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R E S E N H A A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL ~ Sociedade contra o Social" é antes de tudo uma chamada concentrada para o papel indispensável que a Filosofia Política pode as- sumir na análise crítica de sociedades contemporâne- as, incluindo-se aí o Brasil. Ao contrário do estigma de reclusão e contemplação que ron- da o intelectual desta área, a filosofia política da qual fala ]anine é uma filosofia da atuação, uma filosofia que só ganha significado quan- do coloca para si a pergunta sobre a ação, quando assume o tom crítico de uma reflexão na qual prepondera, diferentemente do que caracteriza as ciências, a "imaginação': o "so- nho" ou, quem sabe, a "utopia". ]anine quer falar de uma reflexão na qual se faz permiti- da a abertura para o novo, para o surgimento de novas idéias, novas discussões e novas realidades. "Sem ação no horizonte não há filosofia politica"! (0). Nesse sentido, é na indagação sobre a ética e a política que a filosofia encon- tra razão de existir. "Desengatada" do imedia- to e distanciada "imaginativamente" do presente, ela toma possível a procura do "inu- sitado". Longe de conceber idéias estéreis, ela tem sua "utilidade" justamente na tentativa de pensar uma sociedade determinada, de contri- buir com seus conceitos acerca da política, da representação, do público e do privado. Eis, assim, um dos objetivos desse campo do saber e, especialmente, dessa obra que constitui o mais recente livro do filósofo Renato ]anine Ribeiro, elaborado a partir de artigos, original- mente publicados em jornais de circulação na- cional, e de textos que fizeram parte de coletâneas organizadas por outros autores, agora modi- ficados e reescritos. Neste exercício de comentar um pouco daqui- lo que se estende pelas mais de duzentas páginas do livro, podemos começar com a seguinte questão: por que '~Socieda- de Contra O Social"? Como entender, nesse trocadilho, que o substantivo "sociedade"possa se opor ao adjetivo "social'? De início, ]anine vai mostrar que, curiosamente, o primeiro evoca uma idéia de atividade enquanto que o segundo traz à tona uma noção de passivida- de. A sociedade, reduzida ao papel de agen- te econõmico, de consumo, enfim, reduzida à instância econõmica, é vista como "ativa" por- que, supostamente, tem o poder de tomar decisões, ao mesmo tempo em que, numa relação de oposição, o social é visto como sinônimo de "carência", de falta ou falha. Dessa concepção, um tanto esquizofrênica, resulta que "a sociedade é ativa enquanto eco- nomia, e passiva enquanto vida social= (23). É disso que o autor quer tratar: de "uma subordinação da vida social à econômica" (21), de como a "sociedade" se tomou sinôni- mo de "economia" (que é "moderna" e "sé- ria "), perdendo uma dimensão caracterizada pelo "social" (visto como "perdulário" e "ar- caico '). Esse tomar-se mera demanda econô- mica, melhor dizendo: essa transformação redutora é que explica o desdém com que o Brasil olha para profundos problemas de or- dem social e política. Aqui, injustiça, corrupção e desigualda- de são elementos que fazem parte de um contexto ideológico que os neutraliza (ao DE RENATO JANINE RIBEIRO A Sociedade Contra o Social - o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. POR JOCENY PINHEIRO Socióloga e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. PINHEIRO, JOCENY. A SOCIEDADE CONTRA O SoCIAL... P. 129 A 133 129

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R E S E N H A

A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL

~

Sociedade contra oSocial" é antes detudo uma chamadaconcentrada para o

papel indispensável que aFilosofia Política pode as-sumir na análise crítica desociedades contemporâne-as, incluindo-se aí o Brasil. Ao contrário doestigma de reclusão e contemplação que ron-da o intelectual desta área, a filosofia políticada qual fala ]anine é uma filosofia da atuação,uma filosofia que só ganha significado quan-do coloca para si a pergunta sobre a ação,quando assume o tom crítico de uma reflexãona qual prepondera, diferentemente do quecaracteriza as ciências, a "imaginação': o "so-nho" ou, quem sabe, a "utopia". ]anine querfalar de uma reflexão na qual se faz permiti-da a abertura para o novo, para o surgimentode novas idéias, novas discussões e novasrealidades.

"Sem ação no horizonte não há filosofiapolitica"! (0). Nesse sentido, é na indagaçãosobre a ética e a política que a filosofia encon-tra razão de existir. "Desengatada" do imedia-to e distanciada "imaginativamente" dopresente, ela toma possível a procura do "inu-sitado". Longe de conceber idéias estéreis, elatem sua "utilidade" justamente na tentativa depensar uma sociedade determinada, de contri-buir com seus conceitos acerca da política, darepresentação, do público e do privado. Eis,assim, um dos objetivos desse campo do sabere, especialmente, dessa obra que constitui omais recente livro do filósofo Renato ]anineRibeiro, elaborado a partir de artigos, original-mente publicados em jornais de circulação na-cional, e de textos que fizeram parte de

coletâneas organizadas poroutros autores, agora modi-ficados e reescritos.

Neste exercício decomentar um pouco daqui-lo que se estende pelasmais de duzentas páginasdo livro, podemos começar

com a seguinte questão: por que '~Socieda-de Contra O Social"? Como entender, nessetrocadilho, que o substantivo "sociedade"possase opor ao adjetivo "social'? De início, ]aninevai mostrar que, curiosamente, o primeiroevoca uma idéia de atividade enquanto que osegundo traz à tona uma noção de passivida-de. A sociedade, reduzida ao papel de agen-te econõmico, de consumo, enfim, reduzida àinstância econõmica, é vista como "ativa" por-que, supostamente, tem o poder de tomardecisões, ao mesmo tempo em que, numarelação de oposição, o social é visto comosinônimo de "carência", de falta ou falha.Dessa concepção, um tanto esquizofrênica,resulta que "asociedade é ativa enquanto eco-nomia, e passiva enquanto vida social= (23).

É disso que o autor quer tratar: de "umasubordinação da vida social à econômica"(21), de como a "sociedade" se tomou sinôni-mo de "economia" (que é "moderna" e "sé-ria "), perdendo uma dimensão caracterizadapelo "social" (visto como "perdulário" e "ar-caico '). Esse tomar-se mera demanda econô-mica, melhor dizendo: essa transformaçãoredutora é que explica o desdém com que oBrasil olha para profundos problemas de or-dem social e política.

Aqui, injustiça, corrupção e desigualda-de são elementos que fazem parte de umcontexto ideológico que os neutraliza (ao

DE RENATO JANINE RIBEIROA Sociedade Contra o Social - o alto custo

da vida pública no Brasil. São Paulo:Companhia das Letras, 2000.

POR JOCENY PINHEIROSocióloga e mestranda pelo Programa de

Pós-Graduação em Sociologia daUniversidade Federal do Ceará.

PINHEIRO, JOCENY. A SOCIEDADE CONTRA O SoCIAL... P. 129 A 133 129

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menos na aparência), pois à possível vergo-nha dessa colossal miséria social se opõe aconcepção de um país constituído pelo "hu-mor", pela "leveza ". pela descontração etc.(qualidades que se supõe excluir de um in-vestimento mais rigoroso na justiça). Em ou-tras palavras, trata-se de associar à injustiça obem-estar, a frouxidão da vida cotidiana, aalegria contagiante e irracional de um paísalegórico que vive em festa - o país do fute-bol, do carnaval e da novela. Inversamente,significa traduzir justiça por seriedade, mal-humor ou chatice. Nessa associação, revela-mos nada mais que nossa marca registrada: odesejo incessante de tentar extirpar o caráterconflituoso presente nas relações sociais. Ade-mais, ambas as concepções, seja de justiça oude humor, para ]anine, parecem limitadas,fundadas no preconceito. Seu efeito último énos fazer acreditar numa "cisão radical" entre"a risada e a justiça" (39)3 .

Corroborando com sua tese, num dosartigos, intitulado "Grandeza e miséria do 'po-liticamente correto ''', o autor ressalta a resis-tência que o movimento do "poiiticamentecorreto '{PC) encontrou no Brasil como exem-plo ilustrativo da dificuldade que temos denos desfazer desses preconceitos aqui pos-tos. É comum se ouvir dizer que ser "politica-mente correto" nada tem de interessante ouautêntico. Na "zombaria" contra o exagerodesse movimento (cujo empenho está em fa-zer a crítica da dominação masculina, do ra-cismo e de várias outras bandeiras) ou melhor:na vigilância contra o "patrulhamento" quefaz o "PC" se esconde um velho e perversoconservadorismo, travestido sob a pretensãolibertária que julga possuir a crítica em rela-ção à linguagem" ou à criação artística. Oexagero ou o "ridículo" da censura, que o"PC" procura impor à mídia e aos costumesem geral, pode parecer pouco ou quase nadaquando pensado em meio àquilo que tentacombater: nosso humor "sócio da prepotênciae da opressão ", nosso humor televiso que "emboa medida se faz de imagens negativas, emespecial da mulher e do homossexual, apre-sentando ambos como 'menos: com um défi-

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cit em relação à razão, ao equilíbrio, à nor-ma" (39)5 .

Sem sacudir tais metáforas, a da mulher,do índio, do negro, do homossexual etc. comoinferior, não se pode apontar para uma "ex-periência social que permita a novidade" (44).Sem desconstruir imagens tradicionais, o Bra-sil perpetua a ideologia de que toda a iniqüi-dade social de que padecemos não passa demera ilusão perceptiva. Diriam alguns que éuma simples questão de transigir melhor comas piadas, as historietas que gargalham emfavor da discriminação e reiteram toda sortede apartação. É um simples não prestar aten-ção nessas diminutas coisas (como palavras,canções, textos ou propagandas) quesedimentam os valores e crenças de um gru-po, de um país inteiro. Aqui, na verdade, pa-rece rezar a máxima de que não se deve dartanta importância ao Brasil que se constróipela novela'' , que se descobre na novela, nastramas do horário nobre da televisão brasileira.

É por tal percurso que ]anine proble-matiza "O Brasil pela novela" (título de umdos artigos), expondo sua importância estam-pada no fato de ter sido a "nova" moeda bra-sileira (em 1994) - o Real - anunciadaprimeiramente num capítulo de "Fera Feri-da", antes mesmo que se começasse a divul-gar oficialmente a mudança da nomeaçãomonetária. Vende-se, aí, a imagem de "umpaís que vai pra frente", constrói-se um signoque, na tentativa de atuar como "marco zero"(deixando para trás a nossa história decorrupção e superinflação), procura nos fazeresquecer de um passado agora visto como"mítico" (no sentido da "ficção" ou de puracriação). Um passado carregado de injustiçase mazelas, considerado como Ilusão a serdescortinada com a chegada do Real.

O autor nos faz notar, também no texto"O real e seu imaginário ou O fim da esquer-da iluminista ': que o novo papel-moeda che-ga impresso sob a forma de coloridos animaisde nossa fauna. Ora, mais o que é esse Realmaterializado em cédulas de um, cinco, dezou cinqüenta unidades, senão um reforço ànossa identidade edênica de país grandiosa-

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mente abençoado pela natureza? É mais umsímbolo de exaltação ao que aqui se tem de"melhor": fauna e flora que configuram umanatureza exuberante. O que está por trás dis-so é que "nossa classe dominante", na visãode Chauí (citada por janine), "nega a históriae tenta identificar seu domínio com a nature-za" (85). O Brasil não é a sociedade do social(que grita "socorro"), mas, sim, a sociedadeque se orgulha do "natural", do que não estána dimensão da história, do que não é daordem dos fatos socialmente construídos.

Diante de uma concepção que minorizao valor do social e, principalmente, da histó-ria (esse instrumento que Walter Benjamindizia ser imprescindível ao estranhamento ouà desestabilização do presente), vê-se quenosso passado, pelo contrário, "torna-se umaespécie de fantasia, de delírio coletivo e vão"(86). Nega-se a história porque ela remonta,inevitavelmente, a erros e falhas. Mesmo quan-do se volta a tentar representá-Ia (fato ocorri-do com a circulação de moedas metálicas quetraziam a figura de personagens "ilustres",oficiais), atestamos mais uma vez que "nossahistória é gelada. Não inspira a ação '{97). Éuma história esvaziada de sentido. Não passade retrato do pouco apreço que mantemospela idéia de "processo", de "construção" deuma trajetória coletiva. Convivemos mal como passado e preferimos mesmo não motivar oexercício de uma memória social que não seja"enquadrada" ou forjada.

Mais que isso, diz o autor no arti-go "Intermez zo variado ", convivemos mal"com o tempo; ou, ainda, com o outro, com osocial" (100). Disso decorre nossa inabilidadepara gerar espaços públicos, para "gestar o co-letivo". O espaço político sucumbe ao que éda ordem do privado, aos interesses da "pes-soa". Nada se faz tendo em vista a esfera pú-blica e mesmo as denúncias contra o familismoamoral (em medidas e atitudes de govemantes)são feitas tão-somente no momento em queentram em choque demandas particulares degrupos específicos que se digladiam pelo po-der. Eis a eterna confusão entre a delimitaçãodaquilo que está no território do público e do

privado. Uma situação típica dessa lógica -janine nos rememora no texto "Umapolíticasem políticos: Collor e Senna ':'"foi "a lavagemde roupa suja" do caso Collor. Tanto o irmãodo presidente quanto sua mãe aparecem "nãopara defender os valores da vida pública (lisu-ra, racionalidade) contra sua possível corrup-ção ", mas sim "afim de garantir a jurisdiçãoda família sobre sua sujeira, de assegurar queuma parte dos negócios públicos continuassea ser tratada como questão de família " (115).

A discussão se tomou "pública" apenasno sentido do publicitário,ou seja: transformou-se em assunto da rnídia, o que não tirou daquase totalidade de cidadãos brasileirosa con-dição de simples espectadores e não participesde um debate político de fato. Isso deixa clarocomo mantemos uma profunda ligação com aapropriação patrímonialista desse espaço. Pú-blico para nós é qualquer coisa "que se expõeaos holofotes" (117). Os homens da mídia são,assim, admiráveis, os homens da política não.Os primeiros, pela fama, transformam-se emnossos heróis, os últimos em vilões.

Curiosamente, no Brasil, herói não éaquele capaz de uma atitude superior à dosdemais mortais, não é "o primo do mártir"que se sacrifica em nome do bem comum,mas sim um personagem que persegue tãosomente seus interesses, vence e, ainda as-sim, toma-se louvável, simplesmente um ho-mem de "atos heróicos". Um ator que nãosobrevive a um acidente de carro, a uma do-ença qualquer, pode ser um provável candi-dato à imolação que vimos acontecer com amorte de um esportista (dedicado ao automo-bilismo) que levou o país inteiro a uma co-moção sem igual. Em suma, herói não é maisaquele que virtuosamente se dedicou à causapública, não é mais o altruísta, mas simples-mente aquele que permaneceu buscando suaprópria satisfação. É "Sinal dos tempos, quan-do no esvaziamento dos políticos prosperamos homens de midia" (117).

Já não importa mais que nosso heróiseja um homem como nós: alguém que nãosobrevive "a disposição de ir além da vanta-gem imediata ", pois construímos e nos acos-

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tumamos a investir tão pouco no espaço pú-blico que "não perder de vista nossas raízesna casa" (140) nada tem de anormal, daí quenão vejamos paradoxo algum, por exemplo,na eleição de Senna a herói nacional. "Daíque nossas ações, mesmo políticas, não trans-figurem o individual, o imediato, em social ecoletivo" (140). Nossa renúncia é sempre "àcoisa coletiva em favor das virtudes individu-ais" (159). Por isso, nossa vida social é muitocara. Não há articulação efetiva entre "opes-soal e o social", "o privado e o público", "ointeresse com a política". Não conseguimosproduzir uma vida social que se dê sob ojulgo da ética, e quedamos por nos confinar"no lar e nas relações íntimas" (161).Emsuma,"apolítica nos amedronta e a intimidade nosconforta" (161).

De todo jeito, "bipostasiamos a intimi-dade". Caímos em sua tirania, sustentando umacultura que engendra a corrosão das relaçõessociais horizontais e que desgasta "as estrutu-ras de poder formal", tornando a república ea democracia tolerantes ou mesmo compatí-veis com a corrupção. A tirania da intimida-de", que reside na busca do interesse privado,substitui o que um dia - na república antiga -foi a procura da "virtude". Perdemos, assim,com essa substituição, "o senso do públicocomo algo distinto e superior aoprivado" (178).

Nessa discussão, ]anine chama nossaatenção, tanto em "Uma vida social muito cara"quanto em "Dapolítica da corrupção", para ofato de que a corrupção usual não é apenasum "furto" (como parece notar o senso co-mum), não se reduz à apropriação indevidado dinheiro ou da propriedade pública. Acorrupção é o ataque a um bem "num sentidotambém, ou sobretudo, moral, ético" (178),portanto, o investimento que devemos fazersobre esse bem jamais será restrito ao econô-mico. "Torna-se necessário não pensar a soci-edade pelo primado da economia. A vida socialé mais do que a econômica" (179), emboratenhamos nos adaptado a esperar tão poucoda mesma, participando dela quase nada.

Talvez, essa vida social da qual nos falao autor nunca tenha se tornado barata, não

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mais que a vida da polis grega, da ágoraateniense ou da societas romana. Isso porqueela nos parece ser sentida como algo extre-mamente oneroso, "muito mais onerosa doque seria para um republicano antigo" (184).É "caro"o contato com o outro, "caro" não nosentido de algo que se quer , mas sim nosentido de algo que custa mais do que estamosdispostos a pagar. É pesaroso o contato como outro - aquele com o qual não se compar-tem laços de intimidade. É fatigante encontrá-10 na reunião de departamento, nocondomínio, na assembléia, na praça ou mes-mo na rua. Por isso, vivemos o paradoxo deuma vida social teoricamente barata, porquenão requer investimento maciço e conscientepor parte do indivíduo, mas realmente cara,visto que nos é sentida como algo pouco su-portável e, muito menos, desejável.

O nosso social, além de tudo, é "empo-brecido" em razão do condicionamento quesofre pelo discurso da "necessidade", da rea-lidade para a qual aponta a economia. Nova-mente, optamos por uma cisão, dessa vez entrea economia e a política. Preferimos Mandevillea Maquíavel", pensando que o social pode"funcionar" a esmo, por conta própria (deacordo com a mão invisível de Adam Smith,qual seja: o mercado) e não que o indivíduo,criativamente, possa ser o "político", o "prín-cipe", estimulado a descobrir outras saídas quenão aquelas dos "moldes" ou "modelos" jáestabelecidos. Preferimos, tragicamente, pensa]anine em '~s duas éticas ou A ação possível",agir viciados por uma "ética dairresponsabilidade" (208), antenados, muitasvezes, com as intenções, mas não com as con-seqüências de nossos atos. Acontece que in-tenções só valem no plano das relações deintimidade (e já aí quase não mais valem) en-quanto que na política, no trato com o outro,com o desconhecido, o que está em jogo é oresultado efetivo de nossas ações. Intençãonada vale quando se rompe o limiar da inti-midade. Não é suficiente a "boa" intenção di-ante do fracasso, é preciso que uma ação seconverta em benefício, em êxito de fato. Noafastamento, "o resultado seco passa a valer

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BH/UFC

mais do que ofundo de meu coração. É essa aética da responsabilidade" (212).

Contudo, não há formato "correto" parao agir político. "Agirpoliticamente é moldar aprópria vida sem seguir uma regra anteri-or'(216). O que define a situação é o movi-mento da "ação criadora" que se interessapela invenção de "novas formas de ação e deassociação" (216). E para realizar tal coisa,]anine nos alerta: não é preciso ser príncipeou monarca, urge ser tão somente cidadão,ser sujeito instigado a inovar, a agir tendo emvista a responsabilidade social que cada umpossui e deve desenvolver à luz do legadomaquiavélico que é o de pensar a políticacomo "tudo aquilo que, sem ter metro prévio,exige uma ação criativa ", "uma ação que nãotem como sepautar por normas prévias" (216),em outras palavras, um dar-se a chance de seencontrar, responsavelmente, com o impre-visto, com a novidade.

A responsabilidade social é tanto nossaquanto dos outros, daqueles que estão no topodo poder institucionalizado. Por piegas quepareça, não há como negar que está em nos-sas mãos a possibilidade de reverter o quadroclínico que diagnostica o Brasil como porta-dor 1) de uma esquizofrenia entre sociedadee social, entre economia e política, e 2) deuma confusão entre os domínios do público edo privado, da família e da política. Ora se-parando, ora fundindo os camposindevidamente, estamos sempre à margem depossíveis caminhos que nos levem a uma vidapública de menor custo ou de maior benefí-cio. Eis o desafio que ]anine coloca para oseu leitor quando diz a ele que "a políticaestá em suas mãos" (218), ou seja: "a políticaestá em nossas mãos", cabendo a nósreinventá-Ia a cada instante, cabendo a nósinverter a ordem em que se inscreve o Brasildas virtudes privadas e dos vícios públicos -razão de uma vida social muito cara.

NOTAS

1 O autor argumenta, nesse sentido, que "afilosofia política não pode nascer fora dapolítica" (10) .

2 É como enxergar a sociedade como "es-sencial" e o social como "dispensável ".

3 Nesse "elogio do humor" e "crítica da gra-vidade': uma questão se coloca: "até quan-do a gargalhada sairá maisfácil quando vierdo preconceito, e não da crítica?" (39).

4 'A linguagem não é neutra', diria Freud re-tomado por ]anine. A crítica ao uso de de-terminados termos (associados a algunsgru pos discriminados) tem em vista talassertiva, procura tão somente combater aperpetuação de uma violência simbólica,tantas vezes sutil, que se faz nos mais di-versos canais da vida social brasileira.

5 ]anine indaga "o que é o ridículo presentenas ações exageradas do movimento "PC"na frente de nossa opinião pública que tan-to incita à violência nas rádios matutinas, aquem ridiculariza e humilha a mulher, onegro, o homossexual nos programas dehumor?" (32)

6 Na maioria dos casos, nela se reproduzemmuitas das imagens convencionais da figu-ra feminina como personagem fútil, do ne-gro como pobre, empregado doméstico esubmisso, do homossexual encarnado notravesti de rua etc.

7 A "tirania da intimidade" é tambémtematizada pelo filósofo Francisco Ortegaem seu recente livro intitulado "Para UmaPolítica da Amizade", publicado pela-Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 2000.

8 No entanto, invertemos a equação deMandeville quando, ao invés de vícios pri-vados resultarem em virtudes públicas, fun-cionamos de modo que nossas virtudesprivadas se revertam em vícios públicos evice-e-versa.

PINHEIRO, JOCENY. A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL. .• P. 129 A 133 133