a superioridade moral das esquerdas

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A SUPERIORIDADE MORAL DAS ESQUERDAS, OU: O RABO E O CACHORRO NA ÉPOCA DO IMPEACHMENT de Collor, os Relatórios da gestão Graciliano Ramos na Prefeitura de Palmeira dos Índios — inseridos no volume Viventes das Alagoas e reeditados agora em volume independente97 — foram muitas vezes citados para lembrar ao público, em contraste com a indecência presidencial, um exemplo clássico de probidade administrativa, adornado, ademais, de um dos mais belos estilos literários da língua portuguesa 98. A lição edificante, porém, trazia nas entrelinhas uma mensagem política enviesada: Graciliano não comparecia ali apenas como administrador impecável e artista sem mácula, mas como um emblema da superioridade moral da esquerda. Sua figura ajudava a conferir à luta contra a corrupção a subtonalidade ideológica desejada, sem a qual a campanha moralista arriscava produzir o mais temível dos resultados: levar ao poder um punhado de direitistas honestos. A imagem de Graciliano foi levantada para exorcizar esse fantasma. O exemplo, no entanto, impressionava antes pela raridade. A direita, fértil em corruptos célebres, possui também em sua galeria de antepassados emblemáticos uma coleção notável de governantes íntegros, como por exemplo o marechal Castelo Branco, incapaz de usar o dinheiro do governo para comprar sequer um envelope de aspirina, ou Pedro II, governando durante quarenta anos desde dentro de um mesmo terno surrado. Mais

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Politica e historia politica, debate hipocrisia da esquerda

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A SUPERIORIDADE MORAL DAS ESQUERDAS, OU: ORABO E O CACHORRONA POCA DO IMPEACHMENT de Collor, os Relatrios da gestoGraciliano Ramos na Prefeitura de Palmeira dos ndios inseridos no volume Viventes das Alagoas e reeditados agoraem volume independente97 foram muitas vezes citados paralembrar ao pblico, em contraste com a indecncia presidencial,um exemplo clssico de probidade administrativa, adornado,ademais, de um dos mais belos estilos literrios da lngua portuguesa98. A lio edificante, porm, trazia nas entrelinhas umamensagem poltica enviesada: Graciliano no comparecia aliapenas como administrador impecvel e artista sem mcula,mas como um emblema da superioridade moral da esquerda.Sua figura ajudava a conferir luta contra a corrupo a subtonalidadeideolgica desejada, sem a qual a campanha moralista arriscava produzir o mais temvel dos resultados: levar ao poderum punhado de direitistas honestos. A imagem de Graciliano foilevantada para exorcizar esse fantasma.O exemplo, no entanto, impressionava antes pela raridade.A direita, frtil em corruptos clebres, possui tambm em suagaleria de antepassados emblemticos uma coleo notvel degovernantes ntegros, como por exemplo o marechal CasteloBranco, incapaz de usar o dinheiro do governo para comprarsequer um envelope de aspirina, ou Pedro II, governando durantequarenta anos desde dentro de um mesmo terno surrado. Mais direita ainda, no se encontrar a menor mancha na reputaoadministrativa de Salazar, de Marcelo Caetano ou de FranciscoFranco. Mas a vida de todos os grandes lderes comunistas, semexceo, uma histria escabrosa. Karl Marx teve com a empregadaum filho que, em prol da decncia burguesa, jamais foiadmitido mesa da famlia. Lnin comeou sua carreira vendendoa Rssia Alemanha em troca de um trem blindado.Stlin custeava orgias com o dinheiro pblico, e Mao Ts-tung,como se revelou h pouco, comia at os guardinhas do Palcio entrando, literalmente, para os anais da Revoluo. LusCarlos Prestes, Robin Hood ao contrrio, roubou do TerceiroMundo para dar ao Comintern; e, no governo Joo Goulart,quando os comunistas proclamavam estar no poder, o amigo dopresidente no era o trapalho P. C. Farias, mas um gnio dotrfico de influncia, Tio Maia, que aps a queda de seu protetorcomprou a vigsima parte do territrio da Austrlia, onde hoje a quarta maior fortuna do pas. Quando lhe perguntamComo?, ele responde: O Banco do Brasil foi uma me paramim.99Com esses antecedentes, no de espantar que, na hora derevirar o mapa-mndi em busca de exemplares de governantesesquerdistas honestos, s se conseguisse encontrar um naPrefeitura de uma cidadezinha do interior de Alagoas. E era omais atpico dos prefeitos, sem similares no Brasil ou nomunAdpoe. sar disso tudo, o exemplo foi persuasivo, ao menos paraaquela parcela do pblico que j estava convicta da superiorida-LusCarlos Prestes, Robin Hood ao contrrio, roubou do TerceiroMundo para dar ao Comintern; e, no governo Joo Goulart,quando os comunistas proclamavam estar no poder, o amigo dopresidente no era o trapalho P. C. Farias, mas um gnio dotrfico de influncia, Tio Maia, que aps a queda de seu protetorcomprou a vigsima parte do territrio da Austrlia, onde hoje a quarta maior fortuna do pas. Quando lhe perguntamComo?, ele responde: O Banco do Brasil foi uma me paramim.99Com esses antecedentes, no de espantar que, na hora derevirar o mapa-mndi em busca de exemplares de governantesesquerdistas honestos, s se conseguisse encontrar um naPrefeitura de uma cidadezinha do interior de Alagoas. E era omais atpico dos prefeitos, sem similares no Brasil ou nomunAdpoe. sar disso tudo, o exemplo foi persuasivo, ao menos paraaquela parcela do pblico que j estava convicta da superiorida-99Em qualquer pas consciente, esse personagem extraordinrio, talvezo mais expressivo smbolo da era Jango, seria assunto de livros, filmes eprogramas de TV. O Brasil preferiu esquec-lo, provavelmente porque aexibio de sua histria bastaria para tirar da esquerda toda autoridademoral para denunciar corruptos. Apagada do quadro a figura de Tio,foi possvel at mesmo beatificar politicamente a imagem de Jango.de moral das esquerdas. Convices desse tipo ficam em geralsubentendidas e inexpressas, no s porque assim se disseminamde maneira mais fcil por contgio subconsciente, masporque, se confessadas em voz alta, transformam-se, no ato, emepisdios de humorismo involuntrio. o que ocorre por exemploneste pargrafo do falecido e, independentemente de suascrenas polticas, muito querido publicitrio Carlito Maia:A direita no tem ideologia alguma, a no ser a cupidez,a ganncia, a sede de lucro, a completa ausncia detica no trato com terceiros, quer nos negcios que faz,quer na poltica que julga fazer, quer na vida; em tudo oque envolve direitistas h, invariavelmente, a mais absolutafalta de escrpulos sob a capa da honestidade.100Poucos intelectuais esquerdistas teriam a candura de exibirassim seus sentimentos mais profundos, que em geral reservampara as conversas informais num crculo ntimo, protegidas pelacumplicidade afetiva que exclui, por um acordo tcito, a interfernciade todo olhar crtico. Mas nesse pargrafo h toda umacriteriologia moral subjacente, que devemos conhecer se quisermoschegar compreenso de como pessoas de elevadacultura e em seu juzo perfeito so capazes de nutrir crenas toobviamente contrrias aos fatos.Pois os fatos, para a mente educada nos cnones do marxismo,so apenas a espuma ilusria que encobre as estruturasprofundas: o mundo real no o de todos os dias, onde vemosagitarem-se personagens de carne e osso, mas aquele que estpor trs e onde o enredo protagonizado por atores invisveis,denominados Causas da Histria. nesse etreo pano-de-fundo similar, sob mais de um aspecto, ao mundo platnico dasIdias que se desenrola a verdadeira luta entre o Bem e oMal, da qual as aes humanas no so mais que uma enganosaaparncia exterior. Logo, os atos bons podem ser maus, sefavorecem ainda que involuntariamente a causa do Bem, e viceversa.Da que, para a mentalidade marxista, a bondade e amaldade j no sejam aquelas qualidades ambguas e flutuantesque vemos aparecer e desaparecer nas circunstncias maisimprevistas, mas sim atributos essenciais e permanentes, cola-100 Carlito Maia, A modernidade o novo nome do nazismo, Imprensan 81, junho de 1994.dos de uma vez para sempre em determinados grupos humanos,independentemente da qualidade dos atos concretos dos indivduosque os compem: o homem de esquerda bom, ainda quetrapaceie, minta, roube e mate; o da direita mau, mesmo aosalvar um mosquito que se afoga. O critrio de julgamento a jno est na escala dos atos e intenes individuais, mas no daoportunidade histrica pela qual um ato, qualquer que seja suamotivao subjetiva, favorece ou desfavorece a causa da esquerda:por mais imoral que isto parea aos demais seres humanos,o marxista no v nada de mais em julgar um ato antes porsuas conseqncias acidentais do que pela sua natureza e pelasua inteno. ilusrio pensar que um crebro humano, tendo absorvidoesse critrio, pode livrar-se dele da noite para o dia, mediantesimples ato pblico de abjurao. Uma vez aprendido, ele seincrusta nas estruturas profundas da mente, marcando com suatonalidade caracterstica as subcorrentes emocionais, e continuaa determinar as reaes e julgamentos, como um hbito automatizadoe tornado inconsciente, muito tempo depois de seu portadorter rejeitado formalmente o marxismo. Ningum se livra deum complexo com a facilidade de quem devolve uma carteirinhade clube. Convido, pois, os marxistas arrependidos, abundantesneste pas, a acompanhar estes meus esboos de psicanliseideolgica:Para a tradio marxista, o indivduo humano no o sujeitoda Histria e por isto no nem mesmo, em ltima instncia, oautor de seus atos. Atravs de suas aes e palavras quem age a classe aristocracia, burguesia, proletariado. Acreditandodecidir e atuar por si, o indivduo apenas o fantoche movidopela ideologia da classe. Ele no precisa aprov-la, nem mesmoconhec-la: a ideologia uma espcie de Id sociolgico quesalta por cima das suas intenes conscientes e o faz defenderseus privilgios de classe mesmo ele quando imagina estarfazendo precisamente o contrrio.Karl Marx substancializa ocoletivo abstrato a classe na mesma medida em quedessubstancializa o sujeito de carne e osso. Concreta, para ele, a classe: o indivduo abstrato, malgrado as aparncias deunidade corprea com que a biologia nos engana. Marx nonega ao indivduo toda autonomia: mas a franja de deciso queresta ao pobre fantoche romper com a ideologia burguesa eaderir do proletariado. S o burgus, claro, tem esse privilgio:ao proletrio resta apenas endossar o discurso da sua prpria classe ou evadir-se da realidade. A liberdade, segundo amxima de Engels, consiste em reconhecer a necessidade.Tudo isso, claro, puro confusionismo. Se o burgus podeaderir ideologia do proletariado, porque a posio de classeno determina efetivamente a ideologia do sujeito, mas apenas asugere, deixando-o livre para rejeit-la. O indivduo fica preso ideologia de classe simplesmente porque quer, e sai dela quandoquer, como o fizeram Marx e Engels, filhos rebeldes da burguesia.O curso da Revoluo depende, assim, menos do determinismoideolgico do que do arbtrio pessoal de uns quantosburgueses apstatas, como se v pelo fato de que nenhum sujeitode origem proletria liderou jamais uma revoluo proletria.Que o nosso Partido dos Trabalhadores seja portanto compostomenos de trabalhadores que de uma elite burguesa como o revelou uma pesquisa recente , no faz dele exceonenhuma, e sim uma prova a mais da falcia da teoria marxistada ideologia. Desmentida por sua prpria contradio interna epelos fatos, essa teoria ainda no entanto aceita como um pressupostoinabalvel pela massa de cientistas sociais esquerdistas, porque as tentativas de justificar teoricamente uma certa margemde ao para a conscincia individual, exigida pela realidadedos fatos, encontram, no quadro conceptual do marxismo,dificuldades lgicas intransponveis..A ideologia, na verdade, no age, tanto quanto no age aclasse: quem age o indivduo, usando a ideologia burguesaou proletria, segundo sua livre escolha como um instrumentoretrico de autojustificao, que ser persuasivo para o pblicoque tenha aderido de antemo ( e com igual liberdade ) mesma ideologia, mas no para os adeptos da ideologia contrria.Classe a j no significa uma posio econmica objetiva,mas a receptividade virtual a um determinado discurso, que,uma vez adotado, se tornar retroativamente explicao e causade si mesmo. Da o fenmeno, de outro modo incompreensvel,da no-coincidncia entre classes sociais e blocos ideolgicos,da qual a composio scio-econmica da liderana comunistamundial o exemplo mais flagrante. Ora, admitir que o pretextoretrico seja o autor dos atos, e que o sujeito humano seja ummero fantoche nas mos do pretexto, endossar a mais formidveltentativa j empreendida por um pensador para provar queos rabos abanam os cachorros. A teoria da ideologia um disfarce,um vestido de idias, Ideenkleid, para usar o termo de Karl Marx, a encobrir a terrvel realidade da liberdade humana101.Mas, desprovida de qualquer valor cientfico, a teoria daideologia possui ainda um apelo retrico formidvel, principalmentepor seus efeitos na esfera da moralidade. Esse efeitoconsiste, sumariamente, nisto: transformando o rabo em sujeitoativo dos atos do co, ela confunde e inverte o senso da responsabilidade.Funcionando menos como agente livre do que comoinstrumento da classe, o indivduo humano j no respondefundamentalmente por seus atos pessoais voluntrios, mas pelaclasse a que pertence: o sujeito mau no por ter feito isto ouaquilo, mas por ser um burgus. Para complicar as coisas, classea tem um sentido ambguo: pode significar uma posioeconmica ou uma afinidade ideolgica, entre as quais, como seviu acima, no existe vnculo. Assim, na justia revolucionria,um homem pode ser condenado no s pelos atos coletivos eimpessoais da classe a que pertence ( mesmo sem ter deles omnimo conhecimento ), mas pelos de uma outra classe qualquer,caso suas idias coincidam com a ideologia que, nominalmente,o tribunal a ela atribui.A tica da resultante tortuosa e perversa at alucinao.Em primeiro lugar, ela revoga a conexo universalmente admitidaentre autoria e culpa: o indivduo no mais julgado comoagente autnomo e criador de seus prprios atos, mas comorepresentante de uma fora impessoal a classe. Comocorolrio, fica tambm abolido o liame entre culpa e inteno: ainteno subjetiva de um ato importa menos do que o resultadoacidental; e, como a ideologia de classe o verdadeiro sujeitopor trs dos atos humano, qualquer ato que, mesmo por acaso ea contragosto do seu agente, favorea uma determinada ideologia,ser explicado retroativamente como produto dela. Foiassim que a justia sovitica condenou Boris Pasternak: seuspoemas apolticos, por serem apolticos, desviavam os leitoresdo interesse pela luta proletria; logo, favoreciam a burguesia,por menos que Pasternak houvesse intencionadoconscientemente este resultado; logo, eram produtos dai d e o l o g i a b u r g u e s a ; l o g o , P a s t e r n a k era um agente dessa sa; logo, Pasternak era um agente dessa ideologia e culpadopelos crimes atribudos burguesia. um erro trgico pensar que essa monstruosidade moral foisepultada junto com a URSS: a atribuio de culpa medianteidentificao ideolgica ainda hoje a forma de raciocniomoral praticada com mais freqncia pelos intelectuais de esquerda,mesmo por aqueles que se declaram libertos de todainfluncia marxista. A recente iluso em que caiu a esquerdanacional, de poder usar o combate corrupo como um meiode desferir um golpe mortal na classe dominante, s se explicapela crena dos nossos intelectuais na identidade entre a burguesiae o mal. Se nem de longe lhes passou pela cabea ahiptese de que a campanha moralista, ainda que carregada deintenes ideolgicas de esquerda, pudesse fortalecer a classedominante, como de fato fortaleceu, foi porque julgaram, apriori, que o domnio de classe intrinsecamente desonesto eque portanto combater a desonestidade combater o domnio declasse. Mas no . O capitalismo no mais imoral do que osocialismo, no somente de facto, mas mesmo em tese: a idiade que o funcionalismo pblico tenha uma virtude moral intrnsecaque o torna superior ao empresariado ou mesmo de queseja mais fcil fiscalizar uma gigantesca burocracia estatal doque as empresas privadas uma das mais extravagantes quej passaram pelo crebro humano; e, no Brasil, ela de umacomicidade irresistvel. claro que os novos apstolos da moralidade no seguirama receita marxista antiga e ortodoxa, mas introduziram nela umanuana que tpica da mentalidade esquerdista posterior ao fimda Guerra Fria: a mistura do critrio de inculpao ideolgicacom a retrica burguesa da responsabilidade e da culpa individuais. esta mistura que d ao discurso tico da esquerdamais recente o seu pathos caracterstico, to diverso da frianeutralidade moral do marxismo clssico.Pois o pressuposto da superioridade moral nem sempre foium trao caracterstico da ideologia esquerdista. Karl Marx, empessoa, tinha o maior desprezo pela abordagem moralstica daluta poltica, e so eloqentes as pginas que dedicou ao desmascaramentode todo idealismo tico no movimento socialista.

Lnin compartilhava esse desprezo, porm, mais preocupadodo que seu antecessor com o lado prtico imediato da lutapelo poder, reconhecia o valor ttico do discurso moralista:recomendava mesmo que os militantes incentivassem a corrupopara em seguida poder conden-la como um vcio inerenteao capitalismo. Comprar conscincias, fomentar o contrabando,disseminar a prostituio e o consumo de drogas e, last notleast, vender apoio a uma nao estrangeira em guerra com aRssia, foram alguns dos expedientes de que Lnin se serviupara mostrar ao mundo a maldade intrnseca do regime burgus.Do discurso moralista, no entanto, o leninismo s explorouo lado negativo: a condenao do mal. Uma alegao positivade superioridade, a identificao descarada do movimentocomunista com a decncia e a bondade, s veio mesmo comStlin. Fundada na observao de que as massas trabalhadorasso menos sensveis denncia dos horrores do capitalismo doque ao apelo do sentimentalismo, a propaganda stalinista enfatizouvalores como a generosidade, a solidariedade e a paz, passandopara um discreto segundo plano as denncias apocalpticas e as ameaas truculentas. Ao mesmo tempo, sempre falandomanso, Stlin mandou exterminar, em guerras de ocupao e emcampos de prisioneiros, uma populao que ele mesmo, emamena conversa com Churchill, avaliou em 60 milhes de pessoas.Stlin foi tambm, e por essas mesmas razes, o primeirolder comunista que soube usar sistematicamente o apoio dosintelectuais. Lnin no queria saber de conversa com intelectuais,a no ser quando inscritos no partido, fiis e disciplinados.Stlin compreendeu que, para fins de propaganda, mais valiauma multido de simpatizantes do que um punhado de militantes.Foi na sua poca que o Comintern criou uma srie de novascategorias que abriam o leque das alianas possveis para abranger,no seio generoso do movimento comunista, todo umavariada fauna de hspedes e colaboradores informais: o companheirode viagem, o amante da paz, o intelectual progressistae at mesmo o burgus progressista. Para angariar assimpatias da intelectualidade mundial, o Comintern gastoufortunas em tradues, em revistas literrias, em congressos deescritores com viagens pagas, em fundaes culturais, em exposies, em concursos, em bolsas de estudo e residncia e emtodas as formas possveis de bajulao.Ao ampliar o leque das simpatias, o governo sovitico nopodia ter, claro, a iluso de inscrever toda a massa mundial de intelectuais nas fileiras do Partido e doutrin-los para que repetissema doutrina ortodoxa. Sabia que teria de contentar-se comuma retrica muito geral e diluda, capaz de atingir pessoas dasmais variadas classes, grupos e correntes. Da que, abdicando detoda rigidez ortodoxa, a propaganda sovitica passasse a aplaudircomo saudvel manifestao anti-imperialista at mesmo odiscurso moralista mais caracteristicamente pequeno-burgus,que a velha ortodoxia condenava. Foi dessa conjuno de circunstnciasque se originou a mistura esquisitssima de maquiavelismorevolucionrio e moralismo santarro que constitui odiscurso caracterstico da esquerda mundial desde o fim da IIGuerra, e que entre ns ecoado, ainda hoje, por toda a alaesquerdista das campanhas contra a corrupo. Que esse discursotenha podido sobreviver morte de Stlin, revelao detodos os horrores do regime sovitico, queda do Muro deBerlim e ao fim da URSS, sinal de como foi profunda, naintelectualidade mundial, a penetrao da propaganda stalinista.Foi assim que a Nova Esquerda jurando sepultar o cadver deStlin, na verdade o exumou para entroniz-lo no panteo dasdivindades ideolgicas imortais. Capaz de sobreviver-se a simesmo e de continuar agindo pela boca daqueles mesmo quecrem abomin-lo, o discurso stalinista mostrou ser uma dasprincipais correntes formadoras da cultura do sculo XX: Stlinpas mort.Por engenhosa que fosse, a cooptao de intelectuais svezes no funcionava, claro: Andr Gide voltou de sua Voyageen URSS dizendo que l no encontrara grande coisa; e ArthurKoestler, embora chegasse a ser recrutado como agente,no resistiu a ver e contar toda sorte de misrias produzidas pelonovo regime. Mas, no geral, dava bons resultados: e a prova foia onda mundial de insultos que a intelectualidade fez desabarsobre Gide e Koestler. Uma outra prova da eficcia do programasovitico de seduo dos intelectuais temos aqui entre ns. Eela nos vem logo de quem? Do incorruptvel prefeito de Palmeirados ndios.Habituado aos maus tratos, inflexvel ante gritos e ameaas,sereno e sem dio em face do algoz, Graciliano no resistiu lisonja e paparicao: ao voltar da URSS, aonde fora comoconvidado de honra do governo comunista, produziu essa obraprimade puxa-saquismo circunspecto que Viagem ( 1954,publicao pstuma ).A obra mostra como a arte do romancista, que cria umaverdade humana com fatos inventados, pode tambm construir uma impresso fictcia com pedaos de verdade. Mas no pensoque Graciliano tivesse a a inteno de ludibriar. Ao redigi-la,ele j estava rodo pela velhice e pela doena, que inclinam omais rijo dos homens a apegar-se a iluses reconfortantes,sobretudo aps uma vida inteira gasta na contemplao damisria e da sordidez. No seu derradeiro livro, o sertanejo duroentrega-se sem pudor a todas as consolaes da falsa conscincia.O livro no chegou a ser completado, mas seu plano geral bastante visvel: apresentar uma narrativa sbria, minuciosa eprecisa nos detalhes, da qual o esplendor do socialismo brotassenaturalmente, sem precisar ser declarado. No se poderia esperarmenos do grande narrador, que vincava um personagem parasempre com dois verbos e nenhum adjetivo. Posto a servio dapropaganda sovitica, o famoso estilo seco de Gracilianofazia o que podia para dar credibilidade, por exemplo, idia deque o jovem Stlin fora expulso do seminrio por ter elevadosinteresses espirituais, e de que as esttuas e fotografias do ditador,com que o governo cobrira a URSS inteira, eram umahomenagem popular espontnea a que o grande homem securvava a contragosto, por mera compaixo. O autor ilustravaainda uma diferena essencial entre o capitalismo e o socialismo,ao informar-nos que na URSS a polcia, em vez de nosprender, como natural, tenta auxiliar-nos se cometemos umainfrao inadvertidamente; e mais adiante, numa sbita embriaguezde sentimentos bons infundidos em sua alma pela visode uma placa em homenagem a John Reed, um escritor comunistanorte-americano, admitia generosamente ser perigosoentregar-nos a generalizaes feitas pressa. Nem toda a gentena Amrica deseja aniquilar a humanidade. Forado a esseponto, o estilo sbrio, que tanto admiramos em Vidas Secas eem Memrias do Crcere, transformava-se em afetao desimploriedade, involuntariamente irnica. Talvez no fosseafetao; talvez fosse mesmo deslumbramento de caipira. Mascomo distinguir entre mentira e iluso na nvoa obscura de umaconscincia falseada?Em todo o livro, no h uma palavra sequer sobre prisespolticas, censura imprensa, internaes foradas de dissidentesem hospitais psiquitricos, tortura fsica e psicolgica, espionageminterna, esquadres mdicos especializados em lavagemcerebral e extorso de confisses sobre tudo aquilo queconstitua a differentia specifica definidora do regime sovitico.Em contraste, h uma profuso de detalhes acidentais, com que o autor cria uma atmosfera realstica destinada a encobrir e asubstituir o essencial. Por toda parte rostos corados e sorridentes,simpatia, cultura, beleza, que, deslocados de todo contextoetnolgico e montados com a tcnica de Eisenstein emcontraponto com vises da indstria pujante e da administraomoderna, j no surgem propriamente como virtudes de umpovo, e sim de um regime. A percebemos que a inteno declaradade ser objetivo, no derramar-me em elogios... no revelar-me parcial em demasia era apenas uma receita estilstica alis a mesma de sempre, em Graciliano , e no tinha a maisremota ligao com o contedo da mensagem, laudatrio at demncia.Mas, caindo como um reagente no caldo do verbalismobrasileiro, tradicionalmente incapaz de captar o abismo entrepalavra e idia, o livro parece ter funcionado exatamente nosentido pretendido pelos anfitries. No deparando ali a verbosidadeostensiva do apologista vulgar ( como se fosse possvelencontr-la em Graciliano! ), e confundindo estilo sbrio comviso objetiva, a crtica endossou as palavras do editor, segundoo qual o livro descrevia a terra do socialismo conscienciosamente,honestamente, sem quaisquer chantagens sentimentais ou polticas.At hoje no se fez um estudo abrangente a respeito, mas aprofundidade da marca deixada pela propaganda sovitica namentalidade da intelligentzia mundial comparvel de umcomplexo inconsciente, de uma neurose que meu falecidoamigo Juan Alfredo Csar Mller, um gnio da psicologia,definiu como uma mentira esquecida na qual voc ainda acredita.O fato de que em plena dcada de 90 a figura de Gracilianoainda possa representar para efeitos publicitrios a sntesesupostamente essencial e indissolvel de esquerdismo e honestidademostra at que ponto a mentira esquecida continua ativa,e que ela funciona tanto mais quanto mais implcita e discreta.Se todos os intelectuais da esquerda tivessem a franqueza deCarlito Maia, todos j teriam abandonado o ranoso legado daideologia marxista, exatamente como em psicanlise o complexo,uma vez manifestado em palavras, j est a um passo dedissolver-se num insight fulminante.