a sociedade das crianças

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A sociedade das crianças

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  • P O I S I S REVISTA DO PROGRAMA DE P

    UNISUL, Tubaro, v. 4, n. 8, p. 342 359, Jul./

    Esta obra est licenciada sob uma Licena Creative Commons.

    A Sociedade das Crianas Auwe revisitando

    RESUMO: O objetivo deste artigo dar a conhecer as crianas no amplo e complexo universo de relaes somelhor. Percorremos os meandros de uma sociedade que possui regras prprias de articulao com expectativas, limites, compromissos e condicionamentos que a envolvconcepes e solues particulares para os desafios individuais e coletivos que se colocam no correr do tempo. A pesquisa decorre entre 1991 americano que prope uma Antropoconhecido no mbito da Antropologia no Brasilinterlocuo terica d-se no campo da Etnologia Indgenaantropolgicos sobre as crianas e a infncia, na poca, ainda por explorar neste pas Palavras-Chave: Criana, Infncia,

    Aurevisiting

    ABSTRACT: This article aims to introduce theand complex universe of social relationsbetter. We go through the meandersboundaries, constraints and compromises thatfor individual and collective challenges1996, in a period when theanthropology of children and childhoodbibliographic production was available for referencefield of Indigenous Ethnology studies children and childhood, still unexplored in this country at that time Key-words: Children, Childhood, Anthropology, Ethnology, A

    1 Verso reduzida de um captulo da dissertao de Mestrado

    uma antropologia da criana, Dept. Publicado em 1999 pelo Instituto de Inovao Educacional, Ministrio da Educao, Portugal. Ver desenvolvimento desta investigao em NUNES 2003.2 CRIA Centro em Rede de Investigao em Antropologia, FCSH/UNL,

    REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO MESTRADO UNIVERSIDADE DO SUL DE

    ./Dez. 2011.

    Esta obra est licenciada sob uma Licena Creative Commons.

    A Sociedade das Crianas Auwe Xavante: revisitando um estudo antropolgico sobre a infncia1

    dar a conhecer as crianas Auwe-Xavante (Brasil). Atravs delas entrno amplo e complexo universo de relaes sociais deste povo indgena e passamos

    os meandros de uma sociedade que possui regras prprias de articulao com expectativas, limites, compromissos e condicionamentos que a envolvem, concepes e solues particulares para os desafios individuais e coletivos que se colocam no correr

    entre 1991 e 1996, quando o movimento acadmico europeu/norteuma Antropologia da Infncia e toma forma na dcada de 90, ainda n

    conhecido no mbito da Antropologia no Brasil, nem havia acesso bibliografia por este produzidase no campo da Etnologia Indgena, e alude potencialidade dos estudos

    gicos sobre as crianas e a infncia, na poca, ainda por explorar neste pas

    Infncia, Antropologia, Etnologia, Auwe-Xavante

    Auwe-Xavante Childrens Society: revisiting an anthropological study on childhood

    to introduce the A'uwe-Xavante children (Brazil). Through themsocial relations of this Brazilian indigenous people and

    the meanders of a society that has its own rules of dealing withcompromises that involve highlighting particular conceptschallenges arising over time. This research developed between

    the European/North American academic movement proposingchildren and childhood, was not yet known within Brazilian Anthropology, nor the

    bibliographic production was available for reference. The theoretical dialogue takes place within theEthnology studies and alludes to the potential of anthropological studies

    unexplored in this country at that time.

    Children, Childhood, Anthropology, Ethnology, Auwe-Xavante

    Verso reduzida de um captulo da dissertao de Mestrado A Sociedade das Crianas At. de Antropologia/USP, Brasil, 1997, sob orientao de Aracy Lopes da Silva.

    Publicado em 1999 pelo Instituto de Inovao Educacional, Ministrio da Educao, Portugal. Ver o em NUNES 2003.

    Centro em Rede de Investigao em Antropologia, FCSH/UNL, Lisboa, Portugal, [email protected]

    VERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

    By Zumblick

    1

    Angela Nunes2

    ). Atravs delas entramos passamos a conhec-lo

    os meandros de uma sociedade que possui regras prprias de articulao com em, e que evidencia

    concepes e solues particulares para os desafios individuais e coletivos que se colocam no correr mico europeu/norte-

    ncia e toma forma na dcada de 90, ainda no era , nem havia acesso bibliografia por este produzida. A

    , e alude potencialidade dos estudos gicos sobre as crianas e a infncia, na poca, ainda por explorar neste pas.

    them we enter the vast and get to know them

    of dealing with expectations, concepts and solutions

    research developed between 1991 and movement proposing a

    Anthropology, nor the takes place within the

    of anthropological studies on

    A Sociedade das Crianas Auwe-Xavante: por

    , Brasil, 1997, sob orientao de Aracy Lopes da Silva. Publicado em 1999 pelo Instituto de Inovao Educacional, Ministrio da Educao, Portugal. Ver

    [email protected]

  • P O I S I S REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO MESTRADO UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

    Posis, Tubaro, v. 4, n. 8, p. 342 359, Jul./Dez. 2011. 343

    Introduo

    Desde 1960 que pesquisas realizadas entre os Xavante3 nos mostram e analisam

    inmeras facetas da vida deste povo indgena do Brasil Central4. Ao abrir mais uma

    perspectiva de investigao, a das crianas, procuro perceber certas peculiaridades que

    sobre estas no se evidenciam em outros trabalhos, nomeadamente, sutilezas nos

    relacionamentos familiares e societrios, manifestao de emoes e sentimentos, e

    mistrios da construo e veiculao dos saberes. Sair do universo de referncias prprio da

    vida dos adultos, de onde emerge a grande maioria dos temas j trabalhados, e direcionar a

    pesquisa para as crianas e assuntos que lhes so intrnsecos, como as brincadeiras ou a

    permissividade de sua circulao pela aldeia, permite revelar aspectos at agora raramente

    considerados ou apenas julgados irrelevantes no contexto das preocupaes tericas da

    Antropologia. Para alm de fornecer uma contribuio indita ao crescente conhecimento

    sobre esta sociedade como um todo, a perspectiva aqui proposta permite, sobretudo, que se

    conheam as suas crianas. Com uma pirmide etria de base largussima, tal como muitas

    outras sociedades indgenas no Brasil, os Xavante demonstram gostar de ter crianas e

    nutrem por elas um carinho que supera os laos maternais e paternais, correspondendo

    tambm a necessidades econmicas do grupo domstico e garantia da reciprocidade que

    se estabelece atravs do casamento dos filhos e filhas. Preocupam-se, ainda, com a poltica

    demogrfica dos povos indgenas em geral. O crescimento demogrfico positivo e traz

    vantagens, porm, mais uma dificuldade no processo de adaptao vida sedentria e aos

    novos modos de produo e de subsistncia do grupo5, verificando-se um aumento

    expressivo dos ndices de morbi-mortalidade infantil.

    Os Xavante tm uma organizao social baseada em metades exogmicas,

    atravessada por um sistema de classes (age-sets) e de categorias de idade (age-grades) que

    para MAYBURY-LEWIS (1984) e LOPES DA SILVA (1986)6 constituem peas fundamentais na

    sua estrutura social, atravs das quais todo o esquema societrio se manifesta e se pe em

    3 Os Auwe-Xavante esto localizados no Mato Grosso, pertencem famlia lingustica J, tronco Macro-J.

    Atualmente, so estimados em 13.000 indivduos, distribudos por 9 Terras Indgenas e cerca de 165 aldeias (http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xavante/1159). 4 Referncias mais importantes: MAYBURY-LEWIS 1984; LOPES DA SILVA 1986, 1992; GRAHAM 1995; MLLER

    1976. 5 Ver LOPES DA SILVA (1992), FLOWERS (1983) e GRAHAM (1995) sobre o percurso histrico dos Xavante.

    6 Ver NUNES 1997 e 2003 sobre as categorias de idade Xavante, com incidncia nas que correspondem

    infncia, a partir da avaliao dos trabalhos de Maybury-Lewis, Lopes da Silva e da sua prpria etnografia.

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    movimento. No tm uma categoria de idade genrica equivalente a criana. Para saber

    como classificam socialmente as suas crianas e identificam o que parece corresponder

    fase etria que entre ns equivale infncia, preciso recorrer s suas categorias de idade,

    diferentes para cada um dos gneros e no quantificadas em anos. Os indivduos Xavante,

    includas as crianas, podem no saber quantos anos tm mas todos sabem a que categoria

    de idade pertencem7.

    A primeira dessas categorias, comum a ambos os gneros, aiut. Designa os bebs

    recm-nascidos e os de colo. A autonomia de deslocao, a capacidade de comunicao e o

    fim da amamentao so fatores que determinam o tempo-limite desta categoria. A partir

    de aiut, as categorias de idade passam a ser diferenciadas para meninos e meninas. No que

    refere aos primeiros, a categoria seguinte watebremi (2-3 at 9-10 anos). Segue-se a

    categoria airepudu (9-12 anos), abrangendo aqueles que, embora j sob observao dos

    homens mais velhos quanto a transformaes biolgicas da puberdade, ainda podem brincar

    com as meninas ou acompanh-las em atividades domsticas. Comeam, porm, a ser

    chamados para tarefas junto aos homens: participam em pescarias, permanecem em sua

    companhia na mata, noite, e iniciam comportamentos de evitao social. Assim, as

    categorias de idade masculinas aiut, watebremi e airepudu compem o que os Xavante

    consideram como o perodo da infncia dos meninos, ou pelo menos assim que tentam

    traduzi-lo para a nossa lngua e segundo as categorias usadas por ns. A categoria de idade

    que os identifica como iniciandos vida adulta wapt e a passagem para esta categoria

    abrupta, tendo os meninos de deixar a sua casa e passar a morar em grupo, numa casa

    construda especificamente para esse fim (h)8.

    No ciclo vital feminino, depois da categoria de idade aiut surge a bano, que

    abrange as meninas at os seus seios comearem a se desenvolver. H uma subcategoria

    batre (diminutivo de bano), que vai at aos quatro ou cinco anos. Quando o corpo

    comea a evidenciar as transformaes biolgicas da puberdade, entre os dez e os doze

    7 Embora j existam registros de nascimento com a indicao do ano ainda so as categorias e as classes de

    idade que situam as vrias posies cronolgicas e etrias. 8 Os wapt permanecem quatro ou cinco anos isolados do contato com os seus grupos domsticos e restante

    comunidade, excepto com seus pais, homens mais velhos e os danhohuiwa, responsveis formais pela sua iniciao vida adulta.

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    anos, passa categoria adzarudu9. A passagem de bano a adzarudu parece corresponder,

    portanto, ao limite do perodo da infncia para as meninas, em termos da estrutura social.

    No que refere prtica cotidiana, as bano mais velhas e as adzarudu mais novas fazem

    sensivelmente as mesmas coisas: acompanham as suas mes nas tarefas da roa, casa e rio,

    cuidam dos irmos menores e brincam com as outras crianas. O peso das obrigaes e

    responsabilidades domsticas tende a aumentar para as adzarudu medida que crescem.

    Por uma necessidade relacionada ao desempenho do seu papel feminino, pode ocorrer a

    passagem categoria de idade seguinte mesmo antes da puberdade. Isto no as isola das

    bano, nem dos watebremi e airepudu, mas deixa-lhes menos tempo livre, uma vez que

    passam a acompanhar mais constantemente as outras adzarudu um pouco mais velhas, as

    adab e as pi (mulheres jovens e maduras) de seu grupo domstico. Note-se que, para

    alm da categoria aiut (bebs de ambos os gneros) no existem outras categorias de idade

    genricas que designem do mesmo modo as meninas e os meninos Xavante. Assim, o incio

    da diferenciao entre watebremi e bano, categorias subsequentes aiut, j indica o

    incio de uma grande clivagem entre os gneros e de atribuies especficas para um e para

    outro. Evidenciando-se sobretudo na vida adulta, essa clivagem j est em processo desde

    os primeiros anos de vida. Apesar da manifestao destas diferenciaes, meninos e

    meninas vivem uma infinidade de situaes em comum. Neste texto, quando utilizar a

    categoria criana estarei me referindo a meninos e meninas abrangidos por esse tipo de

    situaes e pelas categorias de idade descritas. Quando for necessrio fazer a distino

    entre os gneros utilizarei menino e menina.

    Os pequenos ciclos que compem o perodo da infncia Xavante carecem de

    etnografia mais detalhada. O significativo volume de informaes presentes nos trabalhos

    de LOPES DA SILVA (1986 e em audiovisual produzido pela Comisso Pr-ndio de So Paulo,

    no incio dos anos 80) e os dados que coletei em campo indicam potencialidades de uma

    vertente de investigao que deve ser aprofundada e ampliada, nomeadamente no que

    concerne dinmica da construo e transmisso de conhecimento, educao escolar,

    processo de conscientizao e vivncia da clivagem entre os gneros, transformao das

    relaes interpessoais face ao contato, acomodao de novos valores e descoberta de novos

    9 As etapas do ciclo de vida da mulher Xavante so marcadas por mudanas menos abruptas, embora

    vinculadas formao das categorias e classes de idade. Na passagem para a adolescncia, as meninas no formam um grupo que vai morar isolado e residem sempre no grupo domstico onde nasceram.

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    sentimentos. Estas informaes e reflexes podem contribuir igualmente para o

    enriquecimento dos estudos sobre a criana, independentemente da sociedade qual

    pertence, e, por extenso, sobre a Humanidade, seja qual for a rea de investigao e/ou de

    atuao dos pesquisadores.

    O encontro com as crianas Xavante de Namunkur

    A primeira viagem a campo sempre revestida de enorme expectativa, nervosismo,

    apreenso e uma infinita curiosidade. Aps as costumeiras negociaes com alguns Xavante

    em Barra do Garas para acesso rea, eis-nos partilhando o exguo espao de uma Toyota

    com mais treze pessoas, sacos de arroz e feijo, cestas com pertences pessoais, um

    cachorro, as caixas com os nossos mantimentos e os presentes10. Em toda a volta, a perder-

    se de vista, o cerrado. O topo de alguns telhados de palha de buriti e dois ou trs rolos de

    fumaa indicam a proximidade da aldeia. Subitamente, estamos l. A estrada desemboca

    numa praa enorme, com mais de duas dezenas de casas, em semi-crculo quase fechado,

    marcando o limite entre a clareira e a mata. Ao centro, a sombra de um aglomerado de

    mangueiras abriga crianas, mulheres e homens que assistem a um jogo de vlei. Algumas

    pessoas encaminham-se para a Toyota, ao encontro de parentes, para ajudar a retirar a

    carga e ver mais de perto a novidade: ns e a nossa bagagem! Alm de Boaventura

    Tserewamariwe Tserewawa, anfitrio das minhas estadias em Namumkur e um dos

    professores da aldeia, apenas quatro ou cinco homens mais velhos nos do as boas vindas

    com um aperto de mo. Os outros Xavante que nos rodeiam mantm-se a poucos passos de

    distncia, trocando breves palavras entre si, em Auwe. Dissimuladamente, um ou outro

    vinha tocar nas mochilas. As crianas tambm acorrem em grande nmero chegada da

    Toyota. Algumas meninas maiores trazem bebs apoiados nos quadris. Embora com alguma

    timidez, as crianas ousam ficar mais perto e o seu olhar curioso mais direto que o dos

    adultos. A grande maioria tem a barriga enorme, contrastando com pernas e braos bem

    magros, secreo escorrendo do nariz. Muitas tm feridas no corpo, com maior incidncia

    no couro cabeludo. No me parecem muito saudveis.

    10 Tendo projetos distintos, a primeira viagem aos Xavante foi feita com Eduardo Carrara, colega de graduao

    (Julho 1991).

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    Ao sermos conduzidos pelo professor Xavante ao alojamento na escola, nica

    construo de alvenaria, apenas mais dois ou trs adultos nos acompanham. Os outros vo

    dispersando. As crianas, lado a lado conosco, numa algazarra de palavras entre as quais

    identifico waradzu (branco), no desistem. a muito custo que Boaventura consegue que

    saiam do compartimento e, mesmo assim, amontoam-se porta e janela. Depois vo em

    bando atrs de ns at ao rio, atentas a cada passo, gesto, palavra, objeto. Vencendo a

    timidez, pedem biscoitos e arriscam uma ou outra palavra em portugus. J de noite,

    quando Boaventura nos recomenda repouso, ainda h muitas crianas por ali em busca de

    qualquer oportunidade para se aproximar, mexer ou pedir alguma coisa e, mais do que tudo,

    para ficar olhando. L fora, distncia e protegidos pelo escuro, alguns adultos tambm nos

    observam.

    Nos dias que se seguem as crianas vo ganhando intimidade, se acostumando

    comigo, com meu objetos e meus gostos, e at com o meu cabelo enrolado, que teimam em

    esticar quando fica molhado pela gua do rio, fazendo com este uma franja igual que

    usam. Muito embora aos poucos voltem ao ritmo do seu dia a dia com as outras crianas,

    parentes, na sua casa, na comunidade, nunca deixo de ser uma curiosidade, de ser

    observada meticulosamente. Mesmo que para ir ao rio buscar gua tenham de fazer um

    desvio enorme, s para saber o que eu estou fazendo do outro lado da aldeia, no deixam

    de cumprir a tarefa que lhes confiada, nem se privam de ir atrs de outras coisas, pessoas

    ou acontecimentos que despertem o seu interesse. A presena das crianas, com o seu olhar

    arguto, com uma irresistvel vontade de tocar e cheirar aquilo que lhes mais estranho,

    expressando enorme curiosidade, torna-se uma constante. Esta atitude a mesma da

    manifestada com os outros e nas mais variadas circunstncias da vida comunitria: quando

    um grupo de mulheres torra farinha, um caador volta aldeia, os wapt saem para danar,

    algum briga, os homens discursam a partir do war (centro da aldeia), um velho prepara as

    penas de um adorno, outras crianas brincam de alguma coisa, e at mesmo quando um

    beb chora. A diferena que eu sou de fora e condenso mais novidades.

    As crianas andam quase sempre com outras crianas, maiores ou menores,

    observam e partilham entre si habilidades, invenes, conflitos, descobertas, medos, modos

    de perceber, sentir e reagir aos outros. Olhar tudo e todos, ouvir todas as conversas, ir a

    todos os lugares, so privilgios das crianas e elas os usam com toda a propriedade. So os

    modos mais eficientes para participar da vida da aldeia e ficar por dentro de tudo o que

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    acontece. uma prtica que, para as crianas, quase no tem restries e que lhes permite

    seguir atenta e abertamente o que os adultos fazem ou dizem, gerando um tipo de

    relacionamento com estes que difere do que os adultos estabelecem entre si. Pode parecer

    que s crianas no so impostos limites. Mas estes esto l, e as crianas aprendem a

    identific-los abordando-os e vivenciando-os pblica e privadamente, pessoal e

    comunitariamente, obtendo assim um conhecimento pleno da sociedade onde esto

    vivendo e dos indivduos com os quais esto interagindo. Ficam a conhecer as regras que

    garantem a existncia peculiar de vrios tipos de relao entre as pessoas daquela

    sociedade, as concepes que as embasam e que permitem interpretar o mundo. Ficam,

    ainda, a conhecer temperamentos, manias, capacidades, dificuldades e vontades de cada

    uma delas e a forma individual de as expressarem. esta aparente desordem ou falta de

    ordem, ou antes, uma ordem vivida de um outro modo, que lhes permite a incorporao das

    regras sociais que devero rigorosamente observar em etapas de idade posteriores.

    Estar presente e olhar

    Um dos aspectos potencialmente mais ricos para nos iniciarmos ao peculiar universo

    da criana Xavante a sua presena ou, diria mesmo, onipresena na aldeia: como a

    manifestam ou dissimulam, como exploram a complacncia e a tolerncia com que os

    adultos a aceitam, e os inmeros mecanismos de socializao e aprendizado que atravs

    desta so ativados e desenvolvidos. Concomitantemente presena est o olhar, a vivncia

    dos espaos, e a permissividade e liberdade com que so vividos.

    Os pais pedem s crianas que me acompanhem, vejam e saibam tudo a meu

    respeito, e que voltem para lhes contar: o que eu tenho, o que cozinho, como fao isto ou

    aquilo, quem me visita e com quem converso, quem me leva mandioca e quem me pede

    sabo, se ajudo no posto de sade, onde fui e onde estou, se a minha rede se soltou e eu ca,

    se consigo ou no me equilibrar sobre o tronco que atravessa o rio, se tenho medo dos

    morcegos, etc... Este tipo de informao obtido de vrios modos. Tanto podem tentar se

    comunicar comigo, como podem entrar no meu alojamento sem dizer nada e sentar-se a

    olhar, ignorando-me por completo, at decidirem sair. Por vezes, oferecem-se para ajudar

    em pequenas tarefas: lavar as minhas panelas, pratos, talheres, que demoram a cheirar,

    manusear, estudando sua forma, peso e consistncia. Se esto em grupo chegam mesmo a

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    disputar pea por pea. Ajudam-me a trazer gua do rio ou seguram os meus chinelos

    enquanto me banho. Quando vou queimar o lixo sempre aparecem crianas que o pedem.

    Fico relutante mas acabo cedendo, curiosa sobre o que faro. Elas afastam-se um pouco

    para abri-lo e fazem uma rigorosa anlise do contedo: separam tudo, observam as

    diferentes texturas e espessuras das embalagens, sua transparncia ou brilho, cheiram e

    experimentam o gosto de vestgios de comida, mostram uns aos outros e comentam entre

    si, guardam o que lhes interessa e depois pedem-me fsforos para o queimarem. Todas

    estas situaes constituem fontes de informao sobre mim para toda a comunidade.

    Porm, as crianas tambm me acompanham porque elas mesmas querem e h muitos

    episdios sobre os quais no falam em suas casas. o caso das nossas prolongadas

    conversas de palavra a palavra, entremeadas por pacientes e silenciosas procuras no

    dicionrio11, sendo que descoberta de cada palavra h uma unnime manifestao de

    contentamento, coroada por um ih (sim) coletivo. tambm o caso de biscoitos que

    resolvo distribuir subitamente, sem que tenha sido pedido ou esperado e que se consomem

    de imediato, em cumplicidade. , ainda, o caso de comportamentos considerados menos

    certos, tal como levar lpis de cor e de cera s escondidas. Isto indica que para alm de as

    crianas serem utilizadas como testas de ferro de uma curiosidade que comunitria e da

    necessidade de troca de informaes que atinge a todos por igual, para alm da sua prpria

    curiosidade pelo que diferente, elas estabelecem laos pessoais que refletem traos de

    suas personalidades, sensibilidades, sentimentos, preferncias, enfim, dimenses

    individuais, porm universais, que no submergem fora do coletivo que as envolve. Os

    adultos tambm vivem a sua individualidade, porm, na vida adulta Xavante a dimenso

    coletiva que se exalta. O perodo da infncia surge, portanto, como a etapa em que a

    individualidade da pessoa Xavante se manifesta, se constri e se d a conhecer com toda a

    liberdade, a si e aos outros.

    As crianas tambm se tornam diversa e criativamente presentes em situaes em

    que estou com adultos Xavante. Ao ser convidada por um adulto para sentar na frente da

    sua casa e conversar, sinto as palhas que formam a parede da casa se afastarem

    ligeiramente e uma vozinha de criana chamar. Respondo-lhe, mas como estou conversando

    com o seu pai, no dou muita ateno aos seus vrios chamados. Ento, de dentro da casa,

    11 Dicionrio Auwe-Xavante Portugus, policopiado, organizado pelos padres salesianos instalados naquela

    regio desde os anos 1960.

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    Posis, Tubaro, v. 4, n. 8, p. 342 359, Jul./Dez. 2011. 350

    ela comea a cantar em Auwe, primeiro baixinho e depois a plenos pulmes,

    estridentemente, capaz de se fazer escutar na aldeia toda. O pai Xavante continua a

    conversa como se nada estivesse acontecendo e apenas sorri a cada tomada de flego que a

    menina d, escondida pela palha de buriti. Do mesmo jeito que no se manda uma criana

    embora quando ela se aproxima de algum ou de um grupo, parece que tambm no a

    obrigam a calar, quando esta a forma que encontra para marcar a sua presena. Note-se,

    cantar em voz alta de dentro das casas um comportamento que pode ser observado entre

    os Xavante, quer para fixar, pela repetio, um canto recebido em sonho e que preciso

    transmitir aos outros, quer para tornar pblicas manifestaes emocionais privadas, tal

    como o choro ritual pela perda de um parente.

    H ocasies em que as crianas permanecem to quietas e silenciosas no escuro

    fundo da sua casa, ou dentro da divisria que delimita o quarto dos pais, que julgo no haver

    mais ningum naquele espao. Os adultos raramente denunciam a sua presena, embora

    estejam cientes desta. Quando os meus olhos se acostumam penumbra e percebo que as

    crianas esto ali, geralmente elas ficam do jeito que esto, fazendo como se ali no

    estivessem. Em outras ocasies, aproximam-se to sutilmente que demoro a dar conta de

    sua presenca, seja perto da sua casa ou da casa de outros, na beira do rio ou a meio de

    qualquer caminho, esteja eu s ou com mais algum. Vi-as, tambm, ocupando lugares, de

    onde conseguem ngulos estratgicos de observao sobre a aldeia, rio, caminhos que vo

    para a roa, ou sobre lugares onde algo de excepcional est acontecendo ou prestes a

    acontecer. Parece-me que por vezes tentam dissimular a sua silhueta. Os adultos Xavante

    percebem-as com facilidade, embora no o demonstrem. Esta sutileza na aproximao ou no

    modo de se tornar presente, um comportamento observado em outras pequenas

    sociedades. GREGOR (1977) que refere a atitudes semelhantes entre os ndios Mehinaku,

    como mecanismo societrio prprio garantia de privacidade. Pode-se estar com outras

    pessoas num dado lugar e, ainda assim, no estar com elas, ou vice-versa. Para este autor, a

    questo da privacidade obedece a regras de domnio pblico, conhecidas e praticadas por

    todos. H, porm, todo um esquema de bastidores, ou seja, no visvel publicamente, que

    se sustenta por ser igualmente conhecido e praticado por todos, ainda que no

    confessadamente.

    No caso dos Xavante, agir sutilmente o verso e reverso de um mesmo modo de agir

    comunitrio: garante-se a prpria privacidade de movimentos e aes, e possvel saber a

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    respeito do que privado na vida dos outros, sem que acontea uma invaso formal dessa

    privacidade. A privacidade significativamente menos invadida se quem o fizer forem as

    crianas, numa rotatividade que iguala a todos, e porque ser criana diferente de ser

    adulto, dizem. A criana pode escutar, olhar, porque criana no tem maldade. Esclarecem

    que os adultos no querem o mal de seus parentes, mas tm ambio, enquanto a

    criana ainda est limpa. No fundo, todos esto submetidos ao mesmo e as crianas,

    fazendo justia sua facilidade de movimentos, cedo comeam a explorar as

    potencialidades dessa prtica, exercitando-a nas mais variadas circunstncias. Afinal, saber

    chegar a qualquer lugar ou perto de algum sem ser percebido pode ser til para no

    incomodar os mais velhos num momento ritual, em sinal de respeito; serve para no

    interromper uma conversa que se quer escutar; permite que se observe sem constranger

    aquele que observado; fundamental para garantir a liberdade de ir, vir e estar em

    qualquer lugar; ajuda nas caadas no mato; e um dos melhores recursos para se apoderar

    de informaes sobre o que os outros dizem ou fazem, inclusive sobre o que no deveriam

    dizer nem fazer... Mas se verdade que as crianas captam indcios mais ou menos

    evidentes destes comportamentos em seus pais e em outros parentes, e os incorporam em

    seu dia a dia pela aldeia, o modo como agem no espelha a forma de agir dos adultos. Em

    muitas circunstncias, agem exatamente de um modo que vedado aos adultos. Isto vem

    contrariar e complexificar a idia corrente de que o mundo infantil o mundo adulto em

    miniatura. A esfera de permissividade no acesso aos lugares e aos acontecimentos, por parte

    das crianas, supera os limites comunitrios impostos aos adultos, sem contudo os anular.

    Ao mesmo tempo, este o seu modo de os identificar, conhecer e aprender a lidar com eles.

    Para o adulto que quer escutar uma conversa alheia fica mal se aproximar, e para os que

    conversam, fica mal esconder a conversa; todos querem saber o que vem dentro da cesta do

    pescador mas no o expressam em voz alta e ele, por sua vez, no se pode furtar a revel-lo,

    embora deseje no ter de o fazer. A criana fica, deste modo, com a tarefa de estabelecer

    esta stil ponte de satisfao de curiosidades sem que se gerem conflitos e sem que os

    adultos envolvidos se sintam desconfortveis. Grande parte da informao que circula pela

    comunidade , portanto, captada e veiculada atravs do olhar das crianas, da capacidade

    que cada uma delas tem para compreender e interpretar os fatos que observam, de sua

    habilidade para os relatar, transformar, reinventar, ou at mesmo omitir. A curiosidade e o

    interesse das crianas e dos adultos em relao a algo ou algum, diferem entre si, embora

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    possam ter pontos em comum. Difere tambm a leitura que uns e outros fazem do que

    observam. Ou seja, possvel pedir a uma criana que faa algo que seu pai no pode fazer,

    por no ser esse um comportamento julgado correto ou adequado para um adulto, segundo

    os padres do grupo. A criana pode faz-lo, mas o far de modo diferente do adulto. E as

    conseqncias desse ato sero outras. Da no se poder considerar o fazer da criana como

    mera extenso do fazer do adulto.

    Para os adultos Xavante, a necessidade de estar por dentro de tudo o que se passa na

    aldeia tem uma relao direta com a vivncia comunitria, quer seja por motivos de

    solidariedade, controle social, curiosidade ou por no ter mais o que fazer naquele instante.

    importante estar informado para poder ter opinio, tomar parte nas decises, se proteger,

    manter laos de reciprocidade, defender interesses ou satisfazer desejos, saber agir e se

    posicionar quando ocorrem disputas e conflitos entre faces, garantir a continuidade de

    tradies e instituies, absorver mudanas, enfim, para assegurar e acompanhar a dinmica

    social do grupo. Quanto menor a comunidade, mais isto intensamente vivido, uma vez

    que o que concerne a cada grupo domstico tem ramificaes comunitrias que o

    transcendem. H que se ter em conta, ainda, o momento histrico que a comunidade est

    vivendo. O vai-e-vem de homens jovens para a cidade de Barra do Garas e as viagens de

    lideranas polticas s outras comunidades Xavante e a Braslia, deixam a aldeia efervescente

    de novidades que precisam de circular e que atraem o interesse geral. Mas, enquanto

    algumas so totalmente pblicas e veiculadas em voz alta na praa da aldeia, outras so

    privadas. E h ainda as novidades que se escondem a todo o custo e que do trabalho para

    descobrir, tais como relaes extraconjugais ou o roubo de alguma coisa, comportamentos

    que so criticados e dos quais os indivduos se envergonham. Estas novidades acabam por se

    saber mas no se divulga que se sabe12. Esta constante troca de informaes, onde as

    crianas so convocadas a desempenhar o importante papel de investigadoras e

    mensageiras, fornece-lhes um amplo conhecimento sobre o momento que a sociedade vive.

    Funciona, ainda, como eficiente processo de socializao, permitindo s crianas o acesso

    direto a toda a teia de relaes societrias e aos espaos onde esta se concretiza. Enquanto

    os adultos precisam de estar suficientemente informados para poder manter a dinmica

    dessa teia, as crianas precisam de saber quais os mecanismos bsicos que a fazem

    12 A rede clandestina de troca de informaes, comumente chamada fofoca, comentada por NOVAES

    (1986:142) ao se referir ao cotidiano Bororo, considerando-a como um processo culturalmente determinado.

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    funcionar, o que a alimenta, o que a ameaa, o que a transforma, o que a mantm viva e

    atuante.

    O perodo que corresponde infncia peculiar na infinidade e intensidade de

    aprendizados que proporciona em poucos anos, ocorrendo uma srie de conquistas e

    desafios que no mais fazem parte do aprendizado do indivduo uma vez tornado adulto.

    Nos planos mental e emocional tambm h experincias e descobertas que acontecem

    apenas no decorrer dos primeiros anos de vida. O que mais me tem interessado observar e

    analisar o modo como as crianas Xavante fazem uma srie de coisas, at que ponto as

    fazem assim porque so Xavante, ou em que medida as fazem assim porque so crianas,

    identificando fronteiras e reas comuns entre a realidade sociocultural especfica que

    vivenciam e a universalidade da infncia.

    Desafios de um universo de referncias

    A curiosidade e a vontade de saber movem crianas do mundo inteiro. A criana

    Xavante tambm vivencia esse processo, e vai exercit-lo e dar-lhe sentido dentro de um

    conjunto de referncias que dado pelo universo sociocultural especfico onde est

    inserida: a lngua, os cantos, as danas, os objetos, as condies ambientais, os sentimentos

    e as relaes entre as pessoas. Neste conjunto de referncias, podemos incluir as vrias

    formas de manifestao ou de dissimulao da presena de uns no dia a dia dos outros, tal

    como atrs referido, e os inmeros desdobramentos que advm desses comportamentos.

    A liberdade que as crianas experimentam na sua movimentao pela aldeia no

    totalmente isenta de regras. vivenciando os limites que as crianas acabam por conhecer

    as foras e as concepes societrias que fazem com que os indivduos Xavante ajam de um

    modo e no de outro. A desobedincia e o conflito fazem parte da explorao desses limites,

    das manifestaes de autoridade, da imposio de certas regras, segundo a referncia dada

    pela prpria sociedade. Por exemplo, estando eu numa casa, vi crianas de outras casas

    entrando sutilmente, porm sem ser s escondidas, logo aps um indivduo residente nessa

    mesma casa voltar da roa, da caa ou da pesca. Elas ficam ali at que a cesta que ele traz

    seja aberta e despejada. Algumas ficam perto da porta, outras entram um pouco mais,

    outras ficam coladas cesta. Na medida em que os dias vo passando e eu identifico os

    rostos com mais facilidade, sobretudo aps o levantamento das genealogias, verifico que o

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    maior ou menor avano das crianas no interior de casas de outros grupos domsticos tem

    relao direta com o menor ou maior grau de evitao que deve ser observado entre seus

    pais e os adultos desse outro grupo domstico.

    do interior das casas com as quais tenho maior proximidade que observo a entrada

    e permanncia de crianas de outros grupos domsticos. As visitas mais freqentes so as

    dos filhos e filhas dos homens que pertenciam quele grupo e que, por exigncia da prtica

    uxorilocal, residem agora no da esposa. Isto tambm vale para os filhos e filhas de mulheres

    que por algum motivo morem fora da casa de seus pais. Estas crianas, que moram na casa

    dos avs maternos e aos quais chamam irada, esto indo a casa de seus avs paternos, aos

    quais tambm chamam irada, e a tm entrada livre13. Por parte dos avs paternos recebem

    um tratamento igual aos outros netos e netas que ali residem. As visitas tm um carter

    afetivo ou de prestao de servios a adultos que no se podem deslocar pessoalmente. A

    diferena mais significativa em relao aos filhos e filhas de suas tias o acesso que estas

    crianas tm ao quarto destas e de seus esposos (nico compartimento no interior da casa)

    que, embora no totalmente negado, feito com reservas e apenas em momentos

    excepcionais. Convm lembrar que de acordo com a formao das patrilinhagens as crianas

    pertencem metade exogmica de seu pai e que, portanto, at seu pai assumir a liderana

    do grupo domstico onde casou, a casa dos avs paternos que aloja a sua linhagem

    ascendente (MAYBURY-LEWIS 1984:145-148). H crianas que so recebidas nas casas com

    permissividade mediana, ou seja, gerando constrangimento de parte a parte, mas sem

    serem contrariadas. -lhes permitida alguma circulao dentro da casa, desde que no

    entrem no compartimento reservado ao casal. Quando muito, tentam espreitar atravs de

    uma abertura nas palhas da divisria, ou posicionam-se num lugar na casa que possibilite

    olhar pela porta de entrada desse compartimento. Esta porta, porm, est sempre colocada

    de modo a evitar os olhares curiosos. As crianas que assim procedem pertencem a grupos

    domsticos que no observam relaes extremas de evitao nem de proximidade com o

    grupo que esto visitando.

    Outra situao observada a das meninas j prometidas em casamento, enviadas

    por seus pais ou mes casa onde reside o noivo. Enquanto a menina no sabe que aquela

    a casa de seu futuro esposo, ela pode l ir sozinha. Depois que sabe, s pode ir

    acompanhada por sua irm ou irmo mais velhos, ou pela me. O pretexto o de pedir ou

    13 Entre os Xavante tambm so considerados irada os irmos e irms dos avs e avs das crianas.

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    perguntar algo mas, na verdade, trata-se de uma oportunidade de aproximao entre os

    grupos domsticos, atravs de uma reciprocidade que, vinculada ao futuro, no pode se

    eximir desde ento. A convivncia que se gera entre estes atravs das crianas neste

    momento especfico de seu ciclo de vida temporria uma vez que, aps o casamento

    destas, se transforma em relao de evitao. Mas aps ficarem sabendo quais sero seus

    parentes por afinidade, eles devem igualmente comear a observar as tradicionais regras de

    evitao e respeito em relao a esses parentes. Desde o momento do noivado (MAYBURY-

    LEWIS 1984:127), combinado entre as famlias enquanto as crianas ainda so bebs, ambas

    as famlias comeam a usar reciprocamente os termos de afinidade de parentesco. Quando

    as crianas percebem isto perguntam me ou ao pai a respeito de seu noivo ou noiva e,

    obtendo a confirmao, comeam tambm a usar termos de afinidade. A convivncia entre

    afins durante a infncia dos noivos permite acompanhar mais de perto o crescimento dos

    futuros genros ou noras, incluindo-se aqui o controle sobre a manuteno de tradies e

    costumes Xavante. Se soubessem do arranjo de casamento as crianas sentir-se-iam inibidas.

    Assim, aos poucos, vo se acostumando com as pessoas desse outro grupo domstico,

    tornando-se instrumentos chave deste contato entre ambos os grupos. Quando o noivado

    revelado e diferentes comportamentos comeam a ser esperados, estamos perante mais

    uma situao em que as crianas tomam conscincia da clivagem entre os gneros14.

    O contato com os adultos das casas onde entro menos acontece na rea frontal

    externa ou em locais mais pblicos. A frente das casas, considerada como rea privada

    pertencente a cada um dos grupos domsticos, est acessvel a todos. Os adultos que

    passam tm, contudo, certas reservas ao olhar para as pessoas que esto na frente da casa

    ou para o que esto fazendo, cumprimentos diferem e a velocidade com que passam

    varivel. As crianas circulam vontade. Alis, a frente das casas o local ideal para os

    ensinamentos informais, onde habilidades e capacidades individuais so expostas. onde

    torram farinha, tranam cestos e esteiras, fazem colares e outros ornamentos, quebram

    coquinhos, preparam urucum, ralam milho ou mandioca, apontam flechas e esticam a corda

    dos arcos... e tudo isto as crianas olham com vido interesse, vivendo fundamentais

    momentos de aprendizado sobre o modo Xavante de fazer determinadas coisas. O contato

    difcil com alguns grupos domsticos e resume-se a breves cumprimentos. De notar que os

    14 GRAHAM (1995:69-73) mostra como as crianas de todas as casas se acostumam a conviver com o tabu da

    fala, que s os meninos devero observar quando chegar a sua vez.

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    jovens genros dessas casas vm conversar comigo, referindo-se ao pai e sua ligao a uma

    casa da metade oposta, remetendo ao forte facciosismo Xavante. A dicotomia ns/outros

    vivida intensamente por todos. Sendo Boaventura o meu anfitrio na aldeia, eu sou

    identificada como pertencendo ao seu lado, tanto em termos de filiao clnica e a metade

    exogmica quanto em termos polticos, e isto pode desencadear reaes diversas, inclusive a

    de me evitarem. Talvez esse seja um dos motivos. Assim, tambm demoro mais para

    identificar as crianas destes grupos domsticos, muito embora elas no evitem estar

    comigo na aldeia, rio, escola. Na nica vez em que vejo uma delas entrar numa das casas do

    meu lado, ela fica no limiar da porta. Os adultos percebem a sua presena, no a mandam

    embora nem lhe do ateno. Quando pergunto se sabem o que ela quer, respondem ela

    quer s olhar.

    Olhar um trao caracterstico do comportamento Xavante. um ato social

    importante. Estar disponvel para olhar e para ser olhado, pacientemente, com respeito, so

    atitudes basilares do sistema Xavante de construo e transmisso de conhecimento, e

    fazem parte do conjunto de valores que norteiam suas formas de agir, sentir e se expressar.

    Cada sociedade tem cdigos atravs do qual expressa sentimentos, preferncia por cores ou

    sons, gestos, sentidos, modos de vestir ou cortar o cabelo, de se pintar e ornamentar, de

    andar ou danar... sempre em estreita relao com o corpo e manifestando-se

    simbolicamente atravs deste. Os pesquisadores tm evidenciado a ocorrncia de vrias

    destas manifestaes entre os Xavante. MAYBURY-LEWIS (1984:166) refere aos pequenos

    cilindros introduzidos nos lbulos das orelhas dos rapazes durante a cerimnia de iniciao.

    MLLER (1976) analisa a pintura e a ornamentao corporais como cdigo de comunicao

    visual. SEEGER (1980:54) refere oratria, designando a fala como uma das faculdades, ou

    sentidos, mais enfatizados. No caso da presente investigao, talvez por se voltar para as

    crianas e por tentar, a partir delas, apreender o restante, foi o olhar que se evidenciou

    como principal manifestao do cdigo social atravs do qual acontece o processo educativo

    dos indivduos. Ter o olhar atento e manter pronta a possibilidade de participar faz parte de

    um processo de mltiplas faces que se sintetiza nas palavras de um Xavante: no aprende,

    no ensina, a gente olha e vai sabendo. Segundo comunicao pessoal de Lopes da Silva,

    era comum que ao tentar obter explicaes verbais para algum ritual ou atividade lhe fosse

    dito quando voc vir/olhar, voc vai saber/conhecer (atsabui wamh, te dza iwahuu).

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    Consideraes finais: waihuu

    Na lngua Auwe-Xavante, aprender e ensinar traduzem-se pela mesma palavra -

    waihuu - que tambm significa saber ou conhecer. Sinais que expressam a essncia deste

    pensamento Xavante esto por toda a parte. Ao traduzirem waihuu para Portugus usam as

    palavras aprendo e ensino, como sendo sinnimos. O processo de preparao e

    amadurecimento de um indivduo para a vida adulta na comunidade fornece exemplos de

    como saber ensinar a ser um Xavante faz parte de saber aprender a ser um Xavante, e

    vice-versa, reiterando o significado de waihuu. Aprender-ensinar-saber ser um Xavante,

    porm, no se concentra apenas na etapa de iniciao e/ou na posterior, onde se adquire a

    to desejada maturidade. Trata-se, sim, de um longo processo que se pe em movimento j

    a partir da concepo, manifestado simbolicamente atravs do uso dos batoques auriculares

    pintados de vermelho, por parte dos homens, durante o intercurso sexual. No decorrer da

    gravidez da mulher, h uma srie de restries e tabus que devem ser observados pelo pai

    da criana que vai nascer, e que tm implicaes diretas com as condies favorveis ao

    parto, e sade da esposa e do beb15.

    As monografias sobre sociedades indgenas no Brasil referem-se infncia como

    sendo um perodo de preparao do indivduo para a vida adulta e para ser investido de

    funo social. H, realmente, uma preparao em curso desde os primeiros anos de vida e,

    de fato, uma vez adulto, o indivduo assume uma srie de funes sociais especficas. Esta

    parece-me ser, porm, uma viso parcial de todo o processo. A iniciao vida adulta no

    inaugura a existncia de funes sociais na vida do indivduo mas, sim, abre caminho para

    que outras funes sociais tomem lugar e forma, funes estas que se desdobraro em

    outras ainda, no decorrer de etapas futuras de crescimento e maturidade. Este trabalho

    pretende demonstrar que as crianas tm um papel social e/ou uma funo social definidos,

    atuantes, e at mesmo imprescindveis na vida do grupo domstico e da comunidade. Capt-

    los tem sido possvel porque, em vez de considerar as crianas como adultos em potencial,

    como um eterno vir a ser, eu as tenho considerado como crianas que so. Se h um

    processo atravs do qual o indivduo se torna um Xavante, eu no posso resumir esse

    15 SEEGER ET AL (1979:11) referem a uma relao entre o modo como se fabrica, decora, transforma e destri o

    corpo, e a mitologia, vida cerimonial e organizao social. Sobre os Bororo, NOVAES (1986:162) explica que durante a gravidez, quando a me comea a manifestar preferncia por certo tipo de alimentos, que se inicia o processo de elaborao do indivduo social.

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    processo etapa em que ser um adulto Xavante se manifesta na plenitude das funes

    sociais e rituais que lhe competem como tal. Cada uma das etapas do ciclo de vida vivida e

    cumprida com inteireza, nas dimenses e atribuies que lhe so prprias. A da infncia est

    includa nesse processo e, em si mesma, encerra um universo de papis, funes, limites,

    possibilidades, aprendizados e descobertas que s ocorrem nesse perodo. Deve, por isso,

    ser considerada to importante como as demais.

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