a subjetividade estética em kant

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Da Apreciação Da Beleza Ao Gênio Artístico - artigo de Verlaine Freitas

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  • 253/ A subjetividade esttica em Kant: da apreciao da beleza ao gnio artstico1

    Verlaine Freitas

    Palavras-chave: Kant, subjetividade, beleza, gosto, arte, gnio. Key-words: Kant, subjectivity, beauty, taste, art, genius. Resumo: O texto procura compreender a subjetividade tal como pensada por Kant na Crtica da faculdade do juzo a partir de conceitos relativos ao juzo de gosto, sobre a beleza, mostrando como a relao das faculdades seu fio condutor. A seguir, procura-se encaminhar a discusso para o tema do gnio, a faculdade necessria produo de obras belas, culminando na anlise sobre a importncia da arte como um todo para o modo como o sujeito pode se conceber precisamente atravs da relao com as obras. Abstract: The text tries to comp rehend the subjectivity just as thought by Kant in the Critic of Judgment through concepts about the taste judgment, on the beauty, showing how the faculties relationship is its conductive thread. Soon after, we try to discuss the genius theme, the necessary faculty to the beautiful works production, culminating in the analysis on the importance of art as a whole for the way in which the subject can conceive himself precisely through the relationship with the art works.

    Nosso objetivo falar da subjetividade concebida na Crtica da faculdade do juzo de Kant,

    considerando dois aspectos que tm em comum a experincia da beleza: nosso ajuizamento de objetos belos e a produo de obras de arte. Em ambos os casos, o fulcro ao redor do qual toda as anlises giram so precisamente as formas cognitivas que o sujeito emprega para apreciar e produzir objetos belos. Em vez de ver a beleza como uma propriedade objetiva das coisas, apreensvel intelectualmente, o filsofo de Knigsberg falar de um determinado jogo de nossas faculdades, de um modo sui generis como o sujeito contempla o objeto. O brocardo que diz que a beleza est nos olhos de quem v aplica-se perfeitamente ao esprito da filosofia crtica kantiana. Assim, o que temos a fazer mostrar como o filsofo concebe os elementos envolvidos nesse arranjo subjetivo nico, que nos capacita a perceber a importncia da experincia esttica no processo de reflexo sobre o ser humano.

    /254/ O que a beleza?

    Universalidade e autonomia: essas so as duas palavras-chave que do o tom de toda a filosofia crtica que Kant comps nas suas trs grandes obras: Crtica da razo pura, Crtica da razo prtica e Crtica da faculdade do juzo. Na primeira, Kant est interessado em mostrar como so possveis os juzos sintticos a priori, ou seja, universais e necessrios, no campo terico, particularmente na matemtica e na fsica; na segunda, como possvel o imperativo categrico, o mandamento moral, como tambm sinttico, universal e necessrio; finalmente na terceira, como o juzo de gosto, sobre a beleza, pode tambm aspirar a uma validade universal e necessria.

    Em todo esse trajeto, Kant precisou supor algo em termos absolutos: que a faculdade da razo igual, est universalmente presente em todos os seres humanos. Sem essa condio, toda a filosofia 1 Publicado na revista Veritas. Vol. 48, nmero 2. Porto Alegre: PUC/RS, 2003, pp.253-276. Os nmeros entre barras (//) indicam as pginas da edio.

  • kantiana perde imediatamente seu valor. Kant supe que todos os homens tm a possibilidade de exercer, de modo igualmente apurado, sua faculdade racional. Se isso no acontece efetivamente, tal se deve ao fato de que essa faculdade no foi desenvolvida adequadamente, ou seu uso no correto. Kant quer mostrar os limites da razo, onde e como ela deve ser usada, para que tenhamos conhecimentos seguros acerca de ns prprios e do mundo, pois, segundo Kant, somente a razo capaz de fornecer ao homem um conhecimento universal e necessrio, e tudo que se liga sensao, ao que emprico, tem como conseqncia o fato de ser contingente, no necessrio.

    No mbito esttico, que nosso tema aqui, havia antes de Kant uma querela sem fim acerca da validade dos juzos de gosto, ou seja, acerca da beleza, com Hume falando sobre um padro do gosto, por exemplo. Havia consenso que o juzo sobre a beleza no poderia ser indefinidamente contingente, que algo deveria fundar sua validade para todas as pessoas, mas o que, propriamente?

    Na Crtica da faculdade do juzo Kant inicialmente distingue um juzo esttico de um terico, ou seja, um que se funda apenas no sentimento do sujeito do que se baseia em um conceito. O juzo de gosto, dir Kant, esttico2, pois no existe nenhum conceito que nos permita avaliar atravs dele se um objeto belo ou no, apenas nosso sentimento de prazer ou desprazer. Mas esse prazer no devido s sensaes nem ao valor de uso que vemos no objeto. Kant distingue as trs espcies de prazer: o do agradvel, que o derivado do contato material dos rgos dos sentidos com o mundo exterior; o do bom, que pode ser o moral, absoluto, incondicional, ou o relativo, que um simples meio para outro fim, sendo que em ambos os casos trata-se do vnculo com um conceito (do imperativo de nossa razo, categrico ou hipottico); e o prazer da beleza, que no se baseia, nem nas /255/ sensaes, nem em um conceito3. Isso quer dizer que o juzo de gosto, sobre a beleza, puro, ou seja, desinteressado. Tanto o prazer do agradvel, quanto do bom so interessados pela existncia material do objeto4, na arte, ao contrrio, a existncia material, concreta, da obra no conta como fonte de prazer (embora, naturalmente, ela tenha que existir para que a consideremos bela; o que est em jogo se a fonte de nosso prazer est nessa existncia ou s no modo como contemplamos a coisa). Como fundamento de algum juzo, todo interesse emprico, derivado das sensaes, e portanto, particular.

    Pelo fato de no haver nenhum interesse pessoal em relao ao objeto que vemos ou ouvimos, o prazer que temos somente pode ser derivado de um determinado uso de nossas faculdades de conhecimento, as quais so tomadas como as mesmas em todos os seres humanos. Em um juzo lgico, sobre as propriedades de uma figura matemtica, por exemplo, temos um uso de nossas faculdades fundado em um conceito determinado, mas no juzo esttico no h esse conceito. O juzo sobre o belo , assim, anterior a todo conceito e a toda satisfao sensvel, mas precisamente por que se isenta de todo interesse individual, o prazer que experimentamos dito universal. O juzo de gosto seria to subjetivo,

    2 O adjetivo esttico vem da palavra grega asthesis, que quer dizer percepo sensvel. Ele deriva do nome que Baumgarten deu cincia que estuda o conhecimento sensvel, a Esttica. Veremos que o sentido que Kant deu palavra sui generis.

    3 Aqui seria bom que se tivesse claro a distino kantiana entre sensao e sentimento. A primeira diz respeito ao contato material dos rgos dos sentidos com o mundo exterior: o contato dos olhos, por exemplo, com raios luminosos; o sentimento, por outro lado, relaciona-se a uma auto-percepo do sujeito, ao modo como ele se percebe num determinado momento o sentimento (de prazer e de desprazer); essa auto-percepo pode ter origem na sensao, que o caso do prazer do agradvel, ou na mera forma como o sujeito contempla o mundo, que o caso da beleza.

    4 Embora o imperativo categrico no se funde em um interesse (no interessado), ele somente pode ser efetivo se a lei moral desperta em ns um interesse por sua realizao (ela tem que ser interessante).

  • mas to subjetivo, que se isenta de qualquer individualismo, e encontraria as condies universais de apreenso de qualquer conhecimento em geral.5

    Mas de onde vem esse prazer? Se no das sensaes, nem de um conceito que determinaria a bondade, a utilidade, de um objeto para se fazer alguma coisa, de onde vem ele? Segundo Kant, de uma determinada relao entre a imaginao e o entendimento em uma representao por meio da qual o objeto dado. A imaginao a faculdade responsvel na produo de imagens, ou seja, de totalidades formais intuitivas, e o entendimento, a faculdade de produo de conceitos, nossa faculdade intelectual.

    Como veremos no item seguinte, a relao entre a imaginao e o entendimento um ponto chave para compreendermos o atributo de beleza para um objeto, pois envolve a considerao de um tipo de prazer prprio, especfico, que o prazer formal, da mente do sujeito, e, no, de sua sensibilidade.

    Apesar de no ser mediado por conceito, e se referir, assim, apenas a um estado mental, o juzo de gosto tem validade universal a priori, isto , independente da /256/ experincia, pois, no ajuizamento de algo como belo, o fundamento de determinao a disposio [Stimmung] das faculdades da mente, que considerada como a mesma em todos os sujeitos diante de um objeto belo. A dificuldade de todos os juzos de todas as pessoas sobre um objeto serem concordantes reside no uso das faculdades, pois nem sempre conseguimos discernir em ns aquilo que se refere ao prazer gerado pela materialidade do objeto, ou seja, pela sensao, o qual no universal a priori, e aquele gerado pela contemplao da forma, que tem validade para todos os sujeitos que julgam.6

    Assim, o juzo de gosto, pelo qual declaramos algo belo, formal, e, no, material, pois o que nos d prazer, nesse caso, no a materialidade do objeto (sua existncia material), mas, sim, sua forma, que algo derivado do modo como o contemplamos. O que interessa no juzo sobre o belo o modo como nossas faculdades mentais relacionam-se mutuamente, e, no, a intensidade das sensaes que nos afetam materialmente os sentidos. Essa forma, entretanto, para ser tomada como bela, tem que ter uma especificao, que a de possuir uma conformidade a fim (uma finalidade) sem que se perceba nela um fim determinado7. isso o que veremos a seguir.

    A conformidade a fim sem fim

    No terceiro momento da Analtica do Belo, a beleza a definida como a forma da conformidade a fim de um objeto na medida em que, sem a representao de um fim, percebida nele (618). Para compreender-se tal definio, necessrio ver como possvel que possamos perceber uma finalidade segundo a forma (33) sem que haja a representao de um fim. Segundo Kant, um objeto considerado conforme a um fim quando seu conceito pensado como sua causa, o fundamento real de sua existncia: portanto, onde eventualmente no apenas o conhecimento de um objeto, mas o prprio

    5 Nesse ponto vale lembrar a ambigidade da prpria palavra sujeito, que pode indicar tanto o indivduo quanto toda a espcie humana. Sobre essa ambigidade, cf. Theodor W. Adorno, Sobre sujeito e objeto. In: Palavras e sinais. Modelos crticos 2. Traduo de Maria Helena Ruschel. Petrpolis: Vozes, 1995, pp181 ss.

    6 De acordo com isso, vemos que o juzo de gosto como essa rosa bela a priori, isto , universal e necessrio, e tambm sinttico, pois sentir prazer com um objeto algo que, evidentemente, ultrapassa o que se sabe dele em termos conceituais. Assim, a beleza se insere na tarefa mais geral da filosofia kantiana, que a de explicar como so possveis os juzos sintticos a priori. Sobre a qualificao do juzo de gosto como sinttico a priori, cf. Crtica da faculdade do juzo, segunda edio de 1790 (geralmente referida como B), pgina 149-50, 37.

    7 A expresso conformidade a fim, embora no seja usual em portugus, tem um sentido bem claro: ter uma conformidade a fim significa ser adequado, conformar-se, a algum fim que seja requerido, ou seja, ter uma finalidade. Mas, como veremos a seguir, ter uma finalidade e adequar-se a um fim especfico so coisas diferentes.

    8 A partir de agora passamos a citar textualmente a Crtica da faculdade de julgar de Kant, e os nmeros entre parnteses referem-se ao nmero das pginas correspondentes segunda edio desse texto em alemo, no original, de 1790.

  • objeto (sua forma ou existncia) como efeito, somente pensado como possvel atravs de um conceito, a pensa-se em um fim (32). Quando vemos uma mesa, por exemplo, muito de sua forma pensado segundo um conceito, o qual foi seguido pelo carpinteiro que a fabricou. Essa ao foi de acordo com sua vontade, e, portanto, a forma da mesa, que resultado de tal ao, conforme a um fim (fornecer apoio na acomodao de /257/ coisas e espao para deslocamentos atravs de uma superfcie plana, estvel, etc.). Ou seja, a existncia da mesa e sua forma somente podem ser explicadas a partir do conceito de mesa, ou seja, no apenas o caso de somente conhecermos a mesa, mas sua prpria constituio de um objeto com tal forma passvel de explicao apenas atravs do conceito de um fim.

    Entretanto, nem toda conformidade a fim que percebemos em algumas formas entendida tendo-se um fim real que a explique. Uma rosa, por exemplo, se a consideramos bela, percebemo-la como se ela tivesse sido feita com a finalidade de proporcionar prazer. Percebemos uma certa finalidade inerente sua forma, mas no existem meios tericos de conhecer nenhuma vontade real que tenha ordenado os elementos segundo um conceito. Porm, somente podemos tornar compreensvel a possibilidade de tal objeto se admitimos como seu fundamento uma causalidade segundo fins, isto , uma vontade, que o tivesse ordenado de tal modo segundo a representao de uma certa regra (33). No percebemos o fim a que o objeto conforme: aquele , por assim dizer, virtual. No temos nenhum conceito que d conta da causalidade que rege a disposio do mltiplo da representao pela qual o objeto dado. A percepo da conformidade a fim que temos no objeto no alcanada, portanto, atravs de uma operao de determinao, em que a unificao dos elementos intuitivos operada pela imaginao encontre um conceito correspondente no entendimento, mas sim por reflexo, ou seja, eu admito que haja uma causalidade para a forma que percebo, mas no consigo discernir racionalmente, isto , por conceitos, qual seja sua causa real. Essa admisso da causalidade um ato estritamente do sujeito, no designa nada no objeto: apenas uma maneira de compreender a possibilidade da existncia desse objeto, o qual declaramos belo. Isso significa, entre outras coisas, que beleza no uma qualidade do objeto, mas to somente um modo de perceb-lo, que, entretanto, almeja ser reconhecido por todos.

    Quando a imaginao unifica o mltiplo da representao sensvel, ou seja, quando ela estrutura, d uma forma unitria aos mltiplos elementos dispersos da materialidade das sensaes, e esta unidade no encontra um conceito do entendimento que satisfaa s suas relaes de causalidade, de finalidade, de adequao a fim, ento as duas faculdades esto em uma determinada relao ou disposio [Stimmung] que tende a se manter, mas com nenhum outro fim alm de sua prpria manuteno e reforo, o que significa que este estado da mente prazeroso, mas de um prazer que no se interessa por mais nada a no ser a sua prpria continuidade.

    A conscincia da conformidade a fim meramente formal em jogo dos poderes de conhecimento do sujeito em uma representao, por onde um objeto nos dado, o prazer mesmo, pois essa conscincia contm um fundamento de determinao da atividade do sujeito em relao vivificao de seus poderes de conhecimento, portanto uma causalidade interior (que conforme a fim) em vista do conhecimento em geral, mas sem estar limitada a um conhecimento determinado, conseqentemente contm uma mera forma da conformidade a fim subjetiva de uma representao em um juzo esttico. (36-7)

    /258/ Tal relao entre as duas faculdades o que Kant chama de livre jogo, pois nem a imaginao se submete conformidade a leis [Gesetzmigkeit] do entendimento, nem este encontra um conceito que delimite e d conta de todas as relaes presentes na unidade da representao fornecida por aquela.

    A faculdade que dita propriamente livre a imaginao, que no se submete s funes legisladoras de nossa faculdade intelectual, mas essa liberdade no algo absolutamente isento de influncias de outras ordens alm da mera relao entre as faculdades intelectuais. preciso que

  • consideremos a aplicao efetiva de nossa percepo esttica aos objetos que consideramos belos, e a a liberdade de nossa imaginao no est isenta de elementos complicadores. Para vermos como se do essas diversas formas de liberdade imaginativa, precisamos considerar a diferena entre as espcies de beleza descritas por Kant.

    Beleza livre e aderente

    Para que possamos tratar da subjetividade no apenas no que concerne apreciao da beleza, mas, tambm, produo artstica, necessrio analisar um dos aspectos do juzo de gosto que, apesar de insistentemente mencionado por Kant, tem recebido de seus comentadores, como diz Mc Millan, uma ateno insuficiente: a pureza do juzo9. Isso conduz a um conceito importante para a elucidao da beleza artstica.

    Na Crtica da faculdade do juzo, como vimos, Kant diz do juzo de gosto que ele no se baseia em nenhum conceito. Isto , que no ajuizamento [Beurteilung] de um objeto como belo, o juzo, para ser puro, no pode basear-se em qualquer conceito de que coisa seja esse objeto, nem a que fim ele serviria e nem se ele se aproxima da perfeio em relao ao conceito que se tem do que ele seja. O que se questiona at que ponto pode-se entender que essa proibio do conceito no juzo de gosto significa que reconhecer algo como sendo uma rosa, por exemplo, impede que possamos julg-la bela atravs de um juzo de gosto puro.

    Na seo de nmero 16, Kant d a sua famosa classificao de belezas livres e aderentes. Das primeiras, so citados como exemplos tirados da natureza pssaros, flores, peixes. E entre obras de arte os desenhos la grecque, a folhagem para molduras ou sobre tapearias de papel e toda a msica sem texto, que no representam nada, nenhum objeto sob um determinado conceito. Em contrapartida, belezas aderentes pressupem um conceito do que a coisa seja e sua perfeio. Exemplos: um ser humano, um cavalo, uma construo (como igreja, palcio, arsenal, caramancho). Diante disso, e, considerando que, por exemplo, flores so consideradas belezas livres, e que no ajuizamento de uma beleza livre o juzo de gosto puro (49), seria lcito supor que o juzo essa rosa bela, por exemplo, seria puro?

    /259/ O que est em jogo, ao falar-se do uso que fazemos da imaginao na beleza, so dois usos que fazemos da dessa faculdade. No item 7 da Introduo, o autor nos diz que, na representao sensvel pela qual um objeto dado h, por assim dizer, dois plos: o que se liga ao sujeito e no ao objeto, quer dizer, o sentimento perante esse ltimo, que no contribui em nada para o conhecimento objetivo tal a natureza esttica dessa representao; mas aquilo que nela pode servir ou utilizado para a determinao do objeto (para o conhecimento) a sua validade lgica.

    Portanto, ao vermos algo, reconhecendo-o como uma flor, por exemplo, e tambm sentimos prazer segundo sua forma, estamos diante de duas naturezas da representao, sendo que o prazer que vinculamos apreenso da conformidade a fim na forma independente do fato de que a sabemos como sendo de uma flor. O juzo de gosto anterior a qualquer outro juzo, mas isso deve ser devidamente compreendido. Tal se d no plano estritamente lgico, e no temporal, o que quer dizer que a simultaneidade do sentimento de prazer (fundamento do juzo de gosto) com o reconhecimento do objeto como algo determinado no tira a pureza do juzo. Que no se precise de nenhum conceito para ajuizar algo como belo (o que o mesmo que falar que esse juzo anterior a todo conceito), no significa que se precise no ter nenhum conceito do objeto que julgamos belo. No h nada no conceito de uma flor, segundo podemos entender em Kant, que constranja o mltiplo da representao que tenho dela a uma

    9 MacMILLAN, C. Kants deduction of Pure aesthetic judgments. In: Kant-Studien, 76. Jahrgang, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1985, p.49.

  • unidade subsumida de acordo com um conceito determinado. Sua forma, assim, inteiramente livre de regras, o que faz com que o sujeito no precise levar em conta seu fim natural de reproduo ao julg-la bela, estando a imaginao e o entendimento em um livre jogo. Mas se o conceito de flor ou pssaro no tira a pureza do juzo de gosto, no o torna logicamente condicionado, o que o faria, ento?

    O conceito de fim

    Segundo podemos interpretar do texto de Kant, embora o reconhecimento de um objeto como pssaro no tire a pureza do juzo de gosto, no obstante o de uma coisa como sendo uma igreja o torna impuro, condiciona-o logicamente. Em que especificamente residiria a diferena entre os dois casos? No segundo, h muito no conceito de igreja (semelhante explicao que oferecemos em relao mesa no primeiro item) que determina algo em relao sua forma, regras segundo as quais o construtor a fez e que temos que considerar (caso reconheamos a coisa que vemos como igreja)10, ao julg-la bela, fato esse que restringe a liberdade da imaginao; o que no se d no ajuizamento de uma beleza livre, como vimos.

    /260/ Os conceitos de casa, mesa, igreja (belezas aderentes), pressupem, portanto, o de fim. Deste modo, estando o plo da representao que serve ao conhecimento submetido ao conceito de fim, haveria a restrio da liberdade para a imaginao na natureza esttica dessa mesma representao. O que faz a diferena entre beleza livre e aderente , como se v, o conceito de fim:

    No ajuizamento de uma beleza livre (segundo a mera forma) o juzo de gosto puro. No pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para o qual o mltiplo deva servir ao objeto dado, e o que este deva representar; conceito por meio do qual a liberdade da imaginao, que por assim dizer joga na observao da figura, tornar-se-ia to somente restringida. (50-1, nfase nossa)

    Se subjaz um conceito de fim forma de um determinado objeto, como uma mesa, por exemplo, e se julgamos algo belo por ter a forma de uma conformidade a fins sem fim, ento como possvel que ainda assim digamos que aquele objeto belo? Embora a forma de uma mesa seja conforme a um fim, nem tudo nessa forma o . Reside nela um espao em que o conceito de sua funcionalidade no determinante. Se no fosse assim, todas as mesas seriam absolutamente idnticas e no haveria nenhuma liberdade para a imaginao quando da contemplao da figura. O conceito desse objeto no determina, por exemplo, se seus ps devem ser retos ou curvos, torneados ou lisos, largos ou estreitos, e uma infinidade de outras caractersticas que podem ter uma conformidade a fins sem fim, tornando o que vemos alvo de um juzo de gosto que o declare belo. Essa beleza aderente, e o juzo no puro, porque essa margem de variao inventiva para a imaginao tem que respeitar o conceito de fim que a condio de possibilidade de existncia do objeto como mesa.

    Todos esses exemplos pertencem a um gnero que Kant classifica como arte mecnica, pois tais produtos sempre so feitos de acordo com um conhecimento prvio do que eles devem ser. O objetivo imediato dessa arte a produo de tais objetos, respeitando o conceito de fim que condiciona sua forma. Pretende-se, a, fazer objetos que sejam teis, sirvam a algum fim. Mas se, por outro lado, o objetivo imediato de um produto artstico o sentimento de prazer, ento dizemos que essa arte esttica. Se, ainda, esse sentimento vinculado representao, por meio da qual o objeto dado, como mera sensao, ento estamos diante de um produto da arte agradvel: o gracejo [Scherz], a culinria, etc. Essas artes pretendem fazer com que se tenha um prazer imediato das sensaes, como fazer uma comida que seja gostosa. O prazer dessa arte residiria em afetar de modo especfico diretamente nosso 10 indispensvel que se tome em considerao essa observao entre parnteses, dado que, segundo o autor da Crtica, possvel, diante de qualquer objeto, emitir um juzo de gosto puro: Um juzo de gosto em relao a um objeto de um determinado fim interior seria puro somente se quem julga, ou no tivesse nenhum conceito deste fim, ou abstrasse dele em seu juzo (52). Portanto, se eu julgo belo um objeto que reconheo como casa, ento meu juzo de gosto impuro, mas se no fao esse reconhecimento ou se no o levo em conta, ento o meu juzo puro, pois se referir a uma coisa qualquer, indeterminada.

  • rgo do sentido gustativo. Por fim, se aquele prazer acompanha a representao apenas contemplativo, o objeto pertence bela-arte: poesia, msica, pintura e seus derivados, dana, teatro, etc.

    Que a bela-arte seja bela, indica que percebemos em seus produtos uma finalidade sem fim. Entretanto, por se tratar de uma obra de arte, diferentemente em relao beleza livre, o ajuizamento em relao a sua beleza tem, necessariamente, que levar em conta um conceito de fim. preciso, ao considerarmos uma obra de arte como bela, sermos conscientes de que o que percebemos arte, e no /261/ natureza, isto , que um produto da atividade humana. Todavia, essa adequao ao conceito no transparece na forma da obra. A conformidade a fins na forma da arte tem que parecer livre de todo constrangimento de regras arbitrrias, como se fosse um produto da mera natureza (179, nfase nossa). Embora a arte tenha sempre uma inteno, que a de produzir alguma coisa, ela, entretanto, tem que parecer no-intencional.

    A bela-arte, ento, beleza aderente, pois h um conceito de fim subjacente aos seus produtos, mas esse conceito muito menos determinado11 e de natureza muito diversa que no caso da arte mecnica, o que se liga ao fato de que ela parece natureza (o que no acontece com esta outra). A influncia do conceito de fim na forma de uma obra de bela-arte , assim, essencialmente diferente quando da beleza de uma arte mecnica12.

    Portanto, vemos que o conceito de forma, quando em relao arte, carrega uma dificuldade a mais em relao beleza livre, que a de conciliar a conscincia do conceito de fim subjacente a ela e a no-aparncia de ser arte. Mas tambm conserva uma dificuldade em relao beleza aderente em geral, porque seu conceito de fim outra espcie, no to determinado, e no pode transparecer na sua forma.

    Precisamente aqui se coloca a seguinte questo: Se a bela-arte parece natureza, por que temos que levar em conta, necessariamente, o conceito de fim subjacente a uma obra de arte, ou seja, sermos conscientes de que um produto humano e no natureza, ao julgarmo-la bela? E ainda: Como, ainda assim, a obra da bela-arte consegue parecer natureza?

    Em relao primeira questo, Kant diz que aquele conceito tem que ser levado em conta porque a arte sempre pressupe um fim na causa (e sua causalidade) (188). Entretanto, essa resposta no nos parece esclarecer de todo a necessidade de levar em conta o fim que a arte pressupe no juzo de gosto. E isto porque somente o fato de ser produzida, ou seja, ser resultado de uma inteno, no garante, por si s, que ao ajuizarmo-la tenhamos que levar isso em conta, uma vez que a bela-arte no tem a finalidade de produzir um objeto conforme a um conceito determinado, como a arte mecnica.

    /262/ Em relao segunda pergunta que levantamos, Kant se limita a dizer que a arte tem que parecer natureza, e no como ela consegue isso, apesar de ser reconhecida como arte, ou seja, como produto humano, submetido a um conceito de fim. Parecer natureza parecer no intencional, se despir de todo carter de penosidade [Peinlichkeit], apesar de toda a puntualidade [Pnktlichkeit] na concordncia com as regras segundo as quais o produto pode se tornar o que ele deve ser (180). Em

    11 Kant usa uma expresso semelhante para diferenciar a beleza de um ser humano e de outras belezas aderentes ao dizer que estas no admitem a representao de um ideal, presumivelmente porque os fins no esto fixados e determinados o bastante atravs de seu conceito, conseqentemente a conformidade a fins quase to livre quanto na beleza livre (55). Diante disso, podemos formular a seguinte escala de influncia do conceito de fim no respectivo juzo de gosto: No ser humano > na arte mecnica > na beleza aderente natural > na bela-arte > na beleza livre (=0).

    12 O ajuizamento de algo como belo, note-se, quer seja em relao arte ou natureza, d-se somente em vista da forma, e, embora haja um conceito de fim subjacente aos produtos da bela-arte, este conceito no fundamento do juzo de gosto referente a eles: O conceito de bela-arte no permite (...), que o juzo sobre a beleza de seu produto seja derivado de qualquer regra que tenha um conceito como fundamento de determinao, conseqentemente, que ponha um conceito sobre o modo como aquele produto seja possvel. (181) O que Kant diz que o juzo logicamente condicionado, pois a conformidade a fins objetiva (fim) da arte determina que o que vemos um produto humano, e no uma obra do acaso ou da natureza. Aqui ainda vale, portanto, a definio do segundo momento da analtica do belo de que a beleza agrada universalmente sem conceito.

  • relao a esse aspecto, o problema reside em compreender o poder que a arte tem de se desvencilhar de sua penosidade.

    O gnio artstico

    Um dos conceitos de que precisamos para respondermos essas questes o de gnio, que a disposio natural inata [ingenium], pela qual a natureza d arte a regra (181). Ora, porque... sem uma regra prvia um produto jamais pode se chamar arte, ento a natureza no sujeito (e atravs da disposio [Stimmung] das faculdades do mesmo) d arte a regra, isto , a bela-arte possvel apenas como produto do gnio (182). Essa regra, entretanto, no discernvel, no pode ser descrita, conceituada e apreendida em uma frmula nem mesmo pelo artista, ou seja, ele no pode se tornar consciente dessa regra pois ele d a regra como natureza (182).

    Isto posto, poderamos ser levados a pensar que a arte parece natureza porque a forma conforme a fins, segundo a qual ajuizamos uma obra de arte como bela, deriva imediatamente de que a natureza d a regra arte atravs do gnio. Tal a opinio, por exemplo, de Robin Scott, que diz: A discusso de Kant do gnio sugere que a natureza fornece no apenas o material a ser formado pela conscincia produtiva, como ocorre atravs da cincia, mas tambm fornece a forma, a conformidade a fins, mente humana13.

    Entretanto, isso no totalmente certo. A aparncia de natureza na arte se d, como se disse, primeiramente porque todos os seus elementos, nos seus mnimos pormenores, concordam com as regras nicas (dadas pela natureza atravs do gnio) segundo as quais o produto se torna aquilo que ele deve ser, o que Kant chama de puntualidade dessa concordncia. Essa concordncia s regras, pode-se assim interpretar, representaria uma sintaxe (que conforme a fins) dos elementos constituintes da obra, cujas tenses e relaes no so explicveis segundo conceitos determinados. Ou seja, aquilo que torna possvel a configurao de todos os momentos na obra, as regras segundo as quais a obra torna-se o que ela deve ser, no tem uma causalidade explicvel por conceitos, isto , no existe um conceito de fim que explique a ordenao sinttica dos elementos presentes na obra. O que no quer dizer que essas relaes sejam absolutamente dspares em relao aos conceitos e imagens que produzimos a fim de darmos conta delas. O que Kant diz que elas provocam uma infinidade de imagens e conceitos que jamais circunscrevem a totalidade de significaes possveis da obra.

    /263/ Mas isso, por si s, no garante que a obra que ajuizamos de acordo com a forma parea natureza, pois Kant diz que necessrio que no haja uma penosidade [Peinlichkeit], que no transparea o que ele chama de forma acadmica [Schulform], na elaborao final dos elementos da obra. Disso conclumos que poderia haver puntualidade na concordncia com as regras dadas pela natureza e penosidade em uma obra, fazendo com que esta no parea natureza, o que se afigura como um paradoxo: como possvel que todos os elementos da obra em suas sejam adequados integralmente s regras dadas pela natureza atravs do gnio e mesmo assim a obra no parea natureza?

    O gnio pode fornecer apenas rica matria [Stoff] aos produtos da bela-arte; a elaborao do mesmo e a forma exigem um talento formado atravs da escola, para fazer um uso dele que possa subsistir diante da faculdade de julgar (186).

    O gnio, apesar de se constituir na unificao (em uma determinada relao) das faculdades da mente, imaginao e entendimento (198), est mais relacionado ao poder da imaginao, que produtiva, e com a qual ns mesmos nos divertimos quando a experincia nos aparece por demais quotidiana (193). A liberdade sem constrangimento a leis da imaginao, esta capacidade de criar formas ricas em

    13 SCOTT, R. Kant and the objectification of aesthetic pleasure. In: Kant-Studien, 80. Jahrgang, Heft 1, Berlin: Walter de Gruyter & Co., p.89.

  • idias e que ultrapassam a experincia sensvel (ultrapassagem esse que permite que Kant chame essas formas de idias estticas), produz, por si s, nada mais que absurdo. A mera adequao s regras de criao14 da obra seguidas pelo gnio mostra apenas uma produo fantasiosa e tendente absoluta ininteligibilidade. necessria, assim, a faculdade de julgar.

    O gosto , tal como a faculdade de julgar em geral, a disciplina (ou cultivo) do gnio, poda-lhe bem as asas e o torna educado ou polido; mas, ao mesmo tempo, d-lhe um direcionamento [Leitung], por onde e at onde ele deve se estender, para permanecer conforme a fins; e, ao introduzir clareza e ordem na plenitude de pensamento, torna as idias estveis, suscetveis de uma aprovao ao mesmo tempo duradoura e universal, de serem seguidas por outros e de uma cultura sempre em progresso. (203)

    Mas se ser conforme apenas imaginao no torna um produto uma obra de bela-arte, a conformidade ao gosto por si s tambm no: pode ser um produto pertencente arte til e mecnica, ou at cincia, segundo regras determinadas, que podem ser aprendidas e que tm que ser precisamente seguidas (191). Do que se conclui que em uma pretensa obra de bela-arte pode-se freqentemente perceber gnio sem gosto, quando h ento um privilgio exagerado da imaginao, em detrimento da faculdade de julgar, em uma outra gosto sem gnio, quando temos um fim prtico para o produto, ou seja, no se trataria de obra de bela-arte, e sim de arte mecnica (idem).

    /264/ Consideremos agora, tambm, que no haja um fim prtico para o produto, isto , que ele seja da bela-arte, e que ele seja conforme ao gosto. Mas, considerando apenas isso, poderamos ainda dizer que no tenha esprito [Geist].

    Esprito, no sentido esttico, significa o princpio vivificador da mente. Mas aquilo atravs do qual esse princpio vivifica a alma, a matria [Stoff] que ele emprega para isso, o que pe as faculdades da mente, conforme a fins, em movimento, isto , num jogo tal que se conserva por si e robustece por si mesmo as foras para isso. (...) Ora, eu afirmo que esse princpio no outro do que a faculdade de exposio de Idias estticas; e por Idia esttica entendo aquela representao da imaginao que d muito a pensar, sem que, entretanto, nenhum pensamento determinado, isto , conceito , possa ser-lhe adequado, que conseqentemente nenhuma linguagem alcana totalmente e pode tornar inteligvel (192-3).

    Em relao idia esttica podemos dizer que o entendimento limitado em relao imaginao, porque o que apresentado por ela perfaz um campo em que ele no est em condies de subsumir as relaes ali presentes em uma universalidade conceitual. O fato de percebermos esprito em uma obra, quer dizer que ela rica e original em idias. Entretanto, isso no to necessrio em prol da beleza, quanto a conformidade daquela imaginao produtiva em sua liberdade legalidade do entendimento. Por isso tudo, Kant diz que para a bela-arte so necessrios: imaginao, entendimento, esprito e gosto.

    Uma vez colocadas brevemente as variveis envolvidas no conceito de bela-arte, delineamos a seguir a resposta s questes levantadas no item O conceito de fim.

    Arte como representao?

    Um momento decisivo para essa resposta a seguinte passagem da terceira Crtica: Uma beleza natural uma coisa bela; a beleza artstica uma bela representao de uma coisa (188). Que

    14 preciso evitar aqui um possvel mal-entendido, dado que foi dito que a pura obedincia s regras da natureza significaria absoluta ausncia de leis para a imaginao, o que soa paradoxal. O paradoxo se desfaz se atentarmos para o fato de que as regras que a natureza d arte no se constituem uma limitao para a imaginao criadora, mas ao contrrio. Elas, ao serem seguidas pelo artista como gnio, do a ele a oportunidade (nica, segundo Kant) de retirar sua imaginao da submisso ao entendimento, e produzir, assim, obras ricas e originais.

  • significaria aqui dizer que o que belo no a coisa, e sim a representao de uma coisa? E a qu se refere o termo coisa, ou seja, o que propriamente aquilo que representado?

    Deveramos restringir o conceito de representao artstica ao de figurao? Kant diz: a bela-arte mostra sua preeminncia justamente em descrever com beleza coisas que na natureza seriam feias ou desagradveis (189). Poderamos aduzir vrias outras passagens que mostram que o conceito de representao artstica no exclui o de figurao de uma coisa, ou o de apresentao de um conceito determinado. Mas a pergunta crucial a de se o que a obra representa coincide com o que ela figura, ou seja, no havendo figurao, tambm no haveria representao.

    Existindo recobrimento entre os dois conceitos, ento seramos levados a concluir que a definio dada acima para a beleza artstica no valeria para a msica sem texto, nem para toda a arte no figurativa. Com efeito, quando Kant fala da distino entre beleza livre e aderente, que j citamos, ele conta a beleza de alguns produtos artsticos como livre:

    Assim os desenhos la grecque, a folhagem para moldura e sobre papel de parede, etc., no significam nada por si mesmos: eles no representam nada, nenhum objeto sob um conceito /265/ determinado, e so belezas livres. Pode-se contar como sendo do mesmo tipo tambm o que se chama na msica fantasias (sem tema), mesmo toda a msica sem texto. (49, nfase nossa)

    Tendo-se em mente o que dissemos acerca da influncia do conceito de fim no juzo de gosto, e comparando o texto acima com a passagem em que Kant diz que o conceito de fim no ajuizamento de uma obra de bela-arte como arte tem que ser levado em conta, pois a arte sempre pressupe um fim na causa (e sua causalidade) (...) (188, nfase nossa), v-se claramente que, portanto, uma msica sem texto no poderia ser considerada uma beleza livre. Deste modo, parece-nos claramente invivel abrigar integralmente, em uma mesma interpretao, as duas assertivas de que a msica seja beleza livre e de que a arte sempre pressupe um fim que deve ser levado em conta. Haveria vrias possibilidades de, mantendo-se a primeira como verdadeira, flexibilizar a segunda, de modo a torn-las no contraditrias, por exemplo: embora toda arte pressuponha um fim na causa, aquela que no figura (representa) nada, no exige que consideremos aquele conceito quando a julgamos bela. De nossa parte, preferimos manter integralmente a segunda. Portanto, dizemos que figurao no coincide com representao15, ou seja, msica sem texto tambm representa, embora no figure nada, e que nenhuma obra de arte pode ser beleza livre.

    Essa escolha nos parece justificada por dois motivos principais: se entendemos que a definio da arte como sendo representao s vlida para as artes figurativas ou que se empenham na apresentao de um conceito, ento toda a anlise kantiana referente arte fica muito restringida e muitos de seus conceitos ficam sem aplicao no caso da msica, pintura abstrata, etc.; o que significa que perdemos muito mais conservando a idia de beleza livre para a msica do que rejeitando-a. Por outro

    15 Eva Scharper chega a essa mesma concluso atravs de argumentos e pressupostos diferentes (cf. SCHAPER, Eva. Free and dependent beauty. In: Kant-Studien, 65. Jahrgang, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1974, pp.257-260). Pelo que inferimos da interpretao de Bartuschat, este autor tambm prefere no igualar aqueles dois conceitos (cf. BARTUSCHAT, Wolfgang. Zum systematischen Ort der Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1972, p. 155). preciso observar aqui, entretanto, que Kant chega a dizer que a representao artstica propriamente s a forma da apresentao de um conceito, pela qual este comunicado universalmente (190). Todavia, pensamos que essa limitao do conceito de representao na arte est mais em desacordo com seus argumentos gerais que servem de base a seu pensamento sobre a arte do que a posio que assumimos. O que no significa que afirmamos que o conceito de representao na arte exclua o de figurao ou apresentao de um conceito. O que sustentamos que eles no so coincidentes, pois, como dir Adorno, por mais que a linguagem na poesia, por exemplo, queira ser uma pura organizao sinttica, tendendo ao que ele chama de linguagem mimtica, ela, entretanto, no pode se ver livre totalmente do seu carter semntico ou conceitual, que perfaz, portanto, um de seus elementos essenciais: O elemento conceitual, como entremeado, inalienvel na linguagem e tambm em toda a arte... (ADORNO, Theodor W. Teoria Esttica. Traduo de A. Moro. Lisboa: Martins Fontes, 1982, p.115).

  • lado, o critrio usado por Kant para estabelecer a distino entre beleza livre e aderente na arte (representao qua figurao) parece por /266/ demais frgil, dado que uma particularizao injustificada do critrio usado para a diviso geral da beleza em livre e aderente (o conceito de fim).

    Se assumimos que representar no coincide com figurar, ento preciso responder pergunta de o que a bela representao, e o que seria a coisa representada em artes no figurativas. Tanto neste, quanto nos casos de uma figurao de alguma coisa, ou apresentao de um conceito determinado, o que est em jogo com o conceito de representao o fato de que ele nos leva a pensar a arte como produo, um ato produtivo. O que alvo do juzo de gosto na arte a prpria representao, pois a arte a bela representao de uma coisa. Como o essencial na arte, diz Kant, a forma (cf. 214), ento podemos concluir que h um entrelaamento muito forte entre esses dois conceitos. O que significa que o juzo de gosto, quando em relao arte, refere-se a algo que j perfaz um movimento, que se constitui precisamente no fato de que o compreendemos a partir de vrios momentos. Isto , no ajuizamento da bela-arte, a prpria forma, que conforme a fim sem fim, julgada como se fosse dinmica, pois levamos em conta, no juzo, a prpria produo artstica, o prprio ato formativo-representacional. O conceito de fim a que a produo da obra est submetida tem que ser levado em conta porque a arte quer produzir algo que no esteve sempre j realizado (diferentemente da beleza natural), e, como diz Bartuschat, que acessado somente na justaposio de atos dinmicos16.

    Kant identifica o conceito de fim com a finalidade material, e diz que na beleza natural a mera forma, sem conhecimento do fim apraz no ajuizamento por si mesmo (188), ou seja, conhecer o conceito de fim ir alm da forma no ajuizamento de um objeto. Cremos que isso seja certo em relao arte mecnica, em que o conceito de fim pode ser claramente delineado e seu condicionamento da forma evidente. Mas em relao bela-arte, que deve parecer natureza, cujo conceito de fim muito menos determinado, e s vezes muito pouco perceptvel em sua forma, a exterioridade pura e simples daquele conceito em relao forma deve ser repensada.

    O modo como o conceito de fim transparece na forma da bela-arte qualitativamente diferente do que na arte mecnica. Nesta, o forte condicionamento do conceito de fim faz com que este situe-se nitidamente alm, fora, da pura forma17, impedindo que a obra parea natureza. O momento em que podemos pensar a obra como no mais mecnica, mas sim bela-arte, ou seja, o elemento fundamental, mnimo, como condio de possibilidade de a obra parecer natureza, o momento em que h o que podemos chamar de dissoluo formal do conceito de fim. Esse ponto de inflexo para a bela-arte aconteceria quando a finalidade material (o conceito de fim) passa a se confundir com a prpria finalidade formal. A partir desse instante, a bela-arte consegue parecer natureza, pois no mais conseguimos discernir a finalidade material da finalidade formal na obra, por mais que tentemos; /267/ o artista no pode mais descrever ou conceituar seu procedimento criador18; e a prpria forma da obra passa a ser

    16 BARTUSCHAT, Wolfgang. Op. cit., p.155.

    17 Ou seja, condicione-a a partir de um ponto de vista extrnseco estruturao da obra.

    18 Seria conveniente aqui explicar de outra maneira como este momento decisivo imperceptvel para o artista. O gosto, diz Kant, no uma faculdade produtiva, mas meramente ajuizativa (Cf. 191). A forma da obra de arte tem que ser conforme a ele (o gosto), mas no produzida por ele. Em outras palavras: a forma sempre ainda-no-existente para o artista como gnio, pois como vimos este talento vincula-se apenas matria [Stoff], mas aquela tambm sempre j dada em relao ao gosto [Geschmack], pois este no uma faculdade produtiva. O processo de gnese da forma, portanto, situa-se em um ponto inefvel, imperceptvel para o artista, mesmo considerado em todas as suas faculdades. Essa ltima considerao d ensejo a uma interessante comparao do conceito de forma assim delineado e a foto com luz de um flash de cmera fotogrfica. Com efeito, em uma foto noturna, o que se percebe antes de acionar o flash so silhuetas de objetos por demais indeterminados para serem fotografados (mas no de modo absoluto, pois seno nem saberamos o que iria ser fotografado), necessitando-se do claro iluminador daquela luz para a realizao da foto. Mas a iluminao somente surge de uma maneira instantnea: no h meio-termo entre a penumbra dos objetos antes dela e a definio adquirida por seu intermdio. Se o resultado final no agrada, ento necessrio uma nova disposio dos elementos, realizada sem luz,

  • considerada dinamicamente, posto que somente compreendida atravs de vrios momentos. Ou seja, a dissoluo do conceito de fim na forma faz com que o dinamismo prprio do ato de produo seja um dos elementos constituintes da forma da obra, isto , seja de alguma maneira absorvido por ela.

    Esse entrelaamento da finalidade material e formal indica uma tenso que existe na obra de arte e que no deve ser menosprezada. Kant suprimiu essa tenso ao dizer que a msica sem texto poderia ser considerada beleza livre. Ele pensou que o conceito de fim numa arte no figurativa e mesmo sem tema meldico firmemente estabelecido tivesse uma influncia to pequena, ou seu conhecimento claro fosse de tal modo inexeqvel, que consider-la igual a zero no fizesse diferena. Mas faz. Por mais que uma obra de arte queira se ver livre do que Adorno chama de Organizationsprinzip (princpio de organizao), tendendo a ser uma organizao que valha somente por si mesma, almejando ser plenamente autnoma em relao a seu criador, ou nos termos kantianos, parea natureza e pretenda ser ajuizada como beleza livre, entretanto, sempre h um resto de finalidade material, inestirpvel do conceito de arte, ou seja, a dissoluo formal do conceito de fim nunca total. A histria da arte poderia ser interpretada a partir do esclarecimento dessa tenso, da Grcia antiga arte contempornea.

    De Policleto a Marcel Duchamp

    Vemos nessa imbricao que existe, numa obra de bela-arte, entre sua conformidade a fim, a ausncia de fim para tal finalidade e o conceito de fim que caracteriza aquilo que vemos como arte, uma importante conseqncia para a esttica. ndice de uma polaridade sob a qual a arte se situa em sua histria, fornecendo-nos um fio condutor para compreender tal desdobramento histrico. Tomando /268/ como exemplo as artes plsticas, analisaremos alguns movimentos da histria da arte desde a Grcia clssica at a Pop-art. Para configurar esse perodo tomamos as trs categorias resultantes de nossa leitura do texto kantiano e procuramos interpretar alguns momentos histricos da arte de acordo com as relaes que as obras estabelecem com esses trs conceitos.19

    Consideremos primeiramente a arte clssica grega. Nesse perodo, vemos entrelaados os trs elementos que apontamos, de modo a haver uma ntida preponderncia dos dois primeiros em detrimento do ltimo. A ausncia de fim na forma da obra diminuda a um mnimo, a um ponto em que, sendo ultrapassado, no mais se teria uma obra de bela-arte. Sabemos pela histria da arte que o desenvolvimento da arte grega caminhou, at o Dorforo de Policleto, no sentido de aperfeioar cnones de construo da figura humana que proporcionassem uma viso da harmonia perfeita das linhas do corpo. Tais cnones, o compromisso do artista em relao nobreza, a viso de mundo antropocntrica e a concepo antropomrfica dos deuses (que serviam, na maioria das vezes, como tema) constituem elementos suficientes para afirmarmos que o conceito de fim que subjaz ao produto da bela-arte tem, nesse perodo, uma influncia muito grande. Fazendo uma contraposio entre a conformidade a fim e a

    para que se consiga outras possibilidades formais, que sero ajuizadas at que se encontre aquela considerada bela. O nosso fotgrafo, como o gnio kantiano, age nesse caso sempre aqum da forma final, e quando a alcana, ela lhe dada apenas atravs do olhar leia-se: faculdade do juzo , que no o que produz aquela forma, mas apenas a julga bela ou no.

    19 A interpretao que damos a seguir no pretende, atravs da articulao dessa trama conceitual, fornecer uma anlise dos aspectos mais essenciais ou mais importantes dos perodos estudados por ns. Trata-se apenas de analis-los sob um ponto de vista que nos pareceu eficaz para ajudar na compreenso do fenmeno esttico.

    Pode-se tambm levantar a questo de se uma interpretao da arte baseada num desdobramento histrico seria fiel ao pensamento kantiano, que exclui tal dimenso do conceito de arte. Com certeza a histria como determinante do conceito de bela-arte em Kant est fora de jogo, mas o que pensamos que as categorias que ele emprega em sua teoria da arte permitem que pensemos tal desdobramento a partir delas. Ou seja, a explicao kantiana das artes nos parece, em muitos aspectos, vlida em relao a uma obra de arte em geral, mas e se formos alm disso e considerarmos uma determinada obra em relao s que lhe antecederam? Que significados podem trazer para o conceito de arte tais categorias, se pensadas frente s modificaes das relaes das obras com elas?

  • ausncia deste, vemos que a primeira tem predominncia absoluta, incrementada pela influncia do conceito de fim que caracteriza o que vemos como arte.

    Essa interpretao , de certo modo, confirmada pela expresso de Kant de que o Dorforo de Policleto merece ser chamado, no propriamente de belo, mas de academicamente perfeito (59). No difcil, entretanto, ver aqui mais uma impropriedade de Kant, dado que a grande influncia do conceito de fim na forma dessa escultura no permite que a consideremos total. Nem tudo na forma do Dorforo, obviamente, pode ser explicado de acordo com sua finalidade material. Ela foi venerada na antigidade como exemplo de mestria artstica no somente porque ela no contradiz nenhuma condio sob a qual uma coisa dessa espcie [um ser humano vf] possa ser bela (59), mas porque somou a isso riqueza dos traos da figura, a sensao de movimento de sua forma em S, a possibilidade de ser observada de vrios ngulos sem prejuzo de sua visibilidade, etc., caractersticas que no podem ser deduzidas de sua finalidade material, e que, portanto, permitem-nos julg-la bela.

    /269/ Mas se a influncia do conceito de fim na arte clssica grega no total, pelo menos d-se de maneira bastante pronunciada, e no difcil ver que outros perodos, em graus diferentes, compartilham dessa caracterstica: a idade mdia, a renascena, o neoclassicismo, entre outros. Seria tentador afirmar que a tendncia geral nesses momentos seria a de uma diminuio da influncia do conceito de fim, mas difcil caracterizar um retrato feito por Gainsborough no sculo XVIII como sofrendo uma tal influncia essencialmente menor que o Dorforo. Mas aquela tendncia pode ser constatada com facilidade se tomarmos a histria da arte como um todo, e no apenas esses movimentos que se assemelham relativamente a esse aspecto. Isso porque notamos a emergncia cada vez mais freqente de obras que tendem a mostrar um ntido retraimento da influncia do conceito de fim em suas formas.

    Na antigidade esse momento pode ser ilustrado pela arte helenstica. A distoro das propores idealizadas da figura humana, a recusa de buscar novos cnones para a harmonia, o descompromisso com classes ou grupos sociais, a individualizao e impessoalidade do trabalho artstico so elementos que configuram essa tendncia que apontamos. Novamente podemos apontar perodos posteriores que compartilham dessa tendncia: o barroco, a arte fantstica (Bruegel, Bosch), o romantismo de Goya.

    No Impressionismo, assistimos a uma etapa das relaes entre os trs elementos que servem de fio condutor de nossa anlise to essencialmente diversa, que podermos atribuir-lhe a qualificao de turning point para a arte moderna. Influenciado pelo esprito do realismo de Coubert e Corrot, o Impressionismo marca um momento de valorizao extrema da experincia visual como tal, ou seja, o quadro resultado da valorizao da relao perceptiva do sujeito com a obra. H ainda uma relao finalstica bem clara quando vemos Monet pintar uma srie de quadros retratando as variaes da luz nos montes de feno ou na catedral de Rouen, mas o resultado dessa inteno para a composio pictural a de que ela propicia mais uma libertao do constrangimento formal do que restringe suas possibilidades, ou seja, a intencionalidade do ato de representar meramente os momentos fugazes de luz, cor, brilho, parece reverter para uma maior autonomia da forma em relao a toda pr-concepo que oriente sua estruturao, e, a partir do Impressionismo, torna-se mais clara a nossa concepo da apreenso da forma como dinmica: ela parece condensar em um nico instante toda a mobilidade e atividade do ato criador. No que haja sugesto de movimento nos objetos retratados, no se trata desse tipo de dinamicidade, mas sim pelo fato de no haver uma integrao macia ordenadora dos elementos, como por exemplo no quadro de Monet Impression. Soleil levant (Impresso, sol nascente), uma certa desintegrao na unidade dos elementos no possibilita uma apreenso definitiva de sua totalidade, em uma nica visada. Mesmo que consigamos abarcar visualmente a totalidade dos movimentos, a conformidade a fim que percebemos na forma da obra no contnua de todos os pontos de vista. Mas embora existam tais

  • rupturas, /270/ a concatenao dos elementos convida a que achemos uma soluo para elas, ou seja, incita uma maior atividade do fruidor. Ao contrrio da beleza natural, cuja conformidade a fim nas formas diminuda por rupturas, na arte estas so cooptadas pela totalidade formal, que as subsume em sua conformidade a fim, que se robustece com isso. A forma da obra de arte, como dissemos, no esteve sempre j pronta, isto , houve momentos que no se configurava uma totalidade formal conforme a fim, e, diferentemente do belo natural, aquela parece trazer em si a percepo de sua incompletude, e, misteriosamente, nos constrange a, com os meios que somente ela nos proporciona, encontrar uma conformidade a fim total para a forma da obra.

    Se por um lado, segundo Kant, a beleza natural tem preponderncia sobre a artstica por nos proporcionar o sentimento de estarmos em casa no mundo, por outro, diramos que a arte seria mais significativa, porque nos proporciona o sentimento de que ns mesmos que constitumos esse mundo, de que a nossa satisfao depende do fato de que ns o completemos, depende, portanto, de uma atitude do sujeito frente ao mundo. A beleza natural, portanto, , de certo modo, signo de uma mentira, pois a satisfao de nos sentirmos em casa no mundo no traz consigo a percepo da urgncia da necessidade de atitude do sujeito frente a ele, pois este nunca est pronto para nossos propsitos.

    Uma nova fase marcada pelo cubismo e o expressionismo. A crtica agora se dirige no apenas contra o conceito de fim, mas contra a prpria conformidade a fim, dado que vrias obras de Picasso, Ensor e outros foram qualificadas de feias. Se esse adjetivo verdadeiro, como pensar algumas obras de Picasso sob a categoria kantiana da beleza como conformidade a fim sem fim se elas no seriam belas? O que nos parece estar em jogo uma nova concepo da amplitude dos elementos que entram na teleologia esttica. Que haja elementos na obra que sejam feios, isso no nos permite concluir que em seu todo a obra tambm o seja, isto , aqueles constituem-se elementos da composio, entre vrios outros, submetidos conformidade a fim da forma. Totalidades parciais no interior da obra no conferem forma final o atributo que cada uma delas tem em particular. Ao contrrio: o todo da obra que atribui aos elementos um valor composicional devido confluncia de todos estes. Isso indica, entre outras coisas, autonomizao do conceito de forma, pois a totalidade formal deixa de ser condicionada pelos significados particulares dos elementos que a integram.

    Com o expressionismo e o cubismo, temos uma possibilidade essencialmente nova de pensarmos a teleologia esttica. Se no Impressionismo a conformidade a fim total da forma absorvia as rupturas de sua continuidade e se fortalecia com isso, nas obras de Ensor e Picasso, por exemplo, temos a absoro no apenas de rupturas da conformidade a fim, mas at mesmo de partes que se opem a ela, ou seja, feias. inegvel que, apesar de o quadro Les mesdemoiselles davignon possuir partes que podem ser consideradas feias (as moas direita), proporciona prazer ao ser visto. H, portanto, uma conformidade a fim na forma da obra, mas /271/ que toma como um de seus elementos at mesmo o que a contradiz.20 Os elementos que entram na composio da forma da obra no conferem forma final o atributo que cada um deles tem em particular. Ao contrrio: o todo da obra que atribui aos elementos um valor composicional devido confluncia de todos estes. Isso indica, entre outras coisas, um processo de autonomizao da forma, pois a totalidade formal deixa de ser condicionada pelos significados e valores particulares dos elementos que a integram.21 A partir de ento assistimos a uma multiplicao indita de possibilidades de elementos que podem entrar na composio da forma da obra, o que foi aproveitado por vrios artistas no incio do sculo e que vem se estendendo at nossos dias. 20 Se no Impressionismo o sujeito era levado a exercer um papel nitidamente ativo na constituio do valor esttico do objeto, agora isso chega a um nvel essencialmente mais elevado.

    21 Adorno diz que a expanso das possibilidades do material esttico resultado da autonomizao do conceito de forma. Segundo pensamos, a assimilao do feio como um dos elementos formais que entram na conformidade a fim esttica deve ser considerada no somente como participante dessa tendncia, mas tambm seu principal momento.

  • Poderamos continuar analisando vrios movimentos artsticos de nosso sculo: pintura abstrata, futurismo, surrealismo, expressionismo abstrato e outros. Para fazermos minimamente justia a cada um deles, entretanto, deveramos estender nosso texto para alm das dimenses que ele comporta, pois em cada movimento do sculo vinte so introduzidas inovaes cada vez mais complexas no conceito de arte.

    Apesar disso, gostaramos de responder seguinte pergunta: possvel interpretar o Dadasmo com as categorias estticas de Kant? A resposta, aparentemente bvia, no, pois nos ready-made de Duchamp ou em algumas colagens de Jean Arp, por exemplo, no se trata em absoluto de algo feio ou belo. No ready-made de Duchamp a aparncia de natureza, que, segundo Kant, condio para que a obra seja considerada bela, est totalmente suprimida, pois o predomnio da finalidade material absoluto. Arp fez algumas colagens com pedaos de papel que foram lanados aleatoriamente sobre a superfcie. O ttulo de um quadro : Colagem de quadrados ordenados segundo as leis do acaso. Crtica mordaz finalidade que sempre existiu nos produtos das belas-artes. J vimos que o conceito de fim, segundo Kant, tem que ser levado em conta no ajuizamento sobre as belas-artes, pois seno no se poderia atribuir-lhe nenhuma arte; seria apenas um mero produto do acaso (186, grifos nossos). Nas colagens de Arp, a finalidade formal no existe e o conceito de fim foi reduzido a um mnimo inultrapassvel. Este somente tem existncia na medida em que se compreende que houve uma inteno humana de que os elementos fosse ordenados aleatoriamente, ao acaso.

    Se aquela resposta certa, ento teramos que procurar outros conceitos para explicar por que as colagens de Arp e os ready-made de Duchamp podem ser julgados obras de arte. Cremos, entretanto, que legtimo interpretar essas obras de arte com as catetorias da teleologia esttica de Kant.

    /272/ Primeiramente devemos pensar que a conformidade a fim no deve ser relacionada apenas aos elementos sensveis, seno, como se pode explicar tal finalidade na forma de uma poesia? Em um poema, a conformidade a fim relaciona-se, no apenas aos elementos sensveis, isto , ao som das palavras e ao desenho das letras, dos versos, das estrofes, etc., mas, tambm, quilo que se pode pensar a partir de tais elementos, ou seja, s suas possveis significaes, que, naturalmente, no so sensveis. Mas o que vivifica a mente no so tais significados por si s, como indicamos anteriormente, mas, sim, a conformidade a fim do conjunto de todas as partes da obra. A especificidade da poesia, portanto, reside em que a finalidade de sua forma refere-se, no apenas a elementos sensveis, tal como se poderia considerar no caso da msica sem texto, mas, tambm, ao que se pode pensar a partir de tais elementos.

    Ora, em relao ao Dadasmo, pensamos que a finalidade que se percebe, constituinte da obra como arte, refere-se primordialmente quilo que se conduzido a refletir a partir de seus elementos. A questo precisamente quais so seus elementos. Estes so, no apenas o prprio objeto, mas, tambm, todas as obras de arte anteriores, a conscincia social sobre a arte, a crtica de arte, a vida cotidiana moderna, o modo como os objetos utilitrios domsticos so usados, etc. bem conhecido que todas essas determinaes artsticas e sociais so criticadas pelas obras dadastas. Como no atributo esttico de Jpiter (uma guia com um raio nas garras), que d muito mais a pensar do que est contido no conceito de magestade da criao, a atitude crtica dadasta d muito mais a pensar do que podemos apreender discursivamente a seu respeito. Um ready-made de Duchamp leva-nos a uma srie de pensamentos e sentimentos que nunca abarcam a totalidade das determinaes do que est contido no conceito de crtica, estando, assim, as faculdades da mente em um estado de livre jogo que tende a se manter, ou seja, um estado de prazer propriamente esttico.

    Neste ponto surge uma questo sobre a ampliao da conformidade a fim realizada pelos dadastas: no existiria j na arte, desde os gregos, dimenso scio-poltica, e at mesmo de contestao das relaes sociais? A resposta sim, sempre existiu, e talvez nunca houve alguma manifestao artstica que no tivesse tal dimenso. Em que residiria a especificidade do movimento dadasta que o faria to radicalmente diferente? Em dois pontos: primeiramente, a dimenso poltica das artes anteriores passava

  • pela total organizao da forma sensvel das obras. Estas se estruturavam de uma certa maneira para afirmarem ou criticarem aquilo com que se relacionavam, ou seja, a crtica ou a afirmao condicionava, ou dependia da, forma fsica totalmente elaborada da obra. Na obra dadasta, a crtica feita, como principalmente nos dois exemplos que demos, em funo de uma negao radical daquilo que sempre constituiu a arte, ou seja, em funo da negao do que constitua a prpria obra como arte. Em segundo lugar, vemos que nos movimentos artsticos anteriores ao Dada aquilo que era criticado ou afirmado pelas obras permanecia algo como que exterior a elas. Em relao ao Dada, por mais paradoxal que isso seja, aquilo que criticado pelas obras faz parte de uma totalidade /273/ cujas relaes evocadas por elas constitui parte essencial da prpria artisticidade delas. Atravs da crtica de sua prpria conformidade a fim, a obra dadasta nos faz perceber vrios aspectos da realidade social como estando em determinadas relaes uns com os outros, e que a obra de arte apenas um deles, cuja presena, entretanto, introduz uma articulao teleolgica esttica entre aqueles outros aspectos e ela prpria.22

    Podemos dizer que, por conta dos elementos que constituem a obra de arte dadasta, ela alcana um contedo sui generis. Ou seja, trata-se de um elemento no apenas formal, mas, tambm, de contedo, que constitudo pela carga de historicidade inerente a toda obra de arte.

    O contedo das obras de arte

    Theodor Adorno diz que a histria pode se chamar o contedo das obras de arte. Analis-las significa tanto quanto perceber a histria imanente nelas sedimentada23. Mas no foi precisamente isso que fizemos brevemente no item anterior? Primeiramente, consideramos as categorias principalmente formais da arte, analisamos alguns tipos de relaes das obras, tanto com esses conceitos, quanto com outras obras, e agora vemos que a historicidade de tais relaes constitui, segundo Adorno, o contedo da arte.

    Compreender adequadamente o contedo do quadro de Monet Impresso. Sol nascente, por exemplo, significa apreender como aquela subsuno das rupturas na conformidade a fim da forma apresenta uma possibilidade essencialmente nova de o sujeito relacionar-se com a obra. Para se perceber tal contedo preciso compreender a importncia histrica da representao dos reflexos do sol no mar, das embarcaes, das plataformas do porto, com traos rudimentares e que no se articulam numa unidade estabelecida definitivamente. preciso refletir o quo significativo no ter sido para um contemporneo de Monet perceber que a rudeza das pinceladas do cu, no to articuladas com a definio que o sol tem, que por sua vez contrasta com a obscuridade e a falta de cor do cais, quase que constrange, apesar de suas muitas rupturas, a que continuemos a ver o quadro na tentativa de encontrar uma conformidade a fim para forma como um todo, em ntido contraste com os procedimentos de composio utilizados at ento. No se trata de apenas mais uma possibilidade de representao pictrica, de composio formal, mas sim de o sujeito experienciar uma nova disposio ativa de suas faculdades. A significao histrica do modo como essa obra instaura uma maneira radicalmente indita de o sujeito compreender a atividade de seus poderes racionais constitui seu contedo.

    /274/ Para quem sempre esteve de certo modo acostumado a falhas diminutas nas formas artsticas essa possibilidade formal radicalmente nova significa tambm um convite auto-reflexo do sujeito em relao sua racionalidade como um todo, posto que na medida em que levado a uma atitude essencialmente mais ativa perante o objeto, conduzido a lanar um olhar crtico tanto sobre as obras

    22 A ampliao extrema do mbito da conformidade a fim esttica promovida pelos dadastas serve tambm para compreendermos a Pop-art. Tambm neste caso pouco proficiente analisarmos as obras em um nvel estritamente formal de cada obra singular. A sociedade de consumo, a estetizao do cotidiano, a indstria cultural, os meios de comunicao de massa, todos esses elementos, constituintes da sociedade, so momentos de uma totalidade sobre cujas relaes somos levados a refletir pela colocao crtica da obra de arte.

    23 ADORNO, Theodor W. Teoria Esttica. Traduo de A. Moro. Lisboa: Martins Fontes, 1982, p.132.

  • anteriores quanto sobre aquilo que lhe oferecido em sua vida cotidiana, ou seja, o sujeito no se satisfaz perante o objeto somente na relao direta e momentnea com este. A incompletude da conformidade a fim da forma, que traz consigo a necessidade de complet-la, to diferenciada em relao s outras obras, fornece uma satisfao que, apesar de ser com falhas, estimula tanto o contato com a obra, que acarreta tambm o impulso de compreender o porqu de sua presena, que parece introduzir uma momentnea discontinuidade de sentido nas possveis formas de contato do sujeito com a arte e com o mundo, ou seja, parece fazer surgir em ns a necessidade de responder pergunta por que a experincia de contato com essa obra to diferente e to mais instigante?.

    O contedo do quadro de Monet somente pode ser compreendido, portanto, na medida em que compreendemos como ele fornece uma possibilidade de contato com a arte que leva a refletir sobre como nos comportamos frente s outras obras e tambm frente s coisas de um modo geral. O que vimos de forma clara no Dadasmo, cuja artisticidade reside nas relaes que a obra mantm com a sociedade como um todo e com as outras obras, comeou a despontar exatamente no Impressionismo, o turning point para a arte moderna.

    preciso considerar, aqui, uma importante observao: o contedo da arte no , pelo que acabamos de ver, o seu tema, aquilo que apresentado diretamente como algo figurado, mas, sim, a importncia histrica de sua articulao formal. Em uma linguagem dialtica, poderamos dizer que, na arte, o contedo existe em funo da forma, e no essa em funo daquele, como o caso de quase tudo que se faz em termos de objetos e coisas teis. Em um automvel, por exemplo, a forma est atrelada a um contedo material primrio bem especfico, que o de produzir conforto, status, distino social, velocidade, etc. Nesse caso, a forma existe quase que totalmente em funo de um contedo pr-dado. Na arte, tem-se o inverso.

    Concluso

    A filosofia de Immanuel Kant caracterizada como uma antropologia centrada na subjetividade, interpretando o sentido de toda a realidade a partir da capacidade do homem de conhecer o mundo, de agir nele e de sentir prazer com ele. Este centramento no sujeito mostra a importncia da arte como eminentemente reflexiva, ou seja, determinada a partir do modo como ns nos posicionamos em relao a ela. Todas as categorias que apresentamos, de conformidade a fim, de prazer, de matria e forma, de gnio, etc., tm um teor propriamente formal, na medida em que interpretam o modo como a obra de arte estruturada, ganha uma unidade formal. Em nenhum o texto kantiano fala de um contedo espiritual, cultural, histrico, /275/ etc., para as obras. Por conta exatamente dessa quase exclusiva preocupao com o aspecto de estruturao formal da obra, Kant tachado de formalista por quase todos que se detm em sua leitura. Cremos, entretanto, que toda essa nfase que vimos no aspecto formal de apreciao da arte resulta em algo mais positivo do que o contrrio. Essa positividade da considerao formalista reside, segundo pensamos, no fato de ela permitir uma determinao enftica, expressiva, para a natureza da arte, para sua especificidade, destacando-a do mar de produtos que no merecem o nome de arte. Uma vez que tal especificidade est bem delineada, preciso que pensemos, a partir dela, em que consistiria o contedo da arte, mas no mais pensado em termos de tema, contedo poltico, propagandstico, etc. O contedo da arte quase sempre pensado vulgarmente como sendo o material com que seus produtos so elaborados, e, no, o que resulta dessa elaborao. Ao contrrio, o contedo da arte algo que somente deve ser vislumbrado a partir da ruptura que a arte exerce frente realidade trivial e funcionalizada a que todos os homens esto submetidos em seu dia a dia. Ele somente pode ser alcanado em sua especificidade esttica na medida em que penetramos profundamente na constelao de momentos que perfazem sua forma.

  • Uma vez aberto o caminho para que pensemos o contedo na arte mediado pela forma esttica, vemos que ele algo propriamente reflexivo, pois est vinculado ao modo como o sujeito incitado a refletir sobre o modo como afetado pela obra de arte. Essa reflexo algo que somente adquire importncia, como vimos, numa dimenso histrica. A anlise do contedo esttico de uma obra somente se faz legtima, portanto, quando leva em considerao esses dois aspectos: a especificidade da arte atravs de sua estrutura formal e a sua importncia em termos do desenvolvimento histrico para a reflexo que se faz sobre nossa capacidade de interpretar e fruir a arte.

    A arte, particularmente a moderna, um momento em que tal reflexividade assume uma importncia nunca antes alcanada, pois sua negatividade, sua recusa de nos oferecer imagens, sons e narrativas harmoniosas, configura-se como um desafio para nosso poder de compreenso do real e de ns mesmos. Uma verdadeira educao esttica da humanidade24 consistiria em fazer com que nos exercitemos em enfrentar esse desafio, de modo que o prazer de venc-lo (ou melhor, de pratic-lo constantemente) fosse uma constante no nosso modo de vida.

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