a sociologia volta a escola. um estudo dos manuais de sociologia

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Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Instituto de Filosofia Ciências Humanas Universidade Federal do Rio de Janeiro A sociologia volta à escola: Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino médio no Brasil Flávio Marcos Silva Sarandy 2004

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  • Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia

    Instituto de Filosofia Cincias Humanas

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    A sociologia volta escola:

    Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino mdio no Brasil

    Flvio Marcos Silva Sarandy

    2004

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    Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia

    Instituto de Filosofia Cincias Humanas

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    A sociologia volta escola:

    Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino mdio no Brasil

    Flvio Marcos Silva Sarandy

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do

    ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em

    Antropologia).

    Orientadora: Prof. Dr. Glucia Kruse Villas Bas

    Rio de Janeiro

    Outubro de 2004.

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    A sociologia volta escola:

    Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino mdio no Brasil

    Flvio Marcos Silva Sarandy

    Orientadora: Prof. Dr. Glucia Kruse Villas Bas

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e

    Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Sociologia (com concentrao em Antropologia).

    Aprovada por:

    _______________________________________

    Presidente, Prof. Dr. Glucia Kruse Villas Bas (PPGSA/ UFRJ)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Andr Pereira Botelho (Pesquisador / Prodoc / CAPES)

    _______________________________________

    Profa. Dra. Maria Adlia Miglievich Ribeiro (UENF)

    _______________________________________

    Profa. Dra. Maria Lgia de Oliveira Barbosa (UFRJ) Suplente

    _______________________________________

    Prof. Dr. Carlos Antnio C. Ribeiro (UFRJ) Suplente

    Rio de Janeiro

    Outubro de 2004

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    FICHA CATALOGRFICA

    Sarandy, Flvio Marcos Silva.

    A sociologia volta escola: um estudo dos manuais de sociologia

    para o ensino mdio no Brasil / Flvio Marcos Silva Sarandy. Rio de

    Janeiro: UFRJ, IFCHS, PPGSA, 2004.

    Xii, 142f.;31 cm.

    Orientadora: Glucia Kruse Villas Bas.

    Dissertao (Mestrado) UFRJ / Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas / Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia

    (PPGSA), 2004.

    Referncias bibliogrficas: f. 133-142.

    1. Ensino de Sociologia 2. Ensino Mdio 3. Livro didtico.

    I. Bas, Glucia Villas Kruse II. UFRJ, IFHCS, Programa de Ps-

    Graduao em Sociologia e Antropologia (PPGSA) III. Ttulo.

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    Resumo

    A sociologia volta escola:

    Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino mdio no Brasil

    Flvio Marcos Silva Sarandy

    Orientadora: Prof. Dr. Glucia Kruse Villas Bas

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e

    Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia

    (com concentrao em Antropologia).

    Essa pesquisa buscou delinear o que se tem proposto para o ensino de sociologia no ensino mdio a partir de uma anlise interpretativa de quatro entre os manuais didticos de sociologia para o ensino mdio publicados a partir da dcada de 1980, no Brasil. Descreve e analisa a estrutura, as principais idias e a lgica que ordena e orienta os textos dos manuais investigados e sistematiza a produo acadmica anterior. A dissertao conclui que os manuais da disciplina reproduzem um ensino com forte nfase conceitual e fundamentado no pressuposto da sociologia como propiciadora de uma conscincia crtica interventora sobre a realidade social e relevante para o desenvolvimento da cidadania. Tambm procura sistematizar a produo recente sobre sociologia no ensino mdio a partir da recuperao de quatro dissertaes de mestrado, incluindo outros estudos realizados, e sugere que o campo das cincias sociais, especialmente no ensino mdio, articulado por um sentimento missionrio, um sentido civilizacional, no raro entre as teorias e polticas educacionais brasileiras. Disso decorre uma possvel linha de continuidade entre esses manuais e os primeiros escritos e publicados por intelectuais brasileiros nas primeiras dcadas do sculo XX. Por fim, essa dissertao discute a indiferena com que vm sendo tratadas as questes prprias do ensino das disciplinas do campo das cincias sociais no ensino mdio, que mantm invisvel aos cientistas sociais a possibilidade de os manuais didticos serem considerados produes legtimas e relevantes da inteligncia brasileira ou, ao menos, serem fontes reveladoras do campo cientfico das cincias sociais. Palavras-chave: ensino de Sociologia, manuais didticos, ensino mdio.

    Rio de Janeiro

    Outubro de 2004

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    Abstract

    A sociologia volta escola:

    Um estudo dos manuais de sociologia para o ensino mdio no Brasil

    Flvio Marcos Silva Sarandy

    Orientadora: Prof. Dr. Glucia Kruse Villas Bas

    Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Sociologia (com concentrao em Antropologia).

    This research sought to delineate what has been proposed for the teaching of Sociology in high-school, based on an interpretative analysis of four didactic handbooks, among the many published in Brazil during the decade of 1980. This document describes and analyzes the structure, the main ideas, and the logic behind the texts of the researched handbooks, besides systematizing previous academic works on the issue. This paper reaches the conclusion that Sociology handbooks used in high-school reproduce a model with emphasis on academicist teaching, also based on the general notion of Sociology as a trigger of critical conscience, which could enable the students to intervene in the social reality around them, and develop relevant values of citizenship. An analysis of previous studies on this matter, including four masters thesis, suggests that social sciences are taught in high-school, often driven by a missionary feeling and a sense of civilizational purpose, as it can be frequently seen in Brazilian educational theories and policies. Maybe hence comes a possible line of continuity connecting those four handbooks to the first works published by early twentieth-century Brazilian scholars. Finally, this paper discusses the frequent apathy of social scientists towards researching efficient ways of teaching sociology, which end up disregarding the possibility of didactic handbooks being seen and considered as relevant works, or, at least, being regarded as tools that successfully communicate the vast range of possibilities of the social sciences applications.

    Keywords: Sociology teatching, didactic handbooks, high-school teatching.

    Rio de Janeiro

    Outubro de 2004

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    AGRADECIMENTOS

    Agradecer reconhecer a importncia de algum, invocar lembranas gratificantes, comprometer-se com o outro. inventariar as prprias dificuldades e limitaes. No caso de um agradecimento escrito, como esse, o problema comea quando o outro vem no plural, e so tantos! A despeito do risco de esquecer algum injustamente, diga-se logo expresso aqui minha sincera gratido pelo apoio, motivao, crtica e contribuio intelectual, afetiva, financeira e logstica. A todos os que seguem, minha homenagem e gratido: se essa dissertao vale alguma coisa, ela existe em boa medida por vocs, a quem dedico esse trabalho.

    Ana Cludia e Clara. Quem desconhece o tipo de apoio a que esto obrigados aqueles que, juntos, acordam com a tese? A elas no sei que palavras oferecer: Anita me despertou a paixo que dirigiu este trabalho foi com ela que comecei a aventura e o desafio de pensar a educao e Clara foi pura curiosidade, a me recordar as minhas. Clia Azevedo, Marcelo, Andria e Alberto Tosi foram fundamentais! impossvel aquilatar o que me ofereceram. D. Clia, minha referncia bsica, sempre esteve disponvel para tudo a qualquer hora, e saber disso manteve minha coragem; Marcelo e Andria, hoje doutores, alm de me acomodarem no RJ, compartilharam o processo com muita compreenso passaram por ele! Com o Tosi, um cientista poltico exemplar, tenho uma dvida intelectual e emocional enorme; impossvel retribuir: fico lhe devendo. Wiliam, Sara, Tiago, Noemy, Maria ngela, Ana Laura, Lupa (leitor de primeira hora), Andr, Juliana, Ana Elisa, Toni, o pequeno Igor, Amlia e a linda Bebel tambm constituem parte de meu ncleo rgido. no crculo daqueles que mais amamos que nasce a coragem e a motivao: obrigado!

    Dra. Glucia Kruse Villas Bas merece um destaque especial: como se sabe, um privilgio sem conta ser orientado por uma intelectual de seu porte, ainda mais raro quando competncia de ofcio se alia sensibilidade e acolhimento. Sua confiana e reconhecimento balizaram todo o meu percurso, pelo que sou imensamente grato.

    Ana Paula Leite, Nodo, Rodrigo Rosistolato e Andr Felipe foram grandes amigos no RJ cuja falta teria tornado mais sofrido todo o caminhar. Com eles pude perceber-me parte. Ana Paula Leite, minha interlocutora generosa e atenta, tambm devo muitas idias, insights e textos fundamentais. Maria Helena Pignaton, por que abriu a porta para o caminho que venho percorrendo. Dr. Jos Renato e Dra. Margareth Zanothelli, bem como os professores Lindolivo Moura, Maria ngela Soares e outros colegas do dia-a-dia facilitaram minha vida sempre que puderam. Como no lembrar de colegas como Regina, Costalonga, Costalonga Jnior, Renzo, Aline, Alosio Khroling, Alochio, ngelo DAmbrsio e Mnica, sempre interessados em meu percurso, sempre amigos e solidrios. Lourdes tambm foi muito importante neste ltimo ano.

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    A Rogrio Abaurre e Frank Azevedo Comarela, pelo apoio e contribuio dados. Sandra Vicentin, Antnia Colbari, Cntia vila, Jaime Doxey, Beatriz, Celeste

    Ciccarone, Mrio Hlio, Neide, Luis Pioto, Mauro Petersen, Francisco Albernaz, e Marta Zorzal que foram grandes professores, amigos e incentivadores. Sandra merece algumas palavras a mais, mas que palavras podem ser ditas a quem compartilhou as primeiras descobertas com tanto carinho? Dra. Antnia Colbari, a querida Toninha, um exemplo profissional que est sempre presente em minha mente, como interlocutora ideal. Do mesmo modo posso falar da Dra. Marta Zorzal, cujo profissionalismo e dedicao pesquisa e docncia marcaram um modelo em minha aprendizagem. Profa. Neide, genuinamente interessada e disponvel para os que se iniciam no ritual por vezes alegre, por vezes rduo da academia, sempre soube perceber os ciclos emocionais de seus alunos, e sempre esteve l para apoiar. A Beatriz, Celeste e Cntia, professoras e antroplogas que sabem despertar a paixo pelo conhecer em seus alunos, e ao amigo Dr. Mrio Hlio, sempre interessado pelo andamento de minha dissertao de mestrado; minha gratido tambm ao Dr. Mauro Petersen, sempre aberto e disposto para o debate, tanto quanto ao Dr. Jaime Doxey, uma pessoa atenta para o ouvir. Cada professor ou professora tem sua razo de constar neste agradecimento: devo mais a eles do que posso descrever.

    Mrcia Fracalossi e Jos Bonifcio, amigos do peito. Ao Edson Maciel, por compartilhar os mesmos interesses. Aos queridos colegas do Centro Educacional Leonardo Da Vinci especialmente Joo Duarte, Carla Jardim, Roberto Martins e Paulo de Tarso, professores que se deve ter por bons exemplos. No entanto, a meno a eles em particular no pretende ocultar o brilho de cada colega da escola onde iniciei meu aprendizado, mas somente fazer meno aos que mais estiveram prximo durante meu percurso por essa instituio.

    Ao Z Carlos, que alm de amigo querido, parceiro nas fabulaes, utopias e reflexes ele me fez acreditar nas minhas prprias indagaes: o que mais se deve esperar de um amigo? Ao Paulo Ghiraldelli Jr. que, em conjunto com o Tosi, foi o primeiro a reconhecer algum valor no que vinha fazendo, o que me motivou a prosseguir. Z e Paulo, dois grandes amigos, duas belas surpresas na minha vida. Ao Vidal, hoje professor da Ufes, antigo mestre e amigo eterno, pela aula sobre ser professor, quando tive o privilgio de ser seu aluno de filosofia no ensino mdio. Seu interesse pelo meu caminho motivo de orgulho e gratido.

    A Peter Fry e Marcus Vincius da Cunha, dois seres humanos inteligentes e generosos, que me acolheram e deram grandes contribuies, como Andr Botelho, que alm de tudo me ajudou a costurar o pensamento de modo coerente, desvelando facetas antes no percebidas. Andr foi um encontro feliz, desses que abrem avenidas a percorrer elas estavam ali!, mas antes no as percebamos. Dra. Adlia Miglievich Ribeiro, pelo apoio e estmulo, sempre. Ao Dr. Antnio Oza, professor de cincia poltica, sempre bastante acessvel e amigo, que me

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    apoiou com a possibilidade de publicao dos primeiros textos na Revista Eletrnica Espao Acadmico (www.espacoacademico.com.br), o que muito me motivou.

    Aos professores e s secretrias do Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Sociologia do IFCS/ UFRJ, especialmente Cludia e Denise, de quem recebi muito apoio.

    Meu agradecimento tambm a todos os colegas que participaram do projeto do Laboratrio de Ensino de Cincias Sociais (NEPCS/ UFES), da Associao dos Cientistas Sociais do Esprito Santo e do Centro Acadmico Livre Gilberto Freyre (UFES), pois cada um deles, em graus diferentes, tem sua importncia no debate travado nesta pesquisa; especialmente: Amrico Griffo, Ana Lcia, Ana Paula, Andressa Petersen, Celina, Cludio Mrcio, Everaldo, Ftima, Gabriel, Gilson Leite, Hlio, James Arajo, Jaqueline Sanz, Jos Carlinhos, Laudicia, Leandro, Leonardo Bis, Luana Meriguete, Marcelino Marques, Nelice, Norlen Apelfeler, Odimar Pricles, Otaciano, Paulo Rogrio, Ren, Robson Rangel, Rosilene, Sanderson Bragana, Sandro Jiuliati, Sandro Silva, Stelzimar, Thiago Carminati e Vanessa Alves.

    Tambm sou devedor dos amigos da UFMG, que organizaram e participaram do II Seminrio sobre Licenciatura em Cincias Sociais, especialmente a Profa. Tnia Quintaneiro, o Prof. Juarez (da Faculdade de Educao), o Prof. Hlvio, a Profa. Elisabeth (da Universidade Federal de Uberlndia) e os colegas Fabrcio (um novo velho amigo!), Juliana, Rodrigo, Dani, Carol, Elias, Andr e Tiago (alm de muitos outros). Tambm sou grato aos colegas da APSERJ, UFF e UENF pela participao no V ENCCS, em Niteri, especialmente nas pessoas dos professores Santo Conterato e Adlia Miglievich. Tambm foram muito importantes as discusses que travei com o prof. Dr. Marco Antnio Mattedi, da Universidade Regional de Blumenau, a quem agradeo muito. Tambm agradeo aos professores Nicolas Alexandria, Andr (Colgio Pedro II), Luiz Fernandes de Oliveira, Ricardo Cesar Rocha da Costa e Christina de Rezende Rubim, pelos dilogos, apoio e crticas.

    A todos os que foram meus alunos no ensino mdio, com os quais fui aprendendo a ser professor, especialmente Carla Soares, Saulo, Julio Faro, Marcela Bussinguer e Vincius. A acolhida que recebi de alunos quando professor do ensino mdio foi um incentivo sem igual. Na verdade, acredito que no se deve perder a oportunidade do contato com a escola bsica, ou a ela se deve retornar sempre que se pretende compreender esse universo. A quem nunca teve a felicidade dessa experincia mais parece um lugar comum afirmar que no contato com esses alunos que se produz o aprendizado, sempre coletivo, sempre troca; no entanto, ainda que com ares de clich, no tenho outra coisa em mente seno uma enorme vontade de agradecer, a cada um deles. Com todas essas pessoas e muitas outras, que o tempo e a memria, to falha, omitiram aprendi e pude desenvolver ou discutir muitas idias refletidas nesse trabalho. Sou bastante grato por isso.

    Ao CNPq, pela bolsa de mestrado.

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    para Alberto Tosi, com imensa gratido.

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    No fim de umas trs dcadas, o que pretendamos fazer j no possui sentido prtico e vemos os novos retomar os mesmos caminhos, para refazer o que j foi feito, sem aproveitar o esforo de um avano que, pelo menos, deveria representar um novo ponto de partida e uma reflexo crtica mais madura. In Florestan Fernandes, A sociologia no Brasil contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento,Vozes, p. 214. Permitam-me aqui uma anedota que apresenta um exemplo surpreendente de apercepo sociolgica. Mais ou menos no final da preparao para o Certificado de Etnologia, um condiscpulo que no se destinava etnologia contou-me que lhe sucedera uma coisa estranha. Ele me disse mais ou menos o seguinte: outro dia, num nibus, percebi de repente que no olhava para os meus companheiros de viagem como de costume; alguma coisa havia mudado em minha relao com eles, em minha maneira de me situar com relao a eles. No havia mais eu e os outros; eu era um deles. Durante um longo momento me perguntei pela razo dessa transformao curiosa e repentina. De repente ela me surgiu: era o ensinamento de Mauss (...) O indivduo de ontem sentia-se social, percebera sua personalidade como ligada linguagem, s atitudes, aos gestos, cuja imagem era devolvida pelos vizinhos. Eis o aspecto humano essencial de um ensino de etnologia [ou de cincias sociais, podemos acrescentar]. In Louis Dumont, Homo Hierarchicus o sistema das castas e suas implicaes, Edusp, 1997, p. 55.

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    SUMRIO

    RESUMO/ ABSTRACT 5

    AGRADECIMENTOS 7

    APRESENTAO: UM CAMPO DE ESTUDOS INEXPLORADO 13

    CAPTULO I TEMA E OBJETO DESTA PESQUISA 17

    CAPTULO II O ENSINO DA SOCIOLOGIA NO ENSINO MDIO: UM

    BALANO DA PRODUO ACADMICA

    32

    CAPTULO III OS MANUAIS DIDTICOS DE SOCIOLOGIA PARA O

    ENSINO MDIO

    77

    CONCLUSO 127

    BIBLIOGRAFIA 133

  • 13

    Apresentao Um campo de estudos inexplorado

    Esta pesquisa aborda um tema pouco explorado e que no tem despertado muito interesse por parte da comunidade de cientistas sociais atualmente. A despeito de ter sido amplamente debatido pelos cientistas sociais na primeira metade do sculo XX, no Brasil, aps alguns anos sombra das mudanas socioculturais e polticas por que passamos, o ensino de cincias sociais no nvel mdio de escolaridade como tema de estudos e reflexes retomado por um outro discurso que, ao que parece, no conseguiu mobilizar o interesse da academia nem recuperou ou sistematizou a contribuio anterior.

    Ainda no h um levantamento preciso sobre a intensidade desse debate ocorrido nas dcadas entre 1920 e 1950 e a partir de 1980, porm pode-se inferir sua importncia pelo nmero expressivo de publicaes. O debate sobre a sociologia, enquanto disciplina escolar do ensino mdio, compreendido, aqui, (a) como um conjunto de textos intensamente publicados e discutidos ao longo dos 30, 40 e 50 no Brasil, tanto em revistas da rea de cincia social e educao, como a Sociologia e a Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos, quanto em jornais de grande circulao, como O Estado de So Paulo ou os apresentados em Congressos, Seminrios e Simpsios; como exemplo, podemos citar o texto O ensino de sociologia na escola secundria brasileira, de Florestan Fernandes de 1954, que busca sistematizar as discusses da poca, referir-se a diversas contribuies de expressivos nomes das cincias sociais do perodo e propor uma agenda de debates e pesquisas para a questo; (b) por um conjunto de textos publicados a partir da dcada de 80 em jornais, boletins, Anais de Congressos e Reunies e publicaes1 eventuais das associaes de socilogos ou cientistas sociais, regionais e nacionais, bem como artigos publicados em jornais dirios, como a Folha de So Paulo.

    Alm desses textos, e como parte fundamental da constituio desse discurso sobre ensino de sociologia, tambm devemos considerar os manuais didticos produzidos nessas dcadas bem como programas de curso adotados em momentos diferentes por professores da rea e propostas produzidas no mbito das secretarias de educao de diferentes estados (para os dois perodos compreendidos entre 30 e 50 e 80 e 90)2.

    1 Essas publicaes referem-se ao momento de organizao de uma campanha que vem sendo empreendida desde o incio da dcada 80 cujo objetivo a re-implantao da disciplina nos currculos do ensino mdio brasileiro, considerada no obrigatria segundo a interpretao da atual legislao. 2 Sem falarmos na sobrevivncia da disciplina nos cursos de magistrio, como sociologia da educao: quais foram os contedos trabalhados? Quais os manuais foram publicados e utilizados desde 1941, ano da retirada da sociologia, pela Reforma Capanema, do currculo oficial, porm no dos cursos normais? Desde ento, mesmo aps a Reforma Jarbas Passarinho, de 1971, quando a disciplina tambm deixa de ser obrigatria mesmo nos cursos normais, ao que parece ela foi mantida regularmente na formao dos professores. Porm, no sendo esse o objetivo do presente trabalho, fica somente a sugesto para um possvel estudo futuro.

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    Se compararmos esse debate das primeiras dcadas com a produo atual, observaremos que pouco foi realizado at o momento quanto s reflexes sobre ensino das disciplinas de cincias sociais no ensino mdio. As discusses sobre a sociologia no ensino mdio que no propriamente um campo de estudos ou uma linha de pesquisa institucionalizada, porm mais se aproxima to somente a uma rea de atuao profissional dos socilogos, na viso corrente, ainda que, por isso mesmo, venha despertando o interesse de alguns sobre o que vem sendo feito nesse campo profissional tm sido desenvolvidas ou por artigos em jornais dirios e sindicais ou por dissertaes de mestrado, em mbito acadmico s vezes em papers apresentados em eventos especficos a esse fim, pois o assunto no ganhou espao, ainda, nos eventos cientficos de porte. Toda a produo anterior sobre ensino de cincias sociais simplesmente ignorada no ressurgimento atual, em mbito corporativo, das discusses acerca da sociologia no ensino mdio, quando no completamente desconhecida por grande parte dos cientistas sociais, o que traz como conseqncia bvia o empobrecimento das reflexes.

    Como e porque esse debate realizado por diversos intelectuais, entre os quais estavam destacados nomes das cincias sociais no Brasil, como Pontes de Miranda, Alceu Amoroso Lima, Carneiro Leo, Fernando de Azevedo, Emlio Willems, Antnio Cndido, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Ansio Teixeira, Gilberto Freyre, Delgado de Carvalho, Florestan Fernandes, Donald Pierson, entre outros , foi esquecido, relegado a uma nota de rodap, nas palavras de Giglio (1999)? Dificilmente o tema teria mobilizado tantos cientistas sociais de projeo se no fosse reconhecido como central.

    Os manuais didticos, conforme Simone Meucci (2000, p. 5), representam testemunhos significativos do esforo de constituio do saber sociolgico entre ns e no podem ser desprezados numa investigao que pretende compreender as cincias sociais no Brasil ou, ao menos, compreender que cincia social apresentada no ensino mdio no Brasil.

    Por questo de mtodo e possibilidade de realizao, restringi essa investigao anlise, discusso e interpretao dos livros ou manuais didticos escritos para o ensino mdio ou efetivamente utilizados nesse segmento escolar a partir de meados da dcada de 1980 (quando a sociologia retorna ao currculo de algumas escolas de nvel mdio inicialmente em So Paulo, Braslia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Par). Alm desses manuais, resgato e sistematizo a contribuio de dissertaes que interessam muito de perto ao tema deste trabalho e de alguns textos que vm se tornando clssicos sobre o assunto, escritos por Florestan Fernandes e Luiz de Aguiar Costa Pinto, alm de uma coletnea de papers organizados por Glucia Villas Bas como resultado de pesquisa que coordenou em escolas do Rio de Janeiro, no mbito do Ncleo de Pesquisas de Sociologia da Cultura (UFRJ) para estabelecer em que ponto se encontram os estudos sobre o assunto.

  • 15

    H trs fortes razes para este tipo de anlise, que tornam relevante um estudo sobre programas e livros didticos da disciplina: (a) as cincias sociais no ensino secundrio foram fundamentais para a institucionalizao das cincias sociais no Brasil, como demonstra a dissertao de Simone Meucci (2000); (b) em segundo lugar devemos considerar o poder de disseminao ou difuso de saberes na sociedade por parte do sistema escolar, algo ainda mais importante num campo cientfico fragmentado como o das cincias sociais; (c) por fim, os livros didticos e planos curriculares refletem em alto grau a formao dos cientistas sociais em nvel de graduao ou ps-graduao, sendo parte integrante e no menos importante da sistematizao desse conhecimento cientfico entre ns. So essas as razes que animam esse estudo.

    Nesta dissertao, descrevo e analiso livros especialmente desenvolvidos para o ensino de sociologia no ensino mdio, tanto quanto reflito sobre as reflexes, de carter terico e pedaggico, sobre o ensino de cincias sociais e, especialmente, sobre o ensino de sociologia no ensino mdio a partir das propostas dos prprios manuais da disciplina e da produo acadmica sobre o assunto. Minha expectativa que este esforo se integre ao trabalho que vem h muito sendo desenvolvido com o objetivo de conhecermos melhor o campo cientfico das cincias sociais no Brasil.

    O ensino de sociologia tem reproduzido em alto grau o realizado na graduao em cincias sociais, tem sido formatado segundo os modelos apreendidos na graduao3, ao mesmo tempo em que parece ser excessivamente normativo, o que, em grande medida, responsvel pelo recorte especfico dos conceitos e temticas a serem trabalhados ou, at mesmo, pelo sentido dado a certas idias sociolgicas. A presena desses dois vieses a reproduo de um modelo de ensino acadmico e, ao mesmo tempo, com um carter missionrio nos manuais didticos (e, de resto, nos programas de curso e atuao de boa parte dos professores de ensino mdio) constitui como que minha hiptese principal a ser verificada e que pretende responder seguinte pergunta: qual sociologia se ensina na educao bsica?

    Alm disso, a anlise dos manuais didticos ganha em relevncia se consideramos que eles tambm so resultantes da institucionalizao das cincias sociais no Brasil e de seu insulamento na academia especialmente sob o regime militar de 64 que teve como resultado a enorme distncia que a disciplina tomou do ensino mdio. Sugiro que a pouca elaborao terica sobre ensino de cincias sociais, incluindo-se aqui no somente elaborao sobre contedos, mas tambm sobre sua didtica, objetivos que deve cumprir nesse nvel escolar, seu sentido enquanto disciplina dirigida a adolescentes do ensino mdio e inserida numa grade curricular ao lado de outras de carter humanstico, alm de seu (possvel) significado poltico,

    3 Um desdobramento desse estudo, a partir desse ponto, deveria analisar as licenciaturas em cincias sociais, o que foge ao escopo desta dissertao. A esse respeito ver Moraes, 2003.

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    tem como conseqncia a no legitimidade social da disciplina. Da sua intermitncia, instabilidade e fragmentao no sistema de ensino.

    No primeiro captulo apresento as questes que orientam o estudo por meio das quais vou especificando e definindo o campo de interesse desse estudo , uma breve discusso sobre a categoria dos manuais didticos a fim de delimitar meu objeto, bem como descrevo os critrios que me levaram escolha dos manuais de sociologia investigados nesta dissertao. No captulo dois as produes acadmicas atuais sobre sociologia no ensino mdio ou que tenham relevncia para o tema sero sistematizadas no sentido de se estabelecer um quadro geral de conhecimentos da rea, constituindo uma apresentao do estado da arte; a inteno discernirmos o que j se sabe sobre a disciplina. No captulo trs, apresento, descrevo e analiso a estrutura e as principais idias de cada um dos manuais selecionados para estudo nesta dissertao. Neste ltimo captulo, o leitor encontrar uma anlise descritiva e interpretao dos manuais didticos selecionados, especialmente no que diz respeito s preocupaes levantadas at o momento, como as que encontramos na produo acadmica reunida no captulo dois. Concluo com algumas questes relacionadas ao tema da sociologia no ensino mdio ou do ensino de cincias sociais que surgiram ao longo do processo de investigao sem, no entanto, merecerem pesquisa mais profunda j que no constituram objeto da presente dissertao. Tais reflexes finais, guisa de concluso, fornecem antes pistas para novas pesquisas e tocam o problema da relativa indiferena com que vem sendo tratada a questo do ensino no interior do campo, bem como a questo relevante das licenciaturas em cincias sociais.

  • 17

    Captulo 1 Tema e objeto desta pesquisa

    Esta pesquisa, de carter bibliogrfico, pretende fazer uma reflexo sobre o sentido da

    sociologia enquanto disciplina do nvel mdio de ensino a partir de uma anlise dos livros didticos de sociologia para o ensino mdio que vm sendo publicados a partir da dcada de 80.

    O problema principal desse estudo, portanto, o que diz respeito aos livros existentes no mercado, que podem demonstrar muito do que se concebe, em termos tericos e metodolgicos, sobre o ensino de sociologia nessa etapa da educao bsica. A concepo dos objetivos do ensino de sociologia, seu sentido no ensino mdio, a seleo e o arranjo dos contedos, bem como as propostas didticas para a sala de aula denotam uma compreenso especfica que deve ser investigada e que no se restringe aos livros didticos, mas se reproduz nos planos de curso e estratgias de ensino-aprendizagem adotadas pelos professores da rea.

    A partir da anlise da produo voltada ao ensino mdio, essa dissertao discutir o carter que vem sendo dado disciplina e pretende responder pergunta: qual sociologia se ensina na educao bsica? Mas, para isso, divido o objeto de minha pesquisa em trs blocos de questes intimamente relacionadas entre si:

    a) Os objetivos De que modo foi definida a sociologia e sua contribuio? Quais objetivos para a

    disciplina sociologia so propostos nos livros didticos? Existe uma concepo clara acerca do sentido da sociologia enquanto disciplina no ensino mdio? H uma idia clara e explcita, para usar um jargo atual, sobre quais competncias e habilidades devem ser promovidas no educando com o ensino de sociologia? Qual a relao entre as propostas dos livros didticos com o que prope os Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (1998)? Que lugar ocupa a sociologia no desenho curricular proposto em relao s outras disciplinas mais tradicionais do sistema escolar? Qual a relao estabelecida, se existe, entre a sociologia e outras disciplinas consagradas em nosso campo cultural como legtimas para a explicao da vida social?

    b) Os contedos Quais categorias sociolgicas so apresentadas como fundamentais para a explicao/

    compreenso da sociedade nos livros didticos? A que linhas do pensamento sociolgico se filiam? Que leitura dos clssicos transparece nos livros didticos? Quais autores so definidos por clssicos e mobilizados para a construo de um conjunto de conhecimentos sociolgicos? Qual a viso de sociedade apresentada para os educandos? Qual a viso de Brasil apresentada? Como reas relativamente distintas das cincias sociais sociologia, antropologia e cincia poltica so articuladas para a apresentao de um corpo sistemtico de conhecimentos? Como conceitos retirados de paradigmas distintos so articulados? Que temticas e conceitos

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    principais so mobilizados para a construo de um contedo sociolgico? Qual a posio dos autores desses livros em relao aos autores, conceitos e paradigmas citados ou trabalhados como representantes do saber sociolgico?

    c) A didtica Quais as propostas metodolgicas desenvolvidas? As propostas didticas esto

    relacionadas a que concepo de educao? H uma idia clara e explcita sobre quais competncias e habilidades devem ser promovidas no educando com o ensino de sociologia? Qual a relao entre as propostas didticas dos manuais com o que prope os Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (1998)?

    Para responder a essas perguntas, analiso os manuais buscando identificar comparativamente e no conjunto das obras: os autores citados, ensinados ou mobilizados; os conceitos fundamentais utilizados em explicaes especficas de fenmenos particulares ou tomados como explicativos da sociedade, em geral, ou do Brasil, em particular; os temas ou problemas tratados nos livros o que significa analisar a importncia que lhes so atribudas em detrimento de outros ou at mesmo a viso de sua necessidade, a aceitao de seu poder organizador da vida social, tanto como os pressupostos implcitos em sua eleio; a hierarquizao entre as narrativas sociolgicas articulao entre autores, correntes ou tradies das cincias sociais, e mesmo entre reas distintas do campo; as contribuies de reas correlatas presentes no ensino mdio relao de hierarquizao, negao ou sobreposio entre disciplinas ou entre antropologia, sociologia e cincia poltica; os objetivos educacionais ou pedaggicos explcitos ou no; o posicionamento dos autores dos manuais perante os conceitos, correntes sociolgicas ou temas tratados no livro; e a presena ou no de uma elaborao didtica, um pensamento explcito sobre ensino de cincias sociais, e a justificao quanto s opes tericas e metodolgicas a respeito do ensino-aprendizagem.

    Os livros que esto em anlise podem nos revelar muita coisa a respeito da sociologia de hoje, e parte disso se d pelo que eles no dizem, isto , pelo que pressuposto em seus textos. De fato, h atualmente uma tendncia geral no campo das cincias sociais para no se pensar as questes especificamente relacionadas ao ensino da disciplina na educao bsica, comparativamente ao empreendido nos primeiros anos de institucionalizao do campo no Brasil. De modo relativamente amplo e parafraseando Florestan Fernandes (1954, pp. 105-106), as questes levantadas acima se referem:

    (1) explicitao de seus objetivos educacionais, ao que eu relaciono o problema do sentido da disciplina, que considero problema mais amplo, pois que engloba a questo dos objetivos e pensar o sentido da disciplina pensar a natureza de seu conhecimento, suas especificidades, o que promove (ou deveria promover) nos indivduos em termos de aprendizagem, suas relaes com a posio poltica do professor etc.;

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    (2) justificao de seus contedos, pois no basta arrolarmos, na construo de um programa de curso, uma srie de temas ou conceitos tpicos o que, em ltima anlise, poder somente nos fornecer uma listinha de palavras a ensinar. Entre inmeros problemas relativos justificao de contedos temos: a categoria dos denominados clssicos da disciplina, a atual agenda poltica e cientfica das cincias sociais, a regionalizao dos contedos e a diversidade de paradigmas, linhagens ou escolas tericas. Portanto, este item tambm se relaciona a uma reflexo sobre a natureza do conhecimento cientfico em cincias sociais;

    (3) s melhores opes de tratamento didtico e aqui entrariam todas as questes referentes organizao disciplinar, traduo e transposio dos saberes cientficos em saberes escolares, a utilizao de pesquisa enquanto metodologia de ensino, tanto de outras estratgias didtico-pedaggicas etc.;

    (4) funo e lugar da disciplina num quadro mais amplo de problemas, no estritamente internos, como os anteriores, que poderiam ser descritos como: a formao dos professores, a participao de cientistas sociais nas definies de polticas pblicas voltadas educao (sua participao em rgos de governo, secretarias de educao, institutos de pesquisa e avaliao educacional), a participao das cincias sociais (com que peso e valor) numa grade curricular, sua presena ou no em vestibulares, sua insero ou no no ensino fundamental e com qual objetivo etc.

    Portanto, sempre que se encontrar, neste texto, a expresso questes de ensino, estarei me referindo aos problemas elaborados anteriormente. Em sntese, me oriento pelas perguntas elaboradas e referentes aos objetivos, contedos e didtica para elaborao das quais me beneficiei da dissertao de Simone Meucci (2000) e pelos aspectos levantados como relevantes na anlise da sociologia na educao bsica. Entretanto, no pretendo responder a cada uma das perguntas levantadas, nem mesmo realizo um estudo sobre todos os problemas relativos ao tema da sociologia no ensino mdio; me limito anlise dos manuais selecionados tendo as perguntas descritas anteriormente como orientadoras dessa investigao.

    Os aspectos e as questes, elaborados com intuito de estabelecer o que seria importante analisar num manual didtico de sociologia para o ensino mdio, servem principalmente como um roteiro a orientar a leitura, descrio e anlise das obras. Portanto, a anlise empreendida aqui no pretende ser exaustiva, mas, tendo como horizonte as preocupaes e as questes elaboradas, produzir uma interpretao de conjunto dos manuais de sociologia utilizados no ensino mdio. O estudo bibliogrfico e minha anlise, interpretativa.

    Creio ser necessrio ressaltar que no se deve confundir as questes referentes ao ensino da cincia social como sendo de outra jurisdio disciplinar. E isso por duas razes: estou analisando livros didticos de sociologia no com o olhar de um pedagogo, porm esperando compreender o que esses livros e o modo como so construdos podem nos

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    ensinar sobre o campo cientfico do qual somos integrantes4. Se recorro a uma discusso sobre ensino da disciplina por ter constatado a ausncia dessa discusso em contraste com o que se fez em outros momentos das cincias sociais no Brasil, como j foi amplamente discutido em outros trabalhos, ou mesmo como se pratica regularmente em outros campos disciplinares, como na fsica ou na histria, que realizam intensamente a discusso, interna ao campo, sobre ensino de suas respectivas disciplinas (ver, a exemplo, Arruda & Marin Antuna: 2001; Carvalho & Vannucchi: 1996; Fonseca: 2000; Studart: 2001; Laville: 1999).

    O caso que tem se criticado o envolvimento de cientistas sociais, enquanto cientistas sociais, com as questes que dizem respeito ao pedaggico, como se quando um socilogo discute o ensino de sua disciplina ele deixasse de ser socilogo para fazer outra coisa, menos sociologia. Discutir isso em fruns cientficos, dissertaes de mestrado ou teses no raro tido como o reconhecimento da incompetncia para a atuao na rea. Mas justamente essa viso que se coloca em questo nesta dissertao e, portanto, ela no tem validade crtica sobre o presente trabalho. a crtica que est sob crtica neste caso. Penetrar num debate sobre ensino da disciplina, sem ser normativo, mas buscando compreender o que se fez ou se pensou sobre o assunto, procedimento legtimo se pretendemos compreender os manuais didticos da disciplina. Trata-se de conhecer qual sociologia se apresenta nesses manuais, porm compreender a sociologia de um manual didtico exige, obrigatoriamente, que se considere o livro pelo que ele , um manual didtico. 1.1. Definindo o objeto: a categoria dos manuais didticos Inicialmente pretendo delimitar meu objeto de estudo e, para tanto, recorro resenha

    que Antnio Augusto Gomes Batista realizou dos estudos sobre livros didticos, em Um objeto varivel e instvel: textos, impressos e livros didticos, (in Leitura, Histria e Histria da Leitura, Mrcia Abreu (org), 2002, pp. 529-575). Batista observa inicialmente que o livro didtico objeto de pouco prestgio social, que pouca ateno tem recebido, tanto na rea da educao, quanto em outras como sociologia e histria do livro brasileiro. Ainda que tenha havido intensa pesquisa sobre a ideologia do livro didtico durante as dcadas de 1970 e

    4 Ademais, a tentativa de delimitao de procedimentos cientficos legtimos e de objetos disciplinares bastante questionvel. Tambm no me deterei em discusses sobre o carter interdisciplinar das cincias sociais. Para uma discusso sobre a interdisciplinaridade em cincias sociais, ver Elisa Reis (1991). Debater sobre ensino de cincias sociais necessariamente implica numa crtica dos discursos elaborados sobre a questo, o que no significa uma atitude de interveno em detrimento da pesquisa cientfica, at porque os limites sobre uma almejada neutralidade cientfica e o posicionamento do pesquisador so sempre imprecisos.

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    1980, a produo atual parece assistemtica e fragmentada, reservada aos estudos da rea de metodologia de ensino. E mesmo com a renovao do interesse na dcada de 1990, especialmente a partir dos estudos de sociologia e histria da leitura no Brasil, o livro didtico permaneceria como uma fonte interessante, mas no como objeto legtimo de pesquisa (Batista, 2002: 530).

    No somente o desprestgio social interessa a Batista, mas tambm as caractersticas que delimitam o objeto, um manual didtico, so bastante problemticas e fonte de estudos relevantes. Desse modo, o autor inicia seu trabalho afirmando sobre o manual didtico que

    trata-se de um livro efmero, que se desatualiza com muita velocidade. Raramente relido; pouco se retorna a ele para buscar dados ou informaes e, por isso, poucas vezes conservado nas prateleiras de bibliotecas pessoais ou de instituies: com pequena autonomia em relao ao contexto da sala de aula e sucesso de graus, ciclos, bimestres e unidades escolares, sua utilizao est indissoluvelmente ligada aos intervalos escolares, sua utilizao e ocupao dos papis de professor e aluno. Voltado para o mercado escolar, destina-se a um pblico em geral infantil; produzido em grandes tiragens, em encadernaes, na maior parte das vezes, de pouca qualidade, deteriora-se rapidamente e boa parte de sua circulao se realiza fora do espao das grandes livrarias e bibliotecas. No so poucos, portanto, os indicadores do desprestgio social dos livros didticos. Livro menor dentre os maiores, de autores e no de escritores, objeto de interesse de colecionadores mas no de biblifilos, manipulado por usurios mas no por leitores, o pressuposto parece ser o de que seu desprestgio, por contaminao, desprestigia tambm aqueles que dele se ocupam, os pesquisadores neles includos (Batista, 2002: 529). A conceituao de livro didtico no fornece, primeira vista, muitas dificuldades,

    afinal eles seriam os livros ou impressos utilizados pela escola, no mbito do ensino de uma disciplina, normalmente organizado segundo um programa de estudos estabelecidos em currculo oficial ou no , normalmente adquiridos no incio do perodo letivo e utilizados por alunos e professores medida que avana o ano escolar; por fim, se buscarmos definies de um dicionrio qualquer seguramente encontraremos para o vocbulo manual algo como compndio ou livro escolar, sendo que compndio tambm significa uma sntese doutrinria, e para a palavra didtico algo como relativo escola ou ao ensino; ou seja, um manual didtico seria, segundo essas informaes preliminares, um livro escolar que realiza uma sntese do que h de principal e de mais atual num determinado campo, voltado para a formao numa disciplina especfica.

    Entretanto, tal categoria omite inmeros problemas: conforme Batista (2002), e sem desejar esgotar a contribuio de seu estudo que no objeto desta dissertao , a categoria

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    livro didtico ou manual didtico estaria associada a inmeros objetos portadores dos impressos que circulam e so manipulados pela escola para sua atividadefim. Isso porque os didticos apresentam-se nas mais variadas formas no necessariamente como livros , nem sempre enquanto impressos editoriais muitas vezes so materiais compilados ou produzidos pelos prprios professores numa espcie de impressa escolar, na forma de apostilas, por exemplo , por vezes tais didticos nem mesmo so impressos como os e-books ou os softwares educativos , nem sempre foram considerados destinados escola como a literatura ficcional, os impressos jornalsticos ou a produo manuscrita, mesmo de antes do surgimento da imprensa, como Elementos de Gemetra, de Euclides, que teria circulado desde o sculo 300 a. C. como um texto escolar como sustentam alguns pesquisadores e, como uma ltima objeo simplicidade que normalmente dispensamos categoria dos didticos, Batista (2002) acrescenta a pergunta: didticos so objetos empregados na escola ou a ela destinados?

    O autor estabelece algumas reas em que se poderia problematizar a categoria: (1) os suportes materiais dos denominados didticos, (2) o processo de reproduo, (3) o processo de produo e (4) o modo de apropriao por parte de leitores. Quanto a esse ltimo aspecto recorre a Alain Chopin (Les manuels scolaires: historie et actualit, Paris: Hachette ducation, 1992, citado por Batista, 2002) que, a partir de pesquisa sobre a produo editorial francesa destinada escola, elabora quatro categorias classificatrias sobre o objeto em questo: (1) os manuais, um objeto material que apresenta ao aluno um programa de formao, (2) as edies clssicas, que agrupa textos integrais ou excertos de obras consideradas clssicas, porm destinadas ao uso escolar e, no raro, comentadas, (3) as obras de referncia, antologias, atlas, dicionrios, compndios de matrias, documentos iconogrficos ou histricos, dirios ou reunio de cartas, enciclopdias e tratados, (4) as obras paraescolares, que seriam os nossos paradidticos ou obras que teriam a funo de complementar o processo de ensino-aprendizagem.

    Ainda que tal classificao tambm seja problemtica em uma srie de aspectos, elencados por Batista (2002), o mesmo sugere a possibilidade de a aplicarmos ao contexto brasileiro e conclui que a categoria didticos possuiu diversos sentidos ao longo de dcadas devido justamente s transformaes nas funes de textos, impressos e outros suportes materiais destinados ou efetivamente utilizados em contexto escolar. E a despeito do pequeno valor social dado ao livro didtico, afirma que isso no justificaria a pouca ateno que lhe dispensada, pois, conforme vrios estudos, os livros didticos seja em que suporte os consideremos tm sido bem mais que mediadores entre alunos e saberes e prticas institucionalizadas, ou mesmo mediadores entre alunos e professores no contexto de sala de aula, j que tambm tm se revelado como a principal fonte de formao do professor; tais estudos, citados por Batista (2002) so, entre outros, os de Santuza Amorin da Silva, Prticas e possibilidades de leitura na escola, (Dissertao de mestrado em Educao. Belo Horizonte:

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    Faculdade de Educao da UFMG, 1997); Ciro F. de Castro B. de Melo, Senhores da histria: a construo do Brasil em dois manuais didticos de Histria na segunda metade do sculo XIX (Tese de doutorado em Educao. So Paulo: Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 1997); e MEC, Guia de livros didticos; 1 a 4 sries (Braslia: Ministrio da Educao e Desporto, Ceale, Cenpec, 1997). Da a necessidade de se conhecer melhor esse objeto varivel e de difcil apreenso que constitui o principal instrumento de escolarizao e letramento de grande parte da sociedade brasileira, alm de principal referncia para um expressivo nmero de docentes.

    Alm dos estudos voltados especificamente compreenso dos livros didticos, devemos considerar, ainda, a contribuio de Thomas Kuhn no que diz respeito ao lugar desse objeto num campo cientfico. Para o historiador da cincia, esta se define em grande medida pelas narrativas apresentadas em seus manuais: narrativas sobre sua histria e origem (com o relato dos feitos de seus maiores heris), alm de teorias, conceitos e mtodos apresentados com valor de verdade, a despeito da intensa competio da qual saram vitoriosos. fato que Thomas Kuhn se refere principalmente aos manuais destinados formao cientfica os utilizados no ensino superior, portanto, no os handbooks , mas, por outro lado, podemos ampliar a sua idia original na seguinte afirmao: o processo de construo e institucionalizao de uma cincia se d, em boa medida, pelo processo de sua insero no sistema escolar oficial, e pela produo dos seus manuais, de carter pedaggico.

    Para Thomas Kuhn (2001: 175), os manuais so veculos pedaggicos destinados a perpetuar a cincia normal, no so apenas fonte de informaes sobre os progressos de uma dada cincia: so, antes de tudo, exemplos da consolidao de uma prtica cientfica, a elaborao da identidade de um campo de saber; portanto, os manuais fornecem aos praticantes de uma cincia os contornos bsicos, seu paradigma ou, como prefiro, sua ideologia de fundo. So nesses manuais cientficos que esto inscritas e relatadas as realizaes atuais da cincia, mais que em qualquer outro documento, pois eles expem o corpo da teoria aceita, ilustram muitas de (ou todas as) suas aplicaes com observaes e experincias exemplares. Uma vez que tais livros se tornaram populares no comeo do sculo XIX (e mesmo mais recentemente, como no caso das cincias amadurecidas h pouco), muitos dos clssicos famosos da cincia desempenham uma funo similar (2001: 29-30).

    O que os manuais permitem aos cientistas, hoje, justamente no ter que re-inventar o seu campo desde os fundamentos a cada nova publicao, dispensando-os das discusses mais propriamente filosficas. Os manuais, bem como o processo de educao dos novos cientistas de um modo geral, indicam a priori os princpios (e valores) metodolgicos, as questes consideradas legtimas, os problemas a serem resolvidos bem como os padres das solues que devem ser encontradas. essa imagem da cincia, essa ideologia da prtica cientfica, e

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    os conhecimentos tidos como mais ou menos consensuais que nos interessa conhecer atravs dos manuais didticos, compreendidos a um s tempo enquanto instrumentos pedaggicos e parte da produo cientfica. Nas palavras de Kuhn (2001: 19): mesmo os prprios cientistas tm haurido essa imagem [da cincia como a compreendemos hoje] principalmente no estudo das realizaes cientficas acabadas, tal como esto registradas nos clssicos e, mais recentemente, nos manuais que cada nova gerao utiliza para aprender seu ofcio. Contudo, o objetivo de tais livros inevitavelmente persuasivo e pedaggico (grifos meus). A despeito das controvrsias sobre suas idias, ainda permanece vlida a noo de exemplaridade dos manuais que significativamente, mesmo aps os trabalhos de Kuhn, ainda permanecem como objetos menos nobres da pesquisa cientfica.

    A esse respeito, Melo (1999: 184) apresenta evidncias bem interessantes ao demonstrar que o aprendizado nas cincias sociais no difere substancialmente do que se realiza no campo das cincias naturais: em ambos os casos esse aprendizado se d pelos modelos clssicos, seja por meio dos livros e autores considerados fundamentais, para as cincias sociais, seja pelos manuais didticos e escolares, no caso das cincias fsicas (Melo, 1999: 184). A despeito de certo exagero dessa afirmao, j que os manuais vm desempenhando um papel importante nas cincias sociais, tal situao se reproduz no ensino mdio, onde os professores tendem a utilizar os manuais simultaneamente a fragmentos de textos dos clssicos ou outros, considerados de carter exemplar.

    Devemos observar que os manuais tm sido vistos como prprios da dimenso da prtica e dos afazeres meramente cotidianos da atividade acadmica profissional. De modo algum so considerados como produo intelectual com algum significado terico relevante. Constituem o esforo necessrio, at mesmo til, da comunidade cientfica, que no promove nenhum ganho acadmico e profissional para quem a ele se dedica. A idia j bem desenvolvida por Simone Meucci (2000) a respeito da relevncia do estudo dos manuais didticos no com interesse puramente pedaggico, porm como produtos da prtica cientfica institucionalizada se contrape viso estilizada como descrita acima. Para essa outra linha de argumentao, os livros no possuem somente uma inteno didtica, mas deveriam ser tomados como sistematizaes do que consensual (ou est prximo disso) em um dado campo cientfico.

    E se h um controle efetivo sobre a literatura considerada legtima e vlida no campo das cincias sociais por parte de suas instituies acadmicas, especialmente os programas de ps-graduao, uma jurisdio sobre as referncias utilizadas, nas palavras de Melo (1999: 185), ento a reproduo de um saber acadmico autorizado dever ser evidenciado nos livros didticos (bem como nos programas de curso e propostas curriculares) dos professores do ensino mdio, e isso por duas razes: primeiro porque esses professores, em nmero

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    significativo, so formados por esses mesmos programas ou por docentes formados nesses programas, no caso das graduaes. de se supor, portanto, que ocorre com o desempenho do professor de ensino mdio o mesmo que com seus trabalhos acadmicos, a reproduo do saber autorizado pela academia, isto , por seus professores no ensino superior (Melo, 1999: 194)..

    Reproduo, naturalmente, legitimada por uma srie de ritos e processos tpicos da formao acadmica, tanto quanto pelos manuais que orientaro os professores em sua carreira docente, ou no incio de sua carreira docente; portanto, razovel admitirmos que essa dinmica vale igualmente para a docncia no ensino mdio, onde os manuais produzem, se no um consenso especfico em torno de questes tericas, ao menos um sentido de integrao disciplinar e um discurso exemplar, assimilvel ao professor iniciante. Percebe-se aqui a inteno ampla dos manuais, no destinados somente funo didtica no trabalho com alunos de ensino mdio, o que j indicao suficiente de sua funo formativa.

    No deve ser motivo de espanto que os manuais didticos da rea, utilizados efetivamente por professores do ensino mdio, sejam, antes de tudo, manuais de formao do prprio professor da disciplina, lhe fornecendo a orientao a seguir para a construo de um programa de curso e, no raro, os contedos a serem ministrados. Neste ltimo caso, isso se deve no a uma formao terica precria, porm ao papel integrador que os manuais exercem sobre um campo disciplinar fragmentado, como o das cincias sociais. Perante uma formao acadmica fragmentada, os manuais exercem o sedutor apelo de um discurso aparentemente integrado e coerente; porm, como sugere Melo em Quem explica o Brasil (1999), a cincia social brasileira fortemente auto-referida, havendo um repertrio bibliogrfico consensual que, acrescentamos, tambm se reflete nos manuais de sociologia para o ensino mdio, como se ver no terceiro captulo deste trabalho.

    Como manual didtico, portanto, considero essa ampla gama de objetos variveis e instveis (Batista, 2002; Munakata, 2002), que realizam diversas funes e constituem parte significativa da atividade acadmica (Kuhn, 2001; Melo, 1999), e que integram o processo de institucionalizao de um campo cientfico (Meucci, 2000). Entretanto, a ambigidade e limite operacional de uma definio como essa evidente. Da que, para fins de pesquisa, estabeleci como manual didtico de sociologia para o ensino mdio os livros originalmente destinados escola para serem manuseados por alunos, efetivamente utilizados em aula por professores de sociologia no ensino mdio, que apresentam o carter de compndios de sociologia geral ou de cincias sociais e que esto includos nos catlogos de didticos de suas editoras.

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    1.2. Os manuais selecionados e seus autores A Tabela 1 oferece uma relao dos didticos de sociologia disponveis atualmente no

    mercado. Os livros de Benjamim Lago, Nelson Tomazi, Paulo Meksenas, Prsio Santos de Oliveira e Maria Luiza Silveira Teles foram pensados para e so utilizados no ensino mdio. J os de lvaro de Vita e de Carlos Benedito Martins, ou foram escritos originalmente para o ensino superior, ou atenderam a outros objetivos como divulgao cientfica a um pblico leigo, mas tm sido normalmente empregados no ensino mdio; no caso do livro de lvaro de Vita, a editora o indica para esse segmento de ensino. O livro de Prsio Santos de Oliveira, que se encontra j na 24 edio, 6 impresso, ter nova edio revisada e atualizada em setembro ou outubro de 2004, segundo informao do prprio autor. Os demais livros da tabela so voltados ao ensino superior.

    TABELA 1

    Ttulo Autor Referncias

    Curso de Sociologia e Poltica (ensino mdio)

    Benjamin Marcos E. do Lago Petrpolis: Editora Vozes, 4 edio, 2002 [1 edio de 1996].

    Fundamentos da Sociologia Geral

    Reinaldo Dias Editora Alnea, 2002.

    Iniciao Sociologia (ensino mdio)

    Nelson Dacio Tomazi (org), Marcos Cesar Alvarez, Maria Jos de Rezende, Pedro Roberto Ferreira, Regina Ada Crespo e Ricardo de Jesus Silveira.

    So Paulo: Atual Editora, 1999 [1 edio de 1993].

    Introduo Sociologia (ensino mdio)

    Prsio Santos de Oliveira So Paulo: Editora tica, 2000, 20 edio, primeira impresso [1a. edio de 1988].

    Introduo Sociologia Alfredo Guilherme Galliano Editora Harbra, 1986. Sociologia Geral Eva Maria Lakatos So Paulo: Editora Atlas, 1999 Introduo Sociologia Eva Maria Lakatos So Paulo: Editora Atlas, 1997 Introduo Sociologia Sebastio Vila Nova So Paulo: Editora Atlas, 2000, 5.

    Edio. Introduo Sociologia (ensino mdio)

    Fernando Bastos de vila Editora Agir, 1996, 8. edio.

    Introduo Sociologia: complexidade, interdisciplinaridade e desigualdade social

    Pedro Demo So Paulo: Editora Atlas, 2002.

    Sociologia: uma introduo crtica

    Pedro Demo So Paulo: Editora Atlas, 2002.

    O que Sociologia Carlos Benedito Martins So Paulo: Editora Brasiliense,

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    Coleo Primeiros Passos, n. 57, 1996, 40. edio, 1. impresso [1. edio de 1982].

    Aprendendo Sociologia: a paixo de conhecer a vida (ensino mdio)

    Paulo Meksenas So Paulo : Loyola, 1985, 1 edio.

    Sociologia (ensino mdio)

    Paulo Meksenas So Paulo: Editora Cortez, 1999, 2 edio, 5 reimpresso [1 edio de 1990].

    Sociologia introduo cincia da sociedade

    Maria Cristina Castilho Costa So Paulo: Editora Moderna, 1997, 2 edio [1 edio de 1997].

    Sociologia da sociedade brasileira

    lvaro de Vita So Paulo: Editora tica, 1989.

    Sociologia Geral (ensino mdio)

    Celso Antnio Pinheiro de Castro

    So Paulo: Editora Atlas, 2000.

    Sociologia para jovens iniciao Sociologia (ensino mdio)

    Maria Luiza Silveira Teles Petrpolis: Editora Vozes, 2001, 8 edio [1 edio de 1993].

    Sociologia o conhecimento humano para jovens do ensino tcnico-profissionalizante (ensino mdio)

    Luiz Fernandes de Oliveira & Ricardo Cesar Rocha da Costa

    Rio de Janeiro: IODS Instituto de Observao, Desenvolvimento Sustentvel e Controle de Qualidade de Vida So Gonalo do Amarante, 2004.

    Quanto aos livros de Celso Antnio Pinheiro de Castro e Fernando Bastos de vila,

    ainda que sejam indicados para o ensino mdio ou tenham sido pensados originalmente para esse segmento de ensino, a sua estrutura semelhante aos manuais escritos para o ensino superior; apesar disso, o livro de Celso Castro indicado para o ensino mdio pela Secretaria de Educao de So Paulo e o livro de Fernando de vila indicado pelas secretarias de educao de So Paulo e Paran.

    A despeito dos outros livros listados serem utilizados prioritariamente no ensino superior, como se sabe, muitos professores do ensino mdio utilizam-se de partes desses livros, mesmo os escritos ou indicados explicitamente para o ensino superior, na elaborao do material didtico do ensino mdio a exemplo dos manuais de Maria Cristina Castilho Costa e Eva Maria Lakatos, razo pela qual tambm constam da tabela.

    Esta pesquisa contou com informaes de professores do ensino mdio e consultas regulares pela internet aos sites de vinte e nove editoras, entre 2002 e 2003. Foram elas: Editora do Brasil, Cortez, Vozes, Moderna, tica, Saraiva, Atlas, Brasiliense, Cia. das Letras, Globo, Abril Cultural, ArtMed, DP&A, Manole, Artes Mdicas, Scipione, FTD, Livros Tcnicos e Cientficos, Martins Fontes, Zahar Editor, Agir, Mdulo, Dimenso, Editora Nacional IBEP, Atual, Francisco Alves, Harbra, Alnea e Record. Podemos observar que sete grandes editoras publicam manuais de sociologia (Atlas, tica, Atual, Cortez, Vozes, Brasiliense e Moderna) em

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    conjunto com outras trs editoras de pequeno porte (Alnea, Agir e Harbra). Porm, didticos direcionados especificamente para o ensino mdio so publicados apenas por quatro entre as grandes editoras: Cortez, Atual, tica e Vozes, sendo que essa ltima publica dois ttulos. Poderamos incluir ainda a Editora Atlas se considerarmos o livro Sociologia Geral, de Celso Antnio Pinheiro de Castro. As demais editoras, alm de manuais para o ensino superior no caso dos listados na tabela, possuem outros ttulos de sociologia ou cincias sociais em geral e, no que se refere categoria didticos, ttulos voltados sociologia da educao, normalmente indicados e utilizados nos cursos de bacharelado em pedagogia; entre outras, encontramos nesta situao as editoras FTD, Atual, Cortez, Atlas, DP&A.

    Os manuais escolhidos para anlise foram:

    TTULO DO LIVRO AUTOR REFERNCIAS

    Introduo Sociologia Prsio Santos de Oliveira

    So Paulo: Editora tica, 2000, 20 edio, primeira impresso [1a. edio de 1988], 256 pginas, mais 32 pg do manual do professor, que integra o manual.

    Sociologia Paulo Meksenas So Paulo: Editora Cortez, 1999, 2 edio, 5 reimpresso [1 edio de 1990], 150 pginas.

    Iniciao Sociologia Nelson Dacio Tomazi So Paulo: Atual Editora, 1999 [1 edio de 1993], 250 pginas.

    Curso de Sociologia e Poltica

    Benjamin Marcos Lago Petrpolis: Editora Vozes, 4 edio, 2002 [1 edio de 1996], 222 pginas.

    Justifica-se a escolha desses quatros manuais pelas seguintes razes: selecionei os

    manuais exclusivamente indicados para o ou efetivamente utilizados no ensino mdio chegando a um total de nove livros (onze, se incluirmos os livros de Carlos Benedito Martins e lvaro de Vita). Os manuais mais conhecidos, divulgados, citados ou indicados por professores do ensino mdio so principalmente trs: o volume organizado por Nelson Dacio Tomazi, o livro de Paulo Meksenas (da Editora Cortez) e, principalmente, o de Prsio Santos de Oliveira o primeiro a ser publicado desde a dcada de 1980. Esses trs ltimos, acrescentando-se o manual de Benjamim Marcos E. do Lago, so manuais de grandes editoras (com distribuio nacional) e constam de seus catlogos de didticos.

    O critrio dos manuais com maiores tiragens editoriais, por seu carter aparentemente mais objetivo, poderia ter sido utilizado como principal modo de seleo dos livros, mas sua relevncia questionvel se considerarmos que os professores do ensino mdio normalmente

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    no adotam um nico livro em seus planos de curso e no costumam indicar aos seus alunos o estudo sistemtico de um nico manual. Essa a razo pela qual no adotei esse critrio, porm no creio que isso tenha afetado a legitimidade das escolhas. Isso se levarmos em conta que, dos manuais existentes mesmo acrescentando-se os livros da lvaro de Vita e Carlos Benedito Martins , a amostra desta dissertao corresponde a um tero do conjunto total de obras, abrangendo os livros de ampla utilizao por parte de professores do ensino mdio. Desse modo, justifica-se a representatividade do presente estudo.

    Quanto aos autores dos manuais selecionados, apurei que: Nelson Dacio Tomazi socilogo, professor aposentado do Departamento de Cincias

    Sociais da Universidade Estadual de Londrina UEL . Graduado em Cincias Sociais, em 1972 pela UFPR. Mestre em Histria, em 1989 pela UNESP Assis, e Doutor em Histria pela UFPR em 1997. autor dos livros: Sociologia da Educao (So Paulo: Atual Editora, 1997), Norte do Paran: Histria e fantasmagorias (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000) e Coordenador/Autor do livro Iniciao Sociologia (2 ed. So Paulo: Atual, 2000). Foi professor da UFPR, na graduao e Ps-Graduao, na linha de pesquisa Sociologia no ensino mdio. Organizou o manual Iniciao Sociologia, para o qual escreveu alguns captulos. Sobre os co-autores do manual, sabemos que: Marcos Cesar Alvarez Mestre em Sociologia pela USP e professor de Teoria Sociolgica da UNESP (MarliaSP), Maria Jos de Rezende Mestre em Sociologia pela PUCSP e professora de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UELPR), Pedro Roberto Ferreira Mestre em Cincia Poltica pela PUCSP e professor de Cincia Poltica da Universidade de Londrina (UELPR), Regina Ada Crespo Mestre em Teoria Literria pela UnicampSP e professora de Sociologia da UNESP (MarliaSP) e Ricardo de Jesus Silveira Mestre em Cincias Polticas e Sociais pela PUCSP e professor de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UELPR).

    Prsio Santos de Oliveira foi professor do ensino mdio por vrios anos, no perodo entre 1972 e fins da dcada de 1980. Graduou-se em Cincias Sociais pela USP, em 1969. Mestre em Sociologia pela mesma instituio, em 1976. Professor Titular de Sociologia da Faculdade de Registro, em So Paulo, porm licenciado. Atualmente diretor do Colgio Valribeira, no Vale do Ribeira, em So Paulo.

    Paulo Meksenas socilogo pela USP (1980-1984), Mestre em Educao pela USP (1989-1992), com a dissertao A produo do livro didtico e sua relao com o autor; editor e Estado, (FEUSP, 1992). Doutor em Educao pela USP (1998-2001) e professor adjunto do Departamento de Estudos Especializados em Educao do Centro de Cincia da Educao da Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou: Aprendendo Sociologia (Loyola, 1985), Sociologia da Educao (Loyola, 1988), Sociologia (Cortez, 1991) manual selecionado para anlise nesta dissertao ,Cidadania, poder e comunicao (Cortez, 2002 sua tese de

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    doutorado) e Pesquisa Social e Ao Pedaggica (Loyola, 2002). Foi professor de Sociologia, OSPB e Histria no ensino mdio (ainda era denominado 2 grau) no perodo de 1982 a 1990.

    Benjamim Marcos E. do Lago socilogo, escritor, poeta e professor de Sociologia do Colgio Pedro II, no Rio de Janeiro. Foi pesquisador da Fundao Getlio Vargas, da Fundao MUDES, do SESC e do SESI. Lecionou em cursos do ensino superior em ps-graduaes. autor de Dinmica social: como as sociedades se transformam, pela Editora Vozes, Curso de Sociologia e Poltica, livro includo nesta pesquisa, e Anlise sociolgica do relacionamento humano, publicado com recursos prprios.

    Desse modo, pode-se observar que dos autores de manuais didticos, trs tiveram larga experincia com o ensino mdio. Quanto a Nelson Tomazi, se no foi professor do ensino mdio, coordenou a linha de pesquisa sobre sociologia no ensino mdio do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPR, tendo tido bastante contato com professores do ensino mdio a partir de cursos e oficinas sobre ensino de sociologia que realiza em diversos estados do Brasil.

    Um ponto comum que aproxima todos os autores o fato de terem tido contato com a educao bsica e terem escrito/ organizado manuais didticos em resposta carncia dos mesmos no mercado como afirmou Prsio Santos de Oliveira em entrevista ao autor desta dissertao. Entretanto, como se ver na concluso deste trabalho, o fato de terem experincia com o ensino mdio ou secundrio no foi suficiente para evitar a reproduo de modelos prprios da graduao, a exemplo do ensino fortemente conceitual voltado aprendizagem dos clssicos da teoria sociolgica, como Marx, Durkheim e Weber. Isso no significa, por outro lado, que esses manuais no consistiram em contribuies importantes para a re-introduo da disciplina, a partir de 1980.

    Outro aspecto de relevncia o fato de no integrarem instituies de ps-graduao em cincias sociais, como docentes e pesquisadores acadmicos exceo de Nelson Tomazi e Paulo Meksenas. Sobre esse ltimo, no entanto, deve-se observar que sua insero na academia se deu via educao e no pela rea da cincia social, strictu sensu. A relevncia do fato deve-se ao carter da relao dos autores com o ensino da sociologia no ensino mdio, que no tem origem num interesse acadmico um interesse em ensino de sociologia, enquanto campo de pesquisa , porm numa insero antes profissional, dado a identificao de uma lacuna importante, como a falta de didticos para a disciplina como observou Prsio Santos de Oliveira, em entrevista, os livros com os quais se trabalhava, no incio da dcada de 80 eram tradues de manuais europeus ou norte-americanos. Mesmo Nelson Dacio Tomazi, que manteve uma linha de pesquisa sobre ensino de sociologia no ensino mdio na Universidade Federal do Paran, deve-se observar que sua formao ps-graduada tambm se deu em outro campo acadmico e que a sua atuao junto Federao

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    Nacional dos Socilogos do Brasil FNSB, integrando sua diretoria, sinaliza um outro tipo de interesse sobre o assunto, ancorado nas lutas corporativas e na inteno de interveno junto aos gestores de poltica educacional para a re-introduo da disciplina, campanha que a FNSB liderou a partir da dcada de 90.

    Por fim, todos os autores concluram sua formao, como graduados, entre a primeira metade da dcada de 1970 e a primeira de 1980. Justamente o perodo em que se retomou a campanha pela re-insero da disciplina na educao bsica, na esteira da crtica ao regime militar. Isso bastante significativo, pois refora o argumento que sustentei anteriormente, que o interesse dos autores pela disciplina no tem origem num projeto de pesquisa acadmica, mas em suas inseres profissionais e militantes.

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    Captulo 2

    O ensino da sociologia no ensino mdio: um balano da produo acadmica Este captulo constitui um esforo para a sistematizao da pesquisa acadmica sobre a

    sociologia no ensino mdio, com o objetivo de apresentar o conhecimento produzido e acumulado at o momento, bem como organizar uma viso geral da rea. Ao final do captulo estabeleo as lacunas dos estudos na rea e a possvel contribuio desta dissertao.

    Existem quatro dissertaes de mestrado que interessam diretamente ao debate sobre a sociologia no ensino mdio. exceo de A institucionalizao da sociologia no Brasil: os primeiros manuais e cursos, trabalho de Simone Meucci (2000), que estudou os primeiros manuais de sociologia para os cursos normais e secundrios que surgiram no Brasil, mas com o interesse voltado para o processo de institucionalizao da sociologia enquanto cincia em nossa sociedade, outras trs dissertaes tomaram como objetivo analisar o que os socilogos vem pensando e propondo como ou fazendo da sociologia enquanto disciplina do ensino secundrio ou mdio. Essas dissertaes so A sociologia na escola secundria. Uma questo das cincias sociais no Brasil anos 40 e 50, de Adriano Carneiro Giglio (1999), A sociologia no ensino mdio: o que pensam os professores da rede pblica do distrito federal, de Mrio Bispo dos Santos (2003), e ...E com a palavra: os alunos. Estudo das representaes sociais dos alunos da rede pblica do Distrito Federal sobre a sociologia no ensino mdio, de Erlando da Silva Rses (2004).

    Alm das dissertaes, existem outros estudos, como o desenvolvido sob a orientao da professora Glucia Villas Bas (1998) (IFCS/ UFRJ), A importncia de dizer no e outros ensaios sobre a recepo da Sociologia em escolas cariocas, pesquisa desenvolvida como parte das atividades do Ncleo de Pesquisas de Sociologia da Cultura (Laboratrio de Pesquisa Social/ IFCS/ UFRJ), cujo objetivo foi conhecer de que modo a sociologia repercute no horizonte ideolgico e cultural dos alunos das escolas secundrias do Rio de Janeiro.

    Naturalmente, outros estudos como os textos de Florestan Fernandes, O ensino de sociologia na escola secundria brasileira (1954), Costa Pinto, O ensino de sociologia na escola secundria (1947), e Fernando de Azevedo, A sociologia no Brasil o ensino e as pesquisas sociolgicas no Brasil (1954), entre outros trabalhos, sero utilizados no decorrer da exposio sempre que tiverem algum interesse direto para a construo de uma viso geral do tema.

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    2.1. Os primeiros anos da disciplina O trabalho A institucionalizao da sociologia no Brasil: primeiros manuais e cursos,

    de Simone Meucci (2000), esclarece que a institucionalizao das cincias sociais no Brasil no se deu quando de seu ingresso na academia atravs dos primeiros cursos regulares de formao especfica em cincias sociais, mas pela sua presena no antigo curso normal e no curso secundrio, ainda nas primeiras dcadas do sculo XX; e no somente pela sua incluso no sistema de ensino; ao contrrio, parte importante dessa histria se desenrolou no esforo de alguns intelectuais para publicar obras de sistematizao do conhecimento sociolgico ou traduzir importantes textos de autores estrangeiros (Simone Meucci, A institucionalizao da sociologia no Brasil: primeiros manuais e cursos, 2000).

    Em outras palavras, o processo de institucionalizao das cincias sociais em nosso pas encontrou guarida, em sua primeira fase, no ensino secundrio antes que na academia (Meucci, 2000; Adriano Giglio, A sociologia na Escola Secundria: uma questo das Cincias no Brasil - anos 40 e 50, 1999), at porque naquele momento no existiam cursos regulares de cincias sociais nas instituies superiores5. E se a inexistncia desses cursos universitrios, por um lado, a condio objetiva que favoreceu a sociologia enquanto disciplina do ensino mdio, por outro, no condio suficiente para explicar o fenmeno, como se ver adiante. A inexistncia de um sistema universitrio nos obriga a relativizar a importncia atribuda insero da disciplina no secundrio como algo excepcional, todavia, no justifica o desinteresse atual pelo que se fez na poca, no secundrio.

    H algo importante a se ressaltar aqui: foi nas escolas normais e de preparao para o ingresso em cursos superiores que surgiram os primeiros esforos de sistematizao do pensamento sociolgico em nossa sociedade por meio de livros destinados ao ensino da nova disciplina seus manuais didticos, portanto e, ainda, a partir da dcada de 1930, de artigos

    5 A rigor, no existiam universidades. Sabe-se que aps a transferncia da Coroa Portuguesa para o Brasil , em 1808, foram inauguradas imediatamente a Academia Militar, a Escola Nacional de Belas Artes e duas faculdades de medicina, uma no Rio de Janeiro e outra na Bahia, de onde surgiram algumas obras de filosofia publicadas no Brasil no sculo XIX. Somente em 1827 que so criadas as faculdades de direito de Olinda posteriormente transferida para o Recife e de So Paulo. Assim compe-se o nosso sistema de ensino superior at a terceira dcada do sculo XX. E ainda assim, tanto a USP, como a Escola Livre de Sociologia e Poltica ou a agregao de cursos na Universidade do Rio de Janeiro, eventos que se deram na primeira metade da dcada de 1930, podem ser considerados casos excepcionais ou localizados e no representam o que seria o incio de uma poltica de fomento educao superior. Mesmo com a expanso do ensino superior a partir dos anos 30, somente aps 1964 que o Brasil vai conhecer um processo de democratizao do ensino superior e de incentivo pesquisa, alm de possuir uma poltica voltada criao de universidades e programas de ps-graduao, na linha da modernizao industrializante do regime militar. No entanto, a produo em cincias sociais j existia desde antes. Ver, a esse respeito: Meucci, op. cit., 2000, e Mello, Quem explica o Brasil, 1999.

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    que buscavam refletir as experincias de ensino acumuladas. Produo que em muitos aspectos preenchia a lacuna de pesquisas de maior porte sobre a realidade brasileira.

    Conforme Meucci (2000, p. 5), os estudos voltados institucionalizao da sociologia tm privilegiado diversas dimenses desse processo, porm ainda no investigaram atentamente a produo escrita destinada ao ensino como um seu elemento fundamental.

    No entanto, sabe-se que a cincia social conheceu um perodo de intensa produo intelectual anterior dcada de 1930 e que mesmo antes de sua institucionalizao em programas de ps-graduao, a partir de meados do sculo XX, j se pode falar num campo da cincia social, cuja prtica, se no estava associada a um sistema acadmico, era muito mais prxima da poltica de Estado e participante do debate pblico que a que se pratica hoje; bem como era intensa a movimentao de intelectuais em torno dos Museus de Histria Natural como o Museu Nacional, criado em torno de 1808, por exemplo (Melo, 1999). Segundo diversos estudos, portanto, dever-se-ia falar em processos plurais de institucionalizao, ou, ao menos, num processo de institucionalizao muito mais complexo que somente a insero da cincia social na academia.

    Tais estudos privilegiaram o ingresso das cincias sociais nas universidades e, posteriormente, nos programas de ps-graduao, chegando mesmo a qualificar o perodo anterior, justamente o das cincias sociais no secundrio6, de sua fase pr-cientfica (Fernando de Azevedo, A sociologia no Brasil - o ensino e as pesquisas sociolgicas no Brasil, in Dicionrio de sociologia, Globo, 1969), tal qual uma pr-histria da disciplina. A partir da dissertao de Meucci (2000), caberia uma reviso desse argumento comum sobre a histria da sociologia no Brasil, desenvolvido, entre outros, por Fernando de Azevedo e

    6 O ensino secundrio e mesmo o normal , no Brasil da poca de nossos primeiros manuais no era um ensino destinado ao povo. Foi para as elites que se dirigiu primeiramente a sociologia enquanto disciplina curricular, um estado de coisas que perdurou durante toda a fase de presena da disciplina nas escolas. Sobre isso, ainda que tratando da Reforma Capanema que retirou a sociologia do secundrio , podemos encontrar em Schwartzman et. al. (1984): importante marcar a distino profunda que ento se fazia entre o ensino secundrio e outras formas de ensino mdio. O ensino secundrio deveria ter um contedo essencialmente humanstico, estaria sujeito a procedimentos bastante rgidos de controle de qualidade, e era o nico que dava acesso universidade. Aos alunos que no conseguissem passar pelos exames de admisso para o ensino secundrio, restaria a possibilidade de ingressar no ensino industrial, agrcola ou comercial, que deveria prepar-los para a vida do trabalho. Na realidade, s o ensino comercial, dentre estes, adquiriu maior extenso. Era um ensino obviamente de segunda classe, sobre o qual o ministrio colocava poucas exigncias, e nem sequer previa uma qualificao universitria e sistema de concursos pblicos para seus professores, como deveria ocorrer com o ensino secundrio. A Lei Orgnica do Ensino Secundrio de 1942 manteria este entendimento restritivo do que era o ensino secundrio, e proibia o uso das denominaes "ginsio" e "colgio" aos demais estabelecimentos de nvel mdio. Portanto, a diferenciao da escola voltada para as elites da voltada para as massas, para os novos trabalhadores urbanos que se constituam, no foi fator de deciso sobre a retirada da disciplina, j que ela nunca esteve verdadeiramente disposio das classes populares.

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    Florestan Fernandes7 e que compreende a disciplina como tendo percorrido trs fases principais: uma pr-cientfica e anterior institucionalizao acadmica e mesmo ao ensino da sociologia nos sistemas oficiais de escolarizao, que se estende da segunda metade do sculo XIX at 1928; uma que corresponde ao perodo de introduo do ensino dessa matria em escolas do pas, de 1928 a 1935; e, outra, pautada por rigorosos padres cientficos de pesquisa e ampla produo acadmica ou, da associao do ensino e da pesquisa, nas atividades universitrias, que cobre os anos de 1935 aos dias atuais (Azevedo, 1969).

    Ora, significativo o fato de Fernando de Azevedo ressaltar e classificar como um perodo da histria da sociologia justamente o de sua insero nos sistema de ensino secundrio, a partir de 1928, segundo o autor apesar dos planos de sua incluso desde fins do sculo XIX, especialmente com a Reforma Benjamin Constant (Mrio Bispo, A sociologia no Ensino Mdio: o que pensam os professores de Sociologia da Rede Pblica de Ensino do Distrito Federal, 2002). Apesar de imprecises de datas e ambigidades acerca de outras informaes histricas algo aparentemente muito comum nesses estudos sobre a histria da disciplina no ensino mdio Fernando de Azevedo faz um recorte da histria da disciplina sociolgica muito peculiar: privilegia os anos em que esta esteve presente no secundrio como um perodo a ser destacado.

    Mas sabemos que toda periodizao sempre, em algum grau, arbitrria. E, nesse caso em particular, se ela nos revela a importncia do ensino da disciplina para aqueles socilogos do incio do sculo XX, por outro nos revela tambm a inteno de elevar-se a sociologia condio de cincia com reconhecimento social. Na verdade, no apenas se creditava disciplina a condio de cincia fundamental, na esteira do pensamento comtiano, capacitada para o conhecimento seguro da realidade social e fornecedora de instrumentos de interveno que contribussem para a harmonia e o desenvolvimento da sociedade; mais que isso: a considerar as relaes de parte da inteligncia brasileira das primeiras dcadas do sculo XX com o pragmatismo de Dewey e a forte influncia, nos anos 20 e 30, da Educao Nova no Brasil, capitaneada por Ansio Teixeira e o prprio Fernando de Azevedo, compreensvel que a sociologia seja alada condio de arte de salvar rapidamente o Brasil, nos dizeres de Mrio de Andrade (apud Joo Cruz Costa, Augusto Comte e as origens do positivismo, 1969, So Paulo: Editora Nacional, 2 edio [1 ed. De 1957], p. 139. Citado por Simone Meucci, 2000, p. 44). H um forte componente missionrio nesse perodo, como relata Meucci:

    Ao procurar identificar as expectativas forjadas acerca da contribuio do conhecimento sociolgico neste conjunto de manuais possvel constatar que a

    7 Parece-me correto afirmar que devido projeo desses socilogos a eles se deve debitar a consolidao dessa imagem questionvel. Mas que no se subestime o grau de consenso que ainda h sobre a matria atualmente.

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    disciplina sociolgica parecia, a um s tempo, corresponder (1) aos ideais de expanso da cultura cientfica, (2) aos ideais de civilidade e patriotismo, (3) aos padres de cultura erudita que, apesar das transformaes no meio intelectual brasileiro, ainda aspiravam os membros da elite candidatos ao ingresso na carreira acadmica (2000, p. 56)8. muito difcil precisar qual o peso que se deu sobre esses dois aspectos ou essas duas

    percepes a respeito da sociologia, j que o ensino da disciplina era, de fato, algo de suma importncia e merecedor de constantes reflexes por parte desses intelectuais, como demonstra a ampla produo escrita sobre o ensino de cincias sociais; mas a sociologia enquanto cincia acadmica, potencialmente aplicvel na construo de um projeto nacional, tambm era valorizada, definida tacitamente como a meta a se alcanar. Diante desse quadro razovel, ao menos por agora, aceitarmos as duas posies como co-existentes: a sociologia era pensada como destinada universidade por sua prpria natureza e condio de cincia, e uma cincia muito particular j que central no desenvolvimento das sociedades; por outro lado, a sociologia estaria umbilicalmente ligada educao bsica devido sua finalidade ltima, qual seja, capacitar os indivduos vida moderna, ser a conscincia da vida social.

    Talvez, ainda, essa percepo de uma fase pr-cientfica da sociologia seja reflexo do tempo no escrito de Fernando de Azevedo, elaborado pela primeira vez no incio da dcada de 1950, portanto cerca de vinte anos aps o perodo considerado e num universo acadmico bem diferente, onde a sociologia j ocupava um lugar nos centros universitrios do pas. Da posio em que se expressava como catedrtico da USP , era natural que o autor re-interpretasse a histria segundo o lugar que ocupava.

    Entretanto, como observa Glucia Villas Bas, nem todos se dedicam ao debate sobre a origem da disciplina, Costa Pinto nem entra na disputa ao escrever em 1947 sua tese de livre docncia de Sociologia (...), [tambm] no interessa a Florestan Fernandes (1955), que apresenta comunicao sobre a relevncia do ensino da matria nas escolas (...) (Villas Bas, 1998, p. 6). A questo da periodizao da disciplina no participa, desse modo, da reflexo empreendida por todos os atores. Tanto Costa Pinto como Fernandes se ocupam com mais nfase das justificativas para a volta da Sociologia aos currculos escolares.

    Villas Bas ressalta o fato de que desde o final do sculo XIX vm-se discutindo a incluso da disciplina e pergunta que aura envolve o saber sociolgico capaz de ao longo de um sculo manter vivo o interesse de ensin-lo nas escolas? (Villas Bas, 1998, p. 6). Ora,

    8 Ver, ainda, na mesma dissertao, pp. 57-59.

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    essa pergunta coloca em discusso as prprias justificativas, elaboradas por diversos atores, sobre a incluso da sociologia na educao bsica. E acrescenta que

    Seria a meu ver ingnuo pensar que a incluso da disciplina em estabelecimentos do ensino secundrio de diferentes estados brasileiros se deve unicamente a uma estratgia que visa mercado de trabalho para os numerosos estudantes que saem dos cursos superiores de Cincias Sociais. Durante mais de dez anos a disciplina foi ministrada sem que houvesse cursos de Cincias Sociais nas faculdades de Filosofia. Mas o argumento no satisfatrio. Para que uma disciplina seja includa no currculo das escolas preciso que satisfaa certas metas e ideais voltados para a formao dos jovens. Porque sociologia e no uma outra disciplina qualquer? Porque no problemas da Democracia Brasileira, a exemplo de escolas norte-americanas que ministram a disciplina Problemas da Democracia Norte-Americana? (Villas Bas, 1998, p. 6). V-se, a partir desse debate que o ensino de sociologia no ensino mdio (ou secundrio)

    est associado dinmica da cincia social no Brasil, enquanto rea cientfica especializada e campo de produo e atuao de parte dos intelectuais brasileiros, pois como sugere Villas Bas, explicaes sobre a histria da disciplina que nos remetem s turbulncias polticas de nossa histria ou a uma estratgia corporativa visando a ampliao de mercado de trabalho so simplificadoras e problemticas. razovel perguntar, nesse contexto, se a intermitncia da disciplina na educao bsica se explica por essa associao entre o papel previsto para a disciplina no ensino mdio e as venturas e desventuras da cincia social na histria intelectual brasileira.

    Ao que parece, a histria das cincias sociais brasileiras, especialmente no ensino mdio, decantada no duplo sentido da palavra, separada de seus aspectos considerados residuais e celebrada em hino de louvor cincia. Entre os aspectos residuais estariam suas possibilidades de insero no ensino mdio. Por outro lado, como sugere Villas Bas, se pretendemos compreender a insistncia na incluso da disciplina, mais que o fato dela nunca ter figurado de modo estvel nos currculos escolares, cabe verificar as justificativas que vm sendo elaboradas acerca da disciplina, bem como suas relaes com os ideais educacionais construdos em momentos distintos da histria brasileira.

    2.2. Os primeiros manuais O objetivo do trabalho de Simone Meucci a anlise e interpretao dos primeiros

    manuais didticos publicados no Brasil exceo dos estrangeiros tendo como pressuposto que eles tambm expressam em boa medida o processo de institucionalizao das cincias

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    sociais no Brasil; uma espcie de sociologia dos manuais de sociologia, nas palavras da prpria autora.

    Esses manuais no apenas descreviam as teorias sociolgicas que iam se desenhando na Europa e nos EUA, nem mesmo serviam unicamente inteno de divulgao das idias sociolgicas, porm faziam parte da produo de nossos intelectuais, alm de contribuir para a legitimao de um novo campo de saber pois, segundo a autora, os livros cumprem, como bem lembrou Thomas Kuhn em A estrutura das revolues cientficas (2001), uma funo pedaggica e uma funo persuasiva, pois devem, ao mesmo tempo, tornar compreensveis e legitimar os conhecimentos e os procedimentos fundamentais para a formao dos primeiros portadores da nova cincia (Meucci, 2000, pp. 5-6).

    Os livros didticos definiam um conjunto de questes e temas objeto de investigao, um conjunto de conceitos apropriados para responder s questes singulares do novo campo de conhecimento, um conjunto de procedimentos cientficos considerados vlidos, um conjunto de procedimentos adequados formao dos profissionais da nova rea e um sistema de produo, difuso e legitimao dos trabalhos desenvolvidos no campo.

    Seguindo a argumentao de Meucci, entre 1931 e 1945, cerca de duas dezenas de livros didticos ou manuais introdutrios foram publicados no Brasil diga-se, de passagem, uma produo comparvel a que vemo