a sociedade do sintoma a psicanalise, hoje eric laurent ii servir

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Imagem da Capa Luciano Figueiredo. Relevo, jomal, 36 x 48em, 2001 [detalhe] Capa, projeto gratico e prepara~ao Contra Capa A sociedade do sintoma a psicanalise, hoje Eric Laurent [Opc;ao Laeaniana nO 61. 232 p.; 14 x 21 em ISBN: 978-85-7740-017-1 II Servir-sedo pai Pode 0 neurotico prescindir do pail 51 Como recompor os Names do Pail 59 Urn novo amor pela pai 71 2007 Todos os direitos desta edi~ao reservados a Contra Capa Livraria Uda. <atendimento@contracapa.com.br> . Rua de Santana, 198 Loja - Centro 20230-261 - Rio de Janeiro - RJ Tel I Fax (55 21) 2508.9517 I 3435.5128 www.contracapa.com.br Desangustiar? 111 Cagnic;:ao ou transferencia na psicanilise dehoje

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Page 1: A sociedade do sintoma a psicanalise, hoje Eric Laurent II Servir

Imagem da Capa

Luciano Figueiredo. Relevo, jomal, 36 x 48 em, 2001 [detalhe]

Capa, projeto gratico e prepara~ao

Contra Capa

A sociedade do sintomaa psicanalise, hoje

Eric Laurent

[Opc;ao Laeaniana nO 61. 232 p.; 14 x 21 em

ISBN: 978-85-7740-017-1

II Servir-sedo pai

Pode 0 neurotico prescindir do pail 51

Como recompor os Names do Pail 59

Urn novo amor pela pai 71

2007

Todos os direitos desta edi~ao reservados aContra Capa Livraria Uda.

<[email protected]>

.Rua de Santana, 198 Loja - Centro

20230-261 - Rio de Janeiro - RJ

Tel I Fax (55 21) 2508.9517 I 3435.5128www.contracapa.com.br

Desangustiar? 111

Cagnic;:aoou transferencia na psicanilise de hoje

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da diferenya, pois se deve fazer uma fJlosofia do mesmo. Continllilassim a antiga animosidade entre Foucault e Derrida. Bersani conelui seu artigo abordando 0 esfon;:o de pensar 0 mesmo, que nao

chega a ser seu semelhante. Toda diferenya deve ser pensada a partil'da impossibilidade do ser semelhante a si da homossexualidade.

Urn dito de Lacan afirma que 0 normal e a norme male, a norma domacho. 0 debate que incide sobre uma norma do macho preten-dendo afirmar-se como normal e, na perspectiva aqui abordada,particularmente interessante. 0 tom bastante'arrazoado, de mui.t~s liyoes, demasiado moralista, chocante da literatura contempo-ranea dos departamentos universita.rios considerados por nos deveser substituido, visando a afirmayao de uma norma. Ao ler essa'

literatura, partilho da impressao de Bersani, que se perguntava,ao ler uma dedarayao de uma feminista lesbica sobre a luta a sertravada contra todas as outras formas de sexualidade, se seus pro-prios autores acreditavam nissol2• E essa tambern a posiyao a queo ultimo livro de Boswell nos leva: chegamos ao ponto de naomais acreditar em nossos olhos e ouvidos. Trava-se ai um debatesobre as novas figuras da razao. E preciso reconhecer, nesse jogodeslocado, sublimado, a questao fundamental da crenya, na qualas fronteiras da interrogayao foram deslocadas em decorrencia daposiyao homossexual.

12"T d . . 'Iemos, e manelra mUlto notave , a propensao de fazer afirma<;:6esemque ninguem, inclusive a pessoa que as fez, acredita verdadeiramente"(Bersani, 1995: 53-4-).

o "mal-estar" na civilizayao, como dizia Freud, ou 0 "sinthoma"na civilizayao, como precisa Lacan, pode ser escrito sob a formade um materna, estabelecido por Jacques-Alain Miller, ao definir aconjuntura atual, dominada pelo objeto a: a > 1.

Lacan falava da "ascensao ao zenite social" do objeto a. A ex-pressao se encontra em "Radiofonia", na resposta a terceira per-gunta sobre 0 "efeito de linguagem" concebido nao como significa-do, e sim como deficit de urn efeito de corpo. "0 significante nao e

apropriado para dar corpo a uma formula que seja da relas;ao sexual"(Lacan, 1970: 411). E nessa falha que vem se alojar 0 objeto a."Para isso, bastaria a ascensao ao zenite social do objeto Q, peloefeito de anglistia provocado pelo esvaziamento com que nossodiscurso 0 produz, par faltar a sua produyao" (: 411).

Lacan faz referencia a uma construyao elaborada em seu se-mimlrio do mesmo ano, no qual descreve urn efeito particular dodiscurso do mestre contemporaneo, isto e, 0 discurso capitalis-ta. Esse discurso produz 0 objeto a, cavando a falta da mais-valia.A mais-valia foracluida e um significante e, como tal, retorna noreal como gozo. Na teoria marxista, ela e algo extraido do traba-lho, uma quantidade jamais recuperada. Os direi.tos do trabalha-dor, do qual ela e extraida, san instantaneamente foracluidos, poiso mercado opera a sua subtrayao irreversivel. Ela se torna 0 objeto

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perdido, que anima a cadeia metonimica das trocas. Trata-se, }llll

tanto, de uma quantidade impossivel de ser calculada. Os mclIJores planejadores tentaram faze-Io em vao. A mais-valia nao ckhlll

de animar 0 mundo. "E a causa do desejo, do qual uma econOlllhlfaz seu prindpio: 0 da produyao extensiva, portanto insaciav\'I,da falta-de-gozar. Esta se acumula, por urn lado, para aumenta\'os meios dessa produyao como capital. Por outro lado, amplia II

consumo, sem 0 qual essa produyao seria inutil, justamente pOI'

sua inepcia em proporcionar um gozo com que possa tomar-Ht'mais lenta" (: 434)

Falar de "ascensao ao zenite social" indica que 0 movimentonao comeyou anteontem, pois 0 zenite e 0 "grau mais elevado",Para seguir a trajetoria do objeto a em nossa civilizayao, tome-mos emprestada a indicaqao do "efeito de angUstia" dada por La-can, no qual reside 0 verdadeiro "efeito de linguagem". Podemosindicar alguns momentos dessa trajetoria. Depois do fim da Pri-meira Guerra Mundial, momento considerado por certo nume-ro de ~storiadores a verdadeira entrada no seculo XX, 0 mundo

do pensamento foi invadido por um afeto particular. Trata-se dosentimento de inutilidade da civilizayao em face desse suiddio co-letivo europeu. Paul Valery falou do saber que se impunha como"a crise do espirito": "Nos, as civilizayoes, sabemos, agora, quesomos mortais" (Valery, 1924). Na mesma epoca, Martin Heide-gger definiu 0 estatuto da subjetividade modem a como sendo a

do "homem da preocupaqao". Em Ser e tempo, de 1927, ele situa 0lugar da angUstia:

o que oprime nao e isso ou aquilo, nem tampouco todo 0 ente hI.adiante reunido como soma; ao contrario, e a possibilidade do quee utilizavel em geral, quer dizer, 0 pr6prio mundo. lima vez aeal-mada a angUstia, a fala do cotidiano costuma dizer: 'no fundo naoera nada'. [... j Aquilo diante do que a angUstia se angustia nadatern de urn interior utilizavel ao mundo. [... j 0 nada em relayaoao que e utilizaveI se fundamenta em 'alguma coisa' no sentido

Illais origin.aI, no mundo. [... ] Se, em conseqiiencia, eo nada, ou~I:ja,0 mundo como tal que se revela como 0 diante-do-que da,1ngustia,isso quer dizer entao: esse diante do que a.an8ustia se angus-

t ia e 0 proprio ser-no-mundo (Heidegger, 1927: 236).

Freud, na me sma epoca, remaneja sua teoria da angUstia pelaIlIlroduqao da paradoxal "pulsao de morte". Em Mal-estar na civi-Iti(/~iio, publicado em 1930, faz equivaler 0 sentimento de culpaIIIt'onsciente, engendrado pela propria civilizayao, it angUstia.

Talvez seja bem-vinda aqui a observayao de que 0 sentimento deculpa nao passa, no fundo, de urna variante t6pica da anglistia e deque, em suas fases ulteriores, ele e absolutamente identico a an-gustia diante do supereu [... j. Tambem concebemos facilmente queo sentimento de culpa engendrado pela civilizayao nao seja reco- 'nhecido como tal, que permaneya em grande parte inconscienteou se manifeste como urn mal-estar, urn c;lescontentamento, aoqual procuramos atribuir outros motivos (Freud, 1930: 94-5).

Antes da Segunda Guerra Mundial, 0 sujeito tratou de sua an-gustia alimentando sonhos deleterios de restaurayao de um "to do" ,na falta de uma civilizayao toda. Foi 0 momenta do sonho de umEstado- todo e dos apelos aos Hderes carismaticos dos partidos to-talitarios. Freud antecipara esse mecanismo em "Psicologia dasmassas e analise do eu", dez anos antes que esse procedimento ateentao inedito se estabelecesse.o pos-II Guerra Mundial inventou uma nova terapia. 0 sujei-

to passou a se tratar ao abrigo de novos significantes mestres queemergiram mal ou bem do caos. 0 sartreano tratava sua angu.stiaexistencial seguindo 0 caminho do Partido Comunista, significante

mestre, se e que chegou a se-Io. "0 PCF, como grupo, era lento,compacto, duro, impermeavel e opaco. Sao essa~ as inSIgnias doa8a1ma" (Milner, 1993: 69). Os sujeitos do lado oposto acredita-yam no futuro da "mao invisIvel" do mercado, da qual os Estados

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Unidos tinham demonstrado a eficacia, ao sair da crise na con.dic;ao de vencedores da guerra. Outros, enfim, apoiaram-se nocientificismo dos anos 1950 e na esperanC;a aberta pelas novas ci.

encias que triunfaram sobre 0 niilismo, ou mesmo nas renovac;oesdo catolicismo progressista. Em 1949, Merleau -Ponty e sensivela esses movimentos, pois fala nao da confrontac;ao do sujeito comsua angUstia, e sim do reencontro do homem com "a premeditac;aodo desconhecido". Ele escreve: "Devemos crer que 0 tete-a-tetedo homem com sua vontade singular nao e toleravel a longo pra-zo: entre esses revoltados, alguns aceitaram incondicionalmente adisciplina do comunista, outros a de uma religiao revelada" (Mer-

leau-Ponty, 1948: 7). Lacan, pouco depois, ironiza tais figuras daconsciencia infeliz. Critica os fundamentos da .reac;ao existencialis-ta diante do utilitarismo dominante. "Ao cabo do projeto hist6ricode uma sociedade de nao mais reconhecer em si outra func;ao quenao a utilitaria, e na angustia do individuo diante da forma concen-tracionista do vinculo social, cujo surgimento parece recompensar

esse esfon;:o, 0 existencialismo julga-se pelas justificativas que dapara os impasses subjetivos que, a rigor, resultam dele" (Lacan,1949: 102). A isso opoe 0 estatuto descentrado do sujeito segun-do a psicanalise, fundamentado na radicalidade de urn alhures."No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanalisepode acompanhar 0 paciente ate 0 limite extatico do 'Tu es isto',em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal" (: 103).

Nos anos 1960, seguindo os passos de Kojeve, Lacan estigmati-za a ascensao de urn novo significante mestre: 0 mercado comum.A burocracia que sustenta 0 mercado 0 apresenta como esboc;o doEstado Universal homogeneo, grac;as a utiliza<;:aoda tecnica. Elemostra 0 erro de perspectiva dessa concepc;ao em 1967, as vespe-ras da eclosao da crise do fim dessa decada. Acreditar na extensaosem reservas do universal autorizado pelo tratamento cientificoda civilizac;ao negligencia 0 retorno do gozo. "0 fator de que setrata e 0 problema mais intense de nossa epoca, na medida em que

cla foi a primeira a sentiI' 0 questionamento de todas as estruturassociais pelo progresso cia ciencia. [... J ate onde se estende 0 nossouniverso, teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente,

com a segregayao" (Lacan 1967: 360).

A crise de 1968 revelou que todos os significantes mestres, to-dos esses significantes Urn, foram sucessivamente desqualificados.Em seu ultimo ensino, Lacan deu ao mundo surgido dessa crise aforma l6gica do nao-todo. Jacques-Alain Miller, em "Tumulo dohomem de esquerda", referiu-se a civilizayao como algo "fragmen-tado, disperso, nao totalizavel", uma 'multiplicidade inconsisten-te' (Cantor), urn 'nao-todo' (Lacan)" (Miller, 2003e: 165). A atualforma da civilizac;ao e perfeitamente compativel com 0 caos, algoque Antonio Negri e Michael Hardt percebem como uma ausencia

de limites.As redes de computadores e as tecnicas de comunicac;:oesinter-nas aos sistemas de produc;:aopermitem uma gestao mais ex-tensiva dos trabalhadores a partir de urn site central afastado.o controle das atividades laboriosas pode ser potencialmenteindividualizado e continuo no panopticon virtual da produc;:aoemrede. A centralizac;:aodo controle e ainda mais clara em umaperspectiva mundial. A dispersao geogd.fica da fabricac;:aoen-gendrou a demanda de uma gestao e de uma planificac;:aocadavez mais centralizadas, mas tambem de uma nova centralizac;:aodos servic;:osde produc;:aoespecializados, particularmente dosservic;:osfmanceiros. E assim que os servic;:osfinanceiros ligadosas trocas de um pequeno numero de cidades-chave chamadas'mundiais', como Nova Iorque, Londres e T6qui0, gerenciame dirigem hoje em dia as redes mundiais da produc;:ao(Negri e

Hardt, 2002: 363).

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A civiliza<;aonao tem nenhuma necessidade de urn todo harmo·,nioso, e nem mesmo sonha com isso. Basta 0 duplo movimento decentraliza~:ao / extensao, como resumido por Alain Joxe no titulo deseu livro 0 imperio do eaos (Joxe, 2002). Para ele, 0 movimento doimperio excede ao aparente controle instalado por ele. "E um siste-ma de conquista virtual ilimitada. Isso eria urn espa<;:ode dominio

que jamais se consolida ou se aquieta [... J. 0 caos realiza desregula-c;oes, as quais estao submetidas todas as sociedades politicas conere-tas, que outrora eram parcelas da ordem do mWldo, subsistemas deordem local. Permanece, todavia, a discussao sobre os tipos de caos

global desejaveis" (Joxe, 2003: 42-3). Nao estamos mais na epoca

d" d "os merca os comuns; estamos na da globalizayiio.Em vez da crenc;a no futuro dos mercados comnns, reina a in-

certeza do mercado global. Os mercados procuram um significan-te mestre e nao 0 encontram. Os grandes reguladores se mostramseguidamente decepcionantes: gabinetes de auditoria, Estados,diretores de bancos centrais. Mesmo Alan Greenspan, diretor doBanco Fede-r:alAmericano, 0 nee plus ultra, e atingido pela suspeita.Nos termos de urn economista, a melhor maneira de caracterizara ~itua<;:aodos mercados mundiais e qualifica-los de ile81veis, Paranos, trata-se de uma maneira de entender 0 dito de Lacan, segun-do 0 qual urn significante mestre e indispensavel para que se leiaurn escrito (Lacan, 1969-70: 180). Na etapainicial de seu ensino,

s~gni~c~n~e e significado nao se sustentam juntos sozinhos. E pre-CISO, lillclalmente, a media<;:aoda metafora paterna. Em seguida,com a "segunda metafora paterna", 0 Outro da linguagem se en-carrega da junc;ao pela pluraliza<;:ao "dos Nomes do Pai". A partirdos quatro discursos, a fun<;:aodo significante mestre nomeia essapluralidade. Na mesma epoca, Lacan destaca, com base na escrita"ideografica" japonesa ou chinesa, as novas rela<;:oesde jnn<;:aodo

Si~ificante com 0 significado pela letra. 0 ideograma "e um signografico que representa uma palavra de uma lingua, em oposi<;:aoaos sign os que indicam urn som (escrita fonetica) ou uma silaba

(escrita silabica)" (Dubois, 1977). "Seria carnico ver indicarem-seal, a pretexto de 0 caractere ser a letra, os destro<;:os do significan-te correndo nos rios do significado. E a letra como tal que servede apoio ao significante, segundo sua lei de metafora. E de outrolugar _ do discurso - que ele a pega na rede do semblante" (Lacan,1971: 19). E na sustenta<;:ao do discurso que 0 sujeito pode buscar

identifica<;:aoe apoio para suportar 0 "efeito de linguagem" que e aangustia. "A instancia da letra" e 0 apoio que 0 significante toma nametafora encontram seu grampeamento, sua escava<;:ao,na propriametommia do discurso. A metommia do discurso, "rede do sem-

blante", nao supoe nenhum "todo" da significac;ao.A angustia leva a "refazer 0 todo" em uma situac;ao na qual 0

sujeito nao cre mais no significante urn. 0 esfor<;:opara tornar 0

Outro todo repousa sobre 0 insuportavel de uma ausencia de ga-

rantias do gozo. Assistimos entao a urn duplo movimento. De urnlado, apelos "populistas" para refazer 0 todo.De outro, tentativasde reencontrar 0 gozo por intermedio de urn acesso em curto-circuito. 0 paganismo contemporaneo busca a prova da existenciade Deus na overdose. A ex-stase do gozo sempre foi ocasiao para a

civilizac;ao experimentar a presenc;a de urn Deus-todo, da coisaOutra. Na Antiguidade, Dionisio ou Baco provava sua existencia aseus fieis, dando a eles a embriaguez e 0 esquecimento. 0 sucessoinacreditavel de seu culto privado no conjunto do mundo helenis-

tieo e romano testemwilia esse fato.Para 0 sujeito moderno, a existencia de Deus se demonstra

pela overdose. Pela presen<;:ada ex-stase nele proprio, 0 sujeito expe-rimenta a presenc;a do Outro. Assim, acredita nela. Mas sabemos,desde a segunda teoria das pulsoes em Freud, e com Laean, que 0sujeito prefere 0 gozo it autoconservac;ao, e que 0 narcisismo nao ebarreira contra a pulsao de morte. Em nossa civilizac;ao, 0 sujeitopode eseolher "entregar-se it morte" de varias maneiras. A overdosenao se restringe aos comportamentos suicidas, como as toxico-manias de drogas pesadas. 0 sujeito pode se matar no trabalho,

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escolher esportes perigosos, viagens estranhas, tentar ser astro-nauta amador ou apresentar apetite multiforme pelo risco. Podetambem escolher 0 suiddio politico, transformar-se em homem

bomba e gozar de sua morte. Em toda essa bacanal mortifera, taocaracteristica de nossa epoca, encontramos manifestas;6es da busca

de uma presens;a do Outro em nos. POl' que ele nos abandonou?

Tal questao nos faz levar em conta as duas faces da subjetividadecontempodnea. De urn lado, 0 fenomeno do "crepusculo do de-vel''', como chamado pOl' Gilles Lipovetsky; ,do outro, a busca de

urn sintoma em que valeria a pena acreditar. Trata-se da aurora dosintoma. Os fenomenos decorrentes do "crepusculo do dever" sacligados, de forma muito expressiva pOI' Lipovetsky, a constatas;aode uma ruptura:

Desde a metade de nosso seculo, uma nova regulas:ao social dosvalores morais se configurou, e ela nao se sustenta mais sobreo que constituia 0 movel mais importante do cicIo anterior: 0culto ao dever. [... ] ninguem ousa mais comparar a 'lei moralern mim' a 'grandeza do ceu estrelado sobre rnirn'. 0 deverse escrevia ern letras rnaiusculas; nos 0 miniaturizarnos; ele erasevero, organizamos shows recreativos; ordenava a subrnissaoincondicional do desejo a lei, reconciliamo-lo com 0 prazer e 0se!finterest. 0 't: preciso' cedeu lugar a encantas:ao da felicidade;a obrigas:ao categorica, a estirnulas:ao dos sentidos; 0 interditoirrefutavel, as regulas:oes a Ja carte (Lipovetsky, 1992: 48).

Percebe-se claramente que 0 decHnio do ideal se acompanhadas exigencias do gozo.

Aqui a gestao higienista de si e os pIanos de aposentadoria, la 0superendividarnento dos casais, 0 alcoolismo e outras 'viagens

alucinatorias', toxicomaniacas. Quando se apaga a religiao dodever, assistimos nao ao declinio generalizado de tocias as vir-tudes, mas sim a justaposir;:ao de urn processo desorganizadora um processo de reorganizar;:ao etica estabelecido com baseem norrnas individualistas: e preciso pensar a era pos-moralistacomo urn caos organizador (: 17).

Para Lipovetsky, esse "caos organizador" sup6e a manutens;aoda hipotese de urn sujeito hedonista. 0 homo hedonicus teria con-sistencia suficiente, eo hedonismo nao apresentaria qualquer difi-culdade de se manter nos limites do prindpio do prazer. Isso, semduvida, e subestimar a verdadeira natureza do supereu, sua exi-gencia pulsional e seu poder ilimitado. Levemos a serio a metaforados autores contemporaneos: 0 isomorfismo do caos. Estamos emurn estado do Outro, no qual a linearidade causal efeito e questio-

d h d" I. d "nada. No que se po e carnal' e as matematlcas 0 caos , essalinearidade e tocada. Nesse estado de civilizas;ao, a pulsao revelaainda mais sua face mortal.

Diante de tal contexto, 0 psicanalista nao pode pretender aliviaro sujeito contemporaneo de sua culpa em relaS;ao ao ideal. 0 su-jeito ja esta aliviado. Ele e light. Mas essa leveza e insustentavel,como percebeu Milan Kundera no titulo fulgurante de seu roman-ce. Trata-se, sobretudo, de suportar a inconsistencia do Outro,sua ausencia de garantias, sem ceder ao imperativo de gozo dosupereu. 0 importante nao e 0 aparente alivio do sujeito, mas 0peso de sua relaS;ao com 0 gozo. Quando 0 sujeito esta aliviado dos

deveres da crens;a, como gozar sem que isso seja sua umca obri-gas;ao? 0 psicanalista deve permanecer atopico em relas;ao a cor-rente principal da civilizas;ao que 0 arrasta. Ele nao se contenta em

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encantar-se com a "liberavao" dos costumes, pois percebe 0 seuavesso, 0 novo imperio do gozo. Ira, por isso, transformar-se emurn novo censor, em urn defensor dos costumes, em uma especiede simetria inversa ao deslocamento da civilizavao? Trata-se de uma

tentavao da qual nao sairam incolumes alguns psicanalistas. Vimosisso, por exemplo, nos debates sobre os pactos civis de solidarie-dade (PACS) e as novas formas de parentalidade. Nao devemosisolar-nos em uma falsa alternativa entre dizer sim ao empuxo-ao-gozar, cujas exigencias sac incessantes, e dizer nao, apelando paraos limites da justa medida. Esse sim e esse nao, assim formulados,fogem da particularidade do inconsciente para cada sujeito. Nessestermos tao generosos, sim e nao conduzem igualmente ao triun-fo do supereu. Obedecer ao "Goza!" equivale a obedecer a suaordem. Restabelecer 0 censor e anunciar devastavoes futuras nosnovos desvios a serem assumidos pel a pulsao.

No que diz respeito ao gozo, 0 psicanalista deve reenviar 0

sujeito a sua particularidade. Essa e uma variante da resposta deHeidegger a visao cientifica do mundo. Heidegger era sensivel afalta de relavao com 0 pensamento que "ataca a substancia maisintima do homem contemporalleo". Na condivao de Gilculo uni-versal, 0 pensamento nao e a relavao mantida pelo sujeito comurn pensamento que the seria particular, que the pertenceria, urnpensamento do sentido. "0 pensamento que calcula nao para ja-mais, nao entra em si mesmo. Nao e urn pensamento meditante,um pensamento em busca do sentido que domina em tudo que e"(Heidegger, 1966: 166). E como se afastar da corrente dominanteda civiliza<;:ao,a corrente da razao tecnica? A resposta de Heideggernao e 0 refugio no pensamento do sentido, nem a recusa da visaocientifica. "Seria insensato atacar, a cabe<;:adas,0 mundo tecnico

[... ]. Dependemos dos objetos que nos sac fornecidos pela tecni-ca" (: 176). Ele propoe dizer sim e nao a um so tempo. "Podemosdizer 'sim' e, ao mesmo tempo, 'nao' ao emprego inevitavel dosobjetos tecnicos, no sentido de impedi-los de nos engolir e, assim,

falsear, confundir e, finalmente, esvaziar 0 nosso ser. [... ] limapalavra antiga serve para designar essa atitude de dizer simulta-neamente sim e nao ao mundo tecnico: Gelassenheit, 'serenidade','igualdade de alma'. Falemos, entao, da alma i8ual em presenfa das

coisas" (: 177).Transponhamos 0 vocabuhirio do fil6sofo para 0 campo que

nos interessa, 0 do gozo. Podemos dizer que 0 grande movimentoda civiliza<;:ao,seu hedonismo de massa, faz desaparecer a particu-laridade do sintoma. A visao hedonista do mundo apoia seu im-perio no acesso ao gozo "para todos". 0 dlculo da maximiza<;:aodo gozo esta ao alcance de cada urn. Ha, portanto, dois tipos derela<;:aocom 0 gozo, ambos necessarios: querer mais gozo e querera particularidade do sintoma. Tambem seria insensato atacar, decabe<;:abaixa, 0 hedonismo de massa e 0 fetichismo da mercadoriageneralizada. Dependemos dos objetos e das fantasias ready made

fornecidas pela civiliza<;:ao,para deles extniirmos uma mais-valia

de gozo. Dizer "nao" consiste em impedir que 0 pronto-para-Bozargeneralizado nao esteja a escuta da particularidade de nosso sin-toma. Seu envelope formal e contingente, nao pertence a todos.Nesses termos, a serenidade do sujeito "igual em presen<;a dos ob-jetos de gozo" e nao perder de vista a singularidade do caminhoque the e proprio.

Existe urn aspecto da experiencia de gozo diferente da overdose,a experiencia do todo, que seria mais bem chamado de alloverdose,e que e 0 sintoma. Se quisermos formular uma experiencia ori-ginaria de gozo, impor-se-a 0 reencontro troumatique com 0 sin-toma. A alloverdose respondem os pequenos furos particulares decada sujeito liberado da tirania de gozar de "tudo".

Trata-se de urn gozo estrangeiro, mas que e uma presen<;:aine-dita em meu mundo. Isso nao e eu, mas e nisso que 0 sujeito comoresposta do real se encontra. 0 sintoma e a dime"nsao de nossaex-sistencia no mundo. Instalemo-nos nesse sintoma, dedique-mo-nos a existir como sin tom as e descobriremos que isso em que

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"1 d··" b' , " . d "somas ans:a as tam em nos e enVla 0 , tomando-nos destina-tarios disso que e nosso destino. Nos ex-sistimos ao sintoma, paisha uma tensao no sintoma. De urn lado, ele e envelope formal;de outro, pedas:o de nos mesmos, acontecimento de nosso cor-po. Por intermedio desse pedas:o de corpo que posso reconhecercomo meu, tenho acesso ao significante do Outro em mim, a essamensagem vinda de alhures. Quando estou em face do Outro este,nao e exterior a mim, esta em mim. Eu sou 0 Outro que esta ItPodemos indicar esse acesso como a crens:a do sujeito no sintoma.o sintoma se prova porque da acesso ao inconsciente como modode gozar. Assim como "a prova do pudim e 0 fato de que 0 come-mos", a pro va da existencia do inconsciente esta no sintoma. Eis aenfase que, desde 1987, Jacques-Alain Miller evidencia no ultimoensino de Lacan. "Durante este ano, pude comentar longamente adefinis:ao do sintom a com que Lacan come yOU0 ultimo periodo deseu ensino: 'modo pelo qual cada urn goza do inconsciente, ja queo inconsciente 0 determina" (Miller, 1987: 11).

o psicanalista se orienta pdo real do sintoma, sempre parcial,"pedayo de real". Trata-se de urn saber que se apresenta sob umaforma que supoe a travessia da angUstia. No resumo do seminariosobre os problemas cruciais da psicanalise, Lacan apresenta isso doseguinte modo. "A dificuldade de ser do psieanalista decorre daquiloque ele encontra como ser do sujeito: a saber, 0 sintoma. [... J vemoso que custa, para 0 ser-do-saber, reconhecer as formas afortunadasdaquilo a que ele so se acopla sob 0 signo do infortumo" (Laean,1966a: 201). 0 infortUnio da posis:ao do psicanalista nao 0 impedede transmitir a outros 0 modo de acesso ao real que the e proprio.o sintoma e 0 ponto impossive! de ser incorporado ao mundo emque 0 sujeito funciona. Ele se apresenta inicialmente como infortu-

nio, como impossivel e na contingencia das origens de cada urn des-ses sintomas. "Nossa certeza esta nissa, ja que a contingencia e capazde demonstrar 0 impossivel [... ] proprio ao inconsciente, aquele queresponde a formula nao ha re!ayao sexual" (Miller, 1997b: 25-8).

Transmitir 0 encontro com esse real demonstrado pel a con-tingencia inedutivel dos traumas e dos encontros de gozo e 0 queLacan chamou de "fazer 0 sujeito crer em seu sintoma". Trata-sede indicar a via pela qual se pode viver 0 que nao pode ser vividodo nao-todo. 0 insuportavel do sintoma pode se transforrnar em

ponto de apoio para que 0 sujeito reinvente seu lugar no Outro.Essa invens:ao, no entanto, nao supoe fazer existir 0 Urn desse Ou-tro. 0 Outro do sintoma e despedas:ado. Os tipos de sintoma sedistribuem em series justapostas, dispares, sem constituir mundos,civilizayoes-unas. Em urn sentido, contudo, 0 sintoma depende dacivilizac;:ao. Ha novos sintomas toda vez que os significantes mes-tres se deslocam no Outro. A rapida evoluyao da cHnica diagnosti-ca e estatistica dos transtornos mentais (DSM), cujas categorias sacadmitidas e mudadas com aclamac;:oes, evidencia urn processo maisdificil de ser balizado do que as tradis:oes cHnicas estabelecidas ao

longo do tempo. Foi preciso 0 declinio do pai para que 0 parriddiodeixasse de ser interessante e a crianya maltratada tomasse a frenteda cena. Foi preciso a sociedade de consumo para que as epidemiasanon~xicas e buHmicas adquirissem escala de massa, e para que,de maneira mais global, fossem desencadeadas as adiyoes de todotipo. Foi preciso uma crise na questao do real para que a depressaocomo "cansayo de ser 0 que se e" (Leguil, 2001) imperasse. Nossacivilizac;:aotern tanto suas novas quanto suas antigas neuroses, suaspsicoses ordinarias e suas psicoses desencadeadas, sua crise de auto-ridade, sua herans:a cetica das Luzes e seu retorno ao religioso, suatentas:ao comunitaria multiforme. 0 aves so anaHtico da civilizas:aocontemporanea e 0 conjunto inconsistente das interpretac;:oes da-das a esses sintomas. Os lugares dessas interpretas:oes sac tantoos tratamentos individuais e as instituic;:oes em que 0 psicanalista

encontra lugar quanto suas intervenyoes nos diferentes discursos.Conservamos os sintomas determinados pela estrutura, e pensa-mos que a histeria e a neurose obsessiva sac tipos de sintoma tantoquanta a paranoia e a esquizofrenia. A segunda cHnica de Lacan,

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todavia, permite-nos enriquecer 0 repert6rio, sem fazer dele Ull1

leito de Procusto. Acrescentamos ao HOSSO vocabulario clinico aspsicoses ordinarias, as neuroses extraordinarias, as inclassificaveis,as trac;os de perversao nas neuroses e as normas homossexuais.Isso faz parte de nossa orientac;ao em direc;ao ao real e permite quesejamos mais precisos do que a vaga referencia a categoria plet6ri-ca de "borderline". Como disse Philippe La Sagna, "0 psicanalistanao constitui 0 sintoma, ele 0 complementa. Ele tambem deve seobrigar a acolher as novas form as do sintoma, mesmo que elas se-

jam 'mono'. E tambem, com efeito, urn nome do Urn. [... ] Cadasintoma, sobretudo se e inedito e epidemico, torna 0 sujeito sensi-vela sua realidade ,de objeto a. [... ] 0 sujeito se torna 'aiflcado' porele [... ]. E a epidemia consegue se disseminar tambem porque, acada vez, a cada novo sintoma, urn novo a8a1ma surge em primeiroplano" (La Sagna, 2003). Fazer-se destinatario do sintoma e, por-tanto, repor em circulacrao 0 a8a1ma cristalizado na identificac;aocom urn sintoma comum, ou seja, reenviar 0 sintoma a sua duplacontingenci~. Ele se inscreve em urn Outro que ja esta la e emurn corpo no qual faz acontecimento. Apoiar-se sobre, acreditarno sintoma, e querer "necessariamente" 0 que somos por acaso.o sintoma se acrescenta ao corpo, que se mostra inacabado em urnextase que 0 mantem "aberto".

Nesse sentido, 0 programa de acrao do psicanalista pode sernomeado com a f6rmula: fazer acreditar no sintoma. Encontrara forma de enderecrar-se a angu.stia do sujeito e faze-Io entenderque os sintomas ineditos de nossa civilizacrao sac legiveis. E eleso sac a partir do estranho uso que 0 discurso psicanaHtico faz dosignificante mestre. A psicanalise desencanta da boa maneira.A interpretacrao analltica pode por em serie as novas e as antigasformas do sintoma, aquelas que resistiram para mostrar seu "ar defamilia". Lacan se orgulhava de demonstrar ao sujeito sartreano quese dizia ateu 0 quanto ele aderia a crenc;a em Papai Noel. Passar da

crencra no pai a crencra no sintoma e uma ambic;ao para a psicanalise

de nosso tempo. Isso e parte da asserc;ao segundo a qual 0 N ome-do-Pai e urn sintoma. Mas e preciso conseguir le-Io. 0 enderecra-mento que se instala por essa leitura permite deslocar a sintoma.Interrogamo-nos sabre 0 projeto Pipol porque esperamos intervirnos lugares onde os sintomas contemporaneos sac recolhidos. Issonao quer dizer que eles sejam entendidos ou tratados, mas sirn quedeixam tracros em alguns lugares. A partir do trabalho de leituradesenvolvido nas Escolas de psicanalise que constituem a AMP,tentamos fazer com que esses trac;os falem, eles que nao cessamde tomar a palavra. Assirn, continuamos a nos inspirar na etica dapsicanalise, que visa tamar 0 mundo possivel para urn sujeito, aolhe revelar 0 quanto os reflexos de laHn8ua ja correm pelas ruas.o inconsciente que esta ai e urn saber-fazer com laHn8ua, e con-tinua a assegurar 0 sujeito de uma nova certeza. Ele pode se virarcom isso tao bem quanto ere faze-Io com a imagem de seu corpo.Lacan opunha a dimensao imaginaria do corpo a de acontecimentode corpo. A captura do sujeito por sua imagem produz a sociedadedo espetaculo. Ela se fundamenta na pseudogarantia de que a es-sencia do sujeito estaria at. Reduzir 0 Nome-do-Pai a urn sintoma

(Lacan, 1975-6: aula de 18 de novembro de 1975) e fazer do sin-toma 0 fundamento da sustentac;ao do Outro. A etica da psicanali-

se e a de uma "sociedade do sintoma".