino de certa forma profissional. Maigret lembrou-se de seu bigode trepidante, suspirou ao olhar o relógio.

Tarde demais para ir ao encontro da sra. Maigret que, à noite, estaria na plataforma da pequena estação e não deixaria de murmurar:

– Continua o mesmo!O motorista do táxi lia um jornal. O homem

da cartola saiu primeiro, inspecionou a rua nos dois sentidos antes de fazer sinal para a companheira, que ficara na entrada.

Parada na Place de Ternes. Os dois podiam ser vistos se beijando, pelo vidro traseiro. E eles ainda se davam as mãos quando o carro já estava engrenado e a mulher mandava parar um táxi.

– Continuo? – perguntou o motorista de Maigret.– Já que estamos aqui...Pelo menos ele encontrara alguém que conhecia a

taberna dos dois tostões!Quai d’Austerlitz. Uma enorme tabuleta:

Marcel BassoImportador de carvão de todas as origens

Atacado e varejoEntregas por saco em domicílio

Preços de verão

21A t A b e r n A d o S d o i S t o S t õ e S

Um canteiro cercado por um tapume escuro. Na frente, do outro lado da rua, um cais de descarga com a mesma razão social e barcaças paradas junto a montes de carvão descarregado naquele mesmo dia.

Entre os canteiros, uma casa grande, tipo man-são. O sr. Basso estacionou o carro, deu uma olhada automática para se assegurar de que não havia cabelos femininos em seus ombros, entrou em casa.

Maigret o viu reaparecer num quarto do primeiro andar, cujas janelas estavam abertas de par em par. Havia com ele uma mulher alta, loura, bonita. Os dois riam. Conversavam com entusiasmo. O sr. Basso ex-perimentava a cartola e se olhava no espelho.

Roupas sendo arrumadas numa mala. Havia uma empregada, de avental branco.

Quinze minutos depois – eram cinco horas – a família desceu. Um garoto de dez anos vinha na frente, carregando uma espingarda de ar comprimido. Depois a criada, a sra. Basso, o marido, um jardineiro com as malas.

Toda a cena transbordava bom humor. Carros passavam, dirigindo-se para o campo. Na Gare de Lyon, os trens apitavam loucamente.

A sra. Basso sentou-se ao lado do marido. O ga-roto instalou-se atrás, entre as bagagens, e abaixou os vidros.

O carro não era luxuoso. Um bom veículo de série, azul-rei, quase novo.

Alguns minutos depois, saíram em direção a Ville-neuve-Saint-Georges. Depois pegaram a estrada para Corbeil. Atravessaram a cidade. Um atalho, junto ao Sena.