a sociologia da educação de bourdieu

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    15Educao & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002

    * Professor assistente da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais(FAE/UFMG). E-mail: [email protected]

    ** Professora adjunta da FAE/UFMG. E-mail: [email protected]

    A SOCIOLOGIA DA EDUCAO DE PIERRE BOURDIEU:LIMITES E CONTRIBUIES

    CLUDIO MARQUES MARTINS NOGUEIRA *

    MARIA ALICE NOGUEIRA **

    RESUMO: O artigo destaca as contribuies e aponta alguns limites daSociologia da Educao de Pierre Bourdieu. Na primeira parte, soanalisadas as reflexes do autor sobre a relao entre herana familiar(sobretudo, cultural) e desempenho escolar. Na segunda parte, so dis-cutidas suas teses sobre o papel da escola na reproduo e legitimaodas desigualdades sociais.

    Palavras-chave: Sociologia da Educao. Bourdieu. Famlia. Escola.

    PIERREBOURDIEUSSOCIOLOGYOFEDUCATION:

    LIMITSANDCONTRIBUTIONS

    ABSTRACT: This paper emphasizes the limits and contributions ofPierre Bourdieus Sociology of Education. In the first part, it discussesBourdieus reflections on the relationship between family inheritance(specially the cultural one) and school performance. In the second part,Bourdieus theses about the role of school in the reproduction andlegitimation of social inequalities are analized.

    Key-words: Sociology of Education. Bourdieu. Family. School.

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    difcil fazer um balano equilibrado das contribuies e doslimites da obra de Bourdieu no campo da Sociologia da Educao.A prpria grandiosidade do empreendimento bourdieusianoparece conduzir a posies radicais, a aceitaes ou rejeies

    precipitadas, a avaliaes apaixonadas que pouco contribuem para umaefetiva compreenso da obra do autor.Bourdieu teve o mrito de formular, a partir dos anos 60, uma

    resposta original, abrangente e bem fundamentada, terica eempiricamente, para o problema das desigualdades escolares. Essa respostatornou-se um marco na histria, no apenas da Sociologia da Educao,mas do pensamento e da prtica educacional em todo o mundo. Atmeados do sculo XX, predominava nas Cincias Sociais e mesmo no

    senso-comum uma viso extremamente otimista, de inspiraofuncionalista, que atribua escolarizao um papel central no duploprocesso de superao do atraso econmico, do autoritarismo e dosprivilgios adscritos, associados s sociedades tradicionais, e de construode uma nova sociedade, justa (meritocrtica), moderna (centrada na razoe nos conhecimentos cientficos) e democrtica (fundamentada naautonomia individual). Supunha-se que por meio da escola pblica egratuita seria resolvido o problema do acesso educao e, assim,garantida, em princpio, a igualdade de oportunidades entre todos oscidados. Os indivduos competiriam dentro do sistema de ensino, emcondies iguais, e aqueles que se destacassem por seus dons individuaisseriam levados, por uma questo de justia, a avanar em suas carreirasescolares e, posteriormente, a ocupar as posies superiores na hierarquiasocial. A escola seria, nessa perspectiva, uma instituio neutra, quedifundiria um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seusalunos com base em critrios racionais.

    O que ocorre nos anos 60 uma crise profunda dessa concepode escola e uma reinterpretao radical do papel dos sistemas de ensinona sociedade. Abandona-se o otimismo das dcadas anteriores em favorde uma postura bem mais pessimista. Pelo menos dois movimentosprincipais parecem estar associados a essa transformao do olhar sobrea educao. Em primeiro lugar, tem-se, a partir do final dos anos 50, adivulgao de uma srie de grandes pesquisas quantitativas patrocinadaspelos governos ingls, americano e francs (Aritmtica Poltica inglesa,Relatrio Coleman EUA, Estudos do INED Frana) que, em

    resumo, mostraram, de forma clara, o peso da origem social sobre osdestinos escolares. Embora os resultados dessas pesquisas no tenhamconduzido imediatamente rejeio da perspectiva funcionalista visto

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    que foram interpretados como indicadores de deficincias passageirasdo sistema de ensino que poderiam ser superadas com maioresinvestimentos contriburam para minar, a mdio prazo, a confianana to propalada igualdade de oportunidades diante da escola. A partir

    deles, tornou-se imperativo reconhecer que o desempenho escolar nodependia, to simplesmente, dos dons individuais, mas da origem socialdos alunos (classe, etnia, sexo, local de moradia, entre outros). Emsegundo lugar, a mudana no olhar sobre a educao nos anos 60 estrelacionada a certos efeitos inesperados da massificao do ensino. Assim,deve-se considerar o progressivo sentimento de frustrao dosestudantes, particularmente os franceses, com o carter autoritrio eelitista do sistema educacional e com o baixo retorno social e econmicoauferido pelos certificados escolares no mercado de trabalho. Os anos60 marcam a chegada ao ensino secundrio e universidade da primeiragerao beneficiada pela forte expanso do sistema educacional no ps-guerra. Essa gerao, arregimentada em setores mais amplos do que osdas tradicionais elites escolarizadas, v em parte, pela desvalorizaodos ttulos escolares que acompanhou a massificao do ensino frustradas suas expectativas de mobilidade social atravs da escola. Adecepo dessa gerao enganada, como diz Bourdieu, alimentou umacrtica feroz ao sistema educacional e contribuiu para a ecloso do amplo

    movimento de contestao social de 1968.O que Bourdieu prope nos anos 60, diante desse acmulo de

    anomalias do paradigma funcionalista para usar os termos de Kuhn uma verdadeira revoluo cientfica. Bourdieu oferece-nos um novomodo de interpretao da escola e da educao que, pelo menos numprimeiro momento, pareceu ser capaz de explicar tudo o que a perspectivaanterior no conseguia. Os dados que apontam a forte relao entredesempenho escolar e origem social e que, em ltima instncia, negavamo paradigma funcionalista, transformam-se nos elementos de sustentaoda nova teoria. A frustrao dos jovens das camadas mdias e popularesdiante das falsas promessas do sistema de ensino converte-se em umaevidncia a mais que corrobora as novas teses propostas por Bourdieu.Onde se via igualdade de oportunidades, meritocracia, justia social,Bourdieu passa a ver reproduo e legitimao das desigualdades sociais.A educao, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribudode instncia transformadora e democratizadora das sociedades e passa a

    ser vista como uma das principais instituies por meio da qual se mantme se legitimam os privilgios sociais. Trata-se, portanto, de uma inversototal de perspectiva. Bourdieu oferece um novo quadro terico para a

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    anlise da educao, dentro do qual os dados estatsticos acumulados apartir dos anos 50 e a crise de confiana no sistema de ensino vivenciadanos anos 60 ganham uma nova interpretao.

    impressionante o sucesso alcanado pela Sociologia da Educao

    de Bourdieu. Passados quase quarenta anos da publicao deLes hritiers primeira grande obra do autor dedicada educao , sua sociologiacontinua viva e inspirando novos trabalhos sobre os mais diversos aspectosdo fenmeno educacional. Ela constitui, ainda hoje, se no o maisimportante, certamente um dos mais importantes paradigmas utilizadosna interpretao sociolgica da educao.

    O reconhecimento da fora e do alcance da Sociologia da Educaode Bourdieu no pode nos impedir, no entanto, de constatar suas

    limitaes. Um dos objetivos deste artigo justamente o de contribuirpara uma anlise mais equilibrada da obra de Bourdieu. O primeiropasso nesse sentido certamente o de sublinhar as contribuies doautor. No se pode passar s crticas sem antes reconhecer os mritos. Opasso seguinte, no entanto, consiste, justamente, em indicar certaslimitaes da teoria.

    O artigo est dividido em duas partes principais. Na primeirasero consideradas as anlises e reflexes de Bourdieu relacionadas ao

    tema da constituio diferenciada dos atores segundo sua origem sociale familiar e as repercusses dessa formao diferenciada para suas atitudese comportamentos escolares. Uma das teses centrais da Sociologia daEducao de Bourdieu a de que os alunos no so indivduos abstratosque competem em condies relativamente igualitrias na escola, masatores socialmente constitudos que trazem, em larga medida incorporada,uma bagagem social e cultural diferenciada e mais ou menos rentvel nomercado escolar. O grau variado de sucesso alcanado pelos alunos aolongo de seus percursos escolares no poderia ser explicado por seusdons pessoais relacionados sua constituio biolgica ou psicolgicaparticular , mas por sua origem social, que os colocaria em condiesmais ou menos favorveis diante das exigncias escolares.

    A segunda parte do artigo refere-se s teses de Bourdieu sobre aescola e seu papel na reproduo das desigualdades sociais. A escola, naperspectiva dele, no seria uma instituio imparcial que, simplesmente,seleciona os mais talentosos a partir de critrios objetivos. Bourdieuquestiona frontalmente a neutralidade da escola e do conhecimentoescolar, argumentando que o que essa instituio representa e cobra dosalunos so, basicamente, os gostos, as crenas, as posturas e os valoresdos grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura

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    universal. A escola teria, assim, um papel ativo ao definir seu currculo,seus mtodos de ensino e suas formas de avaliao no processo socialde reproduo das desigualdades sociais. Mais do que isso, ela cumpririao papel fundamental de legitimao dessas desigualdades, ao dissimular

    as bases sociais destas, convertendo-as em diferenas acadmicas ecognitivas, relacionadas aos mritos e dons individuais.

    A herana familiar e suas implicaes escolares

    A especificidade da Sociologia da Educao de Bourdieu e apeculiaridade de sua discusso sobre a questo da herana cultural familiartornam-se mais claras quando se consideram certas preocupaes tericasmais amplas que caracterizam o conjunto da obra do autor.

    A sociologia de Bourdieu como um todo est marcada pela buscade superao de um dilema clssico do pensamento sociolgico, aqueleque se define pela oposio entre subjetivismo e objetivismo. Por umlado, Bourdieu aponta as insuficincias e os riscos das abordagens que serestringem experincia imediata do ator individual, ou seja, que seatm de modo exclusivo ou preponderante ao universo das repre-sentaes, preferncias, escolhas e aes individuais. Essas abordagens,rotuladas por ele como subjetivistas, so criticadas no apenas por seuescopo limitado, isto , pelo fato de no considerarem as condiesobjetivas que explicariam o curso da experincia prtica subjetiva, mas,sobretudo, por contriburem para uma concepo ilusria do mundosocial que atribuiria aos sujeitos excessiva autonomia e conscincia naconduo de suas aes e interaes.

    Em contraposio ao subjetivismo, Bourdieu afirma, de modoradical, o carter socialmente condicionado das atitudes e comportamentosindividuais. O indivduo, em Bourdieu, um ator socialmenteconfigurado em seus mnimos detalhes. Os gostos mais ntimos, aspreferncias, as aptides, as posturas corporais, a entonao de voz, asaspiraes relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmenteconstitudo.

    Se, por um lado, Bourdieu se afasta, ento, do subjetivismo, poroutro, ele critica, igualmente, as abordagens estruturalistas, definidaspor ele como objetivistas, que descreveriam a experincia subjetiva comodiretamente subordinada s relaes objetivas (normalmente, de naturezalingstica ou socioeconmica). Segundo ele, faltaria a essas abordagensuma teoria da ao capaz de explicar os mecanismos ou processos demediao envolvidos na passagem da estrutura social para a ao

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    individual. Reconhecer-se-ia as propriedades estruturantes da estruturasem, no entanto, analisar os processos de estruturao, de operao daestrutura no interior das prticas sociais.

    Como forma de distanciamento em relao ao objetivismo,

    Bourdieu afirma, ento, em primeiro lugar, que a ao das estruturassociais sobre o comportamento individual se d preponderantementede dentro para fora e no o inverso. A partir de sua formao inicial emum ambiente social e familiar que corresponde a uma posio especficana estrutura social, os indivduos incorporariam um conjunto dedisposies para a ao tpica dessa posio (um habitus familiar ou declasse) e que passaria a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais variados ambientes de ao. As normas e constrangimentos que

    caracterizam uma determinada posio na estrutura social nooperariam, assim, como entidades reificadas que agem diretamente, acada momento, de fora para dentro, sobre o comportamento individual.Ao contrrio, a estrutura social se perpetuaria porque os prpriosindivduos tenderiam a atualiz-la ao agir de acordo com o conjuntode disposies tpico da posio estrutural na qual eles foramsocializados. Bourdieu observa, ainda, e este um segundo pontoimportante em que ele pretende se afastar do objetivismo, que essesistema de disposies incorporado pelo sujeito no o conduz em suasaes de modo mecnico. Essas disposies no seriam normas rgidase detalhadas de ao, mas princpios de orientao que precisariam seradaptados pelo sujeito s variadas circunstncias de ao. Ter-se-ia,assim, uma relao dinmica, no previamente determinada, entre ascondies estruturais originais nas quais foi constitudo o sistema dedisposies do indivduo e que tendem a se perpetuar atravs deste eas condies normalmente, em parte modificadas nas quais essasdisposies seriam aplicadas. Em poucas palavras, a estrutura social

    conduziria as aes individuais e tenderia a se reproduzir atravs delas,mas esse processo no seria rgido, direto ou mecnico.

    Transpondo essa discusso terica para o campo da Sociologia daEducao, preciso reconhecer o esforo de Bourdieu para evitar tantoo objetivismo quanto o subjetivismo na anlise dos fenmenoseducacionais. O ator da Sociologia da Educao de Bourdieu no nemo indivduo isolado, consciente, reflexivo, nem o sujeito determinado,mecanicamente submetido s condies objetivas em que ele age. Em

    primeiro lugar, contrapondo-se ao subjetivismo, Bourdieu nega, da formamais radical possvel, o carter autnomo do sujeito individual. Cadaindivduo passa a ser caracterizado por uma bagagem socialmente

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    herdada. Essa bagagem inclui, por um lado, certos componentesobjetivos, externos ao indivduo, e que podem ser postos a servio dosucesso escolar. Fazem parte dessa primeira categoria o capital econmico,tomado em termos dos bens e servios a que ele d acesso, o capital

    social, definido como o conjunto de relacionamentos sociais influentesmantidos pela famlia, alm do capital cultural institucionalizado,formado basicamente por ttulos escolares. A bagagem transmitida pelafamlia inclui, por outro lado, certos componentes que passam a fazerparte da prpria subjetividade do indivduo, sobretudo, o capital culturalna sua forma incorporada. Como elementos constitutivos dessa formade capital merecem destaque a chamada cultura geral expressosintomaticamente vaga; os gostos em matria de arte, culinria,decorao, vesturio, esportes e etc; o domnio maior ou menor da lnguaculta; as informaes sobre o mundo escolar.

    Cabe, desde j, observar que, do ponto de vista de Bourdieu, ocapital cultural constitui (sobretudo, na sua forma incorporada1) oelemento da bagagem familiar que teria o maior impacto na definiodo destino escolar. A Sociologia da Educao de Bourdieu se notabiliza,justamente, pela diminuio que promove do peso do fator econmico,comparativamente ao cultural, na explicao das desigualdades escolares.Em primeiro lugar, a posse de capital cultural favoreceria o desempenhoescolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos contedos ecdigos escolares. As referncias culturais, os conhecimentos consideradoslegtimos (cultos, apropriados) e o domnio maior ou menor da lnguaculta, trazidos de casa por certas crianas, facilitariam o aprendizadoescolar na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundofamiliar e a cultura escolar. A educao escolar, no caso das crianasoriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espcie decontinuao da educao familiar, enquanto para as outras crianassignificaria algo estranho, distante, ou mesmo ameaador. A posse decapital cultural favoreceria o xito escolar, em segundo lugar, porquepropiciaria um melhor desempenho nos processos formais e informaisde avaliao. Bourdieu observa que a avaliao escolar vai muito alm deuma simples verificao de aprendizagem, incluindo um verdadeirojulgamento cultural e at mesmo moral dos alunos. Cobra-se que osalunos tenham um estilo elegante de falar, de escrever e at mesmo de secomportar; que sejam intelectualmente curiosos, interessados e

    disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da boaeducao. Essas exigncias s podem ser plenamente atendidas por quemfoi previamente (na famlia) socializado nesses mesmos valores.

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    Vale ainda destacar a importncia de um componente especficodo capital cultural, a informao sobre a estrutura e o funcionamento dosistema de ensino. No se trata aqui apenas do conhecimento maior oumenor que se possa ter da organizao formal do sistema escolar (ramos

    de ensino, cursos, estabelecimentos), mas, sobretudo, da compreensoque se tenha das hierarquias mais ou menos sutis que distinguem asramificaes escolares do ponto de vista de sua qualidade acadmica,prestgio social e retorno financeiro. Essa compreenso fundamentalpara que os pais formulem estratgias de forma a orientar, da forma maiseficaz possvel, a trajetria dos filhos, sobretudo, nos momentos de decisescruciais (continuao ou interrupo de estudos, mudana deestabelecimento, escolha do curso superior, entre outros). Esse tipoespecfico de capital cultural proveniente, vale observar, no apenas daexperincia escolar (e profissional, no caso, dos pais professores) vividadiretamente pelos pais, mas tambm do contato pessoal com amigos eoutros parentes que possuam familiaridade com o sistema educacional.V-se, neste caso, a importncia do capital social como um instrumentode acumulao do capital cultural. O capital econmico e o socialfuncionariam, na verdade, na maior parte das vezes, apenas como meiosauxiliares na acumulao do capital cultural. No caso do capitaleconmico, por exemplo, permitindo o acesso a determinados estabe-

    lecimentos de ensino e a certos bens culturais mais caros, como as viagensde estudo. O beneficio escolar extrado dessas oportunidades dependesempre, no entanto, do capital cultural previamente possudo.

    A bagagem herdada por cada indivduo no poderia ser entendida,no entanto, simplesmente, como um conjunto mais ou menos rentvelde capitais que cada indivduo utiliza a partir de critrios definidos demodo idiossincrtico. Como j foi dito, segundo Bourdieu, cada gruposocial, em funo das condies objetivas que caracterizam sua posio

    na estrutura social, constituiria um sistema especfico de disposiespara a ao, que seria transmitido aos indivduos na forma do habitus. Aidia de Bourdieu a de que, pelo acmulo histrico de experincias dexito e de fracasso, os grupos sociais iriam construindo um conhecimentoprtico (no plenamente consciente) relativo ao que possvel ou no deser alcanado pelos seus membros dentro da realidade social concreta naqual eles agem, e sobre as formas mais adequadas de faz-lo. Dada aposio do grupo no espao social e, portanto, de acordo com o volume

    e os tipos de capitais (econmico, social, cultural e simblico) possudospor seus membros, certas estratgias de ao seriam mais seguras erentveis e outras seriam mais arriscadas. Na perspectiva de Bourdieu,

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    ao longo do tempo, por um processo no deliberado de ajustamentoentre investimentos e condies objetivas de ao, as estratgias maisadequadas, mais viveis, acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam,ento, incorporadas pelos sujeitos como parte do seu habitus.

    Aplicado educao, esse raciocnio indica que os grupos sociais,a partir dos exemplos de sucesso e fracasso no sistema escolar vividos porseus membros, constituem uma estimativa de suas chances objetivas nouniverso escolar e passam a adequar, inconscientemente, seus investi-mentos a essas chances. Concretamente, isso significa que os membrosde cada grupo social tendero a investir uma parcela maior ou menordos seus esforos medidos em termos de tempo, dedicao e recursosfinanceiros na carreira escolar dos seus filhos, conforme percebam serem

    maiores ou menores as probabilidades de xito. A natureza e a intensidadedos investimentos escolares variariam, ainda, em funo do grau em quea reproduo social de cada grupo (manuteno da posio estruturalatual ou da tendncia ascenso social) depende do sucesso escolar dosseus membros. Assim, as elites econmicas, por exemplo, no precisariaminvestir to pesadamente na escolarizao dos seus filhos quanto certasfraes das classes mdias que devem sua posio social, quase queexclusivamente, certificao escolar. Bourdieu (1998) observa, tambm,em terceiro lugar, que o grau de investimento na carreira escolar estrelacionado ao retorno provvel, intuitivamente estimado, que se podeobter com o ttulo escolar, no apenas no mercado de trabalho, mas,tambm, nos diferentes mercados simblicos, como o matrimonial, porexemplo. Esse retorno, ou seja, o valor do ttulo escolar nos diversosmercados, variaria, basicamente, em funo de sua maior ou menor oferta.Quanto mais fcil o acesso a um ttulo escolar, maior a tendncia a suadesvalorizao (inflao de ttulos).

    Bourdieu distingue freqentemente trs conjuntos de disposies

    e de estratgias de investimento escolar que seriam adotadastendencialmente pelas classes populares, classes mdias (ou pequenaburguesia) e pelas elites. O primeiro desses grupos, pobre em capitaleconmico e cultural, tenderia a investir de modo moderado no sistemade ensino. Esse investimento, relativamente baixo, se explicaria por vriasrazes. Em primeiro lugar, a percepo, a partir dos exemplos acumulados,de que as chances de sucesso so reduzidas (faltariam os recursoseconmicos, sociais e, sobretudo, culturais necessrios para um bom

    desempenho escolar). Isso tornaria o retorno do investimento muitoincerto e, portanto, o risco muito alto. Essa incerteza e esse risco seriamainda maiores pelo fato de que o retorno do investimento escolar dado

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    no longo prazo. Essas famlias estariam, em funo de sua condiosocioeconmica, menos preparadas para suportar os custos econmicosdessa espera (especialmente, o adiamento da entrada dos filhos nomercado de trabalho). Acrescenta-se a isso o fato de que o retorno

    alcanado com os ttulos escolares depende, parcialmente, como j foidito anteriormente, da posse de recursos econmicos e sociais passveisde serem mobilizados para potencializar o valor dos ttulos. No casodessas famlias, nas quais esses recursos so reduzidos, tender-se-ia,naturalmente, a obter um retorno mnimo com os ttulos escolaresconquistados. Em resumo, no caso das classes populares, o investimentono mercado escolar tenderia a oferecer um retorno baixo, incerto e alongo prazo. Diante disso, esse grupo social tenderia a adotar o queBourdieu chama de liberalismo em relao educao dos filhos. Avida escolar dos filhos no seria acompanhada de modo muito sistemticoe nem haveria uma cobrana intensiva em relao ao sucesso escolar. Asaspiraes escolares desse grupo seriam moderadas. Esperar-se-ia dos filhosque eles estudassem apenas o suficiente para se manter (o que,normalmente, dada a inflao de ttulos, j significa, de qualquer forma,alcanar uma escolarizao superior dos pais) ou se elevar ligeiramenteem relao ao nvel socioeconmico dos pais. Essas famlias tenderiam,assim, a privilegiar as carreiras escolares mais curtas, que do acesso mais

    rapidamente insero profissional. Um investimento numa carreira maislonga s seria feito nos casos em que a criana apresentasse, precocemente,resultados escolares excepcionalmente positivos, capazes de justificar aaposta arriscada no investimento escolar.

    Contrapondo-se s classes populares, as classes mdias, ou pequena-burguesia, tenderiam a investir pesada e sistematicamente na escolarizaodos filhos. Esse comportamento se explicaria, em primeiro lugar, pelaschances objetivamente superiores (em comparao com as classes

    populares) dos filhos das classes mdias alcanarem o sucesso escolar. Asfamlias desse grupo social j possuiriam um volume razovel de capitaisque lhes permitiria apostar no mercado escolar sem correr tantos riscos.Para Bourdieu, no entanto, o comportamento das famlias das classesmdias no pode ser explicado apenas pelas chances comparativamentesuperiores dos filhos dessas famlias alcanarem o sucesso escolar. Bourdieuobserva que necessrio considerar, igualmente, as expectativas quantoao futuro sustentadas por esses grupos sociais. Originrias, em grande

    parte, das camadas populares e tendo ascendido s classes mdias pormeio da escolarizao, as famlias de classe mdia nutririam esperanasde continuarem sua ascenso social, agora, em direo s elites. Todas as

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    seja a categoria socioprofissional dos pais. Tenderamos a ter, ento,dentro de uma mesma classe ou frao de classe, famlias com umcomportamento bastante diferenciado em matria de educao.Inversamente, teramos famlias de classe sociais diferentes que

    adotariam certas atitudes educacionais similares. O habitus familiar,incluindo as disposies em relao escolarizao dos filhos, nopoderia, portanto, ser diretamente deduzido do habitus de classe.

    Um segundo problema apontado pelos crticos na teoria das classessociais de Bourdieu ou, mais amplamente, em sua teoria do espao e dasposies sociais diz respeito aos processos de formao e de transmissodo habitus familiar. Esse habitus no seria formado necessariamente nadireo que se poderia imaginar, dadas as condies objetivas, e nem

    seria transmitido aos filhos de modo automtico por osmose, comodizia Bourdieu (1998). Lahire (1995) observa que necessrio estudar adinmica interna de cada famlia, as relaes de interdependncia sociale afetiva entre seus membros, para se entender o grau e modo como osrecursos disponveis (os vrios capitais e o habitus incorporado dos pais)so ou no transmitidos aos filhos. A transmisso do capital cultural edas disposies favorveis vida escolar s poderia ser feita por meio deum contato prolongado, e afetivamente significativo, entre os portadoresdesses recursos (no apenas os pais, mas outros membros da famlia) eseus receptores. Esse tipo de contato, no entanto, dada as dinmicasinternas de cada famlia, nem sempre ocorreria. Na mesma direo, Singly(1996) observa que a transmisso da herana cultural depende de umtrabalho ativo realizado tanto pelos pais quanto pelos prprios filhos eque pode ou no ser bem sucedido. Contrapondo-se imagem do herdeiroque passivamente recebe uma bagagem familiar privilegiada, Singlyobserva que a apropriao da herana fruto de um processoemocionalmente complexo e de resultados incertos (h sempre a

    possibilidade de dilapidao da herana), de identificao e de afastamentodo jovem em relao a sua famlia.No conjunto, essas crticas a Bourdieu realam o fato de que o

    habitus de uma famlia e, mais ainda, de um indivduo no pode serdeduzido diretamente do que seria seu habitus de classe. As famlias e osindivduos no se reduzem sua posio de classe. O pertencimento auma classe social, traduzido na forma de um habitus de classe, podeindicar certas disposies mais gerais que tenderiam a ser compartilhadas

    pelos membros da classe. Cada famlia, no entanto, e, mais ainda, osindivduos tomados separadamente, seriam o produto de mltiplas e,em parte, contraditrias influncias sociais (Lahire, 1999; Charlot, 2000).

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    A escola e o processo de reproduo das desigualdades sociais

    No prefcio de A reproduo (1992, p. 11), Bourdieu afirma queos vrios captulos desse livro apontam para um mesmo princpio deinteligibilidade: o das relaes entre o sistema de ensino e a estruturadas relaes entre as classes.

    Esse princpio de inteligibilidade orienta, na verdade, o conjuntodas reflexes de Bourdieu sobre a escola. A escola e o trabalho pedaggicopor ela desenvolvido s poderiam ser compreendidos, na perspectiva deBourdieu, quando relacionados ao sistema das relaes entre as classes.A escola no seria uma instncia neutra que transmitiria uma forma deconhecimento intrinsecamente superior e que avaliaria os alunos a partirde critrios universalistas, mas, ao contrrio, seria uma instituio a servioda reproduo e legitimao da dominao exercida pelas classesdominantes.

    O ponto de partida do raciocnio de Bourdieu talvez se encontre nanoo de arbitrrio cultural. Bourdieu se aproxima aqui de uma concepoantropolgica de cultura. De acordo com essa concepo, nenhuma culturapode ser objetivamente definida como superior a nenhuma outra. Osvalores que orientariam cada grupo em suas atitudes e comportamentosseriam, por definio, arbitrrios, no estariam fundamentados emnenhuma razo objetiva, universal. Apesar de arbitrrios, esses valores ou seja, a cultura de cada grupo seriam vividos como os nicos possveisou, pelo menos, como os nicos legtimos. Para Bourdieu, o mesmo ocorreriano caso da escola. A cultura consagrada e transmitida pela escola no seriaobjetivamente superior a nenhuma outra. O valor que lhe concedidoseria arbitrrio, no estaria fundamentado em nenhuma verdade objetiva,inquestionvel. Apesar de arbitrria, a cultura escolar seria socialmentereconhecida como a cultura legtima, como a nica universalmente vlida.

    Na perspectiva de Bourdieu, a converso de um arbitrrio culturalem cultura legtima s pode ser compreendida quando se considera arelao entre os vrios arbitrrios em disputa em uma determinadasociedade e as relaes de fora entre os grupos ou classes sociais presentesnessa mesma sociedade. No caso das sociedades de classes, a capacidadede legitimao de um arbitrrio cultural corresponderia fora da classesocial que o sustenta. De um modo geral, os valores arbitrrios capazesde se impor como cultura legtima seriam aqueles sustentados pela classe

    dominante. Para Bourdieu, portanto, a cultura escolar, socialmentelegitimada, seria, basicamente, a cultura imposta como legtima pelasclasses dominantes.

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    escolar seria a sua prpria cultura, reelaborada e sistematizada. Para osdemais, seria uma cultura estrangeira.

    Mais concretamente, Bourdieu observa que a comunicaopedaggica, tal como realizada tradicionalmente na escola, exige

    implicitamente, para o seu pleno aproveitamento, o domnio prvio deum conjunto de habilidades e referncias culturais e lingsticas queapenas os membros das classes mais cultivadas possuiriam. Os professorestransmitiriam sua mensagem igualmente a todos os alunos como se todostivessem os mesmos instrumentos de decodificao. Esses instrumentosseriam possudos, no entanto, apenas por aqueles que tm a culturaescolar como cultura familiar, e que j so, assim, iniciados nos contedose na linguagem utilizada no mundo escolar.4

    O argumento central do socilogo , ento, o de que aodissimular que sua cultura a cultura das classes dominantes, a escoladissimula igualmente os efeitos que isso tem para o sucesso escolar dasclasses dominantes. As diferenas nos resultados escolares dos alunostenderiam a ser vistas como diferenas de capacidade (dons desiguais)enquanto, na realidade, decorreriam da maior ou menor proximidadeentre a cultura escolar e a cultura familiar do aluno. A escola cumpriria,assim, portanto, simultaneamente, sua funo de reproduo e de

    legitimao das desigualdades sociais. A reproduo seria garantidapelo simples fato de que os alunos que dominam, por sua origem, oscdigos necessrios decodificao e assimilao da cultura escolar eque, em funo disso, tenderiam a alcanar o sucesso escolar, seriamaqueles pertencentes s classes dominantes. A legitimao das desi-gualdades sociais ocorreria, por sua vez, indiretamente, pela negaodo privilegio cultural dissimuladamente oferecido aos filhos das classesdominantes.

    O autor observa que o efeito de legitimao provocado peladissimulao das bases sociais do sucesso escolar duplo: manifestar-se-ia em relao tanto aos filhos das camadas dominantes quanto dominadas.Os primeiros, pelo fato de terem recebido sua herana cultural desdemuito cedo e de modo difuso, insensvel, teriam dificuldade de sereconhecer como herdeiros. Suas disposies e aptides culturais elingsticas pareceriam ser naturais, fazer parte de sua prpriapersonalidade. O segundo grupo, por outro lado, sendo incapaz deperceber o carter arbitrrio e impositivo da cultura escolar, tenderia a

    atribuir suas dificuldades escolares a uma inferioridade que lhes seriainerente, definida em termos intelectuais (falta de inteligncia) ou morais(fraqueza de vontade).

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    Bourdieu (1992, p. 52) ressalta que em relao s camadasdominadas, o maior efeito da violncia simblica exercida pela escolano a perda da cultura familiar e a inculcao de uma nova culturaexgena (mesmo porque essa inculcao, como j se viu, seria prejudicada

    pela falta das condies necessrias sua recepo), mas o reconhecimento,por parte dos membros dessa camada, da superioridade e legitimidadeda cultura dominante. Esse reconhecimento se traduziria numadesvalorizao do saber e do saber-fazer tradicionais por exemplo, damedicina, da arte e da linguagem populares, e mesmo do direitoconsuetudinrio em favor do saber e do saber-fazer socialmentelegitimados.

    A reproduo e legitimao das desigualdades sociais propiciada

    pela escola no resultariam apenas, no entanto, da falta de uma bagagemcultural apropriada para a recepo da mensagem escolar. Bourdieuprocura demonstrar que a escola valoriza e cobra no apenas o domniode um conjunto de referncias culturais e lingsticas, mas, tambm,um modo especfico de se relacionar com a cultura e o saber. O sistemaescolar tenderia a reproduzir a distino entre dois modos bsicos de serelacionar com a cultura: um primeiro, desvalorizado, se caracterizariapela figura do aluno esforado, estudioso, que busca compensar suadistncia em relao cultura legtima por meio de uma dedicao tenazs atividades escolares; e um segundo, valorizado, representado pelo alunotido como brilhante, talentoso, inteligente, muitas vezes precoce, queatende s exigncias da escola sem demonstrar traos de um esforolaborioso ou tenso. O sistema de ensino, sobretudo nos seus ramos maiselevados, valorizaria e cobraria dos alunos essa segunda postura. Bourdieuobserva que nas avaliaes formais ou informais (particularmente nasprovas orais) exige-se dos alunos muito mais do que o domnio docontedo transmitido. Exige-se uma destreza verbal e um brilho no trato

    com o saber e a cultura que somente aqueles que tm familiaridade coma cultura dominante podem oferecer.

    Essa naturalidade ou desenvoltura no seria reconhecida pela escola,no entanto, como algo socialmente herdado. Ao contrrio, tenderia a serinterpretada como manifestao de uma facilidade inata, de uma vocaonatural para as atividades intelectuais. Cumpriria-se, portanto, mais umavez, as funes de reproduo e legitimao atribudas por Bourdieu escola. A escola valorizaria um modo de relao com o saber e a cultura

    que apenas os filhos das classes dominantes, dado o seu processo desocializao familiar, poderiam exibir. Valorizar-se-ia uma desenvolturaintelectual, uma elegncia verbal, uma familiaridade com a lngua e com

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    a cultura legtima, que, por definio, no poderiam ser adquiridosexclusivamente pela aprendizagem escolar. Ao mesmo tempo, no entanto,nega-se que essas habilidades sejam frutos da socializao familiardiferenciada vivida pelos alunos e supe-se que elas so indicadores de

    inteligncia e talento natural. Em poucas palavras, a cultura dominanteou, mais especificamente, o modo dominante de lidar com a cultura valorizado pela escola, usado como critrio de avaliao e hierarquizaodos alunos e, ao mesmo tempo, negado, dissimulado. Os alunosoficialmente estariam sendo julgados, exclusivamente, por suashabilidades naturais.

    Sinteticamente, possvel dizer que as reflexes de Bourdieusobre a escola partem da constatao de uma correlao entre as

    desigualdades sociais e escolares. As posies mais elevadas e prestigiadasdentro do sistema de ensino (definidas em termos de disciplinas, cursos,ramos do ensino, estabelecimentos) tendem a ser ocupadas pelosindivduos pertencentes aos grupos socialmente dominantes. ParaBourdieu, essa correlao nem , obviamente, casual, nem se explica,exclusivamente, por diferenas objetivas (sobretudo econmicas) deoportunidade de acesso escola. Segundo ele, por mais que sedemocratize o acesso ao ensino por meio da escola pblica e gratuita,continuar existindo uma forte correlao entre as desigualdades sociais,sobretudo, culturais, e as desigualdades ou hierarquias internas aosistema de ensino. Essa correlao s pode ser explicada, na perspectivade Bourdieu, quando se considera que a escola dissimuladamente valoriza e exige dos alunos determinadas qualidades que sodesigualmente distribudas entre as classes sociais, notadamente, ocapital cultural e uma certa naturalidade no trato com a cultura e osaber que apenas aqueles que foram desde a infncia socializados nacultura legtima podem ter.

    Em resumo, a grande contribuio de Bourdieu para acompreenso sociolgica da escola foi a de ter ressaltado que essainstituio no neutra. Formalmente, a escola trataria a todos de modoigual, todos assistiriam s mesmas aulas, seriam submetidos s mesmasformas de avaliao, obedeceriam s mesmas regras e, portanto,supostamente, teriam as mesmas chances. Bourdieu mostra que, naverdade, as chances so desiguais. Alguns estariam numa condio maisfavorvel do que outros para atenderem s exigncias, muitas vezes

    implcitas, da escola.Ao sublinhar que a cultura escolar a cultura dominantedissimulada, Bourdieu abre caminho para uma anlise mais crtica do

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    currculo, dos mtodos pedaggicos e da avaliao escolar. Os contedoscurriculares seriam selecionados em funo dos conhecimentos, dosvalores, e dos interesses das classes dominantes. O prprio prestgio decada disciplina acadmica estaria associado a sua maior ou menor afinidade

    com as habilidades valorizadas pela elite cultural.5

    A transmisso dosconhecimentos seguiria o que Bourdieu chama de pedagogia do implcito,o pleno aproveitamento da mensagem pedaggica suporia, implicitamen-te, a posse de um capital cultural anterior que apenas os alunosprovenientes das classes dominantes apresentam. Finalmente, a avaliaodos professores iria muito alm da simples verificao do aprendizado,constituindo, na prtica, um verdadeiro julgamento social, baseado namaior ou menor discrepncia do aluno em relao s atitudes ecomportamentos valorizados pelas classes dominantes. Embora Bourdieuno tenha se aprofundado em nenhuma dessas reas, no tendo, portanto,penetrado, propriamente dito, na caixa preta do estabelecimento deensino, ele deixou, sem dvida alguma, uma srie de pistas que continuama alimentar as discusses atuais.

    Apesar dos seus mritos inegveis, as reflexes de Bourdieu sobrea escola recebem tambm algumas crticas importantes. Mais uma vez,o problema central parece ser o modo como Bourdieu utiliza o conceitode classe social. A escola, sobretudo nos seus trabalhos produzidos atos anos 70, apresentada como uma instituio totalmentesubordinada aos interesses de reproduo e legitimao das classesdominantes. Os contedos transmitidos, os mtodos pedaggicos, asformas de avaliao, tudo seria organizado em benefcio da perpetuaoda dominao social. Contrapondo-se a essa perspectiva, uma srie deautores tem acentuado, em primeiro lugar, que o contedo escolar nopode ser, globalmente, definido como sendo um arbitrrio culturaldominante. Boa parte dos conhecimentos veiculados pela escola seria

    epistemologicamente vlida e merecedora de ser transmitida. O fatode que os grupos socialmente dominantes dominam os contedosvalorizados pelo currculo escolar no suficiente para que se afirmeque esses contedos foram selecionados por pertencerem a essa classe.Na verdade, o raciocnio pode ser at o inverso. Por serem reconhecidoscomo superiores (por suas qualidades intrnsecas) esses contedospassaram a ser socialmente valorizados e foram apropriados pelascamadas dominantes.

    Um segundo aspecto diz respeito diversidade interna do sistemade ensino. As escolas e os prprios professores, dentro delas, no seriamtodos iguais. H variaes no modo de organizao da escola, nos

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    princpios pedaggicos adotados, nos critrios de avaliao etc. No sepode desprezar o efeito dessas variveis no desempenho escolar dosalunos. Parece claro, por exemplo, que as vrias iniciativas que buscampromover uma aproximao mais respeitosa entre a cultura escolar e a

    cultura de origem dos alunos organizando o ensino a partir dosconhecimentos anteriores trazidos pelos alunos, respeitando evalorizando os modos de fala e as tradies de cada grupo social etc. podem, no mnimo, adiar o processo de eliminao ou auto-eliminao(desistncia) dos alunos. Nos seus primeiros trabalhos, o prprioBourdieu falava da possibilidade de uma pedagogia racional, que aoinvs de supor como dados os pr-requisitos necessrios decodificaoda comunicao pedaggica (capital cultural e lingstico), se esforariapara transmiti-los metodicamente a quem no os recebeu na famlia.Esse otimismo pedaggico, no entanto, foi rapidamente abandonado.Prevalece na obra de Bourdieu a percepo de que o processo dereproduo das estruturas sociais por meio da escola , basicamente,inevitvel. As diferenas culturais e escolares entre as classes seriamrelativas e, portanto, dificilmente poderiam ser transpostas. A ampliaodo acesso (e mesmo do aproveitamento) das classes mdias e populares escola, por exemplo, seria acompanhado de uma elevao paralela donvel e da qualidade da escolarizao das elites, de tal forma que as

    diferenas relativas entre as classes tenderiam a se manter, aproxi-madamente, as mesmas. De fato, quando a anlise feita no planomacrossocial das relaes entre as classes, Bourdieu tem boas razespara ser pessimista. Essa anlise, no entanto, no pode ser transpostadiretamente para o plano microssociolgico. Existem diferenassignificativas no modo como cada escola e ou professor participa desseprocesso de reproduo social. Essas diferenas foram, em grandemedida, negligenciadas por Bourdieu.

    Consideraes finais

    A grande contribuio da Sociologia da Educao de PierreBourdieu foi, sem dvida, a de ter fornecido as bases para um rompimentofrontal com a ideologia do dom e com a noo moralmente carregada demrito pessoal. A partir de Bourdieu, tornou-se praticamente impossvelanalisar as desigualdades escolares, simplesmente, como frutos das

    diferenas naturais entre os indivduos.As limitaes dessa abordagem, no entanto, se revelam sempreque se busca a compreenso de casos particulares (famlias, indivduos,

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    escolas e professores concretos). Bourdieu nos forneceu um importantequadro macrossociolgico de anlise das relaes entre o sistema deensino e a estrutura social. Esse quadro precisa, no entanto, sercompletado e aperfeioado por analises mais detalhadas. Faz-se

    necessrio, em especial, um estudo mais minucioso dos processosconcretos de constituio e utilizao do habitus familiar, bem comouma anlise mais fina das diferenas sociais entre famlias e contextosde escolarizao.

    Recebido em abril de 2002.

    Aprovado em abril de 2002.

    Notas1 . Ver Bourdieu, Os trs estados do capital cultural, 1998.

    2 . Bourdieu contrape o rigorismo asctico das fraes ascendentes das classes mdias ao rigorismorepressivo e conservador adotado pelas fraes declinantes.

    3 . Bourdieu chama o processo de imposio dissimulada de um arbitrrio cultural de violnciasimblica.

    4 . Bourdieu ressalta que as diferenas culturais entre os alunos das diversas classes sociais seriammenos evidentes nos ramos mais elevados do sistema de ensino. Isso ocorreria porque os

    alunos das classes mdias e populares que chegam a esse nvel do sistema de ensino j teriampassado por um processo de super-seleo, no qual teriam sobrevivido aqueles que menos sedistanciavam da cultura escolar.

    5 . Assim, Bourdieu (1987) contrape, no caso do ensino superior francs, disciplinas de talento,como o Francs e a Filosofia, que exigiriam certas habilidades no escolares (que s poderiamser plenamente adquiridas fora da escola, ou seja, na famlia), sobretudo, uma elegncia e umadestreza marcantes no uso da lngua, disciplinas de trabalho, como a Geografia e o Desenho,que poderiam ser dominadas a partir de um esforo propriamente escolar.

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